Arquivo da Categoria: Síria

Um conflito com vários outros dentro

A Síria é hoje um campo de batalha onde países terceiros não se inibem de atacar quando sentem os seus interesses em perigo

O ano 2021 leva pouco mais de dois meses e a Síria já foi bombardeada por dois países. A 28 de fevereiro, Israel disparou rockets sobre o sul de Damasco, num ataque lançado dos Montes Golã contra alvos ligados ao Irão. Dois dias antes, foram os Estados Unidos a alvejar infraestruturas utilizadas por uma milícia apoiada pelo Irão, no leste da Síria. O ataque foi justificado como resposta ao disparo de mísseis contra posições norte-americanas no vizinho Iraque.

Dez anos após o início da guerra na Síria, assinalados a 15 de março, o país está transformado num amplo campo de batalha onde Estados com interesses na região não se inibem de atacar quando sentem os seus objetivos em perigo.

“Nos últimos dez anos, a guerra civil degenerou num conflito por procuração envolvendo várias potências regionais e internacionais, cada qual visando a defesa ou a promoção dos seus interesses neste Estado-chave do Médio Oriente”, diz ao Expresso o historiador Eugene Rogan. “Porém, nenhum dos poderes que intervieram na Síria tem meios para resolver o conflito sozinho ou fornecer o nível de ajuda necessário à reconstrução de um país arruinado. Terão de trabalhar em conjunto se quiserem recuperar a Síria e torná-la um país estável numa região conturbada”, prossegue este professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford.

Interferências externas

Localizada na interseção de três continentes (Europa, Ásia e África), contígua a grandes potências do Médio Oriente (como Turquia, Israel e Iraque) e debaixo do radar de Arábia Saudita e Irão (interessados em estender a sua influência), a Síria reflete hoje uma série de disputas regionais.

Se, há dez anos, o conflito começou com manifestações populares pacíficas contra o regime autocrático de Bashar al-Assad — no espírito do movimento da “Primavera Árabe” que varreu o Médio Oriente —, nos anos que se seguiram espartilhou-se por guerras internas que transformaram a Síria num rendilhado de territórios controlados pelo regime, por fações rebeldes antirregime, pelos peshmergas curdos e por grupos jiadistas, todos apoiados a partir do exterior.

A Rússia é o principal apoio de Bashar al-Assad, que sobreviveu à guerra mas continua sem ganhar a aceitação do seu povo

Muitas contendas continuam por sanar. Da cidade de Ad-Dana, na província de Idlib (noroeste) — último bastião da resistência ao regime, junto à fronteira com a Turquia, onde oficialmente vigora um cessar-fogo acordado por russos e turcos em março de 2020 —, Aaref, sírio de 27 anos, descreve ao Expresso a situação no terreno.

“Idlib está relativamente tranquila. Os bombardeamentos são intermitentes. De vez em quando, aviões militares russos sobrevoam e bombardeiam algumas zonas. A cada dez dias, mais ou menos, as forças do regime lançam projéteis de artilharia sobre cidades e aldeias, em especial em zonas montanhosas. Ao nível da segurança, a situação melhorou um pouco: não há atentados e o ritmo das detenções policiais acalmou bastante.”

Russos e turcos no terreno

Os caças russos de que fala Aaref visam redutos do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh). Esta semana, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos contabilizou mais de 280 operações aéreas russas e 43 jiadistas mortos em menos de 100 horas. Também a Turquia tem tropas no terreno, atentas às movimentações dos separatistas curdos sírios e ao efeito de contágio que possam ter junto dos independentistas curdos turcos.

De aliada da Síria, a Rússia é hoje seu principal apoio e garante da liderança de Bashar al-Assad. O Presidente sobreviveu à guerra, mas continua sem ganhar a aceitação do seu povo. “Dez anos após o início da revolução, as populações anseiam pela queda do regime de Assad e por uma Síria livre de todas as tiranias”, diz Aaref. “A guerra não terminará enquanto este regime não desaparecer e os refugiados não regressarem ao país.”

Mais de 12 milhões de refugiados e deslocados internos traduzem a imensa tragédia humana em que a Síria se tornou

Cerca de 5,6 milhões de refugiados e 6,6 milhões de deslocados internos traduzem a imensa tragédia humana em que a Síria se transformou. Acrescem 390 mil a 595 mil mortos e a fatura da reconstrução de um país reduzido a escombros, orçada em mais de 250 mil milhões de dólares (210 mil milhões de euros).

