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“A primavera palestiniana acabará com a ocupação”

A solução ‘dois Estados para dois povos’ está em perigo, diz Riyad Mansour, embaixador palestiniano na ONU ao “Expresso”

Cartaz usado numa das tradicionais manifestações de sexta-feira, em Bil’in, na Cisjordânia, em agosto de 2005. “Fim da ocupação agora”, lê-se MARGARIDA MOTA

Em 1981, a morte do ativista irlandês Bobby Sands, após 66 dias em greve de fome, numa prisão a sul de Belfast, foi um marco no conflito na Irlanda do Norte. Órgãos de informação de todo o mundo despertaram para esta causa e começaram a dar eco da greve de fome feita por presos republicanos que exigiam ser tratados como prisioneiros de guerra. Sands foi o primeiro; ao todo morreriam 10.

31 anos depois, o ‘efeito Bobby Sands’ parece ter-se tornado uma arma palestiniana de resistência ao ocupante israelita. Khader Adnan, um padeiro de 33 anos de Arabeh, perto de Jenin, que fora detido em dezembro por envolvimento em “atividades que ameaçam a segurança regional”, foi libertado por Israel a 18 de abril passado, após 65 dias em greve de fome.

“Se tivesse morrido, seria o nosso Mohammed Bouazizi (o tunisino que se imolou pelo fogo, desencadeando os protestos que levaram à revolução)”, comentou Riyad Mansour, representante permanente da Palestina na ONU. “A frustração está ao rubro entre os palestinianos. A situação é explosiva. Neste contexto da Primavera Árabe, qualquer faísca pode incendiar.”

O embaixador palestiniano esteve em Lisboa há uma semana para participar num seminário organizado pelo Movimento pelos Direitos do Povo Palestiniano e pela Paz no Médio Oriente (MPPM). À margem da iniciativa, deu uma entrevista ao “Expresso” e explicou porque a solução ‘dois Estados para dois povos’ “está em risco”. “A campanha israelita de construção de colonatos em terras palestinianas cresceu de tal forma que, mesmo que houvesse um tratado de paz, Israel poderia não ter condições para o aplicar. Se Israel quer ficar com a maioria da Cisjordânia, Jerusalém e o Vale do Jordão nada sobra para uma Palestina contígua e viável.”

Tiquetaque demográfico

O fim da fórmula ‘dois Estados’ significa o abandono de uma solução que as duas partes já tinham aceitado. E também a recuperação de uma alternativa que jamais Israel aceitará — ‘um Estado para dois povos’. “Os israelitas têm de se decidir. Se querem ter um Estado onde a maioria da população é judaica, então temos de nos separar e eles têm de permitir a independência do nosso Estado. Mas se continuarem com os colonatos estão a cavar a sepultura da solução ‘dois Estados’ e a abrir a porta à solução ‘um Estado’ — onde os palestinianos e os árabes serão a maioria e não os judeus.”

As contas são fáceis de fazer. Em números redondos, Israel tem 7,5 milhões de habitantes — 20% são israelitas árabes. Nos territórios palestinianos (Cisjordânia e Faixa de Gaza), vivem quatro milhões. Num Estado único, e sendo o crescimento demográfico dos árabes superior ao dos judeus, rapidamente estes ficariam em minoria.

Recentemente, o ministro israelita da Defesa, Ehud Barak, disse que perante o impasse no processo de paz, Israel teria de considerar a possibilidade de uma “ação unilateral” na Cisjordânia. “Uma ação unilateral, sem resolver as questões com os palestinianos, manterá o conflito vivo”, diz Mansour. “Basta ver o que aconteceu em Gaza. Israel retirou unilateralmente (2005) sem coordenar a transferência de autoridade connosco.”

Unidade para israelita ver

A 8 de maio último, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reforçou a coligação com a entrada do Kadima, fundado por Ariel Sharon, o obreiro da saída de Gaza. No Knesset, 94 dos 120 deputados apoiam o Governo. “Se Netanyahu pensa que nos intimida, expandindo a base de apoio do seu Governo para nos exigir concessões, está enganado”, diz o embaixador. Na quarta-feira, Telavive anunciou a construção de 851 novas casas em vários colonatos.

