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Os sarauís esgotaram a paciência e regressaram às armas. “Marrocos quer uma guerra de desgaste moral do nosso povo”

Um conflito que estava em ponto morto há quase 30 anos acaba de se reacender. Em entrevista ao Expresso, o delegado da Frente Polisário em Portugal justifica o que levou os sarauís a romperem o cessar-fogo com Marrocos e a voltarem a pegar em armas. Mohamed Fadel explica também porque se sente traído por António Guterres

SOUTH WORLD

A avalancha de notícias sobre a pandemia de covid-19 e ainda sobre as eleições nos Estados Unidos quase deixou passar despercebido o reacendimento de um velho conflito que cumpria uma trégua há quase 30 anos — a disputa do território do Sara Ocidental entre Marrocos e a Frente Polisário, o movimento de independência reconhecido pela comunidade internacional como legítimo representante do povo sarauí.

“Marrocos tem o seu exército destacado ao longo de todo o muro de 2700 quilómetros” que separa o Sara administrado por Marrocos e o território controlado pela Frente Polisário. “Onde quer que haja concentração de tropas marroquinas, essas áreas estão a ser atacadas dia e noite”, garante ao Expresso Mohamed Fadel, delegado da Frente Polisário em Portugal.

A gota que fez transbordar a paciência sarauí pingou faz esta sexta-feira uma semana. Militares marroquinos entraram na zona desmilitarizada de Guerguerat — junto à fronteira com a Mauritânia, na ponta sudoeste do Sara Ocidental — para expulsar dezenas de civis sarauís que bloqueavam uma estrada importante desde 21 de outubro, impedindo que o trânsito que saía de Marrocos seguisse para sul.

Para Marrocos, a rota por Guerguerat representa a principal ligação por terra com o resto do continente africano. Para a Frente Polisário, trata-se de uma passagem ilegal. “Quando foi assinado o acordo de paz, e se instaurou no território a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental (MINURSO), só havia quatro brechas abertas ao longo do muro, para que o pessoal da ONU pudesse deslocar-se no interior do território, para os dois lados”, explica Mohamed Fadel. “A brecha de Guerguerat foi aberta arbitrariamente por Marrocos.”

A Frente Polisário considerou a incursão militar marroquina na zona tampão uma violação unilateral do acordo de paz e, faz amanhã uma semana, decretou o fim da trégua. “A paciência dos sarauís tem os seus limites. A abertura da brecha e a expulsão dos civis deu-nos a oportunidade de reiniciarmos as hostilidades. Os nossos estão dispostos a continuar com elas indefinidamente até que Marrocos respeite a legalidade internacional no conflito do Sara Ocidental.”

A soberania marroquina sobre o Sara Ocupado não é reconhecida pelas Nações Unidas, nem por Estados Unidos e União Europeia, apesar de, no caso desta última, isso não ser obstáculo ao aprofundamento de uma parceria económica com Marrocos, por vezes com contornos embaraçosos para os europeus.

O mesmo acontece com a União Africana, onde se dá a insólita situação de ocupante e ocupado — Marrocos e República Árabe Sarauí Democrática (RASD), o Estado que os sarauís decretaram em 1975 e que reivindica a soberania sobre o antigo Sara Espanhol — serem membros da organização ao mesmo nível.

Hoje, dezenas de países reconhecem a RASD, mas nenhum deles é europeu. “Apesar da alardeada unidade, a União Europeia tem uma política externa absolutamente díspar. Infelizmente, é notória a influência da França em toda a agenda europeia.”

A centralidade do referendo

Segundo o representante da Polisário, uma única condição pode levar os sarauís a depor novamente as armas: a realização do prometido referendo à sua autodeterminação. “Não haverá cessar-fogo até a comunidade internacional se comprometer com a realização do referendo, numa data definida”, diz Mohamed Fadel.

Sem recenseamento feito, estima-se que o número de sarauís ande à volta de meio milhão de pessoas, repartidas entre o Sara administrado por Marrocos, os campos de refugiados de Tindouf (na Argélia) e a diáspora.

Instituída pela Resolução 690 do Conselho de Segurança, de 29 de abril de 1991, a MINURSO foi criada para supervisionar o cessar-fogo e, como o seu próprio nome indica, realizar um referendo de autodeterminação, que chegou a estar planeado para fevereiro de 1992.

Quase 30 anos depois, e 15 representantes especiais nomeados pelo secretário-geral da ONU desde 1988, “as Nações Unidas não estão a fazer o seu trabalho”, avalia o responsável sarauí. “Existem claras intenções de desvio em relação ao acordo de paz inicial. Gradualmente, estão a procurar uma maneira de subtrair dos seus textos a referência ao referendo. Isso é percetível em especial nas últimas resoluções do Conselho de Segurança”, acusa Mohamed Fadel.

MINURSO finge que não vê

“E temos provas suficientes de que a MINURSO tem servido de instrumento de Marrocos para ocultar as violações dos direitos humanos que ocorrem todos os dias diante do nariz dos funcionários da ONU. Assistem diariamente à violação sistemática dos direitos de mulheres, que são espancadas nas ruas, e a ataques a casas de pessoas suspeitas de simpatizarem com a causa sarauí.”

Mas até hoje, “a MINURSO nunca deu informações sobre estas situações”, nem sobre “a exploração dos recursos do território que saem em camiões que passam pela brecha ilegal de Guerguerat para toda a África. Está confirmado com provas evidentes que a maioria desses camiões, para além de vegetais, vão carregados de droga.”

Por ser o principal rosto da organização, mas também pelo seu currículo em defesa dos direitos humanos, António Guterres é especialmente visado pelas críticas de Mohamed Fadel. “Sinto-me totalmente traído. Ele foi Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, conhece este dossiê muito bem.” Em 2009, nessa qualidade, Guterres visitou os campos de refugiados sarauís, em Tindouf (Argélia), onde vivem cerca de 190 mil pessoas.

“Mantivemos a esperança um pouco ingénua de que António Guterres, como tinha defendido o referendo em Timor-Leste [em 1999, era ele primeiro-ministro de Portugal], seguisse a mesma linha em relação ao conflito do Sara Ocidental.”

Autonomia em vez de autodeterminação

Da perspetiva sarauí, o português não correspondeu. “Prestou-se a servir a política que Marrocos quer para o território, de imposição dos factos consumados. As últimas resoluções do Conselho de Segurança da ONU fazem uma referência muito discreta à autodeterminação e dão prioridade à proposta marroquina de autonomia, como uma proposta real, pragmática e viável.”

O último relatório do secretário-geral da ONU classifica a situação no Sara ocupado como “calma”, expressão que se repetiu no texto da resolução do Conselho de Segurança de 30 de outubro passado, com a qual foi renovado por um ano o mandato da MINURSO. Os sarauís criticam também que a ONU continue a não estar mandatada para proteger os direitos humanos e que não haja qualquer referência à brecha ilegal de Guerguerat.

Após a escalada dos acontecimentos junto à brecha de Guerguerat, o secretário-geral da ONU falou ao telefone com o rei de Marrocos, Mohamed VI. Segundo um comunicado divulgado pela casa real, “durante a conversa, Sua Majestade o Rei sublinhou que depois do fracasso de todas as louváveis tentativas por parte do secretário-geral, o Reino de Marrocos assumiu as suas responsabilidades no âmbito do seu mais legítimo direito, tanto mais que esta não é a primeira vez que as milícias ‘polisário’ se envolvem em ações inaceitáveis”.

Segundo o comunicado, Marrocos resolveu a situação, restabeleceu o tráfego automóvel e enfatiza “o firme compromisso com o cessar-fogo. Da mesma forma, o Reino continua firmemente determinado a reagir, com a maior severidade e no âmbito da legítima defesa, a qualquer ameaça à sua segurança e à paz dos seus cidadãos”.

Guerra em tempo de pandemia

Com o mundo tomado pela pandemia, o regresso dos sarauís às hostilidades corre o risco de não colher a compreensão e apoio por parte de quem pouco ou nada conhece do assunto. “É uma realidade que o mundo inteiro está imerso na luta contra a pandemia. Mas também é uma realidade que Marrocos e as Nações Unidas se têm servido de múltiplos pretextos para atrasar indefinidamente a resolução do conflito”, conclui Mohamed Fadel.

“Nós respeitamos estritamente o cessar-fogo até 13 de novembro, e a principal causa [para o seu fim] foi Marrocos violar mais uma vez o cessar-fogo sem que a ONU se pronuncie. A estratégia de Marrocos, lamentavelmente com a cumplicidade das Nações Unidas, é fazer com que o tempo passe e que haja uma guerra de desgaste moral dos sarauís.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 20 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

“A UE está a tentar ganhar tempo. E entretanto saca milhões e milhões de euros dos recursos dos sarauís”

A questão do Sara Ocidental é, para a União Europeia, um embaraço. Enquanto as instituições políticas se empenham em aprofundar a parceria económica com Marrocos, o Tribunal de Justiça da UE diz que os acordos entre Bruxelas e Rabat, se aplicados ao território ocupado do Sara Ocidental, são ilegais. Este artigo dá voz aos 21 eurodeputados portugueses (prestes a terminar mandato) que tiveram de deliberar sobre o assunto

THE LEFT IN THE EUROPEAN PARLIAMENT

Estão quase nos antípodas um do outro, não só em termos geográficos mas políticos também. Em determinado período da História, Timor-Leste e o Sara Ocidental trilharam juntos um caminho sinuoso. “Recuemos até à década de 1970”, propõe ao Expresso Pedro Pinto Leite, da Plataforma Internacional de Juristas por Timor-Leste. “Os dois países ibéricos têm duas colónias que, num momento em que poderiam ascender à independência, são ocupadas por países vizinhos: Timor pela Indonésia, o Sara por Marrocos. Esses ocupantes vivem sob ditaduras: Suharto na Indonésia, Hassan II em Marrocos. Ambos recebem ‘luz verde’ para as invasões do mesmo homem: Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA. As invasões têm lugar com um mês de diferença: a do Sara em novembro de 1975, a de Timor um mês depois.”

Durante anos, Timor e Sara constaram da lista das Nações Unidas de territórios não autónomos, à espera de exercerem o direito à autodeterminação. Timor-Leste teve essa oportunidade em 1999 quando, numa consulta à população, vingou a opção pela independência. O Sara Ocidental aguarda ainda esse encontro com a História.

“Marrocos não tem legitimidade para representar o povo sarauí. A União Europeia (UE) não pode pactuar com Marrocos sobre interesses do povo do Sara”, acusa a eurodeputada Ana Gomes, a única socialista portuguesa que, a 12 de fevereiro, votou contra uma alteração ao Acordo de Pesca entre a UE e Marrocos que abriu as águas do Sara Ocidental à frota de pesca europeia.

Segundo a Comissão das Pescas do Parlamento Europeu, mais de 90% da captura feita pelos barcos de pesca europeus acontecem ao largo dos 1110 km de costa atlântica pertencentes ao Sara. “O direito de autodeterminação do povo do Sara Ocidental não é negociável a troco de vantagens político-económicas”, diz Ana Gomes. “Apoio que Marrocos beneficie de uma parceria privilegiada com a UE, mas não à custa dos direitos do povo sarauí.”

Essa alteração votada no Parlamento Europeu foi aprovada por 415 votos a favor, 189 contra e 49 abstenções. Entre os 21 eurodeputados portuguesas, apenas cinco votaram contra. Para Ana Gomes, “Portugal contradiz assim tudo o que defendeu quando se bateu pela autodeterminação do povo de Timor-Leste, levando a Austrália ao Tribunal Internacional de Justiça por pactuar com a potência ocupante relativamente a um acordo sobre o petróleo”.

“No caso de Portugal contra a Austrália”, acrescenta Pedro Pinto Leite, “os australianos defenderam-se com todos os tratados que Portugal tinha celebrado, como parte da UE, com Marrocos. Diziam eles que os portugueses atacavam a Austrália por beneficiar do petróleo no mar que pertence a Timor e, ao mesmo tempo, pescavam no mar que pertence ao Sara Ocidental. Portugal intentou uma ação contra a Austrália sem qualquer autoridade moral.”

A alteração ao Acordo de Pesca UE-Marrocos procurou dar cumprimento a objeções levantadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Num acórdão de 27 de fevereiro de 2018, considerou que as águas adjacentes ao Sara Ocidental não devem ser consideradas zona de pesca marroquina já que, pelo direito internacional, Marrocos não tem soberania sobre o território.

O Expresso contactou os 21 eurodeputados portugueses no sentido de apurar que peso teve a questão do Sara no seu voto. Não responderam Nuno Melo (CDS), Fernando Ruas (PSD), Liliana Rodrigues, Maria João Rodrigues, Manuel dos Santos e Francisco Assis (PS). Cláudia Monteiro de Aguiar (PSD) esteve ausente da votação.

“Votei a favor porque esse acordo é altamente benéfico para Portugal, sobretudo para os pescadores”, diz António Marinho e Pinto (ex-MPT, depois Independente). “Eu represento o povo português, não os interesses da Frente Polisário”, a organização que luta, desde 1973, pela autodeterminação do povo sarauí.

A importância económica para Portugal do acordado foi invocada pelos deputados que votaram favoravelmente. Garantem, porém, que a questão do Sara não foi ignorada. “Tal como expresso no relatório aprovado, ‘o presente acordo não implica qualquer forma de reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental’, traduzindo-se, isso sim, num conjunto de benefícios à população local”, diz Sofia Ribeiro (PSD).

No mesmo sentido, Pedro Silva Pereira (PSD) defende que o Acordo “não implica qualquer reconhecimento da soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental, antes pelo contrário”. “A União não está a antecipar o resultado do processo político sobre o estatuto definitivo do Sara Ocidental que tem lugar sob a égide da ONU”, acrescenta José Manuel Fernandes (PSD).

Não foi essa, porém, a interpretação do Governo marroquino para quem o Acordo “confirma que o reino de Marrocos é o único legalmente autorizado, no âmbito do exercício da sua soberania, a negociar e assinar acordos que incluam o Sara marroquino”, como Rabat designa o Sara Ocidental.

Ao lado de Ana Gomes, votaram também contra os parlamentares do PCP e do Bloco de Esquerda. “O meu voto contra prende-se com a defesa do direito internacional. A UE tem obrigação de deixar as águas do Sara Ocidental fora do acordo”, diz Marisa Matias (BE).

Para aceitar a aplicação do Acordo de Pesca ao Sara, o TJUE estipulou duas condições. A primeira, que houvesse uma menção explícita às águas adjacentes ao território, o que aconteceu no texto aprovado no Parlamento Europeu. “Na medida em que o Reino de Marrocos foi forçado a reconhecer no texto que a UE não confunde o território de Marrocos com o Sara Ocidental, este Acordo deve até ser visto como um passo importante a favor da causa da autodeterminação do povo do Sara”, defende Ricardo Serrão Santos (PS).

A segunda exigência do Tribunal foi a obtenção do “consentimento” por parte da povo do Sara Ocidental, que a Comissão Europeia tomou em mãos promovendo um “processo de consulta” muito polémico. “A consulta em Bruxelas e em Rabat. A Comissão Europeia não viajou até ao Sara Ocidental”, denuncia ao Expresso a espanhola Elvira Toledo, conselheira do grupo da Esquerda Unitária / Esquerda Nórdica Verde no Parlamento Europeu. “A consulta é uma figura que não existe para o Tribunal. A Comissão inventou esse procedimento para tentar dar cumprimento à sentença mas é um procedimento falso.”

No relatório que produziu após a “consulta”, a Comissão diz ter ouvido o Governo de Marrocos, organizações políticas, socioeconómicas ou da sociedade civil “suscetíveis de representar os interesses locais ou regionais do Sara Ocidental” e a Frente Polisário, que é para a ONU o legítimo representante do povo sarauí e a quem o TJUE reconhece capacidade jurídica para atuar em seu nome.

“Na lista de associações elaborada pela Comissão são nomeadas algumas com quem a Comissão nunca se reuniu. E é dito que a maioria disse que sim, mas não se diz quantas”, acusa Elvira Toledo. “A maioria das associações são de colonos [marroquinos] e também há sarauís que vivem no território ocupado e que trabalham para Marrocos.”

Num artigo que assinou no sítio EU Observer, a eurodeputada finlandesa Heidi Hautala (Verdes), que integrou uma delegação do Parlamento Europeu que visitou o Sara Ocidental em setembro de 2018, afirma que das 112 partes que a Comissão diz ter ouvido 94 ou rejeitaram participar no processo ou nunca foram convidadas. E que “a esmagadora maioria das partes interessadas consultadas era composta por marroquinos ou representantes locais com interesse direto em preservar o ‘status quo’”.

A 6 de fevereiro de 2019, uma carta enviada ao Parlamento Europeu assinada por 98 ONG sarauís oriundas do território ocupado, dos campos de refugiados de Tinduf (Argélia) e da diáspora denunciou “consultas falsas” e apelou ao voto contra para que “a UE salve a imagem de uma instituição internacional que tem sido sempre apresentada como um ‘negociador global’ na defesa da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito”.

Um simulacro de consulta

“O que a Comissão Europeia fez foi um simulacro de consulta à ‘população do Sara Ocidental’, expressão usada de forma não inocente com o objetivo de ocultar a existência de um povo sarauí. Todas as organizações sarauís foram unânimes na condenação do processo”, refere Miguel Viegas (PCP), numa posição que vincula os outros eurodeputados comunistas, João Ferreira e João Pimenta Lopes.

Mas a posição das organizações sarauís pouco eco teve. Inversamente, as diligências da Comissão convenceram os eurodeputados. “A minha posição [favorável] apoiou-se nos pareceres que atestam que foi assegurado o requisito imposto pelo Tribunal de prévio consentimento da população do Sara Ocidental, o que foi feito através da consulta dos representantes eleitos da população nas estruturas políticas locais, bem como através da audição das diversas organizações representativas da sociedade civil”, diz Carlos Zorrinho (PS).

“Compreende-se a dificuldade de identificar interlocutores locais no Sara Ocidental, considerando as circunstâncias difíceis e a instabilidade da região a vários níveis, mas muitos dos agentes locais, em consultas realizadas, reconheceram o impacto positivo desta parceria no desenvolvimento de atividades económicas locais, relacionadas com o sector das pescas”, corrobora Carlos Coelho (PSD).

“Tanto quanto pudemos apurar junto de especialistas em direito internacional, a versão aprovada respeita a jurisprudência do Tribunal de Justiça. Eis o resultado que sempre quisemos obter: realização do interesse comum de Marrocos e UE, muito relevante para Portugal, com respeito pelas normas internacionais e, em particular, pelas decisões do TJUE”, diz Paulo Rangel (PSD).

Favorável ao reforço da parceria estratégica entre a UE e Marrocos, José Inácio Faria (MPT), absteve-se. “Ao abranger as águas adjacentes aos territórios ocupados do Sara Ocidental sem uma consulta prévia plenamente democrática do povo sarauí, este Acordo não só não reconhece a soberania do povo sarauí sobre os seus próprios recursos naturais, como nem sequer lhe garante uma participação justa na contribuição financeira paga para que as embarcações europeias possam operar nessas águas” — 208 milhões de euros nos próximos quatro anos.

Os críticos da extensão ao Sara Ocidental da parceria económica com Marrocos — iniciada em 2000 com o Acordo de Associação — referem o ‘mau sinal’ que Bruxelas dá a Rabat. “Qual é o incentivo para que Rabat se empenhe de forma genuína nas conversações de paz da ONU quando tem a bênção da UE para continuar a desrespeitar o direito internacional e quando se trata de ganhar com os novos benefícios de um novo acordo comercial com Bruxelas?”, questiona a eurodeputada finlandesa.

A cada novo acordo entre Bruxelas e Rabat que implique o Sara segue uma queixa no TJUE — a Frente Polisário já o fez por quatro vezes. “A UE está a tentar ganhar tempo, dois, três anos, até que haja um novo acórdão do Tribunal que anule o Acordo”, diz Elvira Toledo. “E entretanto, são milhões e milhões de euros que sacam do espólio dos recursos dos sarauís.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui

A luta sarauí

O povo sarauí aguarda pela realização de um referendo à sua autodeterminação há quase 30 anos

O recenseamento do povo sarauí, com vista ao referendo sobre a sua autodeterminação, encontra-se num impasse. Iniciado em 1994, o processo bloqueia sempre que está em causa a qualificação de quem é, e de quem não é, sarauí.

De um lado, está Marrocos, que se apoderou daquela antiga colónia espanhola após a saída do colonizador, em 1976. Do outro, a Frente Popular do Saguia El Hamra e Rio do Ouro (Polisário), criada em 1973 para lutar pela emancipação do então Sara Espanhol.

A «marroquinização» do território — acelerada pela «marcha verde» organizada por Hassan II de Marrocos, em 1975 — levou ao êxodo
de mais de 165 mil pessoas para a Argélia, hoje refugiadas no desértico acampamento de Tinduf.

A proclamação, pela Polisário, da República Árabe Saraui Democrática (RASD), em 1976, e o seu posterior reconhecimento pela Organização de Unidade Africana, extremou o conflito e obrigou à intervenção da comunidade internacional.

Em Abril de 1991, entrou em campo a MINURSO (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental) com o objectivo de fiscalizar o cessar-fogo e organizar um referendo sobre o estatuto final do território. De Março de 1996 a julho de 1997, foi comandada por generais portugueses — primeiro Garcia Leandro, depois Barroso de Moura. O mandato em vigor termina a 28 de Fevereiro de 2001.

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de dezembro de 2000