“A situação está difícil para as populações. Há deslocados por todo o lado, os campos ficam inundados no inverno, no verão a densidade populacional torna a situação dramática e insuportável”, diz Aaref. “A ajuda e a assistência são escassas.”

“É improvável que a Síria fique refém da agenda de um ou de outro país, mas antes da capacidade da comunidade internacional para superar divisões de longa data e trabalhar em conjunto para resolver o conflito e financiar a reconstrução”, conclui Eugene Rogan. “Não é preciso ir além dos atuais esforços internacionais na Líbia para ver a necessidade de cooperação internacional, e as dificuldades que isso acarreta.”

(ILUSTRAÇÃO DEVIANTART)

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de março de 2021. Pode ser consultado aqui

Família de Idlib quebra o jejum do Ramadão junto à sua casa destruída

Na cidade de Ariha, província de Idlib, uma família que viu a sua casa ser arrasada por bombardeamentos regressou ao local para quebrar o jejum do Ramadão. Com esta refeição simbólica quis recordar tempos felizes e mostrar ao mundo o sofrimento que se vive na Síria, nove anos após o início da guerra

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Uma família de oito pessoas regressou ao que resta da sua antiga casa, na cidade síria de Ariha, para partilhar uma refeição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Esta família teve de fugir de casa quando forças do regime sírio, apoiado por bombardeamentos aéreos russos, atacaram Ariha AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
À volta desta mesa estão um casal com quatro filhos, mais a mãe e a irmã do homem AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Ariha é uma cidade da província de Idlib, um dos últimos bastiões da oposição a Bashar al-Assad AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Esta família síria voltou a viver na mesma cidade, num sítio próximo à sua antiga casa AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Afastado o entulho, estende-se colchões para acomodar a família e tornar possível a refeição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Uma presença humana quase impercetível no meio de tanta destruição AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Antigos vizinhos regressam à zona onde moravam para um jantar entre ruínas

Viviam todos na mesma zona de Atareb, na província de Alepo, até os bombardeamentos ordenados por Bashar al-Assad ter reduzido o bairro a cinzas. Dezenas de homens regressaram agora para um jantar simbólico

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Estes homens são antigos vizinhos. Moravam nesta zona da cidade síria de Atareb, na província de Alepo, até ser bombardeada AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
A refeição foi organizada por uma organização local de jovens voluntários AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Membros dos Capacetes Brancos desinfetaram o local antes de ser estendida a toalha AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Enquanto esperam que o sol se ponha, para iniciar o “iftar” (a quebra do jejum do Ramadão), estes homens põem a conversa em dia AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES
Um jantar ao ar livre, rodeado por montes de entulho, na cidade síria de Atareb AAREF WATAD / AFP / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Porque é que a família de Tareq voltou por um dia para jantar nas ruínas da sua casa

Em duas cidades sírias, habitantes regressaram às casas de onde fugiram durante bombardeamentos, e que agora não passam de um amontoado de destroços, para quebrar o jejum do Ramadão. Um fotógrafo local, que registou esses momentos, explica ao Expresso o porquê destas refeições entre escombros

A guerra obrigou a família de Tareq Abu Ziad a fugir de casa, na cidade síria de Ariha. O cessar-fogo que se lhe seguiu possibilitou que regressasse ao que dela resta, ainda que por apenas um dia, para um ato simbólico: cumprir ali um “iftar”, a refeição após o pôr do sol com que os muçulmanos quebram diariamente o jejum do Ramadão.

Acomodados sobre três colchões de espuma, que ali estenderam após afastarem o entulho para abrir uma clareira, estão oito membros de uma mesma família: Tareq Abu Ziad, de 29 anos, a mulher, quatro filhos, a mãe e a irmã.

Ao centro, sobre um tapete, há copos e embalagens com comida que a família trouxe consigo. À volta, por companhia, apenas edifícios tão esventrados quanto o deles e memórias de tempos felizes.

“Esta família quis fazer esta refeição no meio de casas destruídas para mostrar ao mundo o grande sofrimento que se vivem em Idlib, e especialmente em Ariha”, diz ao Expresso Aaref Watad, o fotógrafo sírio que captou as imagens, algumas delas com recurso a um drone. “Eles queriam partilhar a sua história e, como eu sou jornalista, fizeram-me chegar essa vontade através de conhecidos em comum.”

FOTOGALERIA Família de Idlib quebra o jejum do Ramadão junto à sua casa destruída

Alojamento barato no meio dos destroços

Ariha é uma cidade da província de Idlib, no noroeste da Síria. Nove anos após o início da guerra, a região é um dos últimos focos de resistência ao regime de Bashar al-Assad.

Em finais do ano passado, quando Ariha estava nas mãos de grupos rebeldes e jiadistas, uma ofensiva militar desencadeada por tropas leais ao Presidente e apoiada pela Força Aérea russa provocou o êxodo de cerca de um milhão de pessoas, em poucas semanas.

“Ariha foi completamente destruída”, testemunha o fotógrafo, que vive na cidade de Al-Dana, perto da fronteira com a Turquia, na mesma província. “A maioria das casas foram bombardeadas.”

Com o calar das armas, muitos habitantes arriscaram regressar à cidade e procuraram alojamento barato entre as ruínas. Foi o caso desta família, que voltou a Ariha em abril. “Atualmente, a família vive na cidade, num local próximo da antiga casa”, diz Aaref Watad.

“Eles não têm quaisquer planos para reconstruir a casa. É muito caro e eles não têm meios. E além disso, não é clara a situação em Idlib, não sabemos se a guerra vai começar outra vez ou se vai terminar.”

Vizinhos que a guerra separou

Para leste de Idlib, a província de Alepo — igualmente fronteira à Turquia — é outro bastião da oposição ao regime sírio. Nesta região, o fotógrafo registou outra refeição entre ruínas.

Na cidade de Atareb, uma organização de jovens voluntários designada Maan, que opera em situações de emergência, promoveu uma refeição para antigos vizinhos numa rua agora ladeada por prédios esventrados.

Num espaço a céu aberto, foi estendida no solo uma toalha comprida para colocar embalagens com a comida, garrafas de água e iogurtes líquidos. Rodeados por montes de cascalho, dezenas de homens descalçaram-se antes de se sentarem no chão, à volta daquela mesa improvisada.

FOTOGALERIA Antigos vizinhos regressam à zona onde moravam para um jantar entre ruínas

“O objetivo foi reunir antigos moradores daquela rua perto das suas casas em ruínas para tomarem o ‘iftar’ em conjunto. E, ao mesmo tempo, mostrar o nível de destruição em Atareb”, conta o fotógrafo. “Todas estas pessoas continuam a viver no mesmo bairro ou perto. Vivem em casas que não foram danificadas.”

Antes do convívio, membros da Defesa Civil Síria — organização mais conhecida por Capacetes Brancos — desinfetaram o local contra a covid-19. Um novo drama dentro do drama.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

EUA deixam os curdos sozinhos, mais uma vez

Com a saída dos EUA do nordeste sírio, os curdos ficam sem aliados por perto e à mercê da mão castigadora da Turquia

Os apuros de Donald Trump dentro de portas parecem realçar uma certa impaciência do Presidente dos Estados Unidos na hora de lidar com problemas internacionais. Aconteceu no domingo passado, quando Trump anunciou a retirada das tropas norte-americanas em missão no nordeste da Síria. “Desde o primeiro dia em que entrei na política, tornei claro que não queria travar estas guerras intermináveis e sem sentido, em especial as que não beneficiam os EUA”, disse.

Três dias depois, a Turquia começava a bombardear a área desguarnecida pelos norte-americanos. Anunciada pelo Presidente Recep Tayyip Erdogan, a ofensiva “Fonte de Paz”, com fogo aéreo e de artilharia, visa áreas controladas pela milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG).

O jornal turco “Daily Sabah” noticiava, quinta-feira, que a “operação antiterrorista” já tinha “libertado” 11 aldeias nas imediações das cidades de Tal Abyad e Ras al-Ayn. Há mais de 60 mil pessoas em fuga e notícias de pelo menos 277 mortos. A Turquia diz que são “militantes”, os curdos dizem que alguns são civis.

Ressurgimento do Daesh

Nos EUA, a decisão de Trump e o que se lhe seguiu no terreno geraram críticas, até no campo republicano. “Os EUA estão a abandonar os nossos aliados curdos, que combateram o Daesh [autodenominado Estado Islâmico] e ajudaram a proteger a nossa pátria”, acusou a deputada republicana Liz Cheney, filha do ex-vice-presidente Dick Cheney. “A decisão ajuda os adversários da América — Rússia, Irão e Turquia — e abre caminho ao ressurgimento do Daesh.” Trump respondeu que os curdos não ajudaram os EUA durante a invasão… da Normandia, em 1944.