Com o Hamas a controlar Gaza e a Fatah a Cisjordânia, o campo palestiniano tinha de esboçar uma unidade. Duas semanas após o ‘golpe político’ em Telavive, as fações palestinianas começaram a discutir a formação de um Governo de reconciliação — que deverá ser anunciado ainda este mês. A Comissão Eleitoral começou a atualizar os cadernos eleitorais em Gaza. Se tudo correr bem, haverá eleições gerais na Palestina ainda este ano.

Paralelamente ao arrumar da casa, a diplomacia palestiniana continuará a ‘mexer cordelinhos’ na ONU. Em setembro de 2011, o pedido de adesão como membro de pleno direito esbarrou na ameaça de veto dos EUA. “Assim que os nossos líderes decidirem, vamos pedir o reconhecimento à Assembleia Geral (de membro observador)”, diz.

A Palestina já é reconhecida por 132 países. “O último grande grupo de Estados que se recusa a reconhecer é a Europa Ocidental”, diz o embaixador. “No Conselho de Segurança, esperávamos que Portugal e a França reconhecessem a Palestina.” (Portugal é membro não-permanente no biénio 2011/2012.)

Durante a estada de 24 horas em Lisboa, Riyad Mansour foi recebido, na Assembleia da República, por representantes dos seis partidos com assento parlamentar. Fez três pedidos a Portugal (ver caixa), mas parece ter mais fé nas iniciativas de resistência pacífica do seu povo. “Há 1,5 milhões de palestinianos no Facebook. Mais que egípcios e tunisinos antes da revolução.”

Mansour acredita que o ativismo nas redes sociais, a greve de fome de largas centenas dos cerca de 5000 detidos em prisões israelitas e as ações de resistência em aldeias como Na’im, Bil’in e Budrus contra a construção do muro entre Israel e Palestina darão resultados. “Fizemos a primeira Intifada (1987) antes das sublevações no Egito e na Tunísia. Conhecemos a arte da mobilização pacífica da população contra regimes implacáveis. A ‘primavera palestiniana’ acabará com a ocupação.”

Bil’in é uma das aldeias palestinianas que, desde há anos, organiza semanalmente protestos contra a ocupação israelita MARGARIDA MOTA

 

Em Bil’in, os manifestantes são acompanhados de perto por militares israelitas, que os vigiam MARGARIDA MOTA

PEDIDOS DE RIYAD MANSOUR A PORTUGAL

1 — Reconhecimento imediato do Estado palestiniano. “Negociaremos com Israel as seis questões do estatuto final, mas a nossa independência é inegociável”

2 — Constituição de um Grupo Parlamentar de Amizade com o povo palestiniano. Na Assembleia da República, há 45 grupos, incluindo o Grupo de Amizade Portugal-Israel

3 — Realização em Portugal, em 2013, da reunião anual do Comité da ONU para o Exercício dos Direitos Inalienáveis do Povo Palestiniano. “O Governo português tem de aprovar, mas é a ONU a custear a iniciativa”

OCUPAÇÃO

500
checkpoints israelitas existem hoje na Cisjordânia. Não são postos de controlo nas fronteiras, mas sim no interior do território. Em 2005, Israel retirou as suas forças da Faixa de Gaza

600
mil colonos judeus vivem na Cisjordânia, distribuídos por 180 colonatos, alguns verdadeiras cidades, e 100 postos avançados (não autorizados pelo Governo israelita), na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental. Segundo o Tribunal Internacional de Justiça, os colonatos são ilegais

Artigo publicado no Expresso, a 9 de junho de 2012

Frente-a-frente com os ‘bulldozers’

Jeff Halper luta contra a demolição de casas. Quiseram dar-lhe o Prémio Nobel da Paz

Pintura de Maria Imaginário, nome artístico da ilustradora portuguesa Edna Costa, num troço do muro da Cisjordânia junto ao campo de refugiados de Aida, em Belém EDNA COSTA

Sempre que se recolhe para uma noite de descanso, Jeff Halper não sabe a que horas será o despertar. “Às vezes, o telefone toca às cinco da manhã. Os palestinianos sabem que nós existimos e quando vêem os bulldozers aproximarem-se das suas casas, telefonam-nos. Vamos até lá, pomo-nos à frente das máquinas ou acorrentamo-nos dentro das casas. Empatamos tempo e impedimos que aqueles bulldozers se dirijam para outras casas. Enquanto isso, chamamos jornalistas e diplomatas e transformamos a situação num espectáculo público. Como Israel quer destruir as casas sem que ninguém veja, os bulldozers retiram-se”.

É um israelita que assim fala. Jeff Halper nasceu há 63 anos nos Estados Unidos, mas nos anos 1970, em busca da sua identidade judaica, instalou-se em Israel. Em 1997, fundou o Comité Israelita Contra a Demolição de Casas (ICAHD) — um grupo apolítico, não-violento, que luta contra a ocupação israelita dos territórios palestinianos — e com esse activismo foi proposto para Prémio Nobel da Paz, em 2006.

Recentemente, usufruiu de uns dias de descanso em Lisboa e conversou com o “Expresso” sobre o que considera ser “a essência do conflito” no Médio Oriente: a destruição de casas palestinianas pelas forças israelitas. E porquê? “Um povo diz para o outro: ‘Não têm o direito de estar aqui! Este não é o vosso país! Saiam!”, justifica o antropólogo.

Sem luz, há 60 anos

Segundo o ICAHD, desde 1967 Israel já demoliu mais de 24 mil casas nos territórios palestinianos. O problema é, todavia, bem mais antigo. “Em 1948, nem todos os palestinianos deixaram Israel”, conta Jeff. “Alguns desceram o vale ou foram para o monte ao lado para se esconderem. Fugiram para se proteger dos combates (Guerra da Independência, após a criação de Israel). Mas quando a guerra acabou, Israel não permitiu que regressassem às suas casas. Hoje, continuam a viver encurralados nos sítios onde, há 60 anos, encontraram refúgio”.

Cerca de 150 mil palestinianos e beduínos vivem, hoje, nestas “aldeias não reconhecidas”, sem direito a água, electricidade, ruas ou escolas. Sobre cada casa recai uma ordem demolição, por ilegalidade. É quando os “bulldozers” israelitas se aproximam que muitos palestinianos lançam o alerta a Jeff Halper.

Com um staff reduzido de cinco pessoas (dois pagos pelos Governos espanhol e austríaco), cerca de dez activistas permanentes e muitos voluntários, o ICAHD já recuperou mais de 160 casas. “Sempre que reconstruímos uma casa, reafirmamos: Esta terra pertence a dois povos e temos de viver juntos aqui!”, diz.

Jeff admite que, nas acções de resistência em que participa, o facto de ser israelita e judeu é, para ele, uma vantagem. “Sou preso a toda a hora e, às vezes, eles intimidam-me, mas não me magoam. Se fosse palestiniano, disparavam. Estou completamente protegido”. Mas nem sempre a cidadania israelita é, por si só, um porto-seguro. Um quinto da população de Israel é israelita-árabe. Segundo Jeff, “em 2009, Israel está a demolir casas de cidadãos israelitas que são árabes. Entre 20 e 40 mil casas estão identificadas para serem demolidas”.

Por outro lado, continua, “Israel não dá autorizações de construção a israelitas árabes. Eles possuem terras, mas não podem construir”. Jeff diz tratar-se de uma medida de “judaização de Israel”. E defende que a demolição de casas, nos territórios ocupados e em Israel, empurra os árabes para enclaves. “Isto é apartheid!”, acusa.

Boicote à Caterpillar

Até não há muito tempo, Israel também utilizava a demolição de casas como táctica de guerra. Se suspeitava que um palestiniano estivesse envolvido em actividades terroristas, destruía a casa da sua família — “punição colectiva”. Mas desde há quatro anos que o Exército deixou de o fazer. A estratégia era contraproducente: em vez de travar os militantes, as demolições dispersavam o ódio a Israel.

Porém, o boicote internacional à Caterpillar — a fabricante dos “bulldozers” blindados utilizados nas demolições — mantém-se. E só a Igreja de Inglaterra retirou da empresa investimentos no valor de 64 milhões de libras (quase 70 milhões de euros).

Jeff faz pelos palestinianos o que lhes é vedado. Ainda assim, não deixa de se surpreender pelos meandros palestinianos… A 23 de Agosto de 2008, o israelita foi um dos passageiros do primeiro barco “Free Gaza” (Libertem Gaza) a furar o bloqueio à Faixa de Gaza. Em terra, o Governo do Hamas, que governa o território, apressou-se a conceder a cidadania palestiniana aos tripulantes do barco. Em contactos posteriores com altos representantes da Fatah — a facção rival, que governa a Cisjordânia —, disseram-lhe que, por ter sido dada pelo Hamas, a sua cidadania palestiniana… não era oficial. “Mas eu recebi a cidadania do Governo eleito!”, reclama.

Pintura de Edna Costa, em 2013, cinco anos após a sua execução MARGARIDA MOTA

ACTIVISTAS LUSAS

No último Acampamento de Verão do ICAHD, à boleia da ONG espanhola Paz Ahora, duas portuguesas viveram, durante 15 dias, em Anata, perto de Jerusalém. “Foi uma experiência muito feliz, pois a ajuda do Governo espanhol possibilitou a construção de duas casas”, diz a mestranda em Antropologia Daniela Nunes, de 26 anos. “O Governo português devia ser mais activo quanto a esta questão”, refere a ilustradora Edna Costa, de 23 anos, autora de uma pintura num troço do muro junto ao campo de refugiados de Aida, em Belém. “Sabia o que se passava na Palestina, mas nada me preparou para tanta desigualdade e injustiça”, diz Andreia. Ainda assim, Daniela não hesita: “Voltar? Não pensava duas vezes. Partia ainda hoje!”

Artigo publicado no Expresso, a 14 de março de 2009

O adeus de Besseisso

O decano dos representantes diplomáticos em Portugal vai regressar finalmente à sua terra natal

Durante mais de vinte anos, Issam Besseisso foi o rosto da causa palestiniana em Portugal. Agora cessa funções como delegado-geral da Palestina em Lisboa e prepara-se para regressar à pátria. Em Portugal, deixa “raízes fortes de amizade”, “muitos amigos” e os três filhos, dois deles nascidos cá. Por isso, não encara a sua partida como um “adeus”, antes um “até já”.

Corria o ano de 1984 quando Issam Besseisso aterrou em Portugal como representante oficial da Organização de Libertação da Palestina (OLP). “Terrorista palestiniano chegou a Lisboa”, noticiou então o jornal “O Dia”. No ano anterior, o assassínio de Issam Sartawi — fundador da OLP e conselheiro de Arafat —, em Montechoro, precipitara a abertura de uma representação palestiniana em Portugal. “Depois daquele acontecimento, sentimos a importância de abrir uma missão diplomática aqui”, recorda Besseisso.

As lutas intrapalestinianas passavam também por Portugal, ainda que o nosso país há muito tivesse aberto as portas aos palestinianos. Em 1976, o Presidente Costa Gomes declarara o reconhecimento oficial da OLP e o ministro dos Negócios Estrangeiros Medeiros Ferreira mandara uma carta a Yasser Arafat oferecendo uma embaixada em Lisboa.

Facto elucidativo do tipo de influência que caracterizava Portugal internacionalmente ocorreria em 1979. “O General Ramalho Eanes foi o primeiro Presidente europeu a receber Arafat. Depois desse encontro, todas as portas da Europa Ocidental se abriram. Este é o papel de Portugal na história.”

Até 1988, Issam Besseisso foi o representante da OLP. Após o Conselho Nacional Palestiniano ter autoproclamado a independência da Palestina, a 15 de Novembro de 1988, em Argel, a missão ascendeu à categoria de Delegação-Geral. Os primeiros apoios oficiais portugueses chegaram após a Guerra do Golfo de 1991 e do consequente congelamento das verbas que Saddam Hussein destinava à OLP. Nesse ano, o Governo de Cavaco Silva atribuiu à delegação palestiniana 23 mil contos (115 mil euros) e no ano seguinte 59 mil (295 mil euros).

Mas mais delicadas do que as contribuições financeiras eram as ajudas políticas. Aquando da Expo-98, o Governo de António Guterres apoiou a criação do Pavilhão da Palestina. “A embaixada de Israel levantou problemas. Queria que se chamasse pavilhão da Autoridade Palestiniana ou pavilhão da Cisjordânia e Gaza”, recorda Besseisso. No Médio Oriente, palestinianos e israelitas viviam tempos de acalmia, mas na gráfica lisboeta onde se imprimiam os boletins da Expo havia grande turbulência à volta das nuances linguísticas. “Houve uma guerra informática…”, diz.

Para o diplomata palestiniano, Mário Soares foi o político português que mais o sensibilizou: “É uma figura internacional muito importante”. Soares cativou-o pela “coragem” com que em 1982, em plena guerra do Líbano, se “disfarçou de pescador para tentar entrar, de barco, nos territórios palestinianos”. E depois quando, durante o bombardeamento israelita a Beirute, acompanhou Arafat, de abrigo em abrigo.

Em Portugal, só não aprendeu a gostar de bacalhau porque, como os portugueses, também os palestinianos já lhe conhecem o gosto. “Nas semanas a seguir à Naqba (expulsão dos palestinianos após a criação de Israel), os refugiados não tinham que comer. Recebemos bacalhau do Governo de Salazar, em resposta a um apelo da ONU. Para os refugiados, bacalhau era só para ricos. Então, vendiam o bacalhau a palestinianos ricos para comprarem arroz, pão, azeite, açúcar… coisas mais importantes para eles”. Quando Besseisso chegou a Portugal, a iguaria não escapou à sua mesa de refeições — ainda que “à moda palestiniana”.

Artigo publicado na revista Única do Expresso, a 10 de dezembro de 2005

A luta de Ramzi

Quando era miúdo, Ramzi Aburedwan participou na revolta das pedras contra os israelitas. Agora a sua luta passa por mudar as mentes levando a música aos campos de refugiados

Passava pouco da uma da madrugada quando o grupo se lançou mar adentro, ao encontro das ondas quentes e densamente salgadas do mar Morto. Na escuridão da noite, era impossível descortinar quem boiava ao lado de quem, mas aos poucos tal deixou de ser importante. Ao fim de 15 minutos imperava um silêncio relaxante, que apenas o bater das ondas no areal pedregoso — e as gargalhadas de Uday — quebravam. «Uday precisa disto e de muito mais», comenta Kamal, o motorista palestiniano que conduziu o grupo até àquela aventura nocturna.

Uday nasceu há 13 anos no campo de refugiados de Fawwar, perto de Hebron. O campo não fica longe do mar Morto, mas o pequeno nunca lá estivera. Não fosse, há dois anos, ter-se cruzado com um músico palestiniano, Ramzi Aburedwan, e continuaria talhado a um futuro tão incerto quanto a vida num campo de refugiados reserva a quem lá nasce. «Tinha acabado de fazer um ‘workshop’ no campo de Fawwar quando um grupo de miúdos veio ter comigo», recorda Ramzi. «Uday era um deles. Muito timidamente, disse que queria cantar. Eu disse-lhe que sim», acrescenta.

Uday começa a cantar e Ramzi fica encantado com aquela voz madura num corpo tão franzino. Uday diz que Deus é a fonte do seu talento. Quando for grande quer ser cantor, obviamente. Precisará de sorte para que o seu futuro seja tão generoso quanto o seu presente é promissor. Para já, conta com o apoio incondicional de Ramzi, que o orientará nos estudos musicais e lhe vai dando visibilidade levando-o a cantar em concertos.

Uday faz o que mais gosta: canta MARGARIDA MOTA

Foi pela mão de Ramzi que, este Verão, Uday foi a estrela de um programa de «workshops» e concertos para crianças de campos de refugiados palestinianos, organizados pela associação Al Kamandjati («o violinista», em árabe). Fundada por Ramzi em 2002, em França, onde o palestiniano concluiu este ano o curso de viola no Conservatório de Angers, a organização é o início da materialização de um sonho pessoal — abrir escolas de música nos territórios palestinianos — e Uday a prova de que há talentos em quem apostar.

A acompanhar Ramzi e Uday, de instrumentos às costas, havia nove músicos franceses e dois palestinianos, os companheiros de Uday no banho nocturno no mar Morto. Desde há três anos que Ramzi vem desafiando músicos amigos a acompanharem-no pelos campos de refugiados.

