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O regresso dos generais

As transições políticas pós-revolução tardam em produzir estabilidade. No Egito e na Líbia, dois militares agarraram o leme

O deposto Hosni Mubarak “na sombra” do general Mohssen ElFangari, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) CARLOS LATTUF / WIKIMEDIA COMMONS

A revolução egípcia acaba de colocar um militar no poder — o marechal Abdel Fattah al-Sisi, eleito por sufrágio universal por uma maioria esmagadora. Na Líbia, um general na reserva declarou guerra às milícias islamitas e desencadeou uma ofensiva por conta própria, na região de Bengasi (leste). Líder de um país em guerra, o sírio Bashar al-Assad sobrevive ao conflito apoiado numas forças armadas que continuam a ser-lhe leais, apesar de múltiplas deserções no início dos protestos. São apenas três exemplos que revelam uma crescente preponderância do poder militar sobre regimes bafejados pela Primavera Árabe.

“Há uma grande preocupação nas populações árabes de que a relativa segurança e estabilidade em que viviam sob regimes autocráticos dê lugar ao caos e à desintegração das instituições, como acontece na Síria e, até certo ponto, na Líbia e no Iémen”, diz ao “Expresso” Manuel Almeida, editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Neste contexto, as forças armadas, que eram uma pedra basilar dos regimes e que têm privilégios próprios a defender, são para muitos a principal garantia de que as transições políticas não deem lugar ao caos e de que, pelo menos, o exército zele pelo interesse nacional.”

Três anos após o início da Primavera Árabe — Manuel Almeida prefere chamar-lhe “despertar árabe”, por refletir a ideia de que os árabes acordaram de um sono induzido e não voltarão ao estado anterior de medo e indiferença —, é legítimo interrogar se este protagonismo dos militares não significará um regresso às ditaduras contra as quais os povos se rebelaram. “O risco de um retorno a regimes autocráticos e despóticos com os militares no topo da hierarquia existe”, defende o editor daquele conceituado jornal pan-árabe publicado em Londres.

Pelo povo e para o povo

Mas hoje, entre os árabes, nem tudo é exatamente como antes das revoluções, a começar pela forma como encaram os seus governantes. “O sentimento que se estabeleceu, nos últimos três anos, de que o poder político (seja de que natureza for) tem de prestar contas pelas suas decisões, implica que haja uma pressão maior sobre quem assumir o poder”, continua o editor português. “A necessidade de apresentar trabalho e resultados vai existir, seja o governo em causa democrático ou não, civil ou militar.”

Será assim com o marechal Sisi no Egito, apesar do apoio incondicional que recebeu nas presidenciais de maio (96,9% dos votos). “Sisi poderá ser alvo de um forte descontentamento popular a médio prazo, principalmente se não conseguir reavivar a economia e reduzir o desemprego. A reforma da economia vai inevitavelmente envolver medidas impopulares, como a diminuição dos subsídios. Para partilhar responsabilidades, acredito que Sisi se veja obrigado a garantir que, a breve prazo, haja um governo maioritariamente de civis e tecnocratas.”

Para Manuel Almeida, uma segunda razão concorre para a popularidade e ascensão política das forças armadas nos países árabes: “Uma reação ao poder dos islamitas, principalmente dos vários grupos nacionais da Irmandade Muçulmana”. Embora, em muitos casos, estivesse banida ou proibida de participar no processo político, “a Irmandade Muçulmana é um movimento extremamente determinado e organizado. Esse facto e a ausência de oposição ativa permitiu-lhe tirar partido das transições políticas e posicionar-se como uma das principais forças políticas, como aconteceu no Egito, Tunísia e Líbia.”

Precisamente a Líbia é, hoje, outro país onde o poder militar impõe as regras. Khalifa Haftar — um general na reforma, laico, que lutou ao lado dos rebeldes contra Muammar Kadhafi — lançou a “Operação Dignidade” contra posições islamitas na região de Bengasi, onde começaram os protestos antirregime, coordenando ataques terrestres e bombardeamentos com caças e helicópteros.

A Líbia organiza eleições legislativas a 25 de junho e o general já prometeu um cessar-fogo para essa altura.

“Este combate às milícias surgiu numa altura em que crescia a preocupação em relação ao domínio islamita — e da Irmandade Muçulmana em particular —, tanto no Parlamento como nas regiões estratégicas exportadoras de petróleo, como Bengasi”, explica Almeida. “Há certamente um interesse da parte de Haftar em reclamar para si uma posição de relevo, que procura desde há décadas no exílio (nos EUA). No entanto, o país está bastante fragmentado, existem demasiadas divisões regionalistas e tribais, assim como milícias fortemente armadas, para permitir que um general assuma o controlo facilmente.”

Na falta de um projeto nacional que una as diferentes fações líbias — regionais, tribais, religiosas ou seculares —, a possibilidade de o país se desintegrar não é ficção. “O mais grave é o facto de não existir qualquer tipo de monopólio do uso da força. Há dezenas de milícias e grupos armados e uma forte presença de jihadistas nacionais e de outros países árabes. É uma receita explosiva.”

Militares impiedosos

No contexto das revoltas árabes, dois países preocupam particularmente o editor. Por um lado, o Iémen, palco de uma tragédia humana com tendência para se agravar. “O Iémen quase não tem petróleo e espera-se que a sua população duplique em menos de 20 anos.” Por outro, a Síria. “Talvez a Síria não tenha matado a Primavera Árabe, mas foi certamente um travão.”

No Norte de África, a Argélia destoa por ser o único país onde não se fizeram sentir esses “ventos da mudança”. “Além do eterno Abdelaziz Bouteflika, que foi reeleito recentemente para um quarto mandado presidencial — apesar da deterioração da sua saúde indicar que provavelmente não o irá terminar —, a Argélia é dominada pelos militares e pelos serviços secretos de uma maneira particularmente eficiente e impiedosa”, diz o editor do “Asharq Al-Awsat” (“Médio Oriente”, na língua árabe). “Existe não só a preocupação da oposição em não ir longe demais na exigência de reformas para não dar azo a instabilidade, mas há também reformas tímidas”, como as legislativas de 2012, que a oposição considerou serem um esquema do Governo para prolongar o poder de Bouteflika, mas que foram um passo no sentido da democracia.

Também os fantasmas da guerra civil dos anos 90 — a repressão à violência islamita por parte das forças de segurança provocou, em números redondos, 200 mil mortos — inibem os argelinos na hora de sair à rua para reivindicar.

“Para muitos” no mundo árabe, conclui Manuel Almeida, “a intervenção política das Forças Armadas é, no máximo, um mal menor. Mas inevitavelmente há um preço a pagar, por se colocar o futuro das transições políticas nas mãos dos militares. Como diz o ditado, quando se tem um martelo, todos os problemas começam a assemelhar-se a pregos.”

O QUE CONQUISTARAM
OS PAÍSES DA PRIMAVERA ÁRABE?

TUNÍSIA: Avanço a conta-gotas

Ben Ali fugiu do país a 14 de janeiro de 2011, mas só a 27 de janeiro passado foi aprovada a primeira Constituição pós-revolução. Governo, oposição e sociedade civil discutem agora se realizam primeiro legislativas ou presidenciais. Estes sufrágios concluirão a fase de transição, que foi liderada pelos islamitas do Movimento Ennahda (moderado), vencedor das eleições de 2011 para a Assembleia Constituinte.

O processo tunisino avança lentamente e com recuos, como o assassínio de dois líderes da oposição laica, em 2013. Mas é notória a procura de consensos. A 9 de janeiro, o primeiro-ministro Ali Larayedh (Ennahda) demitiu-se para desbloquear o impasse político e viabilizar a aprovação da Constituição.

Capa do “El País” de 15 de janeiro de 2011

EGITO: De volta à estaca zero

Com a eleição de Abdel Fattah al-Sisi, os militares regressaram à cadeira do poder de onde os revolucionários da Praça Tahrir tinham apeado Hosni Mubarak a 11 de fevereiro de 2011. Como previsto na Constituição aprovada em janeiro, o Governo interino demitiu-se segunda-feira, tendo Sisi reconduzido o primeiro-ministro Ibrahim Mehleb, que formará Governo até novas legislativas, previstas para este ano.

Em mais de dois anos, a transição egípcia decorreu ao estilo de uma falsa partida. Sempre que o povo votou (legislativas, presidenciais e referendo constitucional), a Irmandade Muçulmana venceu. A experiência islamita no país dos faraós terminou a 3 de julho de 2013, quando os militares, liderados por Sisi, afastaram o Presidente Mohamed Morsi após, num abaixo-assinado, milhões terem pedido a sua demissão.

Capa do “The New York Times” de 4 de julho de 2013

LÍBIA: Muitas armas na rua

Muammar Kadhafi foi executado a 20 de outubro de 2011. Desde então, o país continua refém das milícias (muitas delas armadas durante a intervenção da NATO em apoio dos rebeldes), que se recusam a depor as armas até que a sua participação na “libertação” da Líbia se traduza em ganhos políticos.

A segurança no país é intermitente, interrompida ocasionalmente por episódios de violência extrema, como o ataque ao consulado dos EUA em Bengasi, a 11 de setembro de 2012 (o embaixador Christopher Stevens foi um dos 11 mortos). Também a 10 de outubro de 2013, o então primeiro-ministro Ali Zeidan foi levado por homens armados do Hotel Corinthia, em Tripoli, sendo libertado horas depois.

A Líbia elegeu uma Assembleia Constitucional a 20 de fevereiro passado e realiza legislativas a 25 de junho. As últimas, em julho de 2012, foram ganhas por uma aliança composta por 58 partidos. Delas saiu um Parlamento interino que, em fevereiro, por pressão popular, acordou a sua dissolução. Os líbios responsabilizam os deputados pelo caos generalizado.

Árabes e árabes-berberes (amarelo), tubus (azul), tuaregues (vermelho), berberes (preto), zona desabitada (branco) CBC / RADIO-CANADA

IÉMEN: O poder das tribos

Ali Abdullah Saleh abandonou o poder a 23 de novembro de 2011, após dez meses de protestos pró-democracia e após garantir imunidade total. Sucedeu-lhe o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para um mandato de dois anos — prorrogado, em janeiro, por mais um ano.

Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional aprovou, em fevereiro, um sistema federativo que divide o país em seis regiões. “É uma resposta às reivindicações das regiões que se sentem historicamente marginalizadas pelo poder central”, diz Manuel Almeida, editor no jornal “Asharq al-Awsat”. “É o modelo que mais poderá contribuir para a resolução dos gravíssimos problemas do Iémen.”

O país foi unificado em 1990, mas enfrenta uma rebelião huthi (xiita) a norte e pretensões separatistas a sul. Alberga ainda a Al-Qaida na Península Arábica, um dos braços mais ativos da organização. “Julgo que não voltará a haver dois Estados. Mesmo regiões como Hadramaut, historicamente parte do Iémen do Sul, escolheram ser autónomas e não integrar uma solução de dois Estados, o que foi um sério revés para o movimento separatista do sul, baseado em Aden.”

O Iémen antes da unificação, em 1990 WIKIMEDIA COMMONS

SÍRIA: Guerra sem fim

A 3 de junho, Bashar al-Assad fez-se reeleger Presidente, por 88,7%, indiferente ao facto de já não mandar em todo o país (os curdos declararam autonomia a norte e fações rebeldes, algumas islamitas radicais, disputam parcelas de território), mas convicto de que o seu “reinado” está para durar. A Constituição aprovada em 2012 — com a guerra em curso — instituiu o multipartidarismo (nas presidenciais de 3 de junho houve três candidatos) e permitirá a recandidatura de Assad. Se sobreviver politicamente ao conflito poderá ficar no poder até 2028.

A contestação ao Presidente começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito de Tunis e do Cairo. Assad não hesitou em recorrer às armas e à supremacia aérea para reprimir a oposição. Porém, “o fator desequilibrador da guerra tem sido o enorme apoio, a todos os níveis, que Assad tem recebido do Irão, do Hizbullah (a milícia xiita libanesa), e da Rússia”, diz Almeida. “Comparativamente, o apoio à oposição política e militar dos EUA e de países da União Europeia e do Golfo fica muito aquém daquele que Assad tem recebido.”

Notícia da Al-Jazeera de 5 de junho de 2014

MARROCOS: Um rei com visão

Mohammed VI foi hábil a tirar conclusões das consequências da Primavera Árabe noutras latitudes e antecipou-se a problemas. Com o Movimento 20 de Fevereiro nas ruas, reivindicando mais democracia, o monarca promoveu uma revisão constitucional, aprovada em referendo a 1 de julho de 2011.

O novo texto obriga o rei a nomear para primeiro-ministro uma personalidade do partido mais votado, a transferir prerrogativas para o primeiro-ministro, como a possibilidade de dissolver o Parlamento, e outras para o Parlamento, como a concessão de amnistias. E torna o berbere língua oficial. O rei também convocou eleições antecipadas, que foram ganhas, a 25 de novembro de 2011, pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (islamita).

Notícia do “El Mundo” de 16 de fevereiro de 2011

BAHRAIN: Luta já não é notícia

O Bahrain é a única monarquia do Golfo com uma população etnicamente divergente da família real: os bahrainis são maioritariamente xiitas e os Al-Khalifa sunitas. A tensão entre povo e poder é, por isso, latente. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora palco de protestos que pediam, entre outros, reconhecimento político para os xiitas e que foram reprimidos com a ajuda de tanques enviados pela Arábia Saudita (sunita).

A revolução desapareceu das televisões, mas, na internet, o Centro para os Direitos Humanos do Bahrain noticia diariamente atentados à liberdade e à condição humana. A 1 de junho, Firas al-Saffar, de 15 anos, foi levado de casa por polícias à paisana. Num posto de Manama, foi interrogado e acusado de “filmar reuniões não autorizadas”.

“Direitos humanos não são permitidos no Bahrain”, lê-se neste “aviso” acompanhado pela imagem do ativista Nabeel Rajab CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no Expresso, a 13 de junho de 2014

Revolução líbia refém das milícias

A revolução na Líbia começou a 17 de fevereiro de 2011. Um ano depois, as milícias querem ser recompensadas pelo papel que tiveram no derrube de Muammar Kadhafi. Um líbio comenta a situação a partir de Misrata

Cirenaica, Tripolitânia e Fezzan: as três regiões da Líbia BLINX THE KITTY / WIKIMEDIA COMMONS

Um dos primeiros julgamentos da era da “nova Líbia”, realizado num tribunal de Bengazi, foi interrompido na passada quarta-feira de forma insólita. No banco dos réus, deveriam sentar-se cerca de 50 pessoas, suspeitas de ligações ao regime de Muammar Kadhafi e acusadas de “traição à revolução”. Porém, o juíz viu-se forçado a adiar a sessão.

Os acusados estavam em poder de uma milícia — os Mártires 17 de fevereiro — que recusou transportá-los ao tribunal. Um ano após o início da revolução, a Líbia parece estar nas mãos das milícias. Mustafa Abdul-Jalil, o líder do Conselho Nacional de Transição (CNT) — que herdou o poder de Kadhafi — afirmou na quarta-feira, em entrevista à Al-Jazeera: “Após a libertação do país, as fraquezas do CNT vieram à tona.”

Milhão e meio de armas nas ruas

Abdul-Jalil tem sido criticado por não conseguir impor a autoridade do CNT. Na entrevista à Al-Jazeera, culpou também os rebeldes por recusarem voltar à vida civil ou integrarem as forças de segurança. “Porque não regressam os funcionários aos seus empregos? Porque não voltam os polícias ao trabalho?”, disse. A polícia desapareceu durante a revolução e apenas metade dos agentes regressaram depois ao serviço.

Derrubado o regime de Kadhafi, após uma guerra civil de oito meses, que provocou cerca de 30 mil mortos, na Líbia reinam hoje as milícias. Estima-se que entre 100 e 300, conforme as fontes, organizadas por cidades ou bairros.

Ao todo, haverá mais de 125 mil homens armados. Há quem fale em 1,5 milhões de armas distribuídas pelas ruas. Recolher essas armas e integrar socialmente os combatentes é, atualmente, o grande desafio do CNT.

Perigos do lado de lá da fronteira

Para as milícias, o facto de terem feito a guerra contra Kadhafi dá-lhes direito a reclamar dividendos. Todas querem o seu quinhão pelo fim de Kadhafi. Em Tripoli, por exemplo, há duas grandes fações. De um lado, a legião Misrata Sadoon Swayhil que alega ter contribuído decisivamente para a captura e execução de Kadhafi. Por outro, as cinco brigadas Zintani, que libertaram a parte ocidental da capital e ainda ocupam o aeroporto.

Porém, fazer coincidir o nascimento de milícias na Líbia com a revolução é um erro. Recorde-se que a segurança do regime de Kadhafi assentava em forças paramilitares, a mais famosa das quais a Brigada Khamis, comandada pelo seu filho mais novo, Khamis Kadhafi, assassinado a 29 de agosto do ano passado.

Num telefonema para a estação Al-Arabiya, Saadi disse que tem contactos regulares com líbios descontentes com as autoridades do CNT. De imediato, a Líbia pediu a sua extradição. 

As conquistas da revolução

Oficialmente, a revolução líbia começou a 17 de fevereiro de 2011, a NATO começou a bombardear a 19 de março, Kadhafi foi executado a 23 de agosto e Tripoli capitulou pouco depois. O atual governo interino está em funções desde 22 de novembro. Muito se questiona se não é prematuro atribuir fracassos ao CNT. O próximo passo no calendário político é a realização de eleições para a assembleia constituinte, a 21 de junho, que irá elaborar uma Constituição.

“A Líbia não precisa só de pontes e estradas, precisa de construir todo um sistema político”, disse na quarta-feira, em Lisboa, Rafik Abdessalem, ministro dos Negócios Estrangeiros da Tunísia, durante uma palestra na Universidade Católica.

Por ter sido pioneira, a Tunísia é uma espécie de “farol” das chamadas Primaveras Árabes. Simultaneamente, uma observadora atenta de tudo o que se passa nesse contexto. “A Líbia pode precisar de tempo, mas estou otimista. Tem uma sociedade homogénea sem divisões étnicas ou religiosas”, disse Abdessalem.

BASSIT, LÍBIO, 31 ANOS

“Há armas por todo o lado. Alguns apoiantes do regime anterior também têm armas. Se nós ficarmos sem armas, dá para imaginar o que acontecerá a seguir… As coisas ainda estão instáveis, ainda assim estão mais seguras. Em Misrata, a situação está melhor, em termos políticos e ao nível das condições de vida.”

“Saadi, o filho de Kadhafi, continua vivo, no Niger. Quase de certeza que tem consigo uma grande quantidade de dinheiro e ouro. Milhões e milhões. Por isso, ele pode organizar um exército.”

“Em Kufra, uma cidade no sudeste da Líbia, os rebeldes apanharam 80 jipes Toyota com mercenários, a maioria provenientes do Chade. Nalguns carros, foram encontrados dólares. Os rebeldes de Kufra são muito fortes. Chamam-lhes leões do deserto.”

“Há muitas brigadas em Misrata. Há um comité para os rebeldes que superintende todas as brigadas na Líbia.”

“Há alguns dias, surgiram oportunidades de emprego e outros privilégios para os rebeldes. Isto vai ajudar a construir uma nova Líbia. A guerra acabou em outubro e, dia após dia, os rebeldes não recebem apoio monetário e tornam-se menos interessados em continuar com esta revolução. Mas precisamente hoje, em Misrata, foram oferecidos empregos com bons salários, emprego na área da segurança.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de fevereiro de 2012. Pode ser consultado aqui

Revolução egípcia começou há um ano

A 25 de janeiro de 2011, os egípcios saíram, pela primeira vez, à rua para exigir o fim do regime de Hosni Mubarak. Um ano depois, a praça Tahrir continua a atrair manifestações

Um ano após a realização da primeira manifestação de contestação ao regime de Hosni Mubarak — convocada através do Facebook —, a mítica praça Tahrir, no centro do Cairo, continua a ser palco de protestos.

A grande reivindicação popular de há um ano foi conseguida — Mubarak cairia a 11 de fevereiro —, mas o regime continua (quase) intacto. Herdeiros do poder do Presidente, o Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) tarda em transferir o poder para os civis, como prometeu.

Nas ruas, cresce a desconfiança em relação aos militares, outrora vitoriados pelo povo por se recusarem a disparar contra os manifestantes. Ainda assim, durante os 18 dias de protestos na praça Tahrir, morreram cerca de 850 mortos e 6000 feridos.

Acusado de ter ordenado os disparos contra os manifestantes, Hosni Mubarak — que está a ser julgado desde agosto de 2011 — incorre na pena de morte por enforcamento.

Islamitas no poder

As eleições legislativas realizadas para a câmara baixa do Parlamento, entre novembro de 2011 e janeiro de 2012, ditaram uma maioria islamita no Parlamento. Sem surpresa, a Irmandade Muçulmana (Partido Liberdade e Justiça) arrecadou 47,2% dos votos. Era a fação mais bem organizada, ainda que remetida para a clandestinidade durante a era Mubarak.

A grande surpresa eleitoral foi o segundo lugar conquistado pelo Partido An-Nour, salafita — uma interpretação integrista do Islão, inspirada no waabismo saudita —, que conquistou 24,3% dos votos. Esta formação política foi criada na sequência da revolução e é financiada pela Arábia Saudita.

O novo Parlamento começou a funcionar na passada segunda-feira. Terá como uma das principais funções nomear uma assembleia encarregue de elaborar uma nova Constituição.

ElBaradei fora da corrida

De acordo com o último calendário apresentado pelos militares, o Egito deverá realizar eleições presidenciais ainda durante o primeiro semestre de 2012.

O ex-secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa, mantém-se na corrida. Mas Mohammed ElBaradei — antigo diretor da Agência Internacional para a Energia Atómica e Nobel da Paz — atirou a toalha ao chão, a 14 de janeiro.

“A minha consciência não me permite concorrer à presidência ou a qualquer outra posição oficial, a menos que seja dentro de um quadro democrático”, afirmou.

Tal como muitos egípcios, ElBaradei considera que os militares têm vindo a governar o Egito como que se a revolução não tivesse acontecido e o regime anterior estivesse ainda intacto.

Segunda fase revolucionária

Ontem, numa tentativa de conter a euforia que se adivinha para os protestos associados ao aniversário da revolução, o SCAF levantou, parcialmente, o estado de emergência que vigorava no país (quase ininterruptamente) desde 1967.

Esta legislação — que implica a suspensão de direitos constitucionais e confere às forças de segurança poderes adicionais na repressão de protestos, por exemplo — foi imposta durante a Guerra dos Seis Dias com Israel, levantada em 1980 e reintroduzida em 1981, após o assassinato do Presidente Anwar Sadat.

Num discurso transmitido pela televisão, o líder do SCAF, marechal Hussein Tantawi, disse que, apesar do fim do estado de emergência, as leis continuariam a ser aplicadas a “bandidos”.

Na terminologia do SCAF, “bandidos” são também os organizadores dos protestos anti-regime. Os mesmos que, um ano depois, dizem que a revolução precisa de entrar numa segunda fase.

Manifestação da “Sexta-feira na Unidade”, a 29 de julho de 2011, na Praça Tahrir, no Cairo Ahmed Abd El-Fatah / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 25 de janeiro de 2012. Pode ser consultado aqui

Chegou a hora de o Islão governar

Ben Ali caiu há um ano. A Tunísia deu o mote e o mundo árabe entrou em convulsão

A foto não fez manchetes, mas é, porventura, das mais simbólicas de todo o portfólio da Primavera Árabe. Nela vê-se Zine El Abidine Ben Ali, então Presidente da Tunísia, de visita a um doente hospitalizado, com o corpo totalmente coberto por ligaduras. Trata-se de Mohamed Bouazizi, de 26 anos, que se imolara pelo fogo em protesto contra a apreensão da sua banca ambulante. O ato de desespero inflamou as ruas e Ben Ali viu o seu reinado de 23 anos tremer. A visita realizou-se a 28 de dezembro de 2010. Bouazizi morreria uma semana depois. O Presidente não lhe sobreviveria politicamente muito mais tempo.

Faz hoje um ano que Ben Ali foi deposto e que a Tunísia se tornou o farol dos levantamentos populares árabes. “A maioria dos analistas diz que a Tunísia era o país lógico para um movimento como o que ocorreu. A população era homogénea (há muitos berberes, mas a identidade nacional é coerente) e educada. E era o país da região com maior classe média. Havia, pois, massa crítica para exigir direitos políticos”, diz ao “Expresso” Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford. “Porém, tudo isto só se tornou evidente após os factos. Antes da revolução, ninguém falava nestes termos. Ficámos surpreendidos com que tudo tivesse começado num país moderado, calmo e um destino turístico seguro como a Tunísia.”

A Revolução de Jasmim contagiou o mundo árabe e abriu a porta da democracia ao Islão. As eleições já realizadas (Tunísia, Egito, Marrocos) catapultaram para o poder partidos islamitas. Sem surpresa, para Eugene Rogan. “Política é organização e os partidos islamitas, por terem estado na oposição, eram os mais bem organizados. A ironia é que as pessoas que começaram as revoluções não eram, na sua maioria, oriundas de partidos islamitas. Diziam-se seculares e liberais e tiveram sucesso pelo facto de não terem qualquer organização hierárquica. Se a tivessem, as ditaduras teriam prendido os líderes e acabado com o movimento.”

A loucura dos partidos

Os povos queixavam-se dos regimes, a Al-Jazeera ajudava a circular palavras de ordem e dicas de resistência e as redes sociais mobilizavam. Obras como “Da Ditadura à Democracia”, de Gene Sharp — que lista 198 formas de luta não violentas — ou a experiência do movimento Otpor!, que liderou a revolta estudantil sérvia de 2000, tudo foi importante quando se tratou de derrubar ditadores.

Mas esta fórmula não resulta para disputar eleições. “O que dificultou a vida dos laicos foi a quantidade de partidos que criaram. Na Tunísia, havia 160 partidos a participar nas eleições parlamentares. No Egito, eram 80 ou 90 partidos. É uma loucura! Se se quer concorrer contra a Irmandade Muçulmana não se pode fazê-lo com 80 partidos, basta um”, diz Rogan.

“Os acontecimentos na Tunísia e no Egito, marcam a entrada numa nova era: a relação Islão/democracia. Os partidos islamitas estão comprometidos com valores democráticos. Vão criar um novo tipo de democracia islâmica. Não é coisa única. A Malásia ou a Indonésia têm eleições regulares e mudanças de governo. Não está em causa a capacidade do Islão acomodar a alternância. Mas é novo no mundo árabe. A próxima década será marcada por uma nova forma do Islão na política.”

Um ano de despertar árabe leva este professor britânico a dividir a região em três grupos: os países que tiveram revoluções; as monarquias; e os Estados em guerra civil (Argélia, Sudão, Líbano, Iraque e os territórios palestinianos), onde “as experiências recentes de conflitos civis amedrontam as populações na hora de sair à rua”.

De todas as sublevações, Rogan considera a do Bahrain a mais sensível. “Acontece na linha de fronteira entre sunitas e xiitas e numa área de grande importância estratégica (é sede da V Frota dos EUA).” A situação na Síria é, porém, a mais terrível. “Se o problema não for resolvido em breve, pode degenerar numa agonia de meses ou anos. É uma luta de vida ou de morte para os dois lados. Não há espaço para um compromisso negociado. Julgo que a morte de Kadhafi, na Líbia, foi preocupante para Bashar al-Assad. Sentiu que o seu povo poderia fazer-lhe o mesmo.”

Em “The Arabs — A History”, Eugene Rogan descreve o que podemos considerar os alicerces históricos da Primavera Árabe. Esse conhecimento leva-o a olhar para o mundo árabe com otimismo. “Surpreendeu-me ver cidadãos a rebelarem-se contra regimes tão opressivos. Esperaria um levantamento popular no Egito apenas porque, nos últimos anos, temos assistido a muitos sinais de descontentamento por parte de trabalhadores, estudantes, opositores ao regime, mas que nunca alcançaram a massa crítica que vimos em 2011”, diz. “O mundo árabe restituiu a soberania aos povos, que ganharam um novo sentido de dignidade. Não prevejo que se torne um paraíso. Na Europa, sabemos como sistemas democráticos podem originar governos muito maus. Dar a soberania ao povo pode resultar em governos liderados por tolos. Mas é uma evolução em relação ao que existia. Sim, estou otimista!”

Lançado em 2009, este livro descreve as esperanças e desilusões dos povos árabes, desde a conquista otomana (século XVI) até ao pós-11 de Setembro e à guerra contra o terrorismo. “Por que estagnou o mundo árabe?”, questiona Eugene Rogan. Publicado pela Penguin, não está traduzido em português.

REVOLUÇÕES CONCRETIZADAS

TUNÍSIA

Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim, embora os tunisinos não apreciem o nome. Preferem chamar-lhe Revolta de Sidi Bouzid (a pequena cidade onde os primeiros protestos e reivindicações sociais saíram à rua) ou Revolução da Dignidade. A Tunísia foi pioneira nas sublevações antirregime e, consistentemente, foi o primeiro país a encetar um processo democrático. A 23 de outubro de 2010, os tunisinos foram chamados a votar para a Assembleia Constituinte — um escrutínio ao qual o antigo partido de Ben Ali estava impedido de concorrer. (Ben Ali, 75 anos, fugiu para a Arábia Saudita no mesmo dia em que foi deposto e a sua União Democrática Constitucional seria dissolvida dois meses depois.) Os islamitas do Movimento Ennahda (Renascimento) — interdito na era Ben Ali — conquistaram uns expressivos 41% dos votos, confirmando a máxima segundo a qual eleições livres no mundo árabe conduzirão os islamitas (moderados, ou não) ao poder. À nova Assembleia caberá a tarefa de nomear o governo transitório e propor uma nova Constituição. A 13 de dezembro, Moncef Marzouki — um antigo dissidente, ativista dos direitos humanos e líder de uma formação política laica de centro-esquerda (Partido do Congresso para a República) — tomou posse como Presidente interino da Tunísia. No dia seguinte, nomeou Hamadi Jebali, do Ennahda, primeiro-ministro. Politicamente, a Tunísia cumpre o roteiro previsto. A nível económico, as dificuldades são maiores. Na última semana, em incidentes separados, quatro tunisinos imolaram-se pelo fogo — como Mohamed Bouazizi.

Conhecida fora de portas como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), os tunisinos preferem a designação Revolução da Dignidade MFARES / WIKIMEDIA COMMONS

EGITO

À semelhança do tunisino Ben Ali, também o egípcio Hosni Mubarak sucumbiu à contestação popular numa sexta-feira. O dia santo para os muçulmanos é, no contexto da Primavera Árabe, o dia da semana em que os manifestantes estão mais motivados para sair às ruas, especialmente após a oração do meio-dia. Mubarak, 83 anos, abandonou o poder a 11 de fevereiro. Durante 18 dias, aquela tinha sido a principal exigência da praça Tahrir, no centro do Cairo. Mas onze meses depois, os egípcios sentem que a revolução está por concluir. Após Mubarak, o poder foi entregue ao Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF). A 19 de março, os militares submeteram um conjunto de alterações à Constituição a referendo. Depois, promoveram eleições legislativas, em três fases, que terminaram esta semana. A Irmandade Muçulmana saiu vitoriosa, seguida pelos salafitas ultrarradicais do Partido Nour. “No ocidente, diz-se que, no Egito, poderá nascer uma república islâmica de modelo iraniano, mas eu não acho provável”, diz Eugene Rogan. “A Irmandade sente-se muito mais confortável com seculares liberais do que com salafitas. O Nour não considera a Irmandade um partido islamita, não lhe tem respeito e diz que não segue o verdadeiro Islão.” Para Rogan, a grande incógnita no Egito continua a ser a promessa adiada de transferência do poder dos militares para os civis. “Essa é a batalha que a praça Tahrir ainda terá de vencer. O aspeto crítico vai ser conseguirem garantias de liberdade, relativamente ao controlo militar, quando for elaborada a nova Constituição. Se os militares usarem a Constituição como um meio para preservar o poder, então a revolução egípcia ficará incompleta. É necessário controlo civil sobre os militares e a subordinação destes ao poder saído de eleições. De outra forma, temo que os egípcios tenham de voltar à luta na praça Tahrir.” Mubarak desapareceu, mas não o mubarakismo.

Após a Tunísia, o Egito foi o segundo país afetado pela Primavera Árabe a derrubar o seu ditador CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

LÍBIA

As dores de cabeça de Muammar Kadhadi começaram a 15 de fevereiro quando — já com os “irmãos” Ben Ali e Mubarak fora de cena — protestos populares centrados na Praça Verde, em Tripoli, começaram a exigir o fim deste regime de 33 anos. As ruas dividiram-se entre opositores e lealistas ao coronel e cada cidadão passou a ser um combatente, de arma na mão. Numa decisão que não colheu a unanimidade na comunidade internacional — apesar de fundamentada numa resolução da ONU (de 17 de março) autorizando o estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia —, forças da NATO desencadearam bombardeamentos a pretexto de proteger as populações civis. Durante meio ano, a Líbia viveu em clima de guerra civil. Tripoli caiu a 23 de agosto e Kadhafi, 69 anos, foi linchado a 20 de outubro, em Sirte, a sua cidade natal. O Conselho Nacional de Transição — criado em Bengasi, no leste, de onde partiu a rebelião contra Kadhafi — assumiu o poder, a título interino.

Muammar Kadhadi sonhou com um país à sua semelhança. A desobediência rebelde e os interesses económicos externos inviabilizaram-no CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

IÉMEN

Ali Abdullah Saleh demorou mais de nove meses a ceder às manifestações populares, que começaram a 3 de fevereiro. E nem o facto de ter ficado gravemente ferido num ataque à bomba contra o palácio presidencial, a 3 de junho — obrigando-o a ir para a Arábia Saudita para ser tratado — o levou a abandonar a presidência do Iémen pelo seu pé. A 23 de novembro, sob mediação do Conselho de Cooperação do Golfo, Saleh aceitou finalmente transferir o poder para o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, recebendo garantias de imunidade relativas aos 33 anos em que esteve no poder — primeiro como Presidente do Iémen do Norte, depois como Presidente do Iémen unificado. Saleh, 69 anos, conserva o título de Presidente, mas é Al-Hadi o Presidente interino. A 21 de fevereiro próximo, estão previstas eleições presidenciais. Uma oportunidade para clarificar quem, de facto, manda no Iémen — um dos países mais pobres do mundo e porto de abrigo para um dos braços mais ativos da Al-Qaida, a AQPA.

Ali Abdullah Saleh saiu do poder a muito custo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO CONTIDA

BAHRAIN

Assim que a Praça da Pérola, em Manama, se encheu de protestos — começaram a 14 de fevereiro — a revolução no Bahrain ficou à mercê de interferências externas. O Bahrain é um caso particular: a maioria da população é xiita e a monarquia reinante é sunita. Os cidadãos xiitas aproveitaram os protestos para pedir igualdade e liberdades políticas. Por isso, a entrada de tanques da sunita Arábia Saudita, em apoio das autoridades do Bahrain — país que se situa em frente ao xiita Irão —, nas primeiras semanas de protestos, não foi uma surpresa. A perspetiva de uma revolução nas suas fronteiras é algo inaceitável para Riade. “A diplomacia saudita tem estado muito ativa para impedir que tal aconteça”, refere Eugene Rogan. “Contiveram os protestos laborais em Omã, encorajando o sultão a fazer concessões; intervieram militarmente no Bahrain lideraram as negociações no Iémen; e têm tentado conter o que veem como uma exploração, por parte do Irão, de levantamentos em países como o Iraque, Síria, Bahrain e Líbano. Estão a fazer tudo o que podem. Têm muitos recursos, mas também dissidência interna. Nos próximos anos, a pressão aumentará sobre Riade para que faça reformas. Não creio que os cidadãos sauditas se contentem em ter menos direitos do que os egípcios e os tunisinos.”

A contestação foi reprimida com a ajuda de armas sauditas, que cruzaram o Golfo Pérsico em socorro dos Al-Khalifa CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO SANGRENTA

SÍRIA

Bashar al-Assad discursou à nação, na terça-feira, e anunciou uma reforma constitucional que abrirá a porta ao multipartidarismo. O novo texto irá a referendo em março. Acossado por protestos populares — que se massificaram a partir de 15 de março, na cidade de Daraa —, o Presidente sírio, 46 anos, parece apostado em segurar-se, a todo o custo, à cadeira do poder herdada do pai (Hafez al-Assad), ao estilo de uma república dinástica. “A diferença entre a Síria e as outras revoluções é que o exército, na sua maioria, ficou com o regime. Há deserções, mas na ordem das centenas. Enquanto metade não desertar, o exército vai ter sempre condições para esmagar o povo”, explica o professor Rogan. “Mas o povo vai continuar a manifestar-se. O conflito arrisca-se a tornar-se mais violento. E haverá mais ataques ao estilo da guerrilha, atentados terroristas, tudo o que acontece quando as pessoas não têm armas para lutar contra um exército. Talvez o exemplo do vizinho Iraque seja o terrível futuro da Síria.” Na quinta-feira, um jornalista francês foi morto durante uma visita promovida pelas autoridades à cidade de Homs. No terreno até ao próximo dia 19, a delegação da Liga Árabe — 160 pessoas, chefiadas por um general sudanês — não impede a violência. Só na quinta-feira, foram mortas 25 pessoas. Segundo a ONU, já morreram mais de 5000.

Bashar al-Assad não controla toda a Síria, mas recusa-se a sair da cadeira do poder CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

REVOLUÇÃO ANTECIPADA

MARROCOS

Mohammed VI soube ler os sinais das ruas e aos primeiros protestos — encabeçados pelo Movimento 20 de Fevereiro, que planeava ‘manifs’ para o dia 20 de cada mês — antecipou-se. A 9 de março, num discurso considerado histórico, anunciou uma profunda reforma constitucional, submeteu-a a referendo a 1 de julho e, a 25 de novembro, realizou eleições legislativas — ganhas pelos islamitas do Partido Justiça e Desenvolvimento, que conquistaram 107 dos 395 deputados. O seu líder, Abdelilah Benkiran, é o novo primeiro-ministro. “Os marroquinos foram confrontados com um processo político iniciado a partir de cima e mais rápido do que as exigências da rua”, diz o professor Rogan. “Chamemos-lhe o modelo marroquino. É único na Primavera Árabe e parece estar a dar à monarquia marroquina maiores perspetivas de preservação do poder do que as medidas repressivas tomadas por outros regimes.” No Norte de África, apenas a Argélia parece imune à vaga revolucionária. “Julgo que a Argélia vai sentir a pressão”, conclui Rogan. “Depois, ou segue o modelo marroquino ou vai pela via da Síria e da Líbia.”

Artigo publicado no Expresso, a 14 de janeiro de 2012