No barril de pólvora que a Síria se tornou após 2011, com a esperança de uma primavera árabe a degenerar num inverno sangrento, as forças curdas foram aliadas fiéis, profissionais e destemidas contra os extremistas. Na língua curda, peshmerga — como se intitulam os combatentes curdos — significa “os que enfrentam a morte”.

Passadeira aos turcos

No jornal israelita “Haaretz”, sexta-feira, Akil Marceau, ex-diretor da representação do governo regional do Curdistão iraquiano em Paris, decretou: “Qualquer esforço internacional que não resulte no estabelecimento de uma zona de exclusão aérea sobre o norte da Síria e a proteção das suas minorias étnicas será uma cortina de fogo, na melhor das hipóteses — e na pior, uma faca nas costas” dos curdos. Em 1992, foi uma solução desse género que protegeu os curdos iraquianos de Saddam Hussein, após a Guerra do Golfo.

Às primeiras notícias da ofensiva turca, Trump comentou ser “má ideia” e acrescentou que Washington “não apoia” o ataque. Sobre o que faria se Erdogan acabar com os curdos, Trump respondeu: “Se a Turquia fizer algo que eu, na minha grande e ímpar sabedoria, considerar fora dos limites, destruirei e obliterarei toda a economia turca (já o fiz!).”

Por muito que Trump o tente iludir, a saída de cena das tropas americanas funcionou como “luz verde” para a investida turca sobre o nordeste da Síria. Ancara justifica a operação com a necessidade de criar uma “zona segura” — uma extensão de 400 quilómetros de comprimento e 30 de largura entre a fronteira e o rio Eufrates — para repatriar milhões de sírios refugiados na Turquia.

“É improvável que uma chamada ‘zona segura’ no nordeste da Síria, como a prevista pela Turquia, satisfaça os critérios internacionais para o regresso de refugiados”, reagiu Federica Mogherini, chefe da diplomacia da UE. Para Bruxelas, “o regresso de refugiados e deslocados internos aos seus locais de origem tem de ser seguro, voluntário e digno, quando as condições o permitirem. Qualquer tentativa de promoção de alterações demográficas é inaceitável. A UE não dará assistência em áreas onde os direitos das populações sejam ignorados”. Adivinha-se pois nova tragédia humana.

Um povo único

Etnicamente não-árabes — como turcos, iranianos, paquistaneses e afegãos —, os curdos são o maior povo sem Estado do mundo. Cerca de 30 milhões de pessoas vivem na intersecção de quatro países do Médio Oriente frequentemente desavindos: Turquia, Síria, Iraque e Irão. E sonham com um Curdistão independente.

Na Turquia, onde os curdos são entre 15% e 20% de uma população de 80 milhões, essa ambição é sentida como ameaça à segurança nacional. Abdullah Ocalan, líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK, ilegalizado e que EUA e UE consideram terrorista), é o inimigo público nº 1. Cumpre prisão perpétua, há 20 anos, na ilha-prisão de Imrali.

Com a retirada dos EUA da região de Rojava — o chamado Curdistão sírio, composto pelos enclaves de Afrin, Kobane e Yazira —, os curdos ficam entregues a si próprios. Não foi a primeira vez que viram um aliado virar-lhes costas. Talvez por isso um velho ditado curdo profetize: “Não temos amigos, apenas as montanhas.”

TRÊS TRAIÇÕES

I GUERRA MUNDIAL — Pelo Tratado de Sèvres (1920), Aliados e Império Otomano contemplam a criação de um Curdistão na atual Turquia. De fora ficam os curdos do Irão, do Iraque (tutelado por britânicos) e da Síria (franceses). Depois o assunto é esquecido

IRAQUE — Os EUA armam os curdos durante o Governo de Abdel Karim Kassem. Após este ser deposto, em 1963, cortam apoio à minoria e ajudam o novo Governo, que investiu contra os curdos

GUERRA DO GOLFO — Em 1991, Bush (pai) apela aos iraquianos que se envolvam na deposição de Saddam Hussein. No norte, os curdos corresponderam. Os EUA não avançam sobre Bagdade e Saddam massacra a minoria

(IMAGEM Bandeira do Curdistão Sírio WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 12 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui