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Iraque sem governo há dez meses porque os xiitas não se entendem com… os xiitas

Depois de invadirem o Parlamento, centenas de iraquianos estão agora acampados na praça em frente ao edifício, sem prazo para dali saírem. É a imagem mais ilustrativa do caos que tomou conta da política iraquiana. O país não consegue formar governo e, nos corredores, trava-se um braço de ferro entre duas formações xiitas. Um posicionamento demarca-as de forma clara: a relação com o Irão

A data da celebração é variável já que as festividades islâmicas regem-se pelo calendário lunar. Este ano, a festa religiosa mais importante para os muçulmanos de credo xiita celebrou-se na segunda-feira. A Ashura assinala o martírio de Hussein, neto do profeta Maomé, no ano de 680 a.C., na batalha de Kerbala, hoje território iraquiano.

Esta solenidade, que não é observada pelo ramo maioritário entre os muçulmanos, os sunitas, inclui um ritual público em que homens de todas as idades batem com espadas e punhais contra o couro cabeludo. Tomados por um sentimento de culpa, outros açoitam-se com correntes. Em minutos, ficam com os corpos cobertos de sangue, num ato de autoflagelação com que procuram reviver o sofrimento do imã Hussein.

No Iraque, este ano, o rito foi cumprido com o mesmo fervor de sempre, ainda que, a nível político, a união entre os xiitas — a maior fatia da população — não seja presentemente uma realidade. O país realizou eleições legislativas a 10 de outubro, os xiitas venceram de forma inequívoca, mas não conseguem formar governo.

O escrutínio ditou que os 329 assentos do Conselho dos Representantes (como se chama o Parlamento iraquiano) fossem repartidos por 33 formações políticas (43 lugares ficaram para independentes). O Movimento Sadrista, um partido xiita, foi o mais votado, com 10% dos votos e 73 deputados eleitos.

Apesar de terem a bancada mais numerosa, os sadristas não angariaram apoio para fazer aprovar um governo. Optaram então por uma demonstração de força e, a 12 de junho, demitiram-se da assembleia, abrindo caminho a uma aliança xiita rival, o bloco maioritário seguinte. O Quadro de Coordenação, como se chama, avançou com o seu nome para a chefia do governo: Mohammed al-Sudani, um antigo ministro dos Direitos Humanos. No dia em que ia ser votado (30 de julho), centenas de sadristas irromperam pelo Parlamento e tomaram as cadeiras dos deputados.

A facilidade com que tudo aconteceu não deixa de ser surpreendente e indicia infiltrações em ministérios sensíveis como o da Defesa e do Interior. O Parlamento situa-se na Zona Verde de Bagdade, um perímetro com segurança reforçada, delimitado à época da presença das tropas internacionais. Ali ficam também os edifícios do Governo e as embaixadas.

A intenção dos sadristas ficou clara desde a primeira hora: ali ficar num protesto permanente (sit-in, em inglês) até serem atendidas as suas exigências. “Eles querem fazer uma grande pressão sobre os seus opositores (do Quadro de Coordenação) para obterem ganhos. Querem manter o seu primeiro-ministro (Mustafa Al-Kadhimi), a comissão de eleições e a lei eleitoral”, diz ao Expresso o analista político iraquiano Ahmad Rushdi. “Querem ir para eleições antecipadas e ganhar mais de 100 lugares desta vez.”

Por ordem da liderança, os sadristas acabaram por evacuar o hemiciclo e transferiram o protesto para a praça em frente ao Parlamento, onde continuam, com tendas montadas. “Não é a primeira vez que eles invadem o prédio do Parlamento, e certamente não é a primeira vez que testemunhamos um movimento político a contornar os postos de segurança governamentais em direção às instalações governamentais para enviar uma mensagem”, acrescentou ao Expresso Zeidon Alkinani, do Centro Árabe de Washington DC.

Para este analista, a tomada do Parlamento por apoiantes de Muqtada al-Sadr motiva dois tipos de especulações. Por um lado, uma oposição ao candidato a primeiro-ministro do Quadro de Coordenação. Por outro, “pode ser que o Movimento Sadrista esteja a orquestrar uma exibição de poder e de rebeldia, a pensar no previsível papel de oposição parlamentar se o Quadro de Coordenação conseguir aprovar Al-Sudani”. Para Alkinani, este parece ser o cenário com mais força para vingar.

Neste braço de ferro entre fações xiitas, há um posicionamento que as demarca de forma clara: a relação com o Irão, o gigante xiita do Médio Oriente.

Muqtada al-Sadr, um clérigo de 48 anos, sempre se distinguiu por se opor à interferência estrangeira no Iraque. Primeiro, enquanto jovem líder rebelde, combateu a ocupação norte-americana do país (2003-2011) à frente de uma poderosa milícia, o Exército de Mahdi. Hoje, defende um governo que não seja “nem ocidental, nem oriental” e opõe-se frontalmente à influência do Irão no país. Como surgiu?

A guerra no Iraque e a morte de Saddam Hussein (que pertencia à minoria sunita e governava de forma ditatorial, reprimindo a maioria xiita) escancararam as portas iraquianas aos ayatollahs iranianos. Os dois países têm uma população maioritariamente xiita — 60% no Iraque e mais de 90% no Irão — e partilham cerca de 1600 quilómetros de fronteira. Para muitos iraquianos, Al-Sadr é a esperança de que o seu país seja expurgado dessa ascendência.

No espectro oposto, o Quadro de Coordenação integra partidos alinhados com os interesses da República Islâmica. A principal figura desta formação é o antigo primeiro-ministro Nouri al-Maliki (xiita), um rival pessoal de Al-Sadr.

Iraquianos nas ruas

Este xadrez torna o Iraque um país vulnerável às disputas geopolíticas na região. “A rede por procuração da influência iraniana no Iraque não é segredo. No entanto, não podemos negar que essa influência tem diminuído significativamente”, diz Zeidon Alkinani.

“Teerão já chegou a promover a unidade do campo político xiita (desde que alinhado com a sua agenda). Hoje, não pode sequer garantir a influência contínua sobre os seus aliados xiitas remanescentes. Ser totalmente dependente da influência iraniana não atrai muitos políticos xiitas pró-Irão, especialmente após a eclosão do movimento de protesto de outubro de 2019, que teve uma forte retórica contra a intervenção iraniana nas províncias iraquianas de maioria xiita.”

A mais recente crise política no Iraque vem culminar um período de contestação popular que explodiu a 1 de outubro de 2019 com manifestações, marchas, protestos permanentes e ações de desobediência civil, muitas vezes combinado nas redes sociais, contra a corrupção, o desemprego, a ineficácia dos serviços públicos, o sectarismo na política e também o intervencionismo iraniano.

Muqtada Al-Sadr tem repetido o seu compromisso com um “governo nacional maioritário” representativo também de sunitas e curdos, as outras duas grandes fações étnico-religiosas, mas marginalizando os rivais xiitas do Quadro de Coordenação.

Contudo, arrastar sunitas e curdos para uma possível solução de governo poderá ter consequências indesejadas. “Existem divisões intra-elitistas dentro desses grupos também”, explica Zeidon Alkinani. “Nos primeiros momentos das divergências entre o Movimento Sadrista e o Quadro de Coordenação, que levaram a este impasse político que dura há dez meses, o Partido Democrático do Curdistão ficou do lado dos sadristas, enquanto a União Patriótica do Curdistão alinhou pelo Quadro.”

Entre os sunitas, também há simpatias pelos dois campos políticos xiitas, que, neste contexto, mais parecem transformados em duas frentes. “As formações pró-sadristas [entre os curdos e os sunitas] também querem eleições antecipadas”, acrescenta Ahmed Rushdi.

“Agora que os sadristas se demitiram do Parlamento e o Quadro tenta formar governo — para além do sit-in e dos distúrbios à ordem pública —, observamos uma intensa rivalidade política intra-xiita que está muito próxima do conflito. Os líderes políticos sunitas e curdos terão apenas de sugerir o diálogo e a mediação para que sobrevivam aos seus próprios estatutos frágeis no sistema político.”

Num país marcadamente confessional — onde está estabelecido que o primeiro-ministro é um xiita, o Presidente do país um curdo e o presidente do Parlamento um sunita —, a identidade parece estar em perda no terreno da política.

(IMAGEM Bandeira do Iraque. Lê-se, em árabe: “Allah é o maior” WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

A Coreia do Sul tem novo Presidente. Yoon Suk-yeol debutou na política há menos de um ano

A décima maior economia do mundo tem, a partir desta terça-feira, um político inexperiente aos seus comandos. Yoon Suk-yeol trabalhou toda a vida no sector da justiça e acumulou prestígio no combate à corrupção. Para este conservador, os trabalhadores sul-coreanos devem poder trabalhar 120 horas por semana. E a relação com a Coreia do Norte e com a China é para endurecer

Yoon Suk-yeol, na cerimónia de tomada de posse como Presidente da Coreia do Sul, a 10 de maio de 2022 FLICKR REPUBLIC OF KOREA

Coreia do Sul pertence a uma minoria de países que, tendo adotado o sistema presidencialista como forma de governo, apenas permite que chefe de Estado desempenhe um mandato de cinco anos, sem reeleição. A regra radica na Constituição de 1987, que pôs termo à ditadura militar.

“O mandato único foi fundamental para a obtenção de um compromisso político. Havia muito medo que de que o Presidente em exercício não perdesse a reeleição” e se eternizasse no cargo. “Um mandato único garantia a mudança ao fim de cinco anos”, explica ao Expresso Jong Eun Lee, professor adjunto na Universidade Americana, Washington DC.

Esta terça-feira, a Coreia do Sul inaugura um novo capítulo na sua jovem democracia de 35 anos. Toma posse um novo Presidente, de seu nome Yoon Suk-yeol.

Estando o Presidente Moon Jae-in, do Partido Democrático da Coreia (centro liberal, maioritário no Parlamento), impossibilitado de se recandidatar, os eleitores escolheram novo rumo. O país depositou confiança no candidato do Partido do Poder Popular (direita), formação que tem liderado a oposição.

Yoon Suk-yeol venceu as eleições de 9 de março com 48,56% dos votos. O candidato derrotado, Lee Jae-myung, do Partido Democrático, ficou a menos de 1%. A diferença entre ambos foi de 247.077 votos, num universo de mais de 44 milhões de eleitores.

Esta vantagem exígua — num escrutínio que ficou conhecido como “eleições squid game” (por analogia com uma série sul-coreana violenta de grande sucesso na Netflix), dado o nível de agressividade entre os candidatos — revelou quão dividida está a sociedade na 10.ª maior economia do mundo.

Yoon Suk-yeol é um novato da política. Nascido em Seul a 18 de dezembro de 1960, a um casal de professores universitários, foi no sector da justiça que trabalhou toda a vida. Formou-se em Direito na Universidade Nacional de Seul e só entrou na Ordem dos Advogados… à nona tentativa. Os anos como promotor de justiça contribuíram para construir a imagem de homem destemido, que não vacila na hora de enfrentar pesos-pesados da política e magnatas dos negócios.

“Passei muitos anos da minha carreira a morar sozinho, enquanto trabalhava como promotor em gabinetes locais e regionais. Então, passei a cozinhar muito para mim e gostei. Julgo que aprendi habilidades naturalmente, a observar a minha mãe na cozinha quando eu era jovem”, disse a 14 de abril, numa entrevista ao jornal norte-americano “The Washington Post”, desvendando, desta forma, um dos seus prazeres particulares: a cozinha. As suas especialidades são kimchi jjigae, uma espécie de ensopado, e bulgogi, conhecido como “churrasco coreano”.

Cruzada anticorrupção

Em 2016, o prestígio de Yoon Suk-yeol disparou quando passou a liderar uma equipa de investigação a um escândalo de corrupção e abuso de poder envolvendo a então Presidente do país. Park Geun-hye acabaria por ser impugnada e condenada a 25 anos de prisão. Foi indultada e libertada a 31 de dezembro passado.

Entre 2019 e 2021, Yoon desempenhou o cargo de procurador-geral do país. Expôs casos de corrupção que implicavam membros do Governo de Moon Jae-in, o que foi determinante para ter sido escolhido pelos conservadores para candidato à presidência. Aderiu ao Partido do Poder Popular a 30 de julho de 2021 — a sua entrada oficial na política —, após ter anunciado a intenção de concorrer como independente.

Durante a campanha eleitoral, Yoon, que se opõe ao intervencionismo económico do Estado, prometeu combater a estagnação económica, os altos preços das casas e o desemprego persistente entre os jovens. Defendeu também a abolição do salário mínimo e a semana laboral de 52 horas, defendendo que “os trabalhadores devem poder trabalhar 120 horas”.

Numa promessa eleitoral que causou polémica, Yoon comprometeu-se a abolir o Ministério da Igualdade de Género e Família e culpou o aumento do feminismo pela baixa taxa de natalidade no país.

Batizado na fé católica, em 2012 casou-se com Kim Kun-hee, mais nova 12 anos, atual presidente de uma empresa especializada na organização de exposições de arte. O casal não tem filhos e não esconde o seu amor por animais: vive com quatro cães e três gatos.

Quebrando uma prática de décadas, o novo Presidente vai instalar o seu gabinete não na tradicional Casa Azul, a norte de Seul, mas no complexo do Ministério da Defesa, na zona de Yongsan, no centro da capital.

A nível interno, as prioridades da Administração Yoon serão “a resposta ao impacto da pandemia de covid-19 e o mercado imobiliário”, prevê Jong Eun Lee. “Como é que a Coreia vai recuperar-se da pandemia e que compensações serão dadas, especialmente aos pequenos empresários? O Governo conseguirá controlar o aumento do preço da habitação e/ou aumentar a oferta de novas casas? Eis as principais prioridades dos eleitores sul-coreanos. E, uma vez que haverá eleições locais a 1 de junho, o Executivo irá dar preferência a essas agendas.”

A pensar nesse desafio eleitoral, o novo Presidente — cujo partido só tem garantido o apoio de 113 dos 300 deputados da Assembleia Nacional — realizou recentemente uma volta ao país: visitou 29 cidades em 50 dias.

Desnuclearização é pré-requisito

O académico ouvido pelo Expresso refere outra prioridade doméstica: o apoio à inovação tecnológica (a Revolução Industrial de 4ª Geração) visando o crescimento económico e a criação de emprego, sobretudo para os jovens. “A inovação tecnológica e o crescimento impulsionado pelo mercado parecem ser uma marca registada da governação de Yoon.”

Por último, o reforço da segurança nacional e a paz na península coreana. Se o seu antecessor se empenhou pessoalmente num processo de diálogo intercoreano — Moon Jae-in protagonizou três cimeiras com o homólogo norte-coreano, Kim Jong-un —, Yoon já identificou um pré-requisito para se envolver em mais iniciativas: a completa desnuclearização da Coreia do Norte.

“Yoon prometeu continuar os esforços no sentido de um envolvimento diplomático com a Coreia do Norte e apoiou o envio de ajuda humanitária. Ao mesmo tempo, defendeu o fortalecimento da [relação de] dissuasão entre a Coreia do Sul e os Estados Unidos contra as ameaças/provocações da Coreia do Norte e a continuação das sanções internacionais até que Pyongyang registe uma desnuclearização substancial”, diz Jong Eun Lee.

“Enquanto a Coreia do Norte continuar com uma série de testes com mísseis, é provável que a Administração Yoon adote uma atitude de linha-dura, em parte para contrastar com o Governo anterior. Provavelmente, Yoon responderá com iniciativas com vista ao fortalecimento do sistema de defesa antimíssil da Coreia do Sul e a realização de exercícios de defesa em larga escala com os Estados Unidos.”

Durante a campanha eleitoral, Yoon defendeu ataques preventivos contra a Coreia do Norte como única forma de conter o perigo dos novos mísseis hipersónicos, testados com êxito por Pyongyang em janeiro deste ano. E disse que iria pedir aos EUA que estacionassem no país armas nucleares táticas, em caso de ameaça por parte do Norte.

Em alguns dias, Yoon ficará a saber o que pensa o homólogo norte-americano da sua estratégia. Entre 20 e 24 de maio, Joe Biden visitará a Coreia do Sul e o Japão, naquele que será o seu primeiro périplo pela Ásia. Os dois Presidentes têm uma cimeira agendada para o dia 21.

Ajudar a conter a China

Jong Eun Lee antecipa “o fortalecimento da aliança entre os dois países”, que têm uma relação tão antiga quanto o próprio país (formalizada em 1949, após a divisão da península).

“Procurando dar um passo em frente, a Administração Yoon é apologista de uma ‘aliança estratégica abrangente’, que passa pela expansão das áreas de cooperação com os EUA, em específico a participação na estrutura de segurança da região do Indo-Pacífico — como o Diálogo de Segurança Quadrilátero (Quad, na sigla inglesa) —, a cooperação tecnológica nas áreas biológica, nuclear, cibernética e espacial, e a parceria trilateral Coreia do Sul-EUA-Japão.”

O desejo de ser parte ativa no Quad insere-se na visão de Yoon de querer projetar a Coreia do Sul como “Estado pivô global”, não exclusivamente focado na Coreia do Norte. Isso terá impacto na relação com a China — o maior parceiro comercial da Coreia do Sul, que absorve mais de 25% das suas exportações — já que o Quad, aliança composta por EUA, Austrália, Índia e Japão, foi criado para conter a crescente influência de Pequim na região.

“É inquestionável que os dois países [Coreia do Sul e China] não podem negligenciar-se ou ignorar-se”, explicou Yoon a “The Washington Post”. “Ao nível da política e da segurança, a China tem uma aliança com a Coreia do Norte, e nós temos uma aliança com os EUA. Mas há 40 divisões militares colocadas ao longo da DMZ [zona desmilitarizada entre as Coreias]. É essa a nossa realidade no terreno.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui

A democracia vai sobreviver?

Dos ataques cibernéticos aos locais onde é regime estabelecido, à dificuldade em singrar nas paragens que ainda não a abraçaram, a democracia parece ameaçada neste final de década. Mas será que os reais perigos que enfrenta são aqueles de que mais se fala?

Demagogos, populistas, extremistas. Pós-verdade, factos alternativos, desconfiança dos políticos. Eis as ameaças que pesam sobre a democracia liberal, a tal que num período entre há 30 e 25 anos parecia rumar à conquista do mundo. Certo? Talvez não. “A pós-verdade não é necessariamente má”, afirma ao Expresso o académico americano Steve Fuller. Professor de Ciências Sociais na Universidade de Warwick, autor de “Post-Truth: Knowledge as a Power Game” (Anthem, 2018), compreende os receios de hoje relativos ao efeito da desinformação — mormente via redes sociais — sobre os processos democráticos, mas vê-los como “dores de crescimento” de uma nova forma de democracia.

“Com o aumento da educação e do acesso à internet há mais fontes de informação, e isso ajuda ao processo de democratização. Se queremos mais democracia, é de esperar que aceitemos que se questionem as autoridades estabelecidas. Levanta imensos problemas, mas sobretudo às elites, àqueles que no passado eram fontes de conhecimento reconhecidas”, diz Fuller, durante uma conferência sobre inteligência artificial, no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

Reconhece que “há muito mais material na internet” e que “pode ser usado para minar a democracia”, mas não crê que as pessoas olhem para ele cegamente e julga que há mais risco de esse material aprofundar crenças já estabelecidas, no efeito conhecido como “bolha de filtro”, do que propriamente para espalhar persuasão geral sobre algo que é falso. “Podemos estar num período de transição, mas à medida que se vai percebendo como a informação é propagada, é possível consumi-la com espírito crítico”, acrescenta. Comenta que os que tiverem más intenções não precisam sequer de grande sofisticação. “Os maiores ataques às democracias têm vindo da Rússia, que não é o país mais avançado do mundo em muitos outros aspetos, e cujos hackers podem causar danos a nível global, sem precisarem sequer de ser diretamente comandados por Vladimir Putin.”

Fuller preocupa-se com a desresponsabilização das redes sociais pelos conteúdos que nelas circulam. “O problema do Facebook é afirmar-se como plataforma neutra. Futuramente terá de decidir o que é ou não apropriado, o que é ou não falso, e não me parece que esteja preparado para isso.” Insiste, porém, que é mais democrático haver “produtores e consumidores de informação em números semelhantes, ao passo que outrora havia poucos emissores para muitos recetores, e estes não tinham possibilidade de dar feedback. Ora, o fluxo de informação deve ser livre”.

Quando o centro se esvazia

“Há um risco para a democracia quando se constroem identidades muito fortes e todo o sistema tende para a polarização”, alerta, em declarações ao Expresso, a politóloga holandesa Catherine De Vries. Impressionada com dados que indicam que “nos Estados Unidos um apoiante do Partido Democrata confia mais num criminoso do que em alguém do Partido Republicano, ou vice-versa”, vê nesta falta de confiança — que as redes sociais alimentam — um obstáculo a qualquer compromisso que permita aos países avançar. Exemplifica com as tensões que o processo de saída da União Europeia (UE) tem criado no Reino Unido, com subsequente degradação do discurso público e falsidades propaladas “de ambos os lados”.

Especialista em euroceticismo, De Vries indica “os vetos cruzados” como impedimento a que os cidadãos consigam perceber o bem que a UE lhes faz. “Isso muitas vezes não se vê”, afirma, citando pesquisas que sugerem que “os partidos nacionais não falam muito do contributo da UE, porque isso seria assumirem que não são tão poderosos”. Recorda que a maioria das forças políticas europeias nasceu a nível nacional, de fricções sociais e económicas não centradas na pertença ou não a um projeto comum. A seu ver, “a única forma de a UE amadurecer é debater-se a si mesma”. Se a maioria dos seus 500 mil cidadãos se sente oriundo do país onde vive ou onde nasceu, e não “cidadão da UE”, tal deve-se à falta de cariz emocional desta última. “Vê-se a UE como algo com quem se tem uma transação, aceita-se se de lá vierem coisas boas, mas a cada coisa má vem logo a tentação de deitar tudo fora”. E aí é preciso refletir: “Queremos mesmo tornar-nos paus-mandados da Rússia, da China ou dos Estados Unidos?”

Aponta como momento crítico para a democracia na UE a crise do euro, os “ralhetes” de Bruxelas às opções democráticas dos países (sobretudo dos intervencionados). Frisa, porém, que desde então vários partidos “do centrão” ganharam eleições — em Portugal, Áustria e Dinamarca, por exemplo — e nota que “os populistas definem-se mais por aquilo a que se opõem, sendo anti-imigração, anticapitalistas ou anti-UE, em vez de serem a favor de algo. “E o povo quer é ver os políticos a fornecerem soluções”, razão pela qual “muitos demagogos, ao chegarem ao poder, caem antes do fim do mandato”.

Direitos dos androides?

Se De Vries fala da democracia representativa, Fuller considera-a em “transição para a democracia direta” e acha que isso é bom: “A democracia representativa é, na melhor das hipóteses, o último nível do paternalismo.” O estudioso americano não sabe dizer como será isso viável à escala de um país ou mais, mas “é para aí que o mundo vai”. “Há visões que se dividem entre, por exemplo, pensar que Trump é uma aberração e que quando ele se for embora volta tudo ao normal, ou pensar que isto é o novo normal. Tendo a acreditar na segunda”, afirma.

Fuller admite que, embora a maioria das pessoas não veja no processamento de dados e na inteligência artificial ameaças à democracia, as diferenças no acesso à informação possam criar novas tensões. “Tal como o marxismo nasceu em reação à revolução industrial, podemos assistir a uma reação ao facto de o capitalismo não ter libertado toda a gente.”

A outra vertente da transformação tecnológica com grande impacto na forma como somos governados, prognostica, será a nível do trabalho. As máquinas já substituem muita gente em empregos administrativos médios, “incluindo tarefas de alguns médicos e advogados”, afirma Fuller, para quem o destino do ser humano é “passar a ser o valor acrescentado à máquina”. “Hoje podemos comprar uma mesa do IKEA, barata e produzida em série, ou uma bonita mesa sem igual que só um artesão sabe fazer”, ilustra.

Mas o docente tem visões mais desafiadoras no que diz respeito à presença da tecnologia nas nossas vidas, a curto e médio prazo. “A questão dos direitos dos androides e máquinas vai colocar-se”, antevê. “Não vão tomar conta do mundo”, descansa os que tiverem visões distópicas de uma Humanidade escrava. “Mas à medida que se integram na nossa vida e confiamos cada vez mais no juízo de robôs e outros aparelhos, os humanos tenderão a vê-los cada vez mais como iguais.” Fala da assistência a pessoas idosas e incapacitadas como campo onde esse avanço vai dar-se mais depressa. “Se calhar um dia acontece com as máquinas o que aconteceu com as raças, torna-se inaceitável discriminar.”

Água mole em pedra dura

Até aqui temos falado de problemas “do primeiro mundo”, isto é, do sentimento de que a democracia não é o “fim da História” que até Francis Fukuyama já renegou. Mas é bom ver, e este ano foi nisso generoso, que essa História não chega a todo o lado ao mesmo tempo nem da mesma forma. Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos.

Indo ao berço da nossa espécie, a maioria dos africanos quer democracia, mas não vive em regimes democráticos. África é um mosaico de 54 países que nem a divisão em sub-regiões — África Oriental, Ocidental, do Norte, Austral — permite homogeneizar. Tem uma história de democratização recente de 30 ou 40 anos, se a entendermos como processo que visa atingir a democracia. Esta deve implicar, em África, muito mais do que a importação do modelo ocidental e a sua análise não pode ignorar os séculos de escravatura e colonialismo de que o Ocidente foi o grande beneficiário.

Em abril de 2019 o mundo viu cair o regime autoritário do Sudão, chefiado por Omar Al-Bashir, seguindo-se o acordo entre o conselho militar de transição e os líderes da contestação, que permitiu pôr em funções um primeiro Governo a 5 de setembro. A sua principal tarefa é abrir caminho ao poder civil e a eleições democráticas no prazo de três anos. Há não muito tempo, o Sudão seria dos países menos prováveis para palco de protestos populares consequentes. A realidade provou, todavia, que não era impossível criar um horizonte político com vista a uma abertura democrática e civil, a reivindicação exigida pelos manifestantes.

Há cada vez mais atos eleitorais no continente africano. A Freedom House conta 21 democracias plenas ou quase entre os 54 países, enquanto uma perspetiva mais conservadora, como a da Economist Intelligence Unit — que avalia o estado da democracia em 167 Estados, classificando-os como “democracias plenas”, “democracias imperfeitas”, “regimes híbridos” e “regimes autoritários” —, considera que apenas nove governos africanos estão no primeiro grupo, o equivalente a 12% da população do continente. Um estudo do Institut for Security Studies conclui que a democracia plena teria um impacto muito positivo no desenvolvimento individual dos países, porém, a maioria dos Estados é pobre, a robustez das instituições fraca e os partidos no poder controlam, em muitos casos, os processos eleitorais, comprometendo os seus resultados.

Olhando para lá do chamado mundo Ocidental, há democracias ou laivos delas a tentar brotar em solos que lhe têm sido aziagos

Os parâmetros são díspares e as histórias nacionais são únicas. Depois de uma transição presidencial considerada democrática por todos os padrões, a Zâmbia acaba de legalizar a produção de marijuana para exportação para fins medicinais, ao mesmo tempo que pretende expulsar o embaixador dos Estados Unidos no país por defender os direitos de um casal homossexual, condenado a 15 anos de prisão. Yoweri Museveni liderou a libertação do Uganda, mas perpetua-se no poder há décadas com uma mão cada vez mais pesada sobre a oposição e os direitos cívicos dos cidadãos. Porém, é o país de África mais aberto ao acolhimento de migrantes numa região — Grandes Lagos — flagelada por conflitos endémicos.

Mesmo países como a África do Sul, que beneficiam de uma Constituição e de instituições democráticas sólidas e propositadamente projetadas para avançarem para longe do passado de abuso de que foram objeto pelo regime de Apartheid, extinto em 1994, veem-se enredados em situações de captura do Estado por grupos económicos que foram favorecidos pela conivência do ex-Presidente Jacob Zuma, entretanto deposto.

Ao contrário do que é muitas vezes defendido, os países têm os seus mecanismos internos e a capacidade de forjar alianças para o desenvolvimento. A crescente influência da China e, mais recentemente, da Rússia, no continente preocupa parceiros tradicionais, que equivalem, ainda em muitos casos, às zonas de influência pós-coloniais. O desafio do continente é o crescimento da sua população, que terá duplicado em 2050 relativamente ao presente para 2400 milhões de habitantes, metade dos quais com menos de 25 anos, segundo projeções das Nações Unidas. Em 2018, 60% destes jovens estavam desempregados.

O gigante chinês

Na Ásia, a democracia é ainda, na esmagadora maioria dos países, um projeto. No supracitado índice Economist de 2018, a maior parte dos países asiáticos integra o bloco dos regimes autoritários. Um caso extremo é a Coreia do Norte, país hermético, apostado na autossuficiência económica e liderado, desde há 70 anos, por uma mesma família — os Kim — ao estilo de uma república dinástica em que o poder vai passando de pai para filho. No polo oposto estão exceções como o Japão, a Coreia do Sul ou a Índia, com democracias consolidadas e funcionais, ainda que posicionados no grupo das “democracias imperfeitas”, onde está também Portugal (com nota baixa no critério da “participação política”).

Ao longo de 2019, uma importante batalha pela democracia tem-se travado no interior de um dos maiores gigantes asiáticos: a República Popular da China, onde no ano passado o “Pensamento de Xi Jinping”, o atual líder, ganhou estatuto de nova doutrina política oficial, inserida na Constituição. Essa batalha está a acontecer em Hong Kong, região autónoma especial cuja soberania transitou, em 1997, do Reino Unido para a China. Protestos populares de massas, que chegaram a envolver dois milhões de pessoas, estão nas ruas desde 9 de junho, sem indícios de que o fim esteja para breve.

Espoletada inicialmente pela contestação a uma polémica nova lei da extradição — que os locais sentiam como o estender do braço autoritário de Pequim sobre a autonomia de que ainda gozam —, a contestação evoluiu no sentido de reivindicações mais políticas. Entre as exigências que os incansáveis manifestantes querem ver concretizadas a curto prazo, para saírem das ruas, está a eleição do chefe do governo local por sufrágio direto e universal, o que não acontece atualmente.

A longo prazo, está em causa a manutenção das liberdades de que hoje usufruem e que não são possíveis na China continental, na secreta esperança de que, chegados a 2047 — fim do período de transição de 50 anos—– tenha germinado na China a semente democrática que em Hong Kong tanto querem preservar.

Tão ou mais persistentes do que os habitantes de Hong Kong, este ano, só os argelinos que têm saído às ruas todas as sextas-feiras desde 22 de fevereiro. Apesar de a chamada “primavera árabe”, em 2011, ter resultado num rotundo fracassado — a queda dos ditadores na Tunísia, Egito, Líbia e Iémen não trouxe a democracia —, na Argélia o povo parece apostado em repetir a fórmula. Já conseguiram impedir que o Presidente Abdelaziz Bouteflika, que vive preso a uma cadeira de rodas, se recandidatasse a um quinto mandato. Mas insistem numa total substituição do regime, uma verdadeira revolução.

Os pedidos de “fim do regime” fazem-se ouvir noutros países árabes, como o Líbano e a Jordânia, onde queixas relativas à qualidade de vida das populações e à corrupção que domina o aparelho do Estado têm levado milhares às ruas. Noutras latitudes o povo também protesta — Irão, Iraque, Chile, Bolívia, ou Equador —, seja por motivos domésticos seja por causas transversais, como a mudança climática. Se há lição das décadas que vivemos desde o fim da Guerra Fria, é que a História teima em não acabar, seja nos locais onde julgámos a democracia indestrutível, seja onde não imaginávamos que pudesse germinar.

Texto escrito com Cristina Peres e Pedro Cordeiro.

Artigo publicado na Revista E do “Expresso”, a 11 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Cinco casos em que a moral levou a melhor sobre a ambição

Assumiram cargos políticos convictos de que podiam contribuir para um mundo à imagem dos seus valores. Mas, de forma mais ou menos sonora, acabaram por dar um murro na mesa alegando razões de consciência. Cinco casos em que a moral levou a melhor sobre a ambição

Zeid Ra’ad al Hussein termina, esta sexta-feira, o seu mandato como alto comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Será substituído no cargo pela ex-Presidente chilena Michelle Bachelet. O fim da missão foi anunciado em dezembro passado, num email enviado aos seus colaboradores: “Após refletir, decidi não tentar um segundo mandato de quatro anos. Fazê-lo, no atual contexto geopolítico, poderia envolver ter de dobrar um joelho em súplica; silenciar uma declaração de defesa de direitos; diminuir a independência e integridade da minha voz.”

A continuidade no cargo estaria apenas dependente da confiança do secretário-geral da ONU, António Guterres. Mas Hussein, dono de um estilo assertivo em matéria de defesa de direitos humanos — foi capacete azul nos Balcãs, na década de 1990, e ajudou a pôr de pé o Tribunal Penal Internacional —, sentiu que tinha em mãos uma tarefa cada vez mais impossível. Sobretudo, numa era de “políticos demagogos e fantasistas”, como qualificou o líder da extrema-direita holandesa, Geert Wilders, e… Donald Trump.

Na semana anterior ao envio do email aos seus colaboradores, a voz de Hussein ecoou, oficialmente, por três vezes em tom condenatório: após as Forças de Defesa de Israel abaterem um palestiniano numa cadeira de rodas na Faixa de Gaza; após o anúncio de um projeto de construção de uma estrada no Peru que obrigaria à deslocalização de povoações indígenas; e após o regime de Myanmar (antiga Birmânia) impedir a entrada no país de investigadores na área dos direitos humanos, com a perseguição à minoria rohingya em curso.

O jordano levou o seu cargo até ao fim, mas terminou-o emocionalmente desgastado, farto de ser ator num filme negro no qual a nação mais poderosa à face da Terra não era mais um aliado e abdicara de promover valores na sua relação com os outros. Em junho passado, os EUA saíram do Conselho de Direitos Humanos da ONU solidários com Israel.

Três dias antes de Hussein deixar funções, um sentimento de frustração semelhante esteve na origem da demissão de Nicolas Hulot do cargo de ministro do Ambiente de França. Em direto, num programa de rádio, o respeitado ecologista — que foi conselheiro de três Presidentes (Jacques Chirac, Nicolas Sarkozy e François Hollande) antes de Emmanuel Macron o convencer a assumir um cargo de governação — afirmou-se frustrado com a ineficácia do poder e os “pequenos passos” do seu Goveno em matéria ambiental. “Não quero continuar a mentir a mim próprio. Não quero dar a ilusão de que a minha presença no Governo significa que estamos a avançar”, disse. Esteve no cargo quinze meses.

“As razões morais que levam a uma demissão decorrem de três dimensões morais da integridade”, defende Patrick Dobel, professor na Evans School of Public Policy and Governance, da Universidade de Washington, no estudo “A ética da demissão”. “Os detentores de cargos prometem cumprir a sua obrigação. Isso pressupõe que têm aptidão para fazer e cumprir promessas, competência para realizar as tarefas a que se propõem e capacidade para serem eficazes”, concretiza. “O fracasso em cada uma dessas áreas gera fortes razões morais que leva o indivíduo à renúncia.”

Se Zeid Ra’ad al Hussein perdeu o entusiasmo — e com isso a energia necessária ao desempenho de um cargo pesado — e se Nicolas Hulot se sentiu um homem cada vez mais só dentro do executivo francês, outros casos há em que o choque entre convicções pessoais e opções políticas levam inevitavelmente à rutura.

A 17 de março de 2003, quando o início da guerra no Iraque estava iminente — e o Reino Unido de Tony Blair se perfilava como o braço direito dos EUA de George W. Bush nessa ofensiva —, Robin Cook demitiu-se do Governo em protesto contra essa intervenção militar. “Não posso aceitar a responsabilidade coletiva pela decisão de comprometer a Grã-Bretanha agora numa ação militar no Iraque sem acordo internacional ou apoio interno.” À época, Cook era ministro dos Assuntos Parlamentares e líder da Câmara dos Comuns. Entre 1997 e 2001, fora ministro dos Negócios Estrangeiros.

Mais recentemente, outra baixa em Downing Street tinha por base razões de consciência. Perante o processo negocial com a União Europeia relativo à saída do Reino Unido (‘Brexit’), o então chefe da diplomacia Boris Johnson assumiu a sua discordância em relação ao plano traçado pela chefe de governo, Theresa May: “O governo tem agora uma música para cantar. O problema é que eu ensaiei a letra durante todo o fim de semana e percebi que me engasgo. Temos de ter responsabilidade coletiva. Uma vez que eu, em consciência, não posso defender estas propostas, infelizmente concluí que tenho de ir.”

Mais longínquo na História, o exemplo de George Schultz também fez doutrina. O secretário de Estado norte-americano de Ronald Reagan não hesitou em apresentar a sua demissão ao Presidente quando, na década de 1980, os EUA começaram a facilitar o tráfico de armas para o Irão — sujeito a um embargo internacional — para assegurar a libertação de reféns e financiar os Contras da Nicarágua (caso Irão-Contras). Para Schultz, essa política incentivava à continuidade de raptos e fazia perigar o fim da Guerra Fria com a União Soviética, que se aproximava.

Crítico do seu próprio governo, foi acusado de deslealdade e apresentou a sua demissão, mas Reagan não a aceitou. “A minha credibilidade junto do Presidente apenas sairia reforçada se ele tivesse soubesse que eu era o tipo de Washington mais fácil de ele se livrar.” A carta de renúncia continuou numa gaveta da Casa Branca e Schultz ficou liberto para trabalhar no sentido de uma mudança de política — e com a sua integridade intacta.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 30 de agosto de 2018 e republicado no “Expresso Online”, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Eleições antecipadas em Israel

O primeiro-ministro israelita despediu dois ministros críticos de algumas das suas políticas. O Governo caiu e os israelitas vão a votos mais cedo do que o esperado

O Parlamento de Israel (Knesset) aprovou hoje por unanimidade a sua dissolução, escassas horas após o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu ter demitido dois ministros.

Israel segue agora para eleições legislativas antecipadas, previstas para 17 de março do próximo ano, mais de dois anos antes do que o previsto.

O Governo de Telavive caiu na terça-feira na sequência do afastamento do ministro das Finanças, Yair Lapid, líder do Yesh Atid, e da ministra da Justiça, Tzipi Livni, chefe do partido Hatnua. Ambos lideram partidos são centristas.

“Nas últimas semanas, incluindo nas últimas 24 horas, os ministros Lapid e Livni atacaram severamente o Governo que lidero. Não vou tolerar mais nenhuma oposição dentro do Governo”, disse Netanyahu, num discurso à nação, na terça-feira à noite.

O partido de Yair Lapid qualificou a decisão de Netanyahu “um ato de cobardia e de perda de controlo”. Tzipi Livni, por seu lado, denunciou um “discurso histérico” por parte de Netanyahu: “Um primeiro-ministro que tem medo dos seus ministros tem-no mais ainda do mundo exterior”, acusou. 

A divisão no seio da coligação governamental israelita acentuou-se após a aprovação de uma controversa lei sobre a nacionalidade, que enfatiza o caráter judaico do Estado de Israel e levanta receios de discriminação em relação aos cidadãos israelitas não judeus. Cerca de 20% da população israelita é árabe.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de dezembro de 2014. Pode ser consultado aqui