As crianças experimentam a harpa MARGARIDA MOTA

Para Ramzi, os fins justificam o investimento — ou não fosse ele próprio um vivo exemplo de como nascer num campo de refugiados não determina necessariamente um futuro sem perspectivas. Nascido em 1979 no campo de refugiados de Al Amari, em Ramallah, Ramzi despertou para a música após ter conhecido o violinista Mohammed Fadel, em casa de uma amiga. Tinha 17 anos e acedeu a participar numa acção de demonstração de instrumentos. Apaixonou-se pelo som da viola e começou a ter aulas num edifício não muito longe do colonato de Bisgot. «Às vezes, abandonava as aulas durante uns minutos, descia à rua, atirava meia dúzia de pedras aos carros dos colonos e voltava a subir», recorda.

Tinha 17 anos quando iniciou as aulas de viola. Às vezes interrompia-as para ir atirar pedra aos israelitas

Ramzi ganhara o hábito de arremessar pedras aos israelitas quando tinha 8 anos. Um dia, quando regressava da escola com o seu melhor amigo, este caiu desamparado no chão, atingido por um tiro. A reacção de Ramzi foi instintiva e de imediato começou a atirar pedras aos soldados israelitas posicionados à entrada do campo Al Amari. Um fotógrafo registou o momento e a foto correu mundo, transformando Ramzi num símbolo da primeira Intifada palestiniana.

Aos 8 anos, Ramzi foi fotografado a apedrejar soldados israelitas, tornando-se um símbolo da Intifada

Com o tempo, Ramzi aperceber-se-ia que a música pode contribuir para resgatar as crianças palestinianas, ainda que por breves instantes, do seu quotidiano complicado. «Em 2002, quando os israelitas invadiram territórios palestinianos, visitei um centro infantil onde as crianças só faziam desenhos de tanques, armas, sangue… Dois dias depois, voltei com o meu busuk (instrumento oriental) e toquei para eles. Alguns miúdos começaram a desenhar instrumentos. Apercebi-me de como em apenas 30 minutos se pode alterar a imaginação deles. As crianças pintam aquilo que vêem e aquilo com que sonham».

Em Al Amari, Ramzi passou a partilhar alguns momentos de estudo com a vizinhança. «Às vezes tocava em frente à minha casa. As crianças aproximavam-se e pediam-me determinada música. Então eu dizia-lhes que, para tocá-la, tinha de mexer os dedos de determinada maneira. E eles ficavam a pensar que eu era um mágico…»

Os «workshops» são uma ocasião para muitos miúdos verem, pela primeira vez, um violino ou uma flauta

Hoje, os miúdos que frequentam os «workshops» Al Kamandjati não revelam tanta inocência. No entanto, para muitos é uma oportunidade para, pela primeira vez, verem e tocarem num violino, numa flauta ou numa trompa. No «Kids Club» de Jericó, por exemplo, os níveis de concentração, a disciplina e o interesse são elevados. O espaço é acolhedor, há um jardim e uma piscina, sobra espaço para correr e saltar e não faltam jogos nem brinquedos. Pelos corredores, as crianças cruzam-se com o Pinóquio, a Bela Adormecida, Fred Flintstone ou o Nemo, em coloridos murais pintados nas paredes.

Pelo contrário, no campo de Balata — o maior da Cisjordânia, com 21.903 refugiados registados pelas Nações Unidas — os músicos defrontam-se com alguma hostilidade. Balata é um campo difícil. Há ruas tão estreitas que os prédios dos dois lados quase se tocam. Nas escolas, em vez de desenhos e colagens nas paredes, há fotografias coloridas… de mártires. E quando se lhes tenta tirar uma fotografia, os miúdos fazem pose simulando o disparo de uma arma.

Ruas estreitas, no campo de refugiados de Balata MARGARIDA MOTA

No Centro para a Juventude de Balata, o pequeno Saif revela-se um craque do audiovisual, fotografando e gravando as actividades. A dada altura aproxima-se de uma janela e faz um comentário, curto mas imperceptível. Saif quer fazer-se entender e corre a buscar uma máquina digital: aponta-a à janela, faz um grande «zoom», dispara e, por fim, mostra o motivo do seu comentário: «Judeus!» O campo cresceu morro acima e, lá no alto, há postos de vigia israelitas, omnipresentes na vida do campo.

Campo de refugiados de Balata: miúdos agressivos MARGARIDA MOTA

Ramzi salienta que é importante que as crianças palestinianas contactem com povos para além do israelita e percebam que os estrangeiros podem ser sorridentes e gentis — e não necessariamente pessoas dentro de tanques ou com armas na mão. É este, aliás, um dos grandes objectivos das missões Al Kamandjati. Porém, o violetista não partilha os sonhos de Daniel Barenboim, o maestro judeu que fundou uma orquestra israelo-árabe.

É importante as crianças perceberem que há estrangeiros sem tanques nem armas

O logótipo Al Kamandjati — um «keffieh» em forma de clave de sol — traduz, sem equívocos, a natureza palestiniana do seu projecto, ainda que, por vezes, esse cartão de visita lhe dificulte a vida num território onde o conflito está ao dobrar de cada esquina. O clarinetista Thierry, com 23 anos mas um veterano nestas andanças, recorda como, no ano passado, foram proibidos de tocar junto ao simbólico «checkpoint» de Khalandia, entre Ramallah e Jerusalém.

Romain, de 22 anos, recorda outro episódio, num «checkpoint» de Jericó. Quando os soldados dificultavam a passagem a um dos músicos palestinianos, Romain saca do violino e, ali mesmo, acompanha o músico em apuros num concerto improvisado. Acabariam por seguir viagem.

Este ano, o ponto culminante da missão Al Kamandjati foi a inauguração da sua primeira escola, na cidade velha de Ramallah. Na véspera, chegou um contentor com duas toneladas de instrumentos, angariados um pouco por todo o mundo — novos e usados, uns inteiros, outros a precisarem de ser reconstruídos.

(FOTO PRINCIPAL Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado na Única do “Expresso”, a 22 de outubro de 2005

Campo de Al Amari: Ramzi bate ritmos com as mãos e uma menina reproduz. Nunca se sabe quando se revela um talento

“Abbas precisa de tempo”

Para Riad Malki, director do Centro Panorama, de Ramallah, os bons resultados do Hamas nas eleições podem encorajá-lo a depor as armas e a aderir ao sistema político. Entrevista

Riad Malki, no seu gabinete no Centro Panorama, em Ramallah, em agosto de 2005 MARGARIDA MOTA

Mahmud Abbas toma hoje posse como presidente da Autoridade Palestiniana. “Há obrigações mútuas no Roteiro para a Paz e nós queremos começar a respeitar imediatamente as nossas obrigações”, afirmou na quinta-feira o sucessor de Yasser Arafat. “Esperamos que os israelitas respeitem as suas também”.

Na segunda-feira, no mesmo dia em que o Parlamento israelita aprovava um novo Governo liderado por Ariel Sharon — com a participação do Partido Trabalhista —, o primeiro-ministro israelita telefonava a Mahmud Abbas felicitando-o pela vitória. Nos Estados Unidos, o Presidente George W. Bush afirmava-se “impaciente” para receber o líder palestiniano na Casa Branca.

O rescaldo da eleição de Abbas — no domingo, com 62,3% dos votos — foi fértil em reacções eufóricas quanto ao futuro do diálogo israelo-palestiniano. “A expectativa é enorme”, afirmou ao “Expresso”, a partir de Ramallah (Cisjordânia), Riad Malki, director do Centro Panorama, vocacionado para a promoção da democracia e do desenvolvimento comunitário entre os palestinianos.

Na quinta-feira, no final de um encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Sylvan Shalom, o Alto Representante da Política Externa e Segurança Comum da União Europeia, Javier Solana, não podia estar mais de acordo: “As eleições palestinianas converteram uma janela de oportunidades numa avenida em direcção à paz”. Mas, no terreno, qualquer esperança de paz sucumbia às fragilidades. Na véspera, um colono judeu era morto e três soldados israelitas ficavam feridos, durante uma emboscada de activistas da Jihad Islâmica, em Gaza.

Pressionado pela necessidade de corresponder às expectativas de mudança decorrentes da sua eleição, Mahmud Abbas tem pela frente uma tarefa gigantesca. Para Riad Malki, director do Centro Panorama, de Ramallah, a sociedade civil tem um papel crucial a desempenhar na sua orientação.

EXPRESSO — O que esperam os palestinianos de Mahmud Abbas?
RIAD MALKI —
Prioritariamente, uma melhoria das condições económicas e garantias de segurança. Depois, que ele imponha a lei e a ordem nos territórios, que trabalhe nas reformas e que leve os corruptos a tribunal. Esperam que as relações com os países vizinhos árabes melhorem e que chegue a acordo com Sharon no sentido de travar a construção do Muro, o confisco de terras, a expansão dos colonatos, a demolição de casas, o assassínio de activistas e de libertar prisioneiros políticos. Abbas terá de hierarquizar prioridades e precisa de tempo.

EXP. — Está refém da segurança? A cada ataque, a sua autoridade será posta em causa…
R. M. — Claro. Durante a campanha, disse que os ataques a Israel são um erro porque não trazem resultados palpáveis. E apelou à desmilitarização da Intifada, através de manifestações, da desobediência civil e de acções populares que podem minimizar a superioridade militar israelita.

EXP. — Que argumentos pode usar para que Hamas e Jihad Islâmica renunciem às armas?
R. M. — O Hamas participou nas eleições municipais de Dezembro e, na primeira fase, obteve entre 35 e 40%, o que é impressionante. Este resultado pode encorajá-lo a aderir ao sistema político, considerando que pode beneficiar mais no processo eleitoral do que estar à margem e recorrer à resistência armada. Acredito que o Hamas se vá transformar. Se participar nas legislativas de 17 de Julho é um bom indício. E se o fizer, a Jihad Islâmica segui-lo-á.

EXP. — Quanto às reformas, por onde deverá começar?
R. M. — Abbas disse que iria cumprir as obrigações decorrentes do Roteiro para a Paz, que prevê reformas. Já tomou medidas para concentrar os vários serviços de segurança e colocá-los sob a liderança do primeiro-ministro, e não do Presidente. Nos primeiros 100 dias, vai tentar melhorar a situação económica, garantir segurança aos cidadãos e promover reformas. Essas apostas permitirão a consolidação do seu poder, para depois avançar para a fase de negociações com Sharon.

EXP. — A sociedade civil palestiniana é suficientemente forte para o orientar?
R. M. — É a mais forte do Médio-Oriente. Estamos a discutir, colectiva e individualmente, que tipo de agenda adoptar e conceitos como a “transparência” e a “responsabilidade”. Vamos ter um acesso fácil a Abbas. Agora mais do que nunca, temos condições de sucesso. Temos de agarrar a oportunidade.

EXP. — A agenda de reformas palestiniana difere da agenda internacional?
R. M. — Há muito que a sociedade civil palestiniana apela a reformas na Autoridade Palestiniana. Ficamos surpreendidos quando a comunidade internacional em vez de adoptar a nossa agenda de reformas a reduziu a três tópicos: segurança, administração e finanças. Um processo de reformas tem de ser amplo e não selectivo. Como activista, considero a reforma do aparelho judicial a mais importante, porque é a que garante os direitos. Também o sistema educativo carece de reformas. A maior parte dos livros escolares são jordanos e egípcios, os mesmos usados antes de 1967.

EXP. — Este período eleitoral (municipais, presidenciais e legislativas) é o início de um processo democrático como os palestinianos nunca tiveram?
R. M. — Sem dúvida, e essa é que é a ironia. Vivemos tantos anos impedidos de votar e, de repente, fomos invadidos por um carnaval de eleições! Claro que prefiro ter três eleições num ano do que estar 20 anos sem votar.

EXP. — Nesse sentido, Arafat era um obstáculo?
R. M. — Sim e não. Indirectamente, ele encorajou a corrupção, permitindo que corruptos permanecessem nos lugares. Mas não pode ser culpado de tudo, porque vivíamos sob uma ocupação militar.

EXP. — Aparentemente, há uma conjuntura favorável à retoma do diálogo com Israel: Telavive viabilizou as eleições, os trabalhistas entraram no governo, Bush quer receber Abu Mazen… Está optimista?
R. M. — Estou cautelosamente optimista. Há bons indicadores, mas ainda não se reflectiram positivamente no terreno. Não vi Israel levantar os bloqueios nas ruas ou dizer que vai parar a construção do Muro. Cruzo os dedos a toda a hora, temendo que algo de mau possa acontecer, como um ataque suicida do Hamas em Telavive. Seria voltar à estaca zero.

Artigo publicado no Expresso, a 15 de janeiro de 2005