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Noite infeliz em Belém

As festividades foram canceladas na cidade onde Jesus nasceu. “Não podemos celebrar quando o nosso povo está a ser morto”

O presépio da Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém lembra as crianças mortas em Gaza MAJA HITI / GETTY IMAGES

O little town of Bethlehem
How still we see thee lie
Above thy deep and dreamless sleep
The silent stars go by

Ó pequena cidade de Belém
Tão quieta te encontramos
Sobre o teu sono profundo e sem sonho
Passam as estrelas silenciosas

Este clássico das canções de Natal, que anima a época há mais de 100 anos, descreve uma localidade idílica que em tudo contrasta com a realidade presente da cidade onde, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo nasceu. Belém fica no território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel há mais de 50 anos. Devido à guerra na Faixa de Gaza, as festividades foram canceladas. “Não foi difícil tomarmos a decisão”, diz ao Expresso o presidente da Câmara de Belém, Hanna Hanania. “Não podemos celebrar o Natal enquanto o nosso povo está a ser morto. E também a Cisjordânia está sob bloqueio militar.”

Não é a primeira vez que a conflitualidade afeta as celebrações natalícias em Belém, “mas não desta maneira”, diz o autarca. “Esta é a situação mais difícil por que o povo palestiniano já passou. Durante a pandemia, ainda tivemos algumas festividades virtuais e acendemos a árvore de Natal [na Praça da Manjedoura, contígua à Igreja da Natividade], numa cerimónia para um número limitado de pessoas. Desta vez, cancelámos tudo. Nunca enfrentámos uma guerra destas, testemunhamos crimes de guerra todos os dias, a maioria dos mortos são crianças. Como podemos festejar?”

Em Belém, apenas se mantêm as cerimónias religiosas dos vários ritos cristãos — a 25 de dezembro (para os católicos), 7 de janeiro (ortodoxos) e 19 do mesmo mês (arménios). Na Igreja Evangélica Luterana da Natividade de Belém, o presépio é um amontoado de pedras sobre o qual está deitado um menino Jesus envolto num keffiyeh, o tradicional lenço palestiniano. A instalação recorda as crianças de Gaza que ficaram sem teto ou pereceram sob escombros.

“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, muito ligada ao que se passa hoje em Gaza”, diz ao Expresso o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb, a partir de Belém. “Essa história fala da sagrada família, que tem de deixar Nazaré, no norte da Palestina, por decreto imperial, para ir para Belém, no sul — como aconteceu com o nosso povo em Gaza. Fala de Herodes, um ocupante sanguinário que tentou matar todas as crianças de Belém — em Gaza já foram mortas mais de 8000 crianças. Jesus nasce numa manjedoura porque não tem outro lugar — é o que está a acontecer a 50 mil mulheres grávidas em Gaza, que têm os seus filhos em tendas. E fala sobre o anjo que canta ‘glória a Deus nas alturas’, que significa glória ao Todo-Poderoso — e não aos poderosos. Hoje, Jesus é, na verdade, uma das pessoas em Gaza. Se alguém quiser vê-lo, é lá que ele está.”

Belém é visita indispensável para qualquer cristão que rume à Terra Santa no encalço dos passos de Jesus. É ali que se localiza a Igreja da Natividade, construída no século IV sobre a gruta onde os cristãos acreditam que José e Maria descansaram e Jesus nasceu. Outros destinos obrigatórios são Nazaré (no norte de Israel) e Jerusalém, que palestinianos e israelitas querem para capital dos seus Estados.

Ao longo do ano, Belém recebe entre milhão e meio e dois milhões de visitantes. “No Natal, o turismo internacional cai, porque as pessoas celebram com as suas famílias. Já o turismo local aumenta”, explica o autarca. “Na Páscoa, a maioria dos turistas é do mundo árabe, desde logo do Egito”, onde há dez milhões de cristãos (coptas).

“O Natal é, por excelência, uma história palestiniana, ligada ao que se passa em Gaza”, diz o reverendo evangélico luterano Mitri Raheb

Por estes dias, “não há um turista na cidade, estamos encerrados”, diz ao Expresso Joey Canavati, diretor do Alexander Hotel, a 800 metros da Igreja da Natividade. “Não podemos reabrir enquanto durar a guerra. As fronteiras e os checkpoints estão encerrados. Todos os 78 hotéis da cidade estão de portas fechadas.”

Um dos mais famosos é o provocador Walled Off Hotel, do misterioso artista britânico Banksy, com vistas sobre o muro de betão que separa Israel da Cisjordânia. “Devido aos grandes desenvolvimentos na região, optámos, com pesar, por encerrar o hotel, por enquanto”, lê-se num aviso publicado no seu site, a 12 de outubro, cinco dias após o ataque do Hamas a Israel, que espoletou bombardeamentos e uma invasão terrestre a Gaza.

Cristãos já não são a maioria

“A economia de Belém depende do sector do turismo”, diz o autarca. “Mal começou a agressão israelita, o motor económico parou.” Hanania estima que a população da cidade ronde as 33 mil pessoas. Apesar da centralidade de Belém no cristianismo, os cristãos não vão além de 20 a 25% da população. “O número de cristãos está a diminuir”, diz Mitri Raheb. “A cada dois, três anos, há uma guerra. As pessoas querem ter vida decente e em liberdade. Muitas emigram.”

Por decreto do líder histórico dos palestinianos, Yasser Arafat — a que o atual Presidente, Mahmud Abbas, deu continuidade —, o autarca de Belém é sempre cristão. No cargo desde abril de 2022, Hanania, cristão ortodoxo grego de 44 anos, explica o processo. Eleito por voto popular, “o Conselho Municipal tem 15 membros, que incluem presidente e vice-presidente. Oito devem ser cristãos e sete muçulmanos, e deve haver três mulheres. Se o presidente é ortodoxo grego, o vice é católico, e vice-versa. Este decreto surgiu para preservar o caráter da cidade. Além de Belém, isto acontece em mais nove cidades da Cisjordânia.” Uma delas é Ramallah, o centro administrativo.

Jerusalém à distância

Como qualquer outro palestiniano da Cisjordânia ou da Faixa de Gaza, o presidente da Câmara de Belém precisa de autorização das autoridades israelitas para ir a Jerusalém, por exemplo. Essa burocracia vale também para o reverendo Raheb, destacado teólogo de 61 anos, fundador e presidente da Universidade Dar al-Kalima (Belém) e vencedor do Prémio Olof Palme em 2015. “Desde 2000, não estou autorizado a ir a Jerusalém no meu carro, só posso ir de transportes públicos.” Todas as autorizações estão agora canceladas.

Quer o autarca quer o pastor testemunham uma boa relação, em Belém, entre a minoria cristã e a maioria muçulmana. “Somos o mesmo povo. Estamos unidos e lutamos contra a ocupação israelita”, diz Hanania. “Na nossa universidade, três quartos dos estudantes são muçulmanos”, destaca Raheb. Já a relação com os judeus é inexistente. “Temos o muro e não podemos entrar em Israel sem autorização”, continua o reverendo. E “há 22 colonatos judeus em redor de Belém que ocupam 86% das nossas terras”. No de Gilo vivem 40 mil pessoas.

Os entraves à circulação e a expansão dos colonatos inviabilizam, cada vez mais, a contiguidade entre Belém e Jerusalém, que distam menos de 10 quilómetros. A dificuldade de acederem à cidade onde fica o Santo Sepulcro priva os cristãos de viverem na plenitude os principais pilares da sua fé: o nascimento e a ressurreição de Cristo.

Nascido em Belém, de onde só saiu para estudar na Alemanha, o pastor Raheb qualifica assim a tragédia de Gaza: “é o pior momento da nossa história e da minha vida. Vivemos um genocídio, a comunidade internacional apoia e muitas igrejas estão em silêncio”. “Alguns cristãos sionistas apoiam Israel porque querem ver chegar o fim dos tempos. Acham que antes de Jesus voltar, haverá uma grande guerra e querem apressar essa segunda vinda. As igrejas alemãs ficam caladas devido ao Holocausto.”

Informação deste texto foi incluída no artigo “De Gaza à Ucrânia, passando por Itália: presépios de todo o mundo desunidos em tempos de guerra”, de Tiago Soares, publicado no “Expresso Online”, a 24 de dezembro de 2023. Pode ser lido aqui

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de dezembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Diário da ocupação dez dias antes de Biden chegar

A primeira viagem do Presidente dos EUA ao Médio Oriente levou-o a Israel, onde falou do Irão. Hoje tem na agenda a Arábia Saudita. Palestinianos são o parente pobre

Quando Joe Biden entrou na Casa Branca, no início de 2021, a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita estava fragilizada pelo assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Para o 46º Presidente, o crime era tão hediondo que o reino não escapava ao rótulo de “pária”.

Biden prometeu “recalibrar” a relação e desprezou o todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS), implicado pessoalmente no caso, privilegiando o contacto com o debilitado rei Salman. A confirmar o afastamento entre Washington e Riade, Biden retirou da lista de organizações terroristas os huthis (apoiados pelo Irão), que os sauditas combatem no Iémen.

A ano e meio de mandato, porém, o pragmatismo parece ter assaltado a política externa de Biden. O Presidente americano chega hoje à Arábia Saudita, pressionado pela urgência em convencer o maior exportador mundial de petróleo a abrir as torneiras para que os preços da energia desçam nos mercados internacionais. A visita inclui um encontro com MbS.

Biden chega à Arábia Saudita após dois dias em Israel. O voo direto entre Telavive e Jeddah indicia uma intenção: pressionar no sentido da normalização da relação diplomática, como já aconteceu, desde 2020, entre Israel e Emirados Árabes Unidos, Barém, Sudão e Marrocos.

Os Acordos de Abraão são uma autoestrada de aproximação do Estado judeu ao mundo árabe, em nome de um inimigo comum: o Irão. Na escala em Israel, Biden defendeu um novo acordo sobre o programa nuclear iraniano (a que Israel se opõe) e garantiu que a opção militar continua sobre a mesa, “como último recurso”, para impedir Teerão de aceder à bomba atómica.

A visita permitiu também um encontro entre dois dirigentes aflitos: o próprio Biden, que pode perder a maioria democrata no Congresso nas eleições de 8 de novembro, e o primeiro-ministro israelita Yair Lapid, que tem legislativas marcadas para 1 de outubro, as quintas em menos de quatro anos. Como nas anteriores, não se prevê que o conflito israelo-palestiniano mobilize o eleitorado.

Hoje, Biden estará umas horas no território palestiniano ocupado da Cisjordânia. Em Israel, prometeu enfatizar o apoio à solução de dois Estados, “mesmo que não seja [viável] no curto prazo”. Até lá, a ocupação israelita continuará a desbravar terreno, nas suas múltiplas expressões.

3 julho: Assédio judeu a Al-Aqsa

Pelo menos 114 colonos judeus extremistas irrompem pela Esplanada das Mesquitas, na cidade velha de Jerusalém, protegidos por polícias israelitas. De forma provocatória, passeiam-se junto à mesquita de Al-Aqsa, o terceiro lugar santo para os muçulmanos. Realizam também rituais talmúdicos e recebem explicações de rabinos sobre a importância do Monte do Templo, como os judeus chamam ao local. Os crentes muçulmanos são barrados por seguranças nos portões de acesso.

4 julho: É proibido construir

Seis famílias palestinianas de Khirbet Humsa al-Tahta, comunidade beduína do Vale do Jordão (a zona fértil da Cisjordânia), recebem ordens escritas das autoridades israelitas para pararem de construir em 30 estruturas. Este aglomerado está cercado por israelitas em três lados: o colonato de Hamra, um campo de treino militar e um checkpoint. Esta é uma prática com que Israel visa contribuir para expulsar os palestinianos de certas terras, para que as áreas ocupadas por judeus se expandam.

5 julho: Água não é para todos

Forças israelitas destroem condutas junto a uma nascente de água, que abastece a aldeia de Duma, no norte da Cisjordânia. É também demolido o muro de proteção e trabalhos de reabilitação recentes, feitos pelas autoridades da aldeia. Estas tentaram, em vão, que um tribunal israelita impedisse a destruição da infraestrutura. Na Cisjordânia, o acesso à água faz-se de forma discriminatória: é fácil para os colonos, difícil para os palestinianos, que têm de a comprar a Israel.

6 julho: Cerco aos pescadores

A marinha israelita abre fogo e dispara jatos de água na direção de pescadores da Faixa de Gaza, acusando-os de violação do limite de três milhas náuticas, que estão obrigados a respeitar. O incidente, de que não resultam mortos ou feridos, acontece ao largo das cidades de Jabalia e Beit Lahia, no norte do território. Israel já não tem tropas nem colonos na Faixa de Gaza (onde vivem dois milhões de pessoas), mas ocupa-a desde 2007 por “controlo remoto”, com um bloqueio por terra, ar e mar.

7 julho: Bulldozers ao ataque

Na aldeia de An-Nabi Samwil, em Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade anexada por Israel), bulldozers municipais arrasaram um terreno murado com árvores e um lava-jato, pertencentes a palestinianos, alegando não terem licença. Esta prática é muito usada para dificultar o quotidiano dos palestinianos e levá-los a abandonar terras. Os bulldozers tornaram-se arma da ocupação, ao ponto de empresas como Caterpillar, JCB, Volvo ou Hyundai serem alvo de campanhas de boicote por venderem equipamentos a Israel.

8 julho: Política para empatar

A cinco dias da chegada de Biden, o primeiro-ministro de Israel, Yair Lapid, telefona ao Presidente da Autoridade Palestiniana (AP), Mahmud Abbas para, segundo o diário israelita “Haaretz”, discutirem “a continuidade da sua cooperação e a necessidade de manter a calma e o sossego na região”. A ocupação israelita beneficia da divisão política palestiniana. Aos 87 anos, Abbas mantém-se, há 17, inamovível à frente da AP (que governa a Cisjordânia) e em Gaza manda o grupo islamita Hamas.

9 julho: Vidas sem valor

No checkpoint de Jalama, a leste de Belém, o cadáver de Faleh Mousa Jaradat é finalmente entregue à família. Este palestiniano de 39 anos fora alvejado, a 17 de janeiro, por soldados israelitas que o acusaram de tentar esfaquear um militar. Israel reteve o corpo como medida de punição. Neste mês de julho, já morreram quatro palestinianos às mãos de israelitas: três homens de 18, 20 e 32 anos (dois a tiro e um por agressões), na Cisjordânia, e uma mulher de 68 anos, numa prisão de Israel.

10 julho: Presos em protesto

Ra’ed Rayyan, de 27 anos, cumpre o 95º dia em greve de fome. Detido na Prisão Hospital de Ramleh, em Israel, este palestiniano de Jerusalém exige o fim da sua detenção administrativa, que dura há meses. Dos mais de 4600 palestinianos presos em Israel (entre os quais 30 mulheres e 180 menores), 640 estão nessa situação: detidos sem acusação ou julgamento. Em janeiro, mais de 450 iniciaram um protesto, que dura até hoje, e recusam-se a comparecer nas sessões, em tribunal militar.

11 julho: A lei dos colonos

Cerca de 450 árvores de fruto são arrancadas de terras árabes por colonos judeus, em Turmusaya e Mughayir (nordeste de Ramallah). Os colonos invadem-nas acompanhados por militares israelitas, cuja missão na Cisjordânia é só proteger os 500 mil judeus que ali vivem, entre três milhões de árabes. A violência dos colonos manifesta-se ainda no bloqueio de ruas, arremesso de pedras contra carros e casas, queima de oliveiras, vandalização de colheitas e agressões físicas.

12 julho: Detenções em massa

Nove palestinianos são presos durante incursões de forças israelitas em várias localidades da Cisjordânia e na área de Jerusalém. As detenções em massa são uma forma de intimidação das populações. No dia 6, foram detidos 42 palestinianos e dois dias antes 25. Em junho, as forças israelitas levaram 464 palestinianos, incluindo 70 crianças e 18 mulheres. Desde 1967, perto de um milhão de palestinianos terão passado pelas prisões israelitas. Algo que afeta quase todas as famílias.

(ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

10 armas ao serviço da ocupação israelita

Israel controla a Cisjordânia e a Faixa de Gaza desde a guerra de 1967

Erosão do território palestiniano em consequência da evolução da ocupação israelita PALESTINE PORTAL

Uma das decisões mais polémicas da Administração Trump foi o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e a transferência da embaixada de Telavive para a Cidade Santa. Com Joe Biden na Casa Branca, não há promessas de que a representação diplomática faça o caminho inverso. No entanto, a vice-presidente eleita, Kamala Harris, afirmou que os Estados Unidos irão reverter algumas medidas de Trump, nomeadamente a suspensão da assistência económica aos palestinianos.

A confirmar-se, Washington ficará aquém do ponto em que estava em relação à questão palestiniana quando surgiu Trump, ainda que no terreno a ocupação israelita se intensifique a cada dia que passa, indiferente mesmo à pandemia.

