Dez meses após a morte da iraniana Mahsa Amini, os grandes protestos antirregime estão ausentes das ruas, mas as razões do descontentamento popular continuam vivas. Em entrevista ao Expresso, um membro da oposição no exílio diz que “o Irão é uma sociedade explosiva” e que “ninguém deve ficar surpreendido se acordar amanhã e testemunhar a erupção de outro levantamento por todo o país”

Fora do Irão, Paris é uma espécie de capital da oposição ao regime dos ayatollahs. É na principal cidade francesa que tem sede o Conselho Nacional da Resistência do Irão (CNRI), o maior grupo no exílio de opositores ao regime iraniano, que se assume como “a alternativa democrática viável” à República Islâmica.
Este ano, pela primeira vez, uma manifestação convocada pelo CNRI esteve na iminência de não sair à rua. Agendada para 1 de julho, foi inicialmente proibida pela polícia, que alegou haver risco de perturbação da ordem pública.
A organização recorreu à justiça, que foi célere a deliberar. A 24 horas da iniciativa, o Tribunal Administrativo de Paris fez saber que um protesto previsto para durar três horas e circunscrito à Praça Vauban não implicava riscos.
A proibição foi revertida e o Governo francês foi condenado a pagar €1500 aos organizadores. A manifestação saiu à rua e nela participaram dezenas de milhares de iranianos, vindos dos quatro cantos do mundo.
“A decisão era totalmente injustificada. Que me lembre, pelo menos nos últimos 20 anos, nunca tivemos uma manifestação em Paris proibida. Afinal, tudo é muito consistente com o princípio básico não apenas da lei francesa, mas da lei europeia, de liberdade de expressão e de reunião”, diz ao Expresso, de Paris, Ali Safavi, membro do CNRI.
Pressões ao telefone
Para este iraniano, que integra o CNRI há mais de 40 anos — o conselho foi fundado em 1981 —, a posição inicial das autoridades francesas foi uma capitulação face à pressão exercida a partir de Teerão. A 10 de junho, foi notícia uma conversa telefónica de 90 minutos entre o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o seu homólogo iraniano, Ebrahim Raisi.
“Uma questão levantada por Raisi foram as atividades de — nas palavras do regime iraniano — contrarrevolucionários em solo francês, ou seja, da oposição ao regime, não só do nosso movimento mas também de outros iranianos ativos. Em certo sentido, talvez se possa concluir que, após aquela discussão de 90 minutos, Raisi exigiu alguma concessão.”
Nos últimos anos, o diálogo entre o Irão e países ocidentais tem implícita uma tentativa de atar o regime de Teerão a um compromisso relativo ao seu programa nuclear. Com escritórios em grandes países europeus e nos Estados Unidos, foi a partir do seu gabinete na Avenida da Pensilvânia, a 200 metros da Casa Branca, que o CNRI revelou, em 2002, a existência de duas centrais nucleares secretas (em Natanz e Arak) e detalhou atividades nucleares do regime.
No caso específico de França, há um interesse maior do que o nuclear para que Paris continue a cortejar Teerão: quatro cidadãos franceses detidos em prisões iranianas. Usar estrangeiros detidos arbitrariamente no Irão e acusados de espionagem ou atividades subversivas para pressionar governos ocidentais é prática conhecida da República Islâmica.
Este ano, França já conseguiu libertar três cidadãos de um total de sete. Em fevereiro, saiu em liberdade a antropóloga franco-iraniana Fariba Adelkha, detida em 2019 e condenada a seis anos de prisão.
A dupla nacionalidade de pouco lhe valeu, já que a República Islâmica não reconhece esse estatuto e considera apenas a cidadania iraniana. “É deveras lamentável que a política europeia tenha ficado vítima de sequestro e chantagem”, comenta Ali Safavi.
Em maio, para conseguir fazer regressar a casa um trabalhador humanitário belga, detido em Teerão, Bruxelas libertou Asadollah Assadi, diplomata iraniano condenado a 20 anos de prisão por envolvimento numa tentativa frustrada de atentado à bomba em França.
“Estes governos deviam encarar estas tentativas do regime iraniano como sinal de fraqueza. Isso mostra quanto temem o nosso movimento, não apenas devido às campanhas políticas fora do Irão como pelo seu impacto e influência dentro do Irão“, diz Safavi.
“No final de contas, acreditamos que a mudança deve vir de dentro do Irão. Temos uma enorme rede nacional dentro do país que mantém acesa a chama da resistência, apesar de toda a repressão, execuções e supressão” de direitos e liberdades.
Ciclo bárbaro de violência
A mais recente vaga de repressão no Irão teve como faísca a morte de Mahsa Amini, há quase dez meses, na sequência de ferimentos sofridos às mãos da polícia da moralidade, por não levar o hijab (véu islâmico) corretamente colocado. Os grandes protestos antigovernamentais que se seguiram foram silenciados recorrendo a um ciclo bárbaro de detenções, tortura e execução de manifestantes.
Uma técnica persistente, nos últimos meses, que a oposição atribui ao regime, são envenenamentos deliberados com químicos em escolas femininas, que já contaminaram mais de 1200 estudantes. Teerão assegura que a sua investigação não detetou quaisquer envenenamentos e acusou “inimigos” estrangeiros e dissidentes de fomentarem o medo.
O alvo escolhido é fácil de justificar: foram as mulheres quem teve um papel de liderança nos protestos após a morte de Mahsa Amini, que se tornou um símbolo dentro e fora de portas.
Na semana passada, a equipa brasileira de futebol feminino, que vai disputar o Mundial da FIFA, chegou à Austrália a bordo de um charter pintado com imagens de Mahsa Amini e do futebolista Amir Nasr Azadani, condenado a 26 anos de prisão por um tribunal revolucionário, acusado do assassínio de três elementos das forças de segurança, durante os protestos.
“A revolta no Irão durou sete a oito meses. Foram mortos cerca de 750 manifestantes, incluindo 70 crianças, algumas com apenas nove anos, e 61 mulheres. Nos dias seguintes, o regime usou espingardas de chumbo para alvejar os rostos das mulheres, cegando-as ou procurando desfigurá-las. Depois foram os ataques químicos em escolas femininas por todo o Irão”, enumera Ali Safavi. “Tudo isto foram tentativas do regime para intimidar a população.”
Protestos continuam noutro formato
O opositor salienta a resiliência dos iranianos e garante que as ações de protesto não foram completamente silenciadas. “Os protestos continuaram, embora a forma tenha mudado. O regime fez de tudo para evitar a enxurrada de grandes aglomerações dos meses anteriores, mas não conseguiu reprimir por completo os protestos. Quando têm oportunidade, marcham em menor número. À noite, cantam das suas casas e telhados. Alguns jovens tornaram-se mais desafiadores e usam cocktails Molotov ou outros meios para atacar bases dos Guardas da Revolução e dos Basiji [grupo paramilitar]. Há muitos vídeos a sair do país que o mostram. E o regime é muito combativo.”
Segundo a organização Iran Human Rights, com sede na Noruega, no primeiro semestre deste ano, o Irão enforcou 354 pessoas. Esta segunda-feira, o rapper Toomaj Salehi foi condenado a seis anos e três meses de prisão. Detido em outubro passado por apoiar os protestos antigovernamentais, enfrentava acusações que podiam valer-lhe a pena de morte.
“Os problemas económicos, políticos e sociais no Irão, a falta de liberdade, a pressão sobre as mulheres, a inflação descontrolada, o desemprego crescente, a escassez de alimentos, a falta de água, a destruição do ambiente, a imensa corrupção governamental… enquanto estas questões não forem resolvidas, haverá protestos”, vaticina o iraniano, recordando que o Irão tem as quartas maiores reservas de petróleo do mundo e as segundas maiores de gás.
“Ninguém deve ficar surpreendido se acordar amanhã e testemunhar a erupção de outro levantamento por todo o país. Desde 2016, o Irão foi palco de seis grandes protestos — em 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2022. Se não fosse a covid-19, também teria havido protestos em 2021”, conclui Ali Safavi. “O Irão é uma sociedade explosiva. As pessoas não têm ilusões de que este regime consiga resolver os problemas que têm atormentado o país nos últimos 40 anos.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de julho de 2023. Pode ser consultado aqui
