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“Honraram a minha fé”, disse Khan a partir da prisão, mas não era a sua voz e isso levanta uma questão: pode a IA contornar a repressão?

Apesar de estar preso, o ex-primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan participou na campanha para as legislativas e celebrou a vitória com um discurso para os apoiantes. Tudo graças à inteligência artificial que recriou a sua voz e colocou-o a proferir uma mensagem composta a partir de notas que Khan passou para o exterior da cadeia. “A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta ao Expresso um especialista na área da Computação e da Inteligência Aumentada. “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”

Imran Khan vendeu caro o seu afastamento da política ativa e da vida em liberdade. Detido desde agosto e sujeito a uma catadupa de processos na justiça — orquestrados pelos militares, com motivações políticas e assentes em acusações forjadas, assim pensa ele e quem o defende —, o antigo primeiro-ministro do Paquistão viu os candidatos conotados com o seu partido ganhar a maioria dos assentos no futuro Parlamento, nas eleições de quinta-feira passada.

Com o partido de Khan dissolvido pelo Supremo Tribunal, militantes perseguidos e ele próprio desqualificado para concorrer — só nas últimas duas semanas, recebeu três penas de prisão de 10, 14 e 7 anos, por divulgação de segredos de Estado, corrupção e casamento ilegal, respetivamente —, os candidatos do Pakistan Tehreek-e-Insaf (PTI) apresentaram-se nas urnas como independentes.

Quer os entraves ao funcionamento do partido, quer as restrições adotadas pelas autoridades no dia das eleições — que decretaram um blackout nas comunicações móveis e na Internet durante o período de votação — não foram suficientes para o derrotar. Imran Khan está encarcerado, mas não o está a sua enorme popularidade, que advém dos tempos em que era uma estrela do críquete e capitaneou a seleção paquistanesa na única vez que venceu o Mundial, em 1982.

92

dos 260 deputados eleitos, a 8 de fevereiro, para a Assembleia Nacional são independentes apoiados pelo PTI de Imran Khan. Será a fação maioritária no parlamento

Na hora de celebrar a vitória, foi Imran Khan “quem fez” o discurso para os seus apoiantes — não de viva voz, dado estar preso e privado de participar em atos políticos, mas com o seu timbre vocal gerado por inteligência artificial, numa demonstração de como a tecnologia pode ser usada para contornar a repressão política.

Num vídeo, uma imagem antiga de Khan surge a discursar com os movimentos labiais sincronizados com o som criado pela inteligência artificial. A mensagem foi composta a partir de notas passadas pelo próprio aos seus advogados.

“Eu tinha plena confiança de que todos vocês iriam votar. Todos vocês honraram a minha fé e a vossa participação massiva surpreendeu a todos”, disse a voz de Khan. (Abaixo a versão do discurso em língua inglesa.)

Não foi a primeira vez que o staff de Khan socorreu-se da tecnologia para combater as restrições impostas ao partido e contornar a censura noticiosa às suas iniciativas. Durante a campanha, militantes do PTI alimentaram a dinâmica eleitoral organizando comícios digitais em plataformas como o YouTube e o TikTok, com a voz de Khan gerada por inteligência artificial. Abaixo, outro exemplo.

“A equipa de redes sociais do PTI emergiu como um farol de inovação, empregando técnicas engenhosas para chegar aos cidadãos em todo o país, uma reminiscência de tigres encurralados que lutam pela sobrevivência”, reconheceu o próprio partidoA televisão árabe “Al-Jazeera” rotulou a estratégia da equipa de Imran Khan de “campanha de guerrilha”.

“Esta é, sem dúvida, uma boa utilização da clonagem de voz, dadas as circunstâncias” repressivas em torno da candidatura de Imran Khan, diz ao Expresso Subbarao Kambhampati, professor na Escola de Computação e Inteligência Aumentada, da Universidade Estatal do Arizona (EUA). Porém, “com mais frequência ouvimos e preocupamo-nos com o mau uso ou utilizações perigosas, como a utilização de vozes clonadas em anúncios políticos enganosos.”

Um exemplo recente teve como protagonista o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden. Nas vésperas das primárias democratas no estado do New Hampshire, que se realizaram a 23 de janeiro, uma voz criada para soar como a do candidato democrata foi usada em mensagens telefónicas gravadas destinadas a desencorajar as pessoas de irem votar.

“O seu voto faz diferença em novembro, não nesta terça-feira”, ouvia-se. Para 5 de novembro estão agendadas as eleições presidenciais. “Embora a voz na chamada automática soe como a voz do Presidente Biden, esta mensagem parece ter sido gerada artificialmente”, apurou o gabinete do procurador-geral de New Hampshire.

“A clonagem de voz tornou-se uma ferramenta para publicidade política enganosa”, alerta Subbarao Kambhampati. “Embora as autoridades se esforcem por penalizar estas práticas e por ajudar a detetá-las (por exemplo, colocando marcas de água nos meios de comunicação gerados sinteticamente), estas medidas não serão suficientes para impedir que aqueles que espalham desinformação usufruam dos dividendos das suas mentiras.”

Uma das normas de segurança recentes é o C2PA, desenvolvido por grandes empresas de tecnologia, como a Microsoft e a Adobe. Visa a criação de um protocolo universal de Internet que permita aos criadores de conteúdos adicionarem um “rótulo nutricional”, como lhe chama o prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), com informações sobre a sua origem: de onde veio e quem ou o quê o criou.

Do além para a campanha

Outro exemplo recente de uma voz clonada para fins políticos, e que parece confirmar a tendência para que 2024 sobressaia como um ano de grande desinformação eleitoral, aconteceu na Indonésia, onde, esta quarta-feira, realizam-se eleições presidenciais.

Suharto, um antigo general que governou o arquipélago indonésio com ‘mão de ferro’ durante mais de 30 anos, e que morreu em 2008, ‘ganhou vida’ num vídeo criado por inteligência artificial que clona a voz e a imagem do antigo ditador.

“O vídeo foi feito para nos lembrar da importância dos nossos votos nas próximas eleições”, disse Erwin Aksa, vice-presidente do Golkar, o partido político que promoveu o vídeo. O Golkar não apresentou um candidato presidencial próprio, mas deu apoio a Prabowo Subianto, o atual ministro da Defesa, que é genro do ditador Suharto.

Para Subbarao Kambhampati, a integração na política das ferramentas deepfake — que usam inteligência artificial para fundir, substituir ou sobrepor áudios e imagens, produzindo assim vídeos e áudios falsos — veio para ficar. “Nos próximos anos, certamente irá difundir-se mais. Depois disso, a nossa capacidade de adaptação à nova realidade — e de não confiarmos em informações que não sejam autenticadas (como, por exemplo, por jornais de confiança, tecnologia de marca de água digital ou tecnologia de autenticação criptográfica) — será alcançada e iremos aceitá-la com calma.”

Segundo o professor, à medida que as falsificações se tornem mais sofisticadas, também aumentará a nossa imunidade a elas: “Aprenderemos a não confiar nos nossos sentidos e a insistir na autenticação”.

Até lá, deixa um conselho: “A educação pública relativamente à existência de deepfakes e a necessidade de ser cético sobre o que se vê, lê e ouve é fundamental nesta era de conteúdos gerados por inteligência artificial”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 13 de fevereiro de 2024. Pode ser consultado aqui

De crise em crise na direção do abismo

Em 76 anos, nunca um primeiro-ministro concluiu um mandato. Mas o problema do país não é só político

Imran Khan (ao centro) é o politico mais popular do Paquistão GLOBELY NEWS

Há um ditado entre os estudiosos das relações internacionais segundo o qual o Paquistão não é bem um país, mas antes “um exército com um país dentro”. A hipérbole reflete o peso das Forças Armadas naquele Estado de 76 anos que já viveu longos períodos em ditadura militar. Mesmo quando não estão formalmente no poder, os generais são omnipresentes. “São atores de veto”, diz ao Expresso Daniel Pinéu, que viveu três anos e meio no Paquistão e lecionou na Universidade Quaid-i-Azam, em Islamabade.

“Os militares têm um império económico brutal. A quantidade de generais que são gestores de empresas públicas e municipais, reitores de universidades, donos de grandes negócios ou estão presentes nos órgãos diretivos de bancos é muito grande”, continua. “Os militares controlam e retiram daí grandes vantagens económicas. Os únicos sistemas de pensões ou de saúde que funcionam razoavelmente bem no país são os militares. Eles têm uma série de privilégios de que não vão abrir mão.”

Esta preponderância justifica muita da ingovernabilidade que já se tornou uma sina paquistanesa. Desde a independência (1947), o Paquistão já teve 31 primeiros-ministros e nenhum conseguiu levar um mandato de cinco anos até ao fim. “Torna-se praticamente impossível haver uma estratégia de médio ou longo prazo no país, seja do que for”, realça o analista.

A crise política atual opõe os militares a Imran Khan, um herói nacional (ver Perfil) que subiu ao poder em 2018 com a ajuda dos generais, que viram nele a esperança de um líder civil permeável às suas vontades. Não foi assim. “Khan quis autonomizar-se dos militares, ter uma agenda própria e opõe-se-lhes em questões específicas”, diz Pinéu. “Talvez achasse que tinha apoio popular suficiente e não precisasse deles.”

Khan foi afastado a 10 de abril de 2022, após perder uma moção de confiança no Parlamento. Há cerca de um mês, foi detido à chegada a um tribunal de Islamabade onde ia responder num caso de corrupção. Foi levado por dezenas de homens em traje antimotim, membros de um grupo paramilitar, os Punjab Rangers, que invadiram o tribunal para o deter.

Dias depois, o Supremo Tribunal declarou a sua detenção ilegal e libertou-o. Enfrenta ainda mais de 120 processos na justiça. “Todos os partidos políticos e o establishment querem que eu seja afastado em ano eleitoral”, disse recentemente. O Paquistão tem eleições gerais a 14 de outubro próximo. Até lá, este país de 230 milhões, com um arsenal nuclear, tem várias outras crises para esgrimir.

Crise económica: novo mercado para a Rússia

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo de sempre comprado pelo Paquistão à Rússia, tradicional aliada da sua arquirrival Índia. Para Moscovo, é um novo mercado que se abre ao arrepio das sanções internacionais decretadas após a invasão da Ucrânia; já para Islamabade é a oportunidade de comprar petróleo com desconto, em época de grave crise económica.

Esta semana, atracou no porto de Karachi um barco com o primeiro carregamento de petróleo comprado à Rússia

Com uma inflação de 37,97% em maio e um crescimento anémico de 0,29% projetado para 2023, o Paquistão negoceia há meses com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o descongelamento de $1100 milhões (€1000 milhões) de um total de $6500 milhões (€6000 milhões) acordado em 2019.

Desde a década de 1950 que o Paquistão já celebrou 23 acordos de resgate com o FMI. “Nunca cumpriu nenhum”, diz Daniel Pinéu. “O país tem uma carga fiscal extraordinariamente baixa. Há poucas pessoas a pagar impostos e as que pagam, pagam poucos. O encaixe fiscal do Estado é extraordinariamente baixo.”

Crise ambiental: um terço do país submerso

Vulnerável a fortes sismos, o Paquistão tornou-se, no ano passado, uma tragédia a céu aberto após chuvas diluvianas originarem grandes inundações que submergiram cerca de um terço do país.

Esta catástrofe ambiental foi ruinosa para o sector agrícola, nomeadamente para a produção de trigo, um cereal que o Paquistão exportava e passou a importar. Esta escassez fez disparar alertas sobre a iminência de uma crise alimentar no país.

Esta semana, os alarmes soaram a propósito da passagem do ciclone “Biparjoy”, que obrigou à deslocação de milhares de pessoas nos territórios do Paquistão e da Índia.

Crise securitária: talibã bom e talibã mau

Após perder três guerras com a Índia (1947, 1965 e 1999), “os militares paquistaneses têm uma noção muito clara de que não conseguem ter uma vitória convencional contra a Índia”, diz o docente no Colégio Universitário de Amesterdão (Países Baixos). “Há duas coisas ao seu alcance: a política nuclear e a utilização de grupos terroristas que o serviço de informações militares do Estado (ISI) apoia, treina ou financia.”

O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante

Esta estratégia beneficia da prevalência da etnia pashtun (a dos talibãs) no Paquistão e no vizinho Afeganistão. “É talvez o maior grupo tribal do mundo, separado por uma fronteira muito ténue”, diz Pinéu. “O Estado paquistanês convenceu-se de que se apoiasse os talibãs teria um aliado extraordinariamente importante atrás de si. Se a Índia tomasse o Paquistão ou ganhasse uma guerra, conseguiria deslocar para dentro do Afeganistão uma parte importante das suas forças e atacar a partir daí.”

Mas a ambiguidade de Islamabade — entre potenciar ‘talibãs bons’, que colaboram com os objetivos do Estado, e reprimir ‘talibãs maus’, que agem por conta própria em função dos seus objetivos — acarreta riscos. O ex-primeiro-ministro Pervez Musharraf, um militar, sofreu dois atentados às mãos de grupos islamitas. “É uma política muito esquizofrénica, até para a política interna.”

Crise geopolítica: EUA cada vez mais distantes

A seguir ao 11 de Setembro, o Paquistão foi dos países que mais ajuda receberam dos Estados Unidos, no âmbito da luta contra o terror, na sua esmagadora maioria canalizada para o sector militar.

Neste momento, consumada a retirada norte-americana do Afeganistão, “o Paquistão é para os EUA essencialmente um país-problema”, conclui Daniel Pinéu. “Não tem nenhum interesse estratégico, exceto conter o poderio da China.”

PERFIL

IMRAN KHAN

Já era popular antes de ser político. Famoso jogador de críquete, capitaneou a equipa que deu ao Paquistão o seu primeiro título mundial, em 1992. Nascido em 1952, em Lahore, fundou o Movimento Paquistanês pela Justiça, em 1996. Foi primeiro-ministro entre 2018 e 2022. Conquistou eleitores fartos dos políticos tradicionais. Mas, como outros populistas, ofereceu poucas soluções para os problemas dos cidadãos.

VULNERABILIDADES

3
golpes militares já levaram o Paquistão a viver períodos em regime militar: 1958–1971, 1977–1988, 1999–2008

13
partidos formam a Aliança Democrática do Paquistão (criada em 2020), que sucedeu a Imran Khan no poder

37,97
por cento é a taxa de inflação registada no mês de maio, um novo máximo no país

23
programas de resgate foram celebrados, desde 1958, entre o Paquistão e o Fundo Monetário Internacional

121
casos na justiça visam Imran Khan, incluem corrupção, traição, blasfémia, sedição, terrorismo e incitamento

Artigo publicado no “Expresso”, a 16 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

O efeito Bin Laden no combate à pandemia

A taxa de vacinação contra a covid-19 no Paquistão é muito baixa. Para tal contribui a escassez de doses, mas também um sentimento antiocidental em torno das campanhas de inoculação. A operação militar norte-americana que identificou e executou Osama bin Laden numa cidade paquistanesa, há dez anos, dá algumas respostas…

Campanha sobre cuidados a ter durante a pandemia, desenvolvida pelo Crescente Vermelho do Paquistão LINKEDIN PAKISTAN RED CRESCENT

A corrida contra o tempo implícita nas campanhas de vacinação contra a covid-19 que decorrem por todo o mundo tem obstáculos acrescidos no Paquistão. Neste país de mais de 225 milhões de pessoas, a resistência às vacinas é uma realidade, alimentada por rumores que atribuem a origem da pandemia a uma conspiração estrangeira e encaram as vacinas como venenos.

“Há uma resistência popular às vacinas, especialmente nas áreas rurais”, diz ao Expresso Jassim Taqui, analista político paquistanês. “As pessoas acreditam numa teoria da conspiração que sustenta que as vacinas, tanto as chinesas como as ocidentais, visam esterilizar os muçulmanos para que a sua população seja sistematicamente limitada ou para alterar a sua genética, transformando as novas gerações em animais semelhantes aos macacos.”

Estas crenças levam muitos paquistaneses a viver a pandemia em negação. Mas algo mais contribui fortemente para esse ceticismo: o efeito Osama bin Laden.

A 2 de maio de 2011, o então líder da Al-Qaeda foi morto durante um ataque de forças especiais norte-americanas à casa onde vivia, na cidade paquistanesa de Abbottabad. Para localizar o terrorista, a CIA organizara, previamente, uma falsa campanha de vacinação contra a hepatite B na localidade onde se suspeitava que Bin Laden estivesse escondido. O objetivo era tão somente recolher amostras de ADN de crianças que se suspeitava serem próximas do homem mais procurado do mundo.

“A falsa campanha de vacinação que levou à morte de Osama bin Laden desempenhou um papel fundamental na resistência às vacinas ocidentais no Paquistão e, em geral, a todas as outras vacinas. Mesmo pessoas instruídas questionam a eficácia das vacinas, uma vez que não há indicações ou dados que sugiram que a inoculação garante a imunidade ou que os vacinados não voltem a ser atacados pela covid-19”, explica Jassim Taqui.

Foi o caso do primeiro-ministro Imran Khan e do Presidente Arif Alvi, a quem o coronavírus foi diagnosticado poucos dias após receberem a primeira dose da vacina. “As pessoas acreditam que os países que produziram essas vacinas são motivados, em parceria com a Organização Mundial do Comércio [OMC], por benefícios monetários enormes provenientes da comercialização dessas vacinas e não pelo combate à pandemia.”

Retaliação sobre a Save the Children

Descoberto o embuste em redor da operação de captura de Bin Laden, o Governo paquistanês expulsou do país a organização Save the Children, apesar de esta ONG negar que o médico paquistanês que orquestrou a falsa vacinação trabalhasse para si.

Paralelamente, sectores extremistas da sociedade paquistanesa cavalgaram a onda anti-vacinas, acusaram os voluntários ao serviço das campanhas de imunização de serem agentes da CIA e incentivaram a um sentimento antiocidental.

Em junho de 2012, a liderança dos talibãs paquistaneses emitiu um decreto religioso (fatwa) contra o programa de vacinação do Governo. Desde então, tornaram-se frequentes ataques contra equipas de vacinação, que já levaram à morte de dezenas de pessoas, a maioria pessoal de saúde do sexo feminino e agentes da segurança que trabalhavam no apoio às ações de vacinação.

Tudo contribui para que, dez anos depois da falsa campanha que detetou Bin Laden, os paquistaneses não esqueçam o estratagema e desconfiem da boa vontade de quem lhes bate à porta com o intuito de injetarem-lhes um líquido no corpo.

“Penso que [o episódio Bin Laden] prejudicou a confiança nas vacinas não só no Paquistão, mas em todo o mundo, onde existe desconfiança entre populações e governos, especialmente em zonas de conflito”, diz ao Expresso o epidemiologista paquistanês Rana Jawad Asghar, professor na Universidade de Nebraska (EUA).

Consequências também nos EUA

A 6 de janeiro de 2013, vários reitores de escolas de saúde pública dos EUA escreveram uma carta ao então Presidente Barack Obama comparando o uso de campanhas de vacinação pela CIA à infiltração, décadas antes, de espiões americanos na Peace Corps, agência federal dos EUA, criada em 1961 pelo Presidente John F. Kennedy, para ajudar os países em desenvolvimento.

Cerca de meio ano depois, o então diretor da CIA, John Brennan, proibiu o uso de programas de vacinação nas operações de espionagem. Mas pelo menos no Paquistão, o mal estava feito.

Em finais de janeiro passado, sensivelmente na mesma altura em que foram confirmados os primeiros casos de covid-19 no Paquistão, uma sondagem da Gallup Paquistão concluiu que 49% dos inquiridos não tencionavam tomar a vacina. E dos 46% que aceitavam, apenas 4% preferiam uma vacina produzida na Europa ou EUA.

Foi em contexto de grande ceticismo em relação à covid-19 que, a 3 de fevereiro, arrancou a campanha de vacinação no Paquistão. Na véspera, chegara ao país um carregamento de 500 mil doses da vacina chinesa da Sinopharm, uma gota nas necessidades do país, mas que permitiu iniciar o processo.

“De início, as autoridades sanitárias confiaram totalmente nos chineses, pensando que receberiam as vacinas de graça. Isso não aconteceu. Os chineses exigem dinheiro, embora afirmem que deram ao Paquistão meio milhão de vacinas como presente”, diz Jassim Taqui.

“Depois, o Governo decidiu comprar vacinas a empresas russas e britânicas. Atualmente, o Paquistão criou um laboratório conjunto com a China para encher localmente as vacinas [da chinesa CanSinoBio, de uma dose apenas]. E paga aos chineses por isso.”

4,84

em cada 100 paquistaneses já tomaram a vacina (até 13 de junho). Em Portugal, esse rácio é de 67,09

Rana Jawad Asghar identifica três razões para a baixa taxa de vacinação. “Antes de mais, o Paquistão teve problemas com o fornecimento de vacinas. Isso, por sua vez, obrigou o Governo a não convidar ativamente as pessoas a vacinarem-se, pois temia não poder atender à procura se muitas pessoas o solicitassem. Em segundo lugar, a desinformação sobre vacinas é galopante não apenas no Paquistão, mas em todo o mundo. A falta de informação nas áreas pobres e rurais pode ser uma terceira causa, menos importante.”

No Paquistão, as dificuldades em torno da vacinação têm sido nefastas para o combate contra outras doenças, para além da covid-19. Dadas como erradicadas em grande parte do mundo, a poliomielite e a febre tifoide continuam ativas no país.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

Os desafios do poder, após a glória do críquete

Imran Khan toma hoje posse como primeiro-ministro. Prometeu acabar com a corrupção e bater o pé aos EUA

A história do Paquistão diz que, não raras vezes, só se sai da política para a cadeia ou num caixão. Impressiona, pois, quem como Imran Khan — que toma posse, este sábado, como primeiro-ministro deste país de 180 milhões — se tenha empenhado tanto em chegar à cadeira do poder. Logo ele que alcançara a unanimidade entre os paquistaneses ao liderar a seleção de críquete na conquista do seu primeiro Mundial, em 1992. Na final contra a Inglaterra, em Melbourne (Austrália), ele foi o capitão e também o jogador que mais pontuou.

O carisma e competência demonstrados em campo facilitaram a sua entrada na política. Em 1996, quatro anos depois da glória desportiva, fundou o Movimento para a Justiça do Paquistão (PTI, sigla inglesa) com o qual venceu as eleições de 25 de julho passado: não só obteve 32% dos votos (que lhe vale 158 dos 342 lugares na Assembleia Nacional), como tornou-se o partido mais votado no Punjab, a província mais populosa e onde Khan nasceu, em Lahore, há quase 66 anos.

O PTI demorou a impor-se. Da primeira vez que foi a votos, em 2002, elegeu apenas um deputado, Khan. Dezasseis anos depois, a popularidade do líder transformou-se em confiança e a sua proposta de “um novo Paquistão” conquistou o povo. “Ele não faz parte do velho establishment, de dinastias, como os Sharifs e os Bhuttos que têm governado quando há governos civis no poder”, diz ao Expresso Shairee Malhotra, investigadora no Instituto Europeu para os Estudos Asiáticos. “Tem pois a vantagem de não ter uma bagagem política desagradável.”

Durante a campanha eleitoral, Khan propôs um corte radical com o passado: acabar com a corrupção em 90 dias. A promessa tornou-o protagonista de piadas e valeu-lhe o rótulo de populista. “A luta contra a corrupção e a criação de um Paquistão novo e limpo teve repercussão junto dos jovens descontentes, que são mais de metade dos habitantes”, diz a investigadora.

Khan não detalhou como vai concretizar esse “milagre”, mas a sua eleição revela que, para muitos paquistaneses, o que conta é a sua honestidade. “A perceção geral é de que ele não é corrupto”, diz ao Expresso Jassim Taqui, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos Al-Bab, de Islamabad. “Mas há vozes que o acusam de fazer dinheiro com as suas instituições de caridade.” No rol dos seus projetos filantrópicos, destaca-se o Shaukat Khanum Memorial Cancer Hospital, que diz fornecer, todos os anos, tratamento grátis a 85% dos seus doentes oncológicos.

Imran Khan chega ao poder como o preferido (ainda que não de uma forma declarada) do todo-poderoso exército paquistanês. Jassim Taqui diz que ele pode tornar-se “um osso duro de roer, uma vez que é uma pessoa destemida”. “Ele é considerado fraco em matéria de extremismo e militância islâmica”, acrescenta Shairee Malhotra. “Foi por muitos apelidado de ‘Taliban Khan’ por defender o diálogo e negociações com os extremistas” em vez de uma estratégia militar.

A eleição do ex-desportista fez soar alarmes nos EUA, cuja guerra ao terrorismo e as operações com drones no Médio Oriente têm sido muito criticadas por Khan. “Nós tornámo-nos um aliado por procuração dos EUA numa guerra contra a União Soviética quando esta entrou no Afeganistão e permitimos que a CIA criasse, treinasse e armasse grupos jiadistas no nosso território. E uma década depois tentamos eliminá-los como terroristas sob as ordens dos EUA”, defendeu Khan em janeiro. “Chegou a hora de nos mantermos firmes e darmos uma forte resposta aos EUA.” Esta semana, no Twitter, Khan desejou sucesso à Turquia e a Erdogan “nos graves desafios económicos que têm pela frente”.

(Foto: Imran Khan tomou posse como primeiro-ministro do Paquistão a 18 de agosto FACEBOOK IMRAN KHAN (OFFICIAL)

Artigo publicado no Expresso, a 18 de agosto de 2018

‘Manobras’ militares nos bastidores do poder

Exército não apela ao voto mas tem sempre favorito, que costuma ganhar. Foi assim com Khan, mas este pode surpreender

MAX PIXEL

Desde que se tornou independente da coroa britânica, em 1947, o Paquistão já foi governado por militares durante três períodos: 1958-1969 (Muhammad Ayub Khan), 1977-1988 (Muhammad Zia-ul-Haq) e 1999-2008 (Pervez Musharraf). Há dez anos, pois, que os generais estão arredados do palco da política. Mas se é verdade que as eleições desta semana confirmaram o funcionamento da democracia — pela segunda vez consecutiva, um Parlamento levou o seu mandato até ao fim e, após eleições, o poder transitou entre civis —, é também evidente que os militares continuam influentes e que, mais uma vez, saiu vitorioso o candidato que preferiam.

“A democracia não tem tido êxito no país, devido aos eternos conflitos entre os governos eleitos e o forte aparelho militar”, diz ao Expresso Jassim Taqui, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos Al-Bab, de Islamabade. “Os militares creem que são os guardiães e salvadores do Paquistão. Suspeitam das intenções dos políticos quando estes tentam normalizar as relações com a Índia. Para o aparelho militar, a Índia é uma ameaça existencial”, o que levou o aliado norte-americano a desembolsar mais de $33 mil milhões (€28 mil milhões) em ajuda militar, nos últimos 15 anos. “Porém, os políticos acham que os militares estão mais interessados no poder e que estragam a democracia agindo como ‘um estado dentro do Estado’.”

Esta equação ganha especial visibilidade em época eleitoral. Oficialmente, os militares não declaram apoio a qualquer candidato, mas têm sempre um favorito. No passado, um dos eleitos foi Nawaz Sharif, da Liga Muçulmana do Paquistão Nawaz (PML-N), que chefiou o Governo três vezes e venceu as últimas eleições, em 2013. “Sharif foi levado ao poder pelos militares”, continua Taqui. “Mas pisou todas as linhas vermelhas traçadas pelo exército ao investir secretamente na Índia.” Sharif foi à Índia em 2014 e recebeu o homólogo Narendra Modi no ano seguinte. Depois, caiu em desgraça.

“Os militares suspeitam dos políticos quando estes tentam normalizar as relações com a Índia”

Em 2016, os “Panama Papers” expuseram a sua riqueza e Sharif ficou com a justiça à perna. No ano seguinte, o Supremo Tribunal desqualificou-o para cargos políticos e, há três semanas, foi condenado a dez anos de prisão por corrupção. “Tem sorte por só ter sido afastado do poder pelo Supremo Tribunal”, diz Jassim Taqui, que recorda o destino de Benazir Bhutto, a primeira mulher a chefiar um governo num país muçulmano. “Foi assassinada em 2007 por um bombista suicida em circunstâncias misteriosas. O seu partido acusou o Presidente de então de ser o cérebro por detrás da sua morte.” O chefe de Estado era o general Pervez Musharraf.

Um ‘golpe judicial’

Nas eleições desta semana, “Imran Khan, líder do Movimento para a Justiça do Paquistão, é quem melhor serve os interesses do exército”, comenta ao Expresso a investigadora Shairee Malhotr, do Instituto Europeu para os Estudos Asiáticos. “Ao contrário do líder deposto Nawaz Sharif, é menos provável que Khan enfrente os militares em assuntos de política externa [sector que tem permanecido sob alçada dos militares]. Há a convicção generalizada de que o exército conspirou com o poder judicial naquilo que muitos designam como um ‘golpe judicial’ para afastar Sharif e, simultaneamente, impulsionar Khan para chegar ao poder. O exército quer um governo fraco, sem força nem poder para alterar o equilíbrio entre civis e militares no país, e que continua fortemente favorável aos militares.”

Desde que fundou o seu partido, em 1996 — apenas quatro anos após capitanear o Paquistão na conquista do Mundial de críquete —, Khan está determinado em sentar-se na cadeira do poder. “Ele poderá vir a ser alguém muito irritante para o exército”, conclui Jassim Taqui. “É destemido.”

(IMAGEM MAX PIXEL)

Artigo publicado no Expresso, a 28 de julho de 2018