1. COLONATOS
Pelos Acordos de Oslo de 1993, os palestinianos aceitaram ficar com apenas 22% da Palestina histórica, mas hoje nem essa parcela controlam. Ilegais face ao direito internacional, os colonatos judaicos têm crescido de forma consistente, à custa do confisco de terras árabes. Há duas semanas, pela primeira vez em 15 anos, o Governo israelita autorizou a construção de 31 novas casas nos colonatos de Hebron, onde colonos e árabes vivem em regime de apartheid. Hoje, mais de 600 mil judeus vivem em pelo menos 250 colonatos (muitos deles ilegais) na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Esta semana, a ministra dos Transportes israelita, Miri Regev, desvendou um plano de expansão da rede de transportes públicos na Cisjordânia. Com conclusão prevista para 2045, é um indicador de como, para Israel, a ocupação é um projeto de longo prazo.

2. VIOLÊNCIA DOS COLONOS
Correspondem a 13% da população da Cisjordânia e vivem protegidos por militares israelitas, destacados com essa única missão. Esse privilégio contribui para um historial de agressividade dos colonos contra as populações árabes: invasão de propriedades, assédio e insultos, apedrejamento, vandalismo de zonas agrícolas, queima de árvores, roubo de safras. A 15 de outubro, a ONG israelita B’Tselem registou o testemunho de Khaled Masha’lah, de 69 anos, pai de seis, morador na região de Hebron, a quem os colonos cortaram 300 oliveiras. Segundo outra ONG israelita, Yesh Din, 91% das queixas contra colonos são arquivadas por “falta de provas” ou “agressor desconhecido”. Israel aplica aos colonos a lei civil e aos palestinianos a lei militar.

3. DEMOLIÇÕES
A 3 de novembro, estava o mundo sintonizado nas eleições americanas, 11 famílias beduínas que viviam da pastorícia viram bulldozers militares arrasarem as tendas onde dormiam e os abrigos dos animais, na comunidade de Khirbet Humsah, no vale do Jordão. Ficaram sem teto 74 pessoas, incluindo 41 crianças. A demolição de casas árabes por razões administrativas é prática frequente, sobretudo em Jerusalém Oriental, em nome da judaização da Cidade Santa. Em 2019 foram ali destruídas 169 habitações. No total dos territórios, no ano passado, foram arrasadas 623 casas, diz o Comité Israelita Contra as Demolições de Casas (ICAHD).

4. CHECKPOINTS
São a face diária da ocupação. Há postos de controlo permanentes, no interior da Cisjordânia e na fronteira com Israel, atravessados diariamente por milhares de trabalhadores palestinianos, às vezes compactados como gado. Outros são pontuais, colocados aleatoriamente nas estradas. Por vezes, à entrada de aldeias são erguidas barreiras físicas com blocos de cimento, barras de metal, montes de terra. Segundo a ONG de mulheres israelitas Machsom Watch, que vigia o tratamento dos soldados aos palestinianos nos checkpoints, os habitantes são obrigados a avançar as barreiras a pé (doentes e mulheres em trabalho de parto) para apanhar transporte do outro lado.

5. MURO
Ao não passar exatamente sobre a Linha Verde — a fronteira reconhecida internacionalmente —, o muro que separa Israel da Cisjordânia rouba muitas terras palestinianas. Segundo a ONU, 11 mil habitantes da Cisjordânia ficaram do lado israelita do muro e vivem em guetos. Ao longo dos cerca de 810 quilómetros da vedação, cerca de 70 “checkpoints agrícolas” permitem a passagem de agricultores palestinianos para… as suas próprias terras de cultivo.

6. IMPOSTOS
Por acordo com os palestinianos, é Israel quem cobra os impostos pagos nos territórios. Depois, o dinheiro é transferido em tranches para a Autoridade Palestiniana (AP, o governo interino instituído pelos Acordos de Oslo), mas nem sempre ao ritmo desejado pelos palestinianos. Em entrevista ao Expresso, em outubro, o embaixador palestiniano em Lisboa dizia que, nos últimos meses, a verba que recebia da AP só lhe permitia pagar metade das despesas de funcionamento da embaixada.

7. ÁGUA E LUZ
O contraste no acesso à água é especialmente visível na Cisjordânia. Colonatos com piscinas e relvados bem irrigados não distam longe de aldeias árabes, onde a água é bem medida para acudir às necessidades básicas. Já na Faixa de Gaza, não há dia sem umas horas às escuras. Segundo a B’Tselem, dos 600 megawatts necessários ao consumo diário chegam só 180 (120 fornecidos por Israel). Hoje, Gaza tem energia em ciclos de oito horas; no verão, chega a estar meio dia sem eletricidade.

8. DETENÇÕES
Kamal Abu Waar morreu esta semana de cancro na prisão israelita de Ramla. Tinha 46 anos e estava detido desde 2003. Era um dos 4500 palestinianos presos em Israel, 545 dos quais a cumprirem prisão perpétua, segundo a ONG palestiniana Addameer. Há 40 mulheres e 170 menores, alguns com 12 anos, levados de casa durante incursões militares noturnas. Cerca de 370 casos são detenções administrativas, sem acusação ou julgamento. Estima-se que 40% dos homens palestinianos já tenham sido detidos uma vez.

9. IMPUNIDADE
Dias após a morte de George Floyd, nos EUA, saiu às ruas da Palestina o movimento “Palestinian Lives Matter” para denunciar um caso de brutalidade policial. A 30 de maio, Iyad al-Hallaq, um palestiniano autista de 32 anos, foi morto a tiro pela polícia israelita, na Cidade Velha de Jerusalém, após não parar no checkpoint da Porta dos Leões. Este caso foi sujeito a investigação mas, segundo a ONG israelita Yesh Din, 80% das queixas relativas a suspeitas de ofensas contra palestinianos por parte de soldados são arquivadas.

10. DIVISÃO
Israel controla hoje os dois territórios palestinianos de forma diferente. A Cisjordânia com uma ocupação efetiva com colonos e militares. A Faixa de Gaza — um retângulo de 40 quilómetros por 6 a 12 de largura — através de um bloqueio por terra, mar e ar, desde 2007, imposto também pelo Egito. Disto decorre uma divisão política — a AP manda na Cisjordânia e o Hamas em Gaza — que só fragiliza os palestinianos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 13 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

“As posições da Europa encorajam Netanyahu”

Nabil Ahmad Abuznaid, embaixador palestiniano em Portugal, diz que haverá eleições dentro de seis meses

O recente reconhecimento do Estado de Israel por parte de dois países árabes abanou os palestinianos. Nas redes sociais, muitos disseram-se traídos pela decisão de Emirados Árabes Unidos e Bahrain. Nos corredores políticos, a brecha que fragilizou a unidade árabe em torno da causa palestiniana motivou as autoridades da Cisjordânia e da Faixa de Gaza a reorganizarem a casa.

“A Fatah, o Hamas e as outras fações políticas palestinia­nas concordaram em realizar eleições”, disse ao Expresso o embaixador da Palestina em Portugal, Nabil Ahmad Abuznaid, à margem de uma conferência que proferiu na Faculdade de Letras do Porto. “Primeiro serão as legislativas, depois as presidenciais e a seguir eleições para o Conselho Nacional”, o órgão legislativo da Organização de Libertação da Palestina (OLP).

A concretizarem-se — “dentro de seis meses”, aponta —, serão as primeiras em quase 15 anos. “Receamos que Israel não permita, mas estamos determinados em realizá-las”, diz. “Já sofremos muito tempo com a falta de união, mas agora está a haver um entendimento comum de que temos de combater a ocupação e não continuar a pensar que é um problema contra os judeus.”

Esta reação palestiniana ocorre perante a perspetiva de que mais países árabes normalizem a sua relação diplomática com Israel. O Sudão, que está na iminência de sair da lista de países terroristas dos Estados Unidos, pode ser o próximo. E as negociações com Omã também estão bem encaminhadas.

Que esperar de Joe Biden?

Com os EUA solidamente ao lado de Israel e perante a possibilidade de mudar o inquilino da Casa Branca, Nabil Ahmad Abuznaid, que já serviu na missão palestiniana em Washington, diz que “quem quer que venha a seguir a Donald Trump será melhor” para os palestinianos. “Estive com Joe Biden muitas vezes. É um bom homem, mas não é um lutador que vá mudar o Médio Oriente. Não irá fazer regressar a embaixada americana a Telavive, mas abrirá um consulado palestiniano em Jerusalém Oriental, reabrirá a missão palestiniana em Washington que Trump fechou e irá libertar alguns dos fundos para a UNRWA [a agência da ONU para os refugiados palestinianos] e algumas organizações internacionais. Não creio que possa exercer grande pressão sobre Israel. Mas se Trump sair, consigo ver Benjamin Netanyahu [o primeiro-ministro israelita] enfraquecido.”

Da União Europeia, o embaixador diz não esperar muito. “Os europeus apoiam os palestinianos, denunciam as políticas israelitas”, mas “Netanyahu não os leva a sério”. “Se a Europa proceder ao reconhecimento da Palestina estará a cumprir a sua posição sobre a solução de dois Estados. Mas enquanto não o fizer, as suas posições só encorajarão Netanyahu. Se a Europa disser que a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental são terras palestinianas, Netanyahu hesitará antes de as anexar.”

Em Lisboa desde 2017, questiona-se sobre a posição portuguesa. “O Parlamento, que representa a nação, disse [em 2014] que era hora de reconhecer a Palestina, mas o Governo diz que ainda não é o momento certo. Qual é o momento certo? Já conheço a resposta: é necessária uma posição europeia à qual Portugal possa aderir. É uma desculpa. Basta haver um país que não queira reconhecer e não há decisão europeia.”

(FOTO RUI DUARTE SILVA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 24 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

Sérgio Godinho, Massive Attack e mais 238 artistas unem-se num apelo ao fim do bloqueio à Faixa de Gaza

A existência de casos de covid-19 na Faixa de Gaza motivou 240 artistas a publicar uma carta aberta. “O bloqueio de Israel impede a entrada de medicamentos e material médico, pessoal e ajuda humanitária fundamental”, alertam. “A pressão internacional é urgentemente necessária para tornar a vida em Gaza viável e digna”

A pandemia que tomou o planeta de assalto levou um pouco daquilo que é ‘a normalidade de Gaza’ aos quatro cantos do mundo: cidades confinadas, restrição de movimentos, encerramento de fronteiras, desemprego em alta, colapso económico, ansiedade, medo e incerteza em relação ao futuro.

Na origem da situação estão a ocupação israelita (1967-2005) e o bloqueio fronteiriço que dura desde 2007 – quando o grupo islamita Hamas tomou de assalto o poder –, com consequências dramáticas para quem lá vive: o desemprego entre os jovens ronda os 60% e mais de 80% da população vive dependente da ajuda internacional.

A isto se somam três guerras desencadeadas por Israel (2008/2009, 2012 e 2014) e agora a pandemia de covid-19, a que Gaza também não escapa, apesar do isolamento. Desde 21 de março foram contabilizados 20 casos positivos.

“Os relatos dos primeiros casos de coronavírus na densamente povoada Gaza são profundamente perturbadores”, alertam 240 artistas, portugueses e estrangeiros, numa carta aberta divulgada na quarta-feira. “O bloqueio de Israel impede a entrada de medicamentos e material médico, pessoal e ajuda humanitária fundamental. A pressão internacional é urgentemente necessária para tornar a vida em Gaza viável e digna. O cerco de Israel deve acabar.”

Entre os signatários portugueses estão o músico Sérgio Godinho, o rapper Chullage, a escritora Patrícia Portela, a pintora Teresa Cabral, o dramaturgo Tiago Rodrigues e o coreógrafo Rafael Alvarez.

Os subscritores internacionais incluem os músicos Peter Gabriel e Roger Waters, a banda Massive Attack, o compositor Brian Eno, a ativista Naomi Klein, o escritor Irvine Welsh e o ator Viggo Mortensen.

Ameaça mortal na maior prisão ao ar livre

“Bem antes da crise em curso, os hospitais de Gaza já estavam no ponto de rutura devido à falta de recursos essenciais negados pelo cerco israelita. O seu sistema de saúde não conseguiu dar resposta aos milhares de ferimentos por bala, obrigando a muitas amputações.”

A carta não se limita a expor a fragilidade de Gaza e do seu sistema de saúde. Vai mais longe e apela a um embargo militar internacional a Israel, “até que este país cumpra todas as suas obrigações à luz do direito internacional”.

“As epidemias (e pandemias) são desproporcionalmente violentas para as populações atormentadas pela pobreza, ocupação militar, discriminação e opressão institucionalizada”, alertam. “Com a pandemia, os quase dois milhões de habitantes de Gaza, predominantemente refugiados, enfrentam uma ameaça mortal na maior prisão ao ar livre do mundo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui