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Vladimir Putin deu um passo rumo à reabilitação internacional indo ao Médio Oriente

O Presidente da Rússia fez uma visita-relâmpago aos Emirados Árabes Unidos e à Arábia Saudita com três objetivos em carteira: mostrar que viaja sem receio da justiça internacional, pedir cortes na produção de petróleo para robustecer a economia russa e argumentar que pode ser um mediador no Médio Oriente. “Se a Rússia conseguir entrar na mediação em Gaza, poderá dizer que só não consegue resolver o outro conflito porque a Ucrânia não quer negociar”, analisa um professor de Relações Internacionais

Desde a invasão russa da Ucrânia, Vladimir Putin só por duas vezes se tinha aventurado a colocar o pé fora de países que fizeram parte da União Soviética. A 19 de julho de 2022, o Presidente russo deslocou-se a Teerão, onde foi recebido pelo Líder Supremo do Irão, ayatollah Ali Khamenei. Os dois países partilhavam a circunstância de serem alvo de um isolamento decretado por países ocidentais e de serem os Estados mais castigados com sanções, em todo o mundo.

Mais recentemente, a 17 e 18 de outubro, Putin viajou até à China, para um encontro com o “querido amigo” Xi Jinping — com quem já se encontrou pessoalmente cerca de 40 vezes desde 2013, ano da subida ao poder do chinês. O último encontro entre ambos em solo chinês acontecera em fevereiro de 2022, no contexto dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, a menos de três semanas da invasão russa da Ucrânia. Então, os dois afirmaram “uma relação sem limites”.

A visita de Vladimir Putin, esta semana, aos Emirados Árabes Unidos e à Arábia Saudita — a primeira ao Médio Oriente durante a guerra na Ucrânia — é um passo mais ambicioso no seu processo de reabilitação internacional.

“O objetivo maior desta visita é normalizar a diplomacia do Kremlin”, explica ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “O Presidente volta a fazer visitas, quando quer e para onde quer, volta a ter agenda pública e mostra que o mandado de captura do Tribunal Penal Internacional [TPI] tem alcance limitado.”

Putin tem a justiça internacional à perna por causa da guerra na Ucrânia e da transferência ilegal de crianças ucranianas para território russo. Nenhum dos quatro países que visitou fora do antigo espaço soviético ratificou o Tratado de Roma, fundador do TPI, pelo que não correu riscos de ver o mandado de captura internacional ser executado, como receou que pudesse acontecer na África do Sul, em agosto passado. Nessa altura, abdicou de marcar presença na cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e falou por videoconferência.

Tiago André Lopes identifica também uma dimensão de caráter económico na viagem de Putin ao Médio Oriente. Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos são países produtores de petróleo, sendo o primeiro o maior exportador mundial. Dentro da OPEP+ (que inclui os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados, sendo a Rússia um deles), vários países já sinalizaram a vontade de cortar na produção de petróleo em 2024.

“Isto é obviamente do interesse da Rússia”, comenta o docente. “Artificialmente, faz subir os preços do crude nos mercados internacionais, o que reforça a economia russa.”

PUTIN NO KREMLIN

  • 1º mandato: 2000-2004
  • 2º mandato: 2004-2008
  • 3º mandato: 2012-2018
  • 4º mandato: 2018-2024

Esta quinta-feira, o Senado da Federação Russa agendou as próximas eleições presidenciais para 17 de março do próximo ano. Putin ainda não disse se será candidato. Poderá faze-lo na próxima semana, aproveitando a tradicional conferência de imprensa anual, onde responde a perguntas de jornalistas e do público.

Se for a votos, “o grande trunfo que vai ter é o facto de a economia russa ter aguentado o embate das sanções”, diz Tiago André Lopes. “De acordo com o Banco Mundial, no próximo ano a Rússia vai crescer a um ritmo três vezes mais rápido que o bloco europeu.”

Um terceiro interesse de Putin nesta deslocação ao Médio Oriente, que tem tanto de surpreendente como de irónico, passa por “tentar posicionar a Rússia como eventual mediador para a questão do Médio Oriente”, diz o professor da Universidade Portucalense. A ambição decorre da constatação da “incapacidade do Ocidente em desbloquear o impasse — porque alinhou com um dos contendores — e visa mostrar que a Rússia é um produtor de paz e não de guerra, o que é peculiar, mas é a posição neste momento defendida por Moscovo”.

No universo dos possíveis mediadores, o Catar apresentou serviço ao tornar possível o recente acordo entre Israel e o Hamas, que levou à libertação de 105 reféns israelitas, à entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza e à saída de 240 mulheres e menores palestinianos das prisões israelitas. Mas o colapso da trégua humanitária e a retoma da guerra obrigou o emirado a dar um passo atrás.

Com mediação da diplomacia russa, a disputa em torno do enclave de Nagorno-Karabakh, entre a Arménia e o Azerbaijão, que dura desde 1989, encaminha-se para um armistício. “Se a Rússia conseguir fechar esse conflito e entrar na mediação em Gaza, poderá dizer que só não consegue resolver o outro conflito porque a Ucrânia não quer negociar ou porque os ‘patrões da Ucrânia’, expressão muitas vezes usada no Kremlin, não permitem a negociação.”

A Rússia é um país de portas abertas aos dirigentes do Hamas, como confirma a visita de uma delegação do grupo islamita a Moscovo, há menos de duas semanas, ao que se seguiu a libertação de dois reféns com cidadania russa num gesto de “apreciação” pela posição da Rússia. Igualmente, tem relação histórica com Israel, por ter sido, em tempos, porto de abrigo para muitos judeus.

Líderes israelitas como David Ben-Gurion ou Golda Meir nasceram no Império Russo — o primeiro em Plonsk (atual Polónia) e a segunda em Kiev (Ucrânia). “Na guerra da Ucrânia, Israel, formalmente, nunca condenou a Rússia. Pôs-se numa posição mais neutral. É verdade que apoiou a Ucrânia com algum equipamento militar, mas nada do equipamento de última geração que a Ucrânia pediu”, recorda Tiago André Lopes.

“A Rússia tem a capacidade de conseguir falar com os dois interlocutores, de os sentar à mesa e de os reconhecer. Além disso, é um dos cinco Estados com assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e foi o segundo a receber a delegação ministerial conjunta árabe-islâmica, depois da China. A Rússia tem tentado mostrar interesse em desbloquear este impasse.”

A retórica de Moscovo alimenta-se também das posições contraditórias do Ocidente perante as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, nomeadamente em relação à Bielorrússia, que tem sido penalizada em várias frentes pela sua proximidade à Rússia, enquanto Israel continua a atuar impunemente.

“O conflito em Gaza demonstra alguns paradoxos do Ocidente”, comenta Tiago André Lopes. “O facto de não exigir a Israel o cumprimento do direito humanitário, apesar de a ONU fazer avisos sistematicamente. Tanto os Estados Unidos como alguns países europeus, em particular a Alemanha, têm uma espécie de simpatia contínua por Israel, e isso é um problema.”

Esta quinta-feira, decorreu em Pequim a 24ª cimeira União Europeia-China, com a presença de Charles Michel (presidente do Conselho Europeu), Ursula von der Leyen (presidente da comissão Europeia) e Josep Borrell, o Alto Representante para a Política Externa, que se reuniram separadamente com o Presidente Xi Jinping e o primeiro-ministro Li Qiang.

Na agenda de trabalhos da cimeira, figuraram conversações sobre “a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia” e sobre o “Médio Oriente”. “A informação europeia continua a ser, muitas vezes, infeliz. Na reunião de hoje, a delegação europeia nem sequer consegue classificar o Médio Oriente como conflito”, realça o docente. “Este tipo de dinâmicas é importantíssimo para os russos. Leva-os a dizer: ‘Estão a ver? Para estes senhores, há conflitos de primeira e conflitos de segunda.”

(FOTO Em Abu Dabi, Vladimir Putin foi recebido pelo Sheikh Mohamed bin Zayed Al Nahyan, presidente dos Emirados Árabes Unidos SERGEI SAVOSTYANOV / AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de dezembro de 2023. Pode ser consultado aqui

Rédea curta na ‘vizinhança próxima’

A expansão da NATO para leste desafiou as pretensões de segurança da Rússia na sua fronteira. Quem olha para Ocidente, como a Ucrânia, paga caro

Nas relações internacionais, uma dicotomia que muito revela sobre as opções geopolíticas dos Estados é a que distingue países marítimos e continentais. Os primeiros projetam poder e influência através dos mares. Os segundos vivem numa insegurança permanente. Sem mar que os proteja, depositam a sua defesa na conquista de mais território para expandirem as suas fronteiras o mais longe possível. A Rússia é o exemplo perfeito de uma potência continental. E toda a tensão que se vive, atualmente, em redor da Ucrânia é sintoma dessa circunstância.

“A Rússia é uma grande massa continental”, que abarca 11 fusos horários. “É um grande enclave, que precisa de garantir pontos de acesso, nomeadamente aos mares quentes”, navegáveis. “Assim se explica, por exemplo, a aliança com a Síria e o apoio a Bashar al-Assad”, diz ao Expresso a investigadora Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) da Universidade do Minho. “Apesar de ser, hoje, o maior país do mundo, a Rússia nunca foi tão pequena desde a conquista da Sibéria, no século XVII. Isto tem um impacto mental, ao nível das perceções das ameaças, extremamente relevante.”

Desde o fim da Guerra Fria (1989), e em especial desde a desintegração da União Soviética (URSS), em 1991, que um complexo de cerco se acentuou na forma como a Rússia perceciona a sua “vizinhança próxima” — um termo cunhado, em 1993, pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros Andrei Kozyrev. Mais ainda após a expansão da NATO e da União Europeia (UE) para leste, à custa de territórios que faziam parte da URSS ou pertenciam à sua esfera de influência.

MAPA: EXPANSÃO DA NATO NA DIREÇÃO DA RÚSSIA

Durante a Guerra Fria, a rivalidade entre Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) originou a formação de duas alianças militares que se tocavam no Muro de Berlim. A NATO, fundada em 1949, era liderada pelos norte-americanos e o Pacto de Varsóvia, criado em 1955 e dissolvido em 1991, pelos soviéticos. Desde a queda do Muro (1989) que países da antiga esfera de influência soviética têm aderido à organização ocidental — para grande nervosismo da Rússia, herdeira do legado da URSS

“Os três países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia — eram repúblicas socialistas soviéticas que se demarcaram por completo da Rússia, viraram-lhe costas e aderiram à NATO e à UE. Os outros países continuaram a manter relações privilegiadas com a Rússia, não forçosamente por vontade, mas por necessidade”, diz a académica. E sempre que algum deles expressa o desejo de seguir o rasto dos Bálticos, a Rússia pressente-o como ameaça e reage.

“A Rússia moderna [pós-1991] vê-se com uma fronteira enorme, que é extremamente sensível para as suas pretensões de segurança. A Rússia sempre considerou a NATO um clube do qual não faz parte e, de certa forma, uma ameaça às suas fronteiras. Já era assim nos anos 90, mas agora a Rússia tem os meios de pressão para dizer que não quer mais um alargamento da NATO junto à sua fronteira”, prossegue Sandra Fernandes.

Ucrânia e Geórgia, os seguintes

Na fila para aderirem à NATO estão, desde 2008, dois países da “vizinhança próxima” da Rússia: Ucrânia e Geórgia. “Em 2008 houve uma grande campanha diplomática dos Estados Unidos. O Presidente George W. Bush queria deixar como legado a abertura da NATO a esses dois países. França e Alemanha foram mais cautelosas, perceberam que se tratava de uma linha vermelha para a Rússia. Então, foi oferecida a esses dois países uma perspetiva de adesão sem data.”

Precisamente em 2008, Moscovo utilizou a força armada em solo europeu pela primeira vez desde o fim da URSS, para pôr na ordem o Governo da Geórgia, liderado pelo recém-eleito Mikhail Saakashvili (pró-Ocidente e pró-NATO). Na sequência de cinco dias de guerra, Moscovo acabaria por reconhecer as regiões georgianas da Abecásia e da Ossétia do Sul como estados independentes. O que se passa em torno da Ucrânia — liderada desde 2019 por Volodymyr Zelensky, antigo comediante pró-ocidental — é um novo capítulo de um conflito iniciado em 2014, que culminou na anexação da península da Crimeia pela Rússia, e que se insere na mesma estratégia de contenção.

Quarta-feira passada, em Kiev, durante uma visita “de solidariedade” à Ucrânia, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, acusou a
Rússia de planear aumentar as suas tropas junto às fronteiras da Ucrânia. Na véspera, Moscovo projetou um exercício militar com a Bielorrússia — também contígua à Ucrânia e liderada por Aleksandr Lukashenko, amigo de Putin —, que terá como cenário um hipotético ataque externo. Os receios de nova invasão russa da Ucrânia já levaram a Suécia a reforçar o seu dispositivo militar na ilha de Gotland, no Mar Báltico.

Um ataque cibernético contra sites do Governo ucraniano, sexta-feira passada, foi interpretado como manobra de desestabilização visando a escalada do conflito. Desde o início do ano que missões diplomáticas russas na Ucrânia têm vindo a retirar pessoal, sem que se perceba se é bluff ou preparativo para a guerra. Tudo acontece duas semanas após a Rússia ter enviado tropas para o Cazaquistão — com quem partilha quase 7000 quilómetros de fronteira —, em socorro do Governo acossado por manifestações de rua, que o Presidente cazaque Kasym-Zhomart Tokayev diz serem orquestradas por “forças externas”. “Não permitiremos a ocorrência das chamadas ‘revoluções coloridas’”, garantiu Vladimir Putin, justificando a ajuda militar.

Traumas não muito longínquos

Na mente do chefe de Estado russo estão revoltas populares que resultaram na substituição de governos pró-Moscovo por lideranças pró-ocidentais: a “revolução rosa” (Geórgia, 2003); a “revolução laranja” (Ucrânia, 2004); e a “revolução da tulipa” (Quirguistão, 2005). Ao conter nova “revolução colorida”, a Rússia expõe uma estratégia para a região. “As tropas russas foram enviadas para o Cazaquistão através da Organização do Tratado de Segurança Coletiva [fundada em 1992 pela Rússia, Cazaquistão, Uzbequistão, Arménia, Quirguistão e Tajiquistão]. Em 2015, a Rússia criou a União Económica Euroasiática [com Cazaquistão, Bielorrússia e Arménia]. Tentou arrastar a Ucrânia, mas não conseguiu”, recorda Sandra Fernandes. Mais do que tentar recuperar a ex-URSS, “a Rússia tenta articular projetos alternativos à NATO e à UE”.

Mais de 30 anos após o fim da Guerra Fria, Washington e aliados continuam a ser o grande inimigo. Neste contexto, para Moscovo, falar-se de NATO ou UE é a mesma coisa. “Não era, mas passou a ser. A UE era uma oportunidade sobretudo de cooperação económica”, diz a investigadora do CICP. “Quando continuou com os alargamentos a leste, paralelos aos da NATO, a Rússia passou a vê-la como um ator geopolítico às suas portas que não serve os seus interesses.”

Há cerca de meio ano, a Rússia atualizou a sua Estratégia de Segurança Nacional. A nova doutrina revela “um país que se sente ameaçado e se vira para dentro, à procura de soluções. Um país que não vê os interesses servidos numa relação com o Ocidente e que está a isolar-se muito.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 22 de janeiro de 2022. Pode ser consultado aqui

O início de uma nova era

Moscovo quer recuperar a influência perdida no seu
‘estrangeiro próximo’. As dinâmicas separatistas agravam-se

ILUSTRAÇÃO LEFTEAST

Qualquer que seja o desfecho para esta crise no Cáucaso, outras se seguirão. “Abriu-se um ciclo de instabilidade e vamos ter de lidar ao longo da próxima década com uma sucessão de outras crises. Criou-se uma dinâmica de confronto que substituiu a de cooperação que se tinha desenvolvido com a Rússia depois do fim da Guerra Fria”, disse ao Expresso o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado (ler entrevista).

Desde que o Presidente russo, Dmitri Medvedev, assinou, na terça-feira, os decretos que reconhecem as independências das repúblicas georgianas da Ossétia do Sul e da Abkházia que o velho continente voltou a ser cenário de fronteiras tensas e vigiadas. Em nome da presidência francesa da União Europeia (UE), Bernard Kouchner adiantou, na quinta-feira, que “estão a ser ponderadas sanções” contra a Rússia.

Na segunda-feira reunirá, em Bruxelas, um Conselho Europeu extraordinário com as relações UE-Rússia como ponto único da agenda. Medvedev já marcou posição: “Se a Europa quiser uma degradação das relações, vai tê-la naturalmente. Mas se quiser salvaguardar as relações estratégicas, o que é totalmente do interesse da Rússia e da Europa, tudo vai correr bem”.

Na quinta-feira, o primeiro-ministro Vladimir Putin ignorou a postura de Estado e disparou contra os Estados Unidos, acusando-os de terem provocado o conflito na Geórgia para “beneficiar um candidato” à Casa Branca. A teoria flui nos corredores do Kremlin, atento, nos últimos meses, às tiradas hostis à Rússia do republicano John McCain. Chegou a apelar à sua expulsão do G8.

O mal-estar russo

Paralelamente à teoria da conspiração russa, várias outras razões confluem para este ‘despertar’ da retaliação russa. Desde logo, o acordo de instalação de um sistema antimíssil norte-americano
na Polónia e na República Checa, que constitui um elemento dissuasor de qualquer tentativa militar russa no seu “estrangeiro próximo” a antiga área de influência da ex-União Soviética.

O Presidente russo prometeu uma resposta militar à ‘ousadia’ norte-americana, o que parece estar já em curso. Na quinta-feira, o Ministério russo da Defesa confirmou o êxito dos testes de um míssil balístico intercontinental (RS 12 Topol) “capaz de superar as tecnologias de defesa” antimíssil inimigas. EUA e Rússia estão em marcação cerrada e atentos às movimentações recíprocas. Esta semana ainda, o Estado-Maior-General das Forças Armadas russas questionou o recente aumento da actividade da NATO no Mar Negro, com dez navios de guerra ali estacionados e outros oito a caminho.

A penetração da NATO no território da antiga URSS, com a adesão dos três países bálticos, em 2004, levou a Rússia a bater no fundo. “A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais: impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nos dois países, aberta com as ‘revoluções coloridas’”, disse ao Expresso Carlos Gaspar, director do Instituto Português de Relações Internacionais.

Desde 1991, a Rússia tem usado as tensões separatistas para exercer pressão ao largo das suas fronteiras. Tradicional aliada da Sérvia, a Rússia nunca poderia ficar indiferente à autoproclamada independência do Kosovo, festejada nas ruas de Pristina com muitas bandeiras americanas… “Ao reconhecermos a independência da Ossétia do Sul e da Abkházia fizemos o que outros fizeram com o Kosovo”, disse Medvedev.

A dinâmica secessionista nos países limítrofes à Rússia está lançada. Ao Expresso, o general Loureiro dos Santos defende que os russos estão apostados em “intimidar” — mais por via diplomática que militar, embora esta última hipótese siga em aberto. De resto, à Rússia não faltam trunfos para ‘bater o pé’ na cena internacional: é essencial à aprovação de sanções ao Irão no Conselho de Segurança da ONU; os EUA dependem do corredor russo para abastecimento das suas tropas no Afeganistão; e dispõe dos recursos energéticos de que o Ocidente depende.

Artigo escrito com Cristina Peres.

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de agosto de 2008

ENTREVISTA INTEGRAL A CARLOS GASPAR

Director do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI)

Não estamos perante uma nova Guerra Fria, mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia

Qual é a estratégia da Rússia?
A estratégia da Rússia tem dois objectivos principais — impedir a entrada da Geórgia e da Ucrânia na Aliança Atlântica e inverter a tendência de liberalização nesses dois países, aberta pelas “revoluções coloridas”.

A breve prazo, a Rússia poderá incentivar outras independências ao longo da sua fronteira?
Desde 1991 que as tensões separatistas são usadas pela Rússia para manter uma pressão no seu “estrangeiro próximo”, designadamente na marca europeia (Transnístria) e na marca caucasiana (Abcásia, Ossetia do Sul).

Como poderão reagir os Estados Unidos e a União Europeia?
As respostas dos Estados Unidos e da União Europeia são diferentes. A administração republicana não mostrou a menor vontade de intervir no conflito e limitou-se a secundar as “démarches” europeias e a apoiar a Geórgia, sem deixar, por isso, de criticar o seu comportamento. A União Europeia quis apresentar-se como mediador, para parar as acções militares, ao mesmo tempo que parece disposta a iniciar conversações sobre o estatuto futuro da Ossétia do Sul e da Abcásia, embora não seja evidente a sua capacidade para moderar a estratégia russa.

Qual a importância do processo de independência do Kosovo neste “despertar” russo?
O precedente do Kosovo é um pretexto. As autoridades russas tinham anunciado que usariam o precedente nos casos da Ossétia do Sul e da Abcásia. Mas as afinidades são aparentes… Não existem resoluções do Conselho de Segurança a condenar as autoridades georgianas por perseguirem as suas minorias; não estavam em curso conversações com as mesmas autoridades para salvaguardar os direitos dos ossetas na Geórgia; nem há uma história recente de repressão georgiana das suas minorias.

Estamos perante uma Nova Guerra Fria?
Não estamos perante uma nova Guerra Fria. Mas a crise georgiana é um bom momento para os europeus tirarem conclusões sobre a evolução da Rússia, depois de ter falhado a sua transição para a democracia. Por um lado, é preciso impedir a repetição do síndroma de Weimar — a ressurgência da Rússia como uma grande potência dominada pelo ressentimento da sua derrota na Guerra Fria e pela decomposição do seu império e determinada a demonstrar o seu poder pelo recurso à força. Por outro lado, é preciso evitar qualquer ambiguidade que possa convencer as autoridades russas que o seu comportamento intimida as democracias ocidentais. A intervenção russa na Geórgia deve ter um preço: os Estados Unidos, a Alemanha e a União Europeia deixaram de poder ter confiança nas autoridades russas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de agosto de 2008. Pode ser consultado aqui