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Há quase dez anos, a Suécia reconhecia o Estado da Palestina: ainda reconhece e que ganharam os palestinianos com isso?

Na União Europeia, há nove países que reconhecem o Estado da Palestina. Entre eles, apenas a Suécia deu esse passo quando já era membro da comunidade europeia, em 2014. A decisão não originou o esperado efeito de contágio na Europa e, nos últimos anos, Estocolmo tem-se reaproximado de Israel. No atual Governo, há quem defenda a reversão dessa política que, para já, não está a ser considerada. Para os palestinianos, o reconhecimento do seu Estado é, acima de tudo, um apoio moral, em especial em contexto de guerra

A questão da Palestina não passa totalmente ao lado da campanha para as legislativas em Portugal. Nos programas eleitorais, há três partidos que inscreveram o tema nas suas prioridades de política externa.

A Coligação Democrática Unitária (CDU) diz que, “por uma política externa em prol da paz, da amizade e da cooperação no mundo”, solidariza-se “com os povos em luta em defesa da sua soberania e direitos”, nomeadamente com vista “ao cumprimento dos direitos nacionais do povo palestiniano, com a criação do Estado da Palestina”.

Na mesma linha, o programa do Livre consagra o direito à autodeterminação do povo palestiniano e propõe “reconhecer a Palestina como Estado independente e com as fronteiras de 1967 definidas pelas Nações Unidas”. O Bloco de Esquerda defende o “reconhecimento imediato do Estado da Palestina por parte de Portugal”.

A concretizar-se o reconhecimento bilateral do Estado palestiniano, Portugal tornar-se-ia o segundo país da União Europeia (UE) a fazê-lo enquanto membro da comunidade.

A Suécia foi pioneira ao reconhecer a Palestina em 2014. À época, outros oito membros da UE já o tinham feito, mas nos anos 1980 quando ainda não tinham aderido ao bloco comunitário: seis eram do leste europeu, então sob a esfera de influência da União Soviética, e os outros dois ilhas do Mediterrâneo.

“A minha impressão é que [o reconhecimento da Suécia] foi importante para os palestinianos, mas principalmente foi simbólico”, diz ao Expresso o sueco Jacob Eriksson, professor no Departamento de Política da Universidade de York, no Reino Unido. “Foi uma afirmação importante do direito palestiniano à autodeterminação, mas não gerou o impulso no sentido de um reconhecimento mais generalizado entre os Estados-membros da UE que tanto o Governo sueco como o palestiniano esperavam.”

Não só a iniciativa da Suécia não teve o efeito de contágio que se anteciparia — hoje, dos 27, continuam a ser os mesmos nove a tratar a Palestina com igual estatuto político — como, no atual contexto de guerra e de um quotidiano de morte, fome e destruição na Faixa de Gaza, o reino escandinavo não disfarçou uma recente mudança de posição de maior proximidade a Israel.

Suspensão da ajuda à Palestina

Após o ataque de 7 de outubro do Hamas a Israel, a Suécia demorou apenas quatro dias para suspender a ajuda à Palestina, isentando dessa decisão a assistência humanitária. Um comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 11 de outubro revelava um apoio inequívoco a Israel. “O Governo condena sem reservas os ataques a Israel realizados pela organização terrorista Hamas”, lia-se.

“Em resposta aos ataques, o Governo instruirá a Sida [Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional] a realizar uma revisão da ajuda à Palestina para garantir que nenhum dinheiro sueco vá para atores que não condenem incondicionalmente o Hamas, que pratiquem violência, ameacem ou encorajem a violência contra o Estado de Israel, ou a sua população, ou prossigam uma agenda antissemita, nem para pessoas associadas a tais atores.”

O atual Executivo sueco é liderado por Ulf Kristersson, do partido Moderados (centro-direita), que governa apoiado numa coligação que inclui também Democratas-Cristãos, Liberais e é apoiada pelos Democratas Suecos (extrema-direita), que formalmente não fazem parte do Governo, mas conseguiram impor a sua política de imigração.

“Os Democratas Suecos e o Partido Liberal — dois partidos tradicionalmente fortemente pró-Israel — continuam a apelar ao Governo para revogar o reconhecimento [da Palestina], mas isso tem sido rejeitado pelo Executivo”, diz Jacob Eriksson. “O atual ministro dos Negócios Estrangeiros, Tobias Billström, foi ele próprio contra o reconhecimento da Palestina, descrevendo-o como prematuro e infeliz, mas mesmo assim comprometeu-se a defender essa política.” O governante defendeu que esse passo “beneficiaria o Hamas”.

A 22 de novembro, uma gaffe do primeiro-ministro Ulf Kristersson, num evento público em Gotemburgo, expôs de forma embaraçosa a defesa acérrima de Israel. “A Suécia e a União Europeia estão unidas no sentido de que Israel tem o direito a [praticar] genocí… tem o direito à legítima defesa”, corrigiu, não evitando reações da audiência. “Israel tem o direito de cometer genocídio?” “Nós ouvimos!” “Isso não é legítima defesa.”

Na sua última posição relativamente à guerra, a 22 de fevereiro, e já após muito sangue derramado no território palestiniano, o Governo sueco equilibrou argumentos. Defendeu que “Israel tem claramente o direito de se defender contra o terrorismo e o lançamento indiscriminado de foguetes”, mas acrescenta que “o direito à defesa de Israel não é absoluto” e que “deve ser exercido em conformidade com o direito internacional, incluindo o direito humanitário internacional”.

A Suécia reconheceu a Palestina a 30 de outubro de 2014, na sequência da subida ao poder de um Governo liderado pelo Partido Social-Democrata (esquerda). No seu primeiro discurso no Parlamento, a 3 de outubro, o primeiro-ministro Stefan Lofven afirmou:

“O conflito entre Israel e a Palestina só pode ser resolvido através de uma solução de dois Estados, negociada de acordo com o direito internacional. (…) Uma solução de dois Estados requer reconhecimento mútuo e vontade de coexistência pacífica. A Suécia reconhecerá, portanto, o Estado da Palestina.”

O reconhecimento sueco assemelhou-se a um sismo político que ameaçava provocar réplicas por toda a Europa. Isso aconteceu não ao nível de governos, mas apenas de parlamentos. No espaço de dois meses, ao estilo de um efeito dominó, a Palestina foi reconhecida (de forma não vinculativa) pela Câmara dos Comuns do Reino Unido, pelo Senado da República da Irlanda, pelo Congresso dos Deputados de Espanha, pela Assembleia Nacional francesa e pelo Parlamento Europeu. Outras assembleias juntar-se-iam à lista.

A 12 de dezembro de 2014, também a Assembleia da República portuguesa aprovou uma resolução que “insta o Governo a reconhecer, em coordenação com a União Europeia, o Estado da Palestina como um Estado independente e soberano, de acordo com os princípios estabelecidos pelo Direito Internacional”.

A falta de adesão de outros países europeus ao exemplo da Suécia levou o reino nórdico, com o passar do tempo, a equilibrar a sua posição e, ainda na época da governação social-democrata, a reaproximar-se de Israel. A 18 de outubro de 2021, a ministra dos Negócios Estrangeiros Ann Linde deslocou-se a Jerusalém, naquela que foi a primeira visita a Israel de um chefe da diplomacia sueca em dez anos.

Mais recentemente, a 28 de agosto passado, uma delegação de deputados suecos democratas-cristãos foi recebida, em Israel, pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que, como escreveu na rede social X, expressou “apreço pela mudança de posição da Suécia em relação a Israel”.

Outro país que redefiniu a sua posição foi a República Checa. Esta nação do leste europeu reconheceu o Estado da Palestina em 1988, porém, nos últimos anos, tem-se revelado um fiel aliado de Israel.

A 29 de novembro de 2012, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas votou favoravelmente a atribuição do estatuto de “Estado observador” à Palestina, os checos pronunciaram-se contra, juntamente com apenas mais oito países de um total de 188 que participaram na votação. Ao lado da República Checa, para além de Israel, votaram Estados Unidos, Canadá, Panamá, Micronésia, Palau, Nauru e Ilhas Marshall.

Jacob Eriksson diz que, na Suécia, o assunto Palestina mobiliza, mas não ao nível, por exemplo, da guerra na Ucrânia que precipitou a adesão do país à NATO, viabilizada, na semana passada, pela ratificação no Parlamento da Hungria, o último dos 30 membros da Aliança Atlântica a fazê-lo.

A 15 de novembro, em entrevista ao jornal sueco “Dagens Nyheter”, a embaixadora palestiniana em Estocolmo, Rula Almhaissen, disse sentir-se triste: a Suécia “não é mais o país que conheci”.

Jacob Eriksson considera a política sueca “importante no atual contexto da guerra, pois afirma a visão política a que a grande maioria da comunidade internacional, incluindo o mundo árabe, apela no sentido da garantia de uma paz duradoura”, diz.

“Qualquer progresso relativamente à abertura de relações entre Israel e outros países árabes, como a Arábia Saudita, e à reconstrução de Gaza depende de passos concretos na direção de uma solução sustentável de dois Estados. Se outros Estados-membros da UE decidirem reconhecer o Estado palestiniano à luz da guerra em curso, como há rumores que o sugerem, e houver progressos no sentido de uma solução de dois Estados, então o Governo social-democrata sueco de 2014, que reconheceu a Palestina, sentir-se-á justificado.”

Para os palestinianos, como Abdul Rahman Haj Ibrahim, professor na Universidade de Birzeit, de Ramallah (Cisjordânia ocupada), “qualquer reconhecimento da entidade palestiniana por parte de qualquer Estado dá um apoio moral à [nossa] causa”, diz ao Expresso.

“E é por isso que é muito importante para nós sermos reconhecidos pela Suécia ou qualquer outro Estado, especialmente agora em que vivemos um genocídio em Gaza e uma limpeza étnica na Cisjordânia. Esperamos que a nossa causa prevaleça e que vejamos um Estado da Palestina livre e soberano.”

(IMAGEM PALESTINIAN RETURN CENTRE)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Estados independentes que ninguém ou poucos reconhecem

A criação de novos Estados e o seu subsequente reconhecimento é um dos aspetos mais problemáticos da política internacional. O recente reconhecimento russo das independências das regiões separatistas ucranianas de Donetsk e Luhansk é revelador dessa complexidade.

“Esse reconhecimento permitiu à Rússia criar um pretexto ou justificação para a invasão: proteger as comunidades russófonas na Ucrânia que dizia estarem a ser perseguidas há anos pelo Governo de Kiev”, explica ao Expresso Edward Newman, professor na Universidade de Leeds. “O reconhecimento visou também consolidar o controlo russo sobre a região ucraniana do Donbas”, diz. E pode ser um trunfo “para a Rússia integrar essas regiões com base no consentimento fabricado das populações locais através de algum tipo de referendo”.

Para a Rússia, pouco importa que nenhum outro Estado soberano reconheça Donetsk e Luhansk. A estratégia mostrou-se eficaz e com potencial para ser replicada. “O reconhecimento russo dessas regiões é um desenvolvimento alarmante”, alerta Newman, “em especial se a mesma abordagem for aplicada a outras regiões separatistas com populações de língua russa, como a Transnístria”.

SEIS ‘PAÍSES INVISÍVEIS’ NA VIZINHANÇA DA RÚSSIA

DONETSK — A 7 de abril de 2014, separatistas pró-Rússia autoproclamaram a República Popular de Donetsk, no Leste da Ucrânia. A 11 de maio seguinte, num referendo não reconhecido por nenhum país, 89% dos votantes disseram “sim” à
independência. Este país é reconhecido por um único Estado-membro da ONU (Rússia) e três não-membros (Luhansk, Abecásia e Ossétia
do Sul).

LUHANSK — À semelhança de Donetsk, situa-se na região ucraniana do Donbas, onde a maioria da população é russófona. A República Popular de Luhansk declarou a independência a 27 de abril de 2014 e viu essa opção ser confirmada em referendo, a 11 de maio seguinte, por 96,2% dos votantes. Esta república é reconhecida pela Rússia e pelas “independentes” Donetsk, Abecásia e Ossétia do Sul.

OSSÉTIA DO SUL — Após o fim da URSS e a independência da Geórgia, esta sua região escolheu a secessão em referendo (1992). No dia 26 de agosto de 2008, após 12 dias de guerra entre a Geórgia e a Rússia, Moscovo reconheceu a Ossétia do Sul (a Ossétia do Norte fica na Rússia). Fizeram-no também Venezuela, Nicarágua, Síria e Nauru e os não-reconhecidos Abecásia, Transnístria, Artsaque e Sara Ocidental.

ABECÁSIA — É reconhecida pela comunidade internacional como território da Geórgia, mas partilha o sonho de secessão da Ossétia do Sul. Costeira ao mar Negro, faz fronteira com a Rússia, que ratificou a independência deste território no mesmo dia em que o fez em relação à Ossétia do Sul. Beneficia do mesmo reconhecimento internacional da Ossétia do Sul, excetuando do Sara Ocidental.

TRANSNÍSTRIA — É um enclave separatista na Moldávia, faixa longa e estreita que acompanha o rio Dniestre, paralelo à fronteira moldavo-ucraniana. Tem Constituição, Governo, moeda e passaporte próprios. Oficialmente designada de República Moldávia Peridniestriana, é reconhecida apenas pela Abecásia, Ossétia do Sul e Artsaque. A Rússia apoia-a, mas não a reconhece formalmente.

ARTSAQUE — É a designação arménia de Nagorno-Karabakh, o disputado território do Cáucaso que a ONU diz ser de soberania azeri. A Arménia afirma que o conflito é um problema interno de secessão do Azerbaijão e não reconhece a independência da República de Artsaque, declarada em 1992. Esta só é reconhecida pelas duas repúblicas separatistas georgianas e pela Transnístria.

QUATRO POVOS SEM ESTADO

CURDOS
O maior povo sem Estado do mundo vive disperso por Turquia, Iraque, Síria e Irão e tem diásporas na Europa e no espaço da antiga União Soviética. Serão 45 milhões, com língua própria e o sonho comum de um Curdistão independente. Não são árabes, apesar de Saladino, o grande herói dos árabes, ser curdo. Na Síria foram cruciais para derrotar os jiadistas do Daesh.

ROHINGYAS
São a minoria muçulmana de Mianmar (ex-Birmânia, de maioria budista): cerca de um milhão. Expulsos de Rakhine (sul do país), no âmbito de uma campanha de repressão ordenada pelo Governo, centenas de milhares de refugiados vivem em campos no Bangladexe. Uns milhares foram transferidos para uma ilha.

PALESTINIANOS
Aspiram a um Estado independente na Cisjordânia (que Israel ocupa com tropas e colonos) e na Faixa de Gaza (bloqueada por terra, mar e ar). Desde a declaração unilateral da independência (1988), quase 140 países já reconheceram a Palestina, mas não os mais poderosos. Crê-se que sejam 14 milhões (40% vivem nos dois territórios).

SARAUÍS
Proclamaram em 1976 a República Árabe Sarauí Democrática, que hoje é membro de pleno direito da União Africana. Dezenas de países já a reconheceram, mas não o mundo desenvolvido. Os sarauís vivem no Sara Ocidental, ocupado por Marrocos, em campos de refugiados de Tinduf (Argélia) e na diáspora. Querem um referendo à autodeterminação.

O SONHO DO REFERENDO

KOSOVO
Com a unidade da Jugoslávia a abrir brechas, esta província sérvia de maioria albanesa fez um referendo à independência em 1991. De forma inequívoca, 99,98% disseram “sim”. A declaração de independência do Kosovo foi aprovada no Parlamento a 17 de fevereiro de 2008, mas o reconhecimento internacional tem marcado passo. Por pressão sérvia, alguns países recuaram. O Kosovo ainda não é membro da ONU.

ESCÓCIA
A 18 de setembro de 2014, este território britânico referendou a sua independência em relação ao Reino Unido, segundo regras definidas em conjunto com o Governo de Londres. De forma entusiasta, 97% dos escoceses registaram-se para participar e a maioria (55%) votou “não”. A saída do Reino Unido da União Europeia (‘Brexit’), a que a Escócia se opôs, renovou a vontade de repetir a consulta popular sobre o assunto.

CATALUNHA
À revelia de Madrid, o governo regional convocou um referendo à independência da região mais rica de Espanha. A 1 de outubro de 2017, a consulta decorreu sob grande tensão, com a polícia nacional nas ruas. O “sim” ganhou com 92,01%, mas quem era contra quase não votou. O líder catalão Puigdemont declarou a independência, mas suspendeu-a em seguida e foi demitido pelo Governo espanhol.

Tentamos ver
o que podemos aprender com a Ucrânia
para nos defendermos

Joseph Wu, ministro dos Negócios Estrangeiros de Taiwan

Taiwan vive no medo de uma invasão das tropas da China Continental. Para Pequim, a ilha simboliza a dificuldade em aplicar a revolução maoista a todo o território chinês e um desafio à política da “China Única”. Taiwan é um país independente para apenas 13 Estados no mundo. Outros, que antes reconheciam Taiwan (nacionalista), recuaram e passaram a reconhecer a China Popular (comunista).

4690

quilómetros (em linha reta) separam a Somalilândia e a Liberlândia, territórios “independentes” que apenas se reconhecem um ao outro. O primeiro faz parte do país internacionalmente chamado Somália. O segundo é um microestado criptolibertário de 7 km2, entre a Croácia e a Sérvia

UNIVERSO DAS NAÇÕES UNIDAS

193
Estados soberanos são membros das Nações Unidas, com igual representação e peso na Assembleia-Geral: 150 deles ascenderam à independência no século XX. O último país a aderir à ONU foi o Sudão do Sul, em 2011. Há ainda dois Estados observadores não-membros permanentes: a Santa Sé e a Palestina

17
territórios “não-autónomos” continuam por descolonizar em todo o mundo, reconhece a ONU. Administrados por Estados Unidos, Reino Unido, França e Nova Zelândia, são potenciais candidatos à independência. São exemplos as ilhas Falkland (ou Malvinas), Gibraltar, Monserrate, Guam, Polinésia Francesa, Ilhas Caimão ou Samoa Americana

1
país apenas reconhece a República Turca de Chipre do Norte, declarada independente a 15 de novembro de 1983, no norte da ilha mediterrânica de Chipre. Trata-se da Turquia, que invadiu o território em 1974 e ali mantém tropas. A sul fica a República de Chipre (grega), que aderiu à União Europeia em 2004

(FOTO A Somalilândia é um território da Somália que proclamou a independência em 1991, não tendo obtido reconhecimento internacional EDUARDO SOTERAS / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 20 de maio de 2022. Pode ser consultado aqui

Israel e Kosovo estabelecem relações
diplomáticas — via Zoom

Dois países em busca de aceitação internacional reconheceram-se mutuamente esta segunda-feira. Israel garantiu a abertura da primeira embaixada em Jerusalém por um país de maioria muçulmana. O Kosovo averbou um sucesso diplomático após vários países terem recuado no seu reconhecimento enquanto Estado independente. Em tempos de pandemia, a diplomacia inovou e o tratado foi assinado… à distância

Um tem 72 anos de vida, o outro apenas 12. Viviam de costas voltadas e, esta segunda-feira, acordaram em seguir juntos. Israel e Kosovo oficializaram o seu reconhecimento mútuo, numa cerimónia que decorreu de forma virtual, em que participaram os ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois países.

Meliza Haradinaj, a jovem ministra dos Negócios estrangeiros kosovar, tinha viagem marcada para Israel para participar na cerimónia, mas, devido à pandemia, o aeroporto Ben Gurion, de Telavive, foi encerrado — mesmo a visitas com esta importância política.

A cerimónia decorreu na data prevista, através do programa de software Zoom, com direito a aplauso no fim. A partir dos respetivos gabinetes, o israelita Gabi Ashkenazi assinou o acordo em Jerusalém e a kosovar Meliza Haradinaj em Pristina. A tecnologia possibilitou não só a transmissão da cerimónia como o envio do documento entre as duas capitais.

A existência destes dois países não colhe unanimidade no concerto internacional: Israel é penalizado, sobretudo entre os países árabes, pela ocupação da Palestina e o Kosovo pela declaração unilateral de independência em relação à Sérvia.

Este reconhecimento diplomático garante aos israelitas uma conquista simbólica: o Kosovo é o primeiro país de maioria muçulmana a abrir a sua embaixada em Jerusalém. Atualmente, apenas dois países têm as suas missões diplomáticas em Israel instaladas na cidade santa: os Estados Unidos e o Paraguai.

Para os kosovares este momento tem dupla importância, já que, além do reconhecimento em si, “acontece numa altura em que o Kosovo precisa realmente de ampliar os seus aliados diplomáticos, sobretudo após sofrer uma agressão diplomática por parte da Sérvia, que persuadiu mais de 15 países a retirar o seu reconhecimento”, diz ao Expresso o kosovar Gëzim Visoka, professor de Estudos de Paz e Conflito na Universidade da Cidade de Dublin, Irlanda.

Serra Leoa diz que foi prematuro

Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Kosovo, 116 países já reconheceram esta república balcânica (quase dez vezes mais pequena do que Portugal). Mas nos últimos anos, vários países recuaram nesse reconhecimento, ou pelo menos congelaram-no.

Um dos últimos a fazê-lo foi a Serra Leoa que, em carta enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Sérvia, a 3 de março de 2020, referiu: “O Governo da República da Serra Leoa considera que qualquer reconhecimento que tenha conferido (expressamente ou por implicação necessária) à independência do Kosovo pode ter sido prematuro”.

“Além de aprofundar as relações bilaterais políticas, económicas, militares e socioculturais”, continua Gëzim Visoka, “o reconhecimento do Kosovo por Israel envia uma mensagem importante ao mundo de que o reconhecimento internacional do Kosovo está a avançar, e que outros países que ainda não o reconheceram devem fazê-lo, incluindo cinco Estados-membros da União Europeia”.

Rússia e China entravam adesão à ONU

Os países em causa são Espanha, Chipre, Grécia, Roménia e Eslováquia. Na mesma situação estão a Rússia e a China, membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Graças ao poder de veto que têm por serem membros permanentes, tornam-se obstáculos à adesão do Kosovo à organização.

“O Kosovo cumpre os critérios objetivos de um Estado e aqueles relacionados com a adesão à ONU. Demonstrou vontade em agir como uma nação que ama a paz e que aceita a Carta das Nações Unidas, que são duas pré-condições formais para o pedido de admissão. Apesar disso, o Kosovo ainda não se candidatou formalmente às Nações Unidas devido à falta de apoio suficiente na Assembleia-Geral e no Conselho de Segurança, órgãos que desempenham um papel vital no processo de admissão”, explica o professor kosovar.

“Para o Kosovo aderir à ONU, é necessário chegar a um acordo com a Sérvia que desbloqueie o veto da Rússia e da China [no Conselho de Segurança] e também gere apoio suficiente na Assembleia Geral e na comunidade mais ampla de Estados soberanos.”

Um acordo entre Sérvia e Kosovo tem-se revelado um dos quebra-cabeças da geopolítica dos Balcãs.

Desde 2008 que a questão do reconhecimento internacional domina a agenda política kosovar. “O Kosovo é reconhecido pela esmagadora maioria dos países democráticos em todo o mundo. Embora o Estado não dependa inteiramente do reconhecimento internacional, quantos mais países reconhecerem o Kosovo, maiores são as hipóteses de defender a sua soberania e de consolidar a sua posição internacional, tornando-se membro de organizações internacionais e regionais e desempenhando um papel modesto nas relações internacionais”, diz Gëzim Visoka.

“E quantos mais países reconhecerem o Kosovo, haverá menos espaço para a Sérvia interferir nos seus assuntos internos”, acrescenta. “Além disso, o reconhecimento internacional abre novas possibilidades a investimentos estrengeiros, comércio e desenvolvimento económico, que são vitais para esta jobem nação.”

O reconhecimento bilateral entre o Kosovo e Israel é — à semelhança dos Acordos de Abraão — uma conquista da Administração liderada por Donald Trump.

A 4 de setembro de 2020, o ex-Presidente dos Estados Unidos foi o anfitrião de uma cerimónia sui generis, na Casa Branca. Kosovo e Sérvia, que não têm relações diplomáticas, assinaram um documento de “normalização económica” entre ambos. Porém, os signatários — o primeiro-ministro kosovar, Avdullah Hoti (à esquerda de Trump na foto em cima), e o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic (à direita) — não rubricaram o mesmo documento, mas antes cópias separadas de um texto que não era exatamente igual.

No último ponto dos dois documentos há uma referência a Israel. No texto assinado pelo Kosovo, lê-se: “O Kosovo e Israel concordam em reconhecer-se mutuamente”. No da Sérvia diz: “A Sérvia concorda em abrir um escritório comercial e um ministério de escritórios oficiais em Jerusalém, a 20 de setembro de 2020, e a mudar a sua embaixada [de Telavive] para Jerusalém, a 1 de julho de 2021”.

Apesar do investimento da diplomacia norte-americana, a cimeira da Casa Branca não produziu um acordo bilateral ou trilateral. “Atualmente, Kosovo e Sérvia estão presos num conflito intratável, que se renova em torno do Estado e da soberania de Kosovo”, conclui Gëzim Visoka.

“Existe uma paz informal, ainda que frágil, entre os dois países, que é imposta pela comunidade internacional e apoiada, no terreno, pelas forças de manutenção da paz da NATO, bem como por uma rede de missões internacionais mais pequenas. No entanto, isso não é sustentável, pois as perspetivas de tensões étnicas continuam presentes, especialmente porque a liderança política de cada lado está acostumada a uma cultura de hostilidade mútua e não está disposta a superar as incompatibilidades existentes.”

DATAS CHAVE

2008 — A 17 de fevereiro, o Parlamento do Kosovo — província autónoma da Sérvia, de maioria albanesa — declarou unilateralmente a sua independência

1999 — Forças da NATO efetuaram bombardeamentos aéreos contra a Sérvia durante 78 dias, justificados com a urgência em parar a repressão sangrenta dos albaneses muçulmanos do Kosovo

IMAGEM Bandeiras de Israel e do Kosovo MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS DO KOSOVO

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

A janela está a fechar-se e a Europa ainda não sabe como responder à anexação israelita da Palestina

Onze ministros dos Negócios Estrangeiros da União Europeia — incluindo o português — querem que Bruxelas elabore um documento com opções de resposta ao plano de Israel para anexar partes da Cisjordânia palestiniana. “É importante haver clareza sobre as implicações legais e políticas da anexação”, alertam

Há cerca de 30 anos, comentando a postura da União Europeia durante a Crise do Golfo — desencadeada pela invasão iraquiana do Kuwait, em 1990 —, Mark Eyskens, então ministro dos Negócios Estrangeiros da Bélgica (e posterior primeiro-ministro), afirmou que a Europa era “um gigante económico, um anão político e um verme militar”.

Nos dias que correm, a questão da Palestina talvez seja dos assuntos onde essas dimensões são mais evidentes. A União Europeia (UE) é um importante parceiro económico de israelitas e palestinianos mas, em matéria política, revela-se incapaz de tomar iniciativas que contribuam para travar o desgaste contínuo da perspetiva de paz entre os dois povos.

Essa erosão pode conhecer novo capítulo se Israel for avante com a intenção de estender a sua soberania a até 30% da Cisjordânia ocupada, e em relação à qual ainda não se conhece uma posição de força por parte dos europeus.

“Falta uma estratégia política comum contra a violação contínua dos direitos humanos do povo palestiniano e, neste caso específico, de uma nova anexação ilegal de território palestiniano”, diz ao Expresso Giulia Daniele, investigadora no Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, de Lisboa.

Recentemente, 11 ministros dos Negócios Estrangeiros europeus — entre os quais o português Augusto Santos Silva — deram conta desse desnorte e enviaram uma carta conjunta a Josep Borrell, chefe da diplomacia dos 27. Acreditam que Israel pode ser dissuadido de avançar com a anexação se for alvo de medidas punitivas e solicitaram uma lista de ações possíveis.

“Gostaríamos de ver um documento, elaborado em estreita consulta com a Comissão, que forneça uma visão geral das relações entre a UE e Israel, uma análise das consequências legais da anexação, bem como uma lista de possíveis ações como resposta”, lê-se na missiva enviada a 10 de julho.

“É importante haver clareza sobre as implicações legais e políticas da anexação”, continuam. “Compreendemos que este é um assunto sensível e que o tempo é importante, mas o tempo também é curto. Estamos preocupados que a janela para impedir a anexação se feche rapidamente.”

Para a UE, a anexação constitui a machadada final na solução de dois Estados (para dois povos), que continua a marcar a sua narrativa, ainda que no terreno essa seja uma realidade cada vez mais difícil de acontecer.

“Continuar a falar sobre a solução de dois Estados é irrelevante e fora do contexto atual, que demonstra como isso já não é possível nem praticável sob nenhum ponto de vista”, defende a investigadora do ISCTE. “Pelo contrário, analisar com mais profundidade os factos no terreno e levar em maior consideração o que está a acontecer dentro das sociedades israelita e palestiniana poderia ajudar a UE a consolidar o seu papel no debate atual.”

Uma questão moral e legal

Se Israel concretizar a anexação — estendendo a sua soberania às áreas dos colonatos judeus e às terras férteis do Vale do Jordão —, na prática uma Palestina independente ficará condenada a um rendilhado de pequenos territórios não contíguos que impossibilita um Estado viável.

Para lá da dimensão moral, a perspetiva de Israel tomar terras palestinianas é também uma questão legal, já que viola o direito internacional. “Qualquer violação do direito internacional deve ser condenada”, defende Giulia Daniele.

“Se essa prática continuar, é necessário tomar decisões para contrariá-la, como, por exemplo o uso de sanções, que já aconteceu em muitos outros contextos históricos. A UE deve ter a coragem de propor uma política própria no sentido de influenciar as decisões da agenda internacional e de condenar abertamente a continuação do regime de apartheid” que visa os palestinianos.

Além de Portugal, assinaram a carta enviada ao Alto Representante da UE para a Política Externa e de Segurança a Bélgica, Irlanda, Itália, França, Malta, Suécia, Dinamarca, Luxemburgo, Holanda e Finlândia.

Do rol, apenas Malta e Suécia reconhecem o Estado da Palestina — fizeram-no em 1988 e 2014, respetivamente. Entre os 27, há outros países que também reconhecem a Palestina a nível bilateral, mas alguns comportam-se hoje de forma contrária à posição que assumiram no passado.

É o caso da Hungria, que reconheceu a independência da Palestina em 1988 (antes de aderir à UE) e hoje, com o nacionalista e eurocético Viktor Orbán no poder, é um dos mais sólidos defensores dos interesses de Israel, dificultando dessa forma a obtenção de um consenso na UE.

A voz de 1080 deputados

“Todos sabemos que o papel dominante sempre foi e continua a ser o da política norte-americana, mas, ainda mais neste momento de protestos tanto em Israel como nos Estados Unidos, é importante pressionar a UE a avançar finalmente com um objetivo muito simples: a aplicação do direito internacional, ao abrigo do qual o plano de anexação é ilegal.”

Recentemente, duas tomadas de posição conjuntas a nível internacional foram apelaram nesse sentido. A 23 de junho, 1080 deputados de 25 países europeus — entre os quais cinco deputados portugueses — endereçaram uma carta aos governos e líderes europeus. “A aquisição do território pela força não tem lugar em 2020 e deve ter consequências proporcionais”, defenderam.

Uma semana antes, 47 peritos das Nações Unidas na área dos Direitos Humanos adotaram uma posição pública no mesmo sentido: “A manhã seguinte à anexação será a cristalização de uma realidade já de si injusta: dois povos a viver no mesmo espaço, governados pelo mesmo Estado, mas com direitos profundamente desiguais. Esta é uma visão de um apartheid do século XXI”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui