As críticas ao Catar, onde o Mundial arranca no domingo, decorrem de uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante
A esmagadora maioria dos migrantes abrangidos pelo sistema kafala entregam o seu passaporte ao seu empregador MIGRANT-RIGHTS.ORG
A polémica em torno dos direitos dos migrantes no Catar capturou um evento talhado para deslumbrar. Pelo exotismo de ser o primeiro Mundial a decorrer no Médio Oriente e por projetar um pequeno Estado com uma riqueza infinita, que recentemente lhe permitiu resistir a três anos e meio de bloqueio ao território aplicado por quatro países vizinhos.
Na base deste portento estão leis, práticas e costumes laborais que transformam os trabalhadores estrangeiros em ‘escravos dos tempos modernos’ — o sistema kafala. Em árabe, kafala significa ‘garantia’, a mesma que, em teoria, um empregador dá ao empregado quando o contrata.
“No centro deste sistema está uma relação fortemente desequilibrada entre empregador e trabalhador migrante, o que a torna particularmente problemática”, explica ao Expresso Ryszard Cholewinski, responsável do gabinete para os países árabes da Organização Internacional do Trabalho.
“A entrada do migrante no país está vinculada a um empregador específico, através de uma autorização de trabalho e residência; a renovação da permanência no país é da responsabilidade do empregador, sendo que a não-renovação da autorização de residência coloca o trabalhador em situação irregular, sujeito a prisão, detenção e deportação; a rescisão do contrato de trabalho requer a aprovação do empregador; mudar de um empregador para outro requer a aprovação do primeiro; a saída do país tem de ter aprovação do empregador.”
Catar lidera nas reformas
O sistema kafala é aplicado nos seis países ribeirinhos do golfo Pérsico, mas também em países árabes, como Jordânia, Líbano e Iraque, com populações significativas de migrantes. Apesar de estar na mira das críticas, o Catar é um dos países que mais reformas tem realizado.
O sistema kafala está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os habitantes nativos
Segundo a Organização Internacional para as Migrações, em 2011, no Catar, 92% dos ‘colarinhos azuis’ (que realizam trabalhos manuais, como trabalhadores da construção civil ou motoristas) tinham entregado o seu passaporte ao empregador. Fruto de pressões regulatórias, em 2014 a percentagem tinha caído 18 pontos. Paralelamente, a quantidade de trabalhadores que dizia conservar consigo o passaporte subiu de 8% para 22%. Hoje, reter o passaporte do trabalhador é ilegal, exceto se tal for solicitado por escrito pelo próprio.
Que querem os nativos?
“O Catar está mais avançado em termos de reformas do sistema kafala e começou a desmantelar os aspetos mais problemáticos do mesmo”, diz Cholewinski. “As reformas incluem a abolição da autorização de saída e do Certificado de Não-Objeção”, ou seja, os migrantes já não precisam do ‘sim’ dos patrões para sair do país ou mudar de emprego.
“Os imigrantes sempre tiveram um papel imenso nas monarquias do golfo, com origem na indústria das pérolas, no século XIX, que impulsionou a imigração em massa a partir do Corno de África”, explica ao Expresso David B. Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”. “Hoje, o sistema também está relacionado com o facto de os estrangeiros superarem os locais. Nativos e líderes querem ter um mecanismo de controlo de quem está no país.”
Cerca de 90% dos 2,8 milhões de habitantes do emirado são estrangeiros, sobretudo da Índia, Bangladexe e Nepal. “Os catarenses estão em desvantagem no seu próprio país, nas empresas, fábricas e casas.”
À parte a pressão internacional para que o sistema acabe, essa terá de ser uma vontade local. “O Catar é um país autocrático”, conclui o professor do King’s College de Londres. “E, mesmo em autocracias, os líderes precisam de perceber até que ponto podem insistir em ideias e políticas que os locais não querem. O sistema kafala é um tema quente no Catar. Os locais não querem que seja diluído e até gostariam que fosse alargado.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui
Alvo de um bloqueio político, o Qatar contra-ataca com o futebolista mais caro de sempre
O Qatar é um caso de persistência nas manchetes internacionais. Em inícios de junho, o pequeno emirado ribeirinho ao Golfo Pérsico foi notícia dias a fio após ser alvo de um bloqueio diplomático e comercial — que ainda dura — decretado por quatro ‘irmãos’ árabes (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito). Há poucas semanas, arrebatou noticiários nos quatro cantos do mundo ao estar por detrás da contratação mais cara da história do futebol — a do brasileiro Neymar, comprado ao Barcelona pelo Paris Saint-Germain (PSG), propriedade de um fundo soberano do Qatar, por 220 milhões de euros.
“Nem tudo o que está relacionado com o Qatar está relacionado com política. Mas penso que, neste caso, é justo estabelecermos uma ligação dessa natureza”, diz ao Expresso David B. Roberts, investigador no King’s College, de Londres. “Neste contexto, em que o Qatar é alvo de um bloqueio pouco usual e bastante difícil e a imprensa dos países que se opõem ao Qatar tem promovido uma imagem muito negativa do emirado, dizendo, por exemplo, que apoia terroristas, é perfeitamente plausível que os qataris estivessem interessados em promover esta transferência, para beneficiar de dias, semanas a fio de manchetes demonstrativas de uma mentalidade muito mais positiva.”
O PSG está nas mãos do Qatar desde 2011, quando a Qatar Sports Investments adquiriu 70% do clube francês. Nasser Al-Khelaifi, membro da família real do Qatar, subiu à presidência, contratou o sueco Zlatan Ibrahimovic ao Milan e logo o seu reinado começou a dar frutos: o PSG foi tetracampeão da Ligue 1 entre 2012 e 2016. O ‘penta’ foi-lhe roubado na época passada pelo Mónaco, treinado por Leonardo Jardim.
“O PSG é apenas uma peça de uma campanha mais abrangente de soft power”, diz o professor Roberts, referindo-se à capacidade de influência de um Estado através da ideologia ou da cultura (e não das armas). “Quanto dinheiro é gasto, todos os anos, pela Coca-Cola e pela Pepsi em publicidade em todo o lado? Às vezes não percebemos porque patrocinam determinado torneio de futebol ou até um jogador e o que ganham com isso. Mas toda a grande empresa no mundo gasta milhões em publicidade por alguma razão. É isso que o Qatar está a fazer também.”
Do boxeur Ali ao FIFA 2022
Esta estratégia de afirmação fora de portas através do desporto é, aliás, tão antiga quanto o próprio país. Em 1971, ano em que se tornou independente do Reino Unido, o Qatar recebeu o mediático pugilista Muhammad Ali, que realizou um combate de exibição ao ar livre no Estádio de Doha. Desde então, o país já acolheu quase de tudo, desde torneios de topo de ténis e golfe a competições de desportos motorizados e meetings de atletismo. Em 2006, a capital, Doha, recebeu os Jogos Asiáticos, uma versão regional dos Jogos Olímpicos.
Mas é o futebol, o desporto mais popular no país, que tem justificado grandes eventos. Em 1988, o Qatar organizou a Taça Asiática, o correspondente regional do Campeonato Europeu, que repetiu em 2011. Em 1995, acolheu o Campeonato do Mundo de Sub-20 (em que Portugal foi terceiro). Em 2014, o Estádio Jassim Bin Hamad, em Doha, foi palco da… Supertaça italiana, entre a Juventus e o Nápoles. Em 2022 será colocada a cereja no topo do bolo, com a realização do Mundial da FIFA.
De permeio, por intermédio da Qatar Sports Investments — a mesma que comprou o PSG —, passou a patrocinar o FC Barcelona, um dos clubes mais mediáticos do mundo, primeiro através da Qatar Foundation (2011-2013) e depois da Qatar Airways (2013-2017). Curiosamente, desde 2013 que o patrocinador principal do grande rival do Barça, o Real Madrid, é a companhia aérea Emirates, dos Emirados Árabes Unidos, um dos protagonistas do bloqueio em curso ao Qatar.
Gastar quantias avultadas no desporto não é, pois, algo de novo para o emirado. “O Qatar tem muito dinheiro. É o país mais rico do mundo em termos per capita”, diz David B. Roberts, recordando que o país tem pouco petróleo mas partilha com o Irão o maior campo de gás do mundo. “Um Estado aplica aquilo que tem. O que é que a Coreia do Norte tem? Tem ambição nuclear e armas de longo alcance. O Qatar tem essencialmente instrumentos financeiros, e está a aplica-los.”
Muito dinheiro para gastar
Obrigado a acatar 13 exigências para ver o bloqueio por terra, mar e ar levantado — entre as quais o corte de relações com o Irão (“O Qatar não pode ter uma má relação com o Irão. Têm uma relação pragmática”, defende Roberts) —, o negócio Neymar é uma jogada de contra-ataque. “O Qatar é muito resiliente, tem aliados internacionais importantes e muito dinheiro para gastar”, diz o autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City-state” (2017). “Mas esta crise vai-lhe sair extremamente cara, porque vai ter de reformular a origem da grande maioria das importações. Sim, podem vir do Irão ou, provavelmente, da Turquia, isso já está a acontecer, mas vai-lhe sair muito caro. É um preço que o Qatar está disposto a pagar. Eles dizem: ‘A soberania não tem preço. Para fazermos o que queremos, temos de pagar por isso.’”
No domingo passado, a Qatar Ports Management Co. anunciou a abertura de uma nova rota de navegação entre o seu porto de Hamad e o porto paquistanês de Karachi, visando contornar dificuldades impostas pelo bloqueio. Para David B. Roberts, o desfecho desta crise demorará anos, não meses.
Até lá, em campo, Neymar provará (ou não) se a fortuna que custou teve retorno. Para já, o Qatar não podia estar mais satisfeito. O brasileiro estreou-se pelo PSG no passado domingo, à segunda jornada da Ligue 1, no campo do Guingamp. Marcou um golo, participou nos outros com que o PSG venceu e foi considerado “o homem do jogo”. No final, afirmou: “As pessoas pensam que deixar o Barça é morrer, mas é o contrário, estou mais vivo do que nunca.” E com os bolsos incomparavelmente mais cheios também.
Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de agosto de 2017 e republicado no “Expresso Online” no mesmo dia. Pode ser consultado aqui
Um embargo decretado por quatro “irmãos árabes” empurra o Qatar para os braços do inimigo Irão
Arábia Saudita acusa o Qatar de apoiar grupos extremistas. A Arábia Saudita acusa o Irão de proteger o Qatar. O Irão é atacado pelo Daesh, o mais cruel dos extremistas. Bem vindos ao Médio Oriente!
Esta semana, em apenas três dias, uma crise diplomática no seio do mundo sunita — que isolou o Qatar — e um duplo atentado na capital do Irão — o gigante xiita — expuseram toda a complexidade geopolítica do Médio Oriente que transcende a rivalidade sectária sunitas-xiitas no seio do Islão. “Não vejo uma relação direta entre os ataques terroristas no Irão e a crise sobre o Qatar. Mas as políticas externas geopoliticamente analfabetas da Administração Trump são um factor importante na desestabilização da política mundial, do Golfo Pérsico à Coreia do Norte”, disse ao “Expresso” Arshin Adib-Moghaddam, professor de Pensamento Global e Filosofias Comparadas na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.
“Este Presidente colocou-se no lado errado da história, e a escolha errada de aliados e parceiros vai continuar a inibir e a limitar a posição dos EUA em todo o mundo. Sob esta liderança, o país assemelha-se a uma superpotência decadente.”
Quarta-feira, um duplo atentado em Teerão contra o Parlamento e o mausoléu do “ayatollah” Ruhollah Khomeini, o fundador da República Islâmica, provocou 13 mortos. O Daesh reivindicou e Teerão confirmou que cinco detidos, todos iranianos, estiveram em Mossul e Raqqa, bastiões do Daesh no Iraque e Síria. Fica, porém, por perceber a lógica do violento ataque desferido pelo rei da Arábia Saudita quando da recente visita de Donald Trump ao país: “O regime iraniano tem sido o ponta de lança do terrorismo mundial”, disse. O ataque desta semana mostra que o Irão é alvo da maior das ameaças.
Fora da órbita saudita
Dois dias antes, quatro países árabes sunitas cortaram relações com o igualmente sunita Qatar e decretaram um bloqueio por terra, mar e ar. Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito acusam Doha de apoiar “grupos extremistas” e exigem mudanças na sua política externa. Em causa está o apoio do Qatar a grupos como a Irmandade Muçulmana e o Hamas, que, acusam, mina o regime egípcio e a Autoridade Palestiniana.
Em causa está também a proximidade do Qatar ao vizinho da frente, o Irão, justificada pela necessidade do pequeno país não ficar na dependência do gigante saudita. “Irão e Qatar têm tido um relacionamento funcional. Com o campo de exploração de gás South Pars, os dois países partilham um dos maiores campos do mundo. A liderança qatariana tem provado ser suficientemente prudente para abster-se de antagonizar a liderança iraniana”, explica Arshin Adib-Moghaddam. “Por sua vez, o Irão do Presidente Hassan Rouhani é inflexível no desenvolvimento de uma relação próxima com o Qatar que o atraia para fora da órbita da Arábia Saudita.”
Mas se o Qatar é punido pelos “irmãos árabes” pela sua abertura ao Irão (persa), o isolamento a que foi votado coloca-o numa dependência total do… Irão. Para a aviação qatariana, o espaço aéreo iraniano é a única rota de saída possível. Igualmente, em caso de rutura alimentar — Arábia Saudita e Emirados eram os principais fornecedores —, Teerão já fez saber que está disponível para facilitar o trânsito de água e alimentos através dos seus portos.
Quinta-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar admitiu nunca ter sentido tanta hostilidade, e foi categórico: “Não estamos preparados para entregar, nem nunca entregaremos, a independência da nossa política externa”.
Al-Jazeera e futebol
Independente desde 1971, o Qatar apostou numa agenda internacional ambiciosa como fórmula de sobrevivência. Projetos como a Al-Jazeera — “um órgão de informação hostil”, diz Riade —, a realização do Mundial de Futebol de 2022 ou o patrocínio ao mediático Barcelona (pela Qatar Foundation e depois pela Qatar Airways) são armas dessa afirmação.
O reino procura estar de bem “com deus e o diabo”. Alberga a maior base aérea dos EUA na região (Al-Udeid) e desenvolve “amizades perigosas” com inimigos dos norte-americanos. Permite a construção de igrejas no território e partilha com a Arábia Saudita a interpretação wahabita do Islão.
Quarta-feira, a Turquia (que como o Irão não é árabe) aprovou o envio de um contingente para uma base turca em construção no Qatar. O Presidente Recep Erdogan disse que “a movimentação visa contribuir para a paz regional e mundial”.
25 ANOS DE DISPUTAS
2017 — A 5 de junho, Arábia Saudita, Bahrain, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Egito cortam relações diplomáticas com o Qatar. Riade aceita abrir a fronteira a qatarianos a caminho de Meca e Medina
2014 — Arábia Saudita, EAU e Bahrain suspendem contactos com o Qatar devido ao apoio de Doha à Irmandade Muçulmana. A relação normaliza oito meses depois: os três embaixadores regressam à capital qatariana
2002 — Riade retira o embaixador de Doha após comentários de dissidentes sauditas na Al-Jazeera. A relação descongela em 2008 com a visita a Doha do príncipe herdeiro saudita
2000 — O então príncipe herdeiro saudita, Abdullah bin Abdul Aziz (rei entre 2005 e 2015), boicota uma cimeira da Organização da Conferência Islâmica, em Doha, em protesto contra as relações comerciais entre Qatar e Israel
1992 — Disputa fronteiriça entre Qatar e Arábia Saudita faz três mortos. Em 1996, os dois países iniciam um processo de delimitação de fronteiras, finalizado três anos depois
Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de junho de 2017 e republicado no “Expresso Online” a 11 de junho de 2017. Pode ser consultado aqui
Mais pequeno do que o Alentejo, o Qatar quer ter influência mundial. Tem por armas gás, petróleo, a Al-Jazira e a ambição do seu líder
Riyadh Hijab tornou-se, na segunda-feira, o mais alto oficial do regime sírio a passar-se para a oposição. Era primeiro-ministro há dois meses e justificou a deserção acusando Bashar al-Assad de genocídio. Hijab voou para a Jordânia, mas, segundo o seu porta-voz, o destino final é o Qatar. Antes dele, também os embaixadores sírios no Iraque e Emirados Árabes Unidos tinham assumido a rutura com Damasco e refugiado em Doha.
Mais pequeno do que o Alentejo e com uma população nativa inferior à da cidade do Porto — dos 1,7 milhões de habitantes, apenas 300 mil são qatarenses —, o Qatar é dos mais fortes aliados da oposição síria, financiando vários grupos em combate. Em julho de 2011, foi o primeiro país a encerrar a embaixada em Damasco. Em janeiro, o emir Al–Thani foi pioneiro ao defender uma intervenção militar estrangeira na Síria.
Desde a revolução na Tunísia que o Qatar tem vindo a surfar a onda da Primavera Árabe. A sua principal arma é… o livro de cheques. Na Tunísia, garantiu ajudas e investimentos às autoridades emergentes e pagou tratamentos médicos a revolucionários feridos. No Egito, foi um importante financiador da Irmandade Muçulmana e do An-Nur (salafita). “Só esperamos boas coisas do Qatar. É um verdadeiro parceiro na Primavera Árabe”, disse Rashid al-Ghannouchi, líder espiritual do Ennahda, o partido islamita que subiu ao poder após a revolução tunisina.
Na Líbia, o envolvimento de Doha foi bem menos discreto. O Qatar foi a primeira capital a reconhecer o Conselho Nacional de Transição e tornou-se o primeiro país árabe a participar — com caças Mirage — na campanha aérea liderada pela NATO contra Muammar Kadhafi. Forças qatarenses participaram também no assalto final a Bab al-Aziziya, o palácio de Kadhafi em Tripoli.
O apoio incondicional do Qatar às revoluções árabes foi posto em causa no Bahrain, onde Doha deixou vir ao de cima preocupações geoestratégicas. Quando eclodiram os protestos na Praça da Pérola — maioritariamente xiitas — contra a monarquia sunita, os qatarenses não hesitaram em escolher o lado do poder. Segundo a agência noticiosa do Qatar, um pequeno número de oficiais do país entrou no Bahrain paralelamente aos tanques sauditas, para ajudar na contenção dos protestos.
Tempestade de areia sobre o território do Qatar EARTH OBSERVATORY
Entalado entre dois colossos rivais no Médio Oriente — a árabe e sunita Arábia Saudita e o persa e xiita Irão —, o Qatar parece ter nos EUA o seu seguro de vida. Desde 2002, o país acolhe o quartel-general avançado do Comando Central dos EUA (CENTCOM), crucial para a guerra no Afeganistão e, antes, no Iraque.
De bem com todos
Nos corredores diplomáticos ocidentais, o Qatar é, porém, alvo de desconfiança. Diz-se que à segunda-feira o emir é amigo e à terça financia terroristas. No poder desde 1995, após ter liderado um golpe contra o pai, Al-Thani, de 60 anos, ambiciona transformar o país numa ponte entre mundos. Em janeiro, no “60 Minutes” (CBS), disse: “Eles (EUA) não gostam da nossa relação com o Irão, Hamas ou Hezbollah. Talvez o Irão ou o Hamas também não gostem dos nossos contactos com Israel. Mas não é uma boa política para um país pequeno estar de bem com todos?”
Essa estratégia transformou Doha numa marca internacional. Meca de importantes reuniões — as negociações na OMC são as Doha Rounds —, é também porto de abrigo de personas non gratas, sejam familiares de Bin Laden ou opositores aos somalis da milícia Al-Shabaab. Khaled Meshaal, líder do Hamas, tem casa em Doha. E nos últimos anos, a capital recebeu visitas tão díspares quanto o israelita Shimon Peres, o libanês Hassan Nasrallah (Hezbollah) ou o iraquiano Muqtada al-Sadr (milícia radical Exército Al-Mahdi).
No início de 2012, foi notícia a possibilidade de os talibãs abrirem em Doha a sua primeira representação fora do Afeganistão. “Quando isso acontecer”, escreveu a revista alemã “Der Spiegel”, “generais americanos da base Al-Udeid poderão cruzar-se com estrategos do Hamas e talibãs de túnica preta no Clube Diplomático de Doha — numa atmosfera a lembrar o filme ‘Casablanca’.”
AL-JAZIRA É ESPADA DE DOIS GUMES
Entrevista a Gabriel G. Tabarani, autor do blogue ‘Middle East Spectator’
Qual é a agenda do Qatar para a Primavera Árabe?
Desde a revolução iraniana xiita (1979), os Estados árabes do Golfo — hoje coligados no Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — e outros países árabes sunitas esforçam-se por criar um equilíbrio político e militar no Médio Oriente e Norte de África para fazer frente ao expansionismo xiita do Irão. Nesse pressuposto, o CCG apoiou Saddam Hussein na guerra contra o Irão (1980-1988). E é nesse contexto que devemos entender a agenda do Qatar. Por outro lado, uma vez que os principais Estados árabes sunitas (Arábia Saudita, Egito, Iraque, Argélia, Marrocos) estavam ocupados com a situação interna, foi criado um vácuo na política externa árabe. Um Qatar confiante, apoiado pela presença militar americana no seu território e uma abundância de dinheiro, além das ambições de liderança, preencheu esse vazio. Mas se os objetivos gerais são conhecidos, os imediatos são vagos, embora persista a imagem de oportunismo. O Qatar está a operar uma mudança na política árabe que o Ocidente terá de compreender: um Médio Oriente dominado por partidos islamitas sunitas, levados ao poder numa região mais democrática e cada vez mais conservadora, tumultuosa, antixiita e anti-Irão.
Está também empenhado no diálogo entre fações palestinianas e entre os talibãs e os EUA…
O Qatar ambiciona desempenhar um papel de liderança na diplomacia internacional, especialmente no que diz respeito aos problemas do chamado Grande Médio Oriente. A mudança importante que ajudou o Qatar a levar a cabo o seu novo papel é a adoção do “modelo turco”, que, no âmbito da política internacional, significa abrir horizontes nas relações com o Ocidente e com a própria região.
O Qatar substituiu a Arábia Saudita na promoção do waabismo na região e na Europa?
O waabismo é a doutrina oficial, mas o Qatar não é tão puritano quanto a Arábia Saudita. Vemo-lo no estilo de vida relativamente liberal da população. Não creio que esteja a espalhar a fação waabi como os sauditas fizeram. Há provas de que o Qatar apoia associações muçulmanas em todo o mundo, incluindo grupos que não estão ligados ao waabismo. Após a guerra de 2006 entre Israel e o Hezbollah, ajudou os xiitas no Líbano.
Há razões para o regime temer uma rebelião interna?
À superfície, as causas das revoltas árabes parecem políticas, mas são económicas. No Qatar, os cidadãos vivem confortavelmente. O rendimento per capita é o mais alto do mundo, rondando os 138 mil dólares por ano. Além disso, o Governo tomou medidas políticas. O Qatar está a evoluir de uma sociedade tradicional para outra baseada em instituições mais formais e democráticas. A Constituição consagra o poder hereditário da família Al-Thani, mas estabelece um órgão legislativo eleito e responsabiliza o Governo perante o Parlamento. O povo é representado pelo Conselho Consultivo, nomeado, que assiste o emir. As primeiras eleições para este órgão serão em 2013.
A região do Golfo é o calcanhar de Aquiles da Al-Jazira?
A Al-Jazira é uma ferramenta diplomática que Doha usa como lhe convém. Já criou vários problemas diplomáticos ao Qatar, especialmente com os governos da Arábia Saudita e do Bahrain. É melhor considerarmos a Al-Jazira como uma espada de dois gumes que pode ser usada para projetar influência, mas que deve ser responsabilizada à semelhança de qualquer agente diplomático qatarense.
RECURSOS: GÁS, PETRÓLEO E… AL-JAZIRA
Como qualquer país banhado pelo Golfo Pérsico, o Qatar cresceu sobre abundantes jazidas de gás e petróleo. Em 2011, o país exportou, em média, 588 mil barris de petróleo por dia e 113,7 mil milhões de metros cúbicos de gás natural. Porém, na sua estratégia de afirmação mundial, uma das principais armas é a Al-Jazira (que em árabe significa “a ilha”, uma analogia à Península Arábica). Propriedade da família real, foi fundada em 1996 — um ano após o emir subir ao poder — e rapidamente se tornou a maior televisão do mundo árabe. Após o 11 de Setembro, era a única estação a cobrir a guerra no Afeganistão em direto com escritório montado em Cabul. A Al-Jazira seria também o canal privilegiado pelo líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden, para divulgar as suas mensagens ao mundo. O serviço em língua inglesa só arrancaria em 2006, mas já a Al-Jazira era um ator incómodo no mundo árabe. Em visita à sua sede, o Presidente egípcio Hosni Mubarak afirmou: “Tantos problemas por causa desta caixa de fósforos”. Segundo os documentos revelados pela Wikileaks, o Presidente dos EUA George W. Bush, em 2004, com a guerra do Iraque em curso, chegou a equacionar o bombardeamento da sede da Al-Jazira, em Doha. Tal não chegou a acontecer, mas os escritórios da estação em Cabul e em Bagdade não escaparam ao fogo de guerra. A Primavera Árabe voltou a fazer da Al-Jazira notícia. As suas câmaras foram lestas a chegar a Tunis, ao Cairo ou a Tripoli e os revolucionários agradeceram-lhe. Mas tardou a reportar os protestos em Manama (Bahrain) e foi, por isso, acusada de ser tendenciosa.
2022
Neste ano, o Qatar organiza o Mundial de Futebol. Sepp Blatter, presidente da FIFA, disse: “O mundo árabe merece organizar um Campeonato do Mundo”. Mas a escolha foi envolta em suspeitas de corrupção. Indiferente, o Governo de Doha prevê gastar 10% do PIB com infraestruturas. Ainda no capítulo desportivo, o Qatar fez história ao permitir, pela primeira vez, a participação de mulheres nos Jogos Olímpicos de Londres: quatro, no tiro, atletismo, natação e ténis de mesa. Ironicamente, o país tem na sheik Mozah — que rivaliza em elegância com qualquer primeira-dama — a sua grande relações públicas.
Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de agosto de 2012
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.