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Quatro zonas de segurança ensaiam a paz

Rússia, Turquia e Irão continuam a ditar as regras das tentativas de paz na Síria. Um novo acordo visando o fim dos combates em quatro áreas controladas pelos rebeldes entrou em vigor este sábado

A paz na Síria vai ser ensaiada em quatro zonas maioritariamente controladas por forças rebeldes. Desde a meia-noite deste sábado, está em vigor um acordo assinado há dois dias por Rússia, Turquia e Irão, em Astana, a capital do Cazaquistão que, nos últimos meses, tem acolhido sucessivas cimeiras entre regime e oposição sírios, visando o fim do conflito que dura há mais de seis anos.

O Governo de Damasco comprometeu-se a parar com os voos da sua força aérea nessas quatro cincunscrições. Esta obrigação não compromete Moscovo já que, segundo a Al-Jazeera, “a Rússia continuará a sobrevoar as áreas mas abster-se-á de efetuar bombardeamentos aéreos. O governo sírio deve permitir a entrada, sem entraves, de ajuda humanitária em áreas controladas pelos rebeldes, e serviços públicos como eletricidade e água serão repostos em áreas onde foram cortados”.

Na prática, este acordo não impede, porém, que as posições do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) e de grupos ligados à Al-Qaeda continuem a ser alvejados.

Os Estados Unidos, que não participam nas conversações de Astana, já fizeram saber, através do Pentágono, que este acordo não prejudicará a campanha militar que têm em curso na Síria contra o Daesh.

https://twitter.com/TheArabSource/status/860775585194270720?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E860775585194270720%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2017-05-06-Quatro-zonas-de-seguranca-ensaiam-a-paz-na-Siria

No mapa, acima, as quatro zonas-laboratório estão assinaladas a cinzento. São elas, de norte para sul:

— Província de Idlib, nordeste de Latakia, oeste de Alepo e norte de Hama, onde vivem mais de um milhão de civis e onde fações ligadas à Al-Qaeda têm uma forte presença.

— Enclaves de Rastan e de Talbiseh, a norte de Homs, onde vivem cerca de 180 mil civis.

— Leste de Ghouta, a norte de Damasco, zona controlada pelos rebeldes do Jaysh al-Islam (Exército do Islão), que está representado em Astana. Foi nesta área, onde vivem cerca de 690 mil civis que, a 21 de agosto de 2013, um ataque com armas químicas atribuído ao regime colocou a Administração Obama à beira de intervir na Síria.

— Dara’a e Quneitra, junto à fronteira com a Jordânia, onde vivem mais de 800 mil pessoas.

O mecanismo, que demorará um mês a ser estabelecido, será supervisionado no terreno por russos, iranianos e turcos, que no teatro de guerra sírio estão em lados opostos da barricada — enquanto Rússia e Irão são sólidos aliados de Bashar al-Assad, já a Turquia apoia fações rebeldes.

Para a oposição ao regime de Damasco, o que mais custa a aceitar é a presença do Irão entre os guardiões da paz na Síria. “Não conseguimos imaginar o Irão a desempenhar um papel na paz”, afirmou Osama Abo Zayd, um porta-voz rebelde presente em Astana. Para ele, o gigante xiita do Médio Oriente tem uma agenda sectária no conflito sírio, apoiando milícias que deslocam populações à força para as substituir por outras leais.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 6 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

Número de mortos do ataque aéreo em Idlib sobe para 58

O hospital onde estavam a ser assistidos sobreviventes do bombardeamento na Síria foi também atingido. Oposição denuncia “ataque químico”

Pelo menos 58 pessoas, incluindo 11 crianças com menos de oito anos, foram mortas, esta terça-feira, durante um ataque aéreo na cidade síria de Khan Sheikhoun, no sul da província de Idlib, controlada pelos rebeldes. Fontes da oposição garantem que foram usados agentes químicos.

Citado pela agência Reuters, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos informou que o ataque provocou situações de “sufoco ou desmaio” e que várias pessoas “espumavam da boca” — sintomas que evidenciam um possível ataque químico.

Segundo a BBC, após o ataque, aviões dispararam contra clínicas onde sobreviventes estavam a ser assistidos. Segundo a Al-Jazeera, já no domingo, “aviões suspeitos de serem russos” alvejaram por três vezes o principal hospital da cidade de Maaret al-Numan, no norte de Idlib, ferindo pelo menos dez pessoas.

A oposição diz que os aviões usados no ataque desta terça-feira eram sírios ou russos. As autoridades de Damasco negam a uso de armas químicas, o que foi desmentido, no passado, por uma investigação da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ) das Nações Unidas, que responsabilizou o regime sírio por ataques em que foi provado o uso de produtos tóxicos.

O principal grupo da oposição, a Coligação Nacional, acusa o Governo do Presidente Bashar al-Assad de ser o responsável pelo ataque a Khan Sheikhoun e apelou às Nações Unidas que investigue o caso de imediato. “Se fracassar em fazê-lo, isso será entendido como uma bênção às ações do regime”, afirmou em comunicado.

O Governo francês já apelou a uma reunião do Conselho de Segurança, onde a Rússia é membro permanente. “Um novo e particularmente sério ataque químico aconteceu esta manhã na província de Idlib”, reagiu o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Marc Ayrault. “Condeno este ato repugnante.” E em face destas “ações tão graves que ameaçam a segurança internacional, apelo a que ninguém fuja às suas responsabilidades”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de abril de 2017. Pode ser consultado aqui

Cimeira em Astana para segurar a trégua

Prevista para a próxima semana, a cimeira de Astana sobre a guerra na Síria poderá possibilitar o primeiro encontro entre a Rússia e os Estados Unidos da era Trump. Em cima da mesa, estarão, apenas e só, aspetos militares do conflito. Grupos rebeldes já confirmaram a sua presença no Cazaquistão

Começa a ganhar forma a cimeira de Astana, a iniciativa diplomática que se segue visando o fim do conflito na Síria. Promovida por Rússia e Turquia — que no terreno estão em lados opostos da barricada (Moscovo apoia Bashar al-Assad e Ancara fações rebeldes) —, a reunião está prevista para a próxima segunda-feira, dia 23, na capital do Cazaquistão.

A Administração Trump, que inicia funções na próxima sexta-feira, foi convidada a estar presente. “Estamos a contar que a nova Administração aceite o convite e se faça representar por peritos a quaisquer níveis que eles entendam ser possível”, afirmou esta terça-feira, em conferência de imprensa, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov. “Será o primeiro contacto oficial durante o qual poderemos iniciar a discussão sobre o reforço da eficácia no combate ao terrorismo na Síria.”

As conversações de Astana irão concentrar-se exclusivamente na dimensão militar do conflito, deixando as questões políticas para um outro processo negocial já agendado, de iniciativa das Nações Unidas, previsto para fevereiro em Genebra (Suíça).

Na segunda-feira, grupos rebeldes confirmaram que estarão presentes em Astana. “Todos irão. Todos concordaram”, afirmou Mohammad Alloush, um dos líderes do Jaish al-Islam (Exército do Islão), uma aliança de grupos islamitas e salafitas. “Astana é um processo que visa acabar com a sangria provocada pelo regime e seus aliados. Queremos acabar com esta sucessão de crimes.”

Osama Abu Zeid, um advogado a trabalhar para os rebeldes, afirmou que estes foram encorajados a participar pelo facto de a ordem de trabalhos concentrar-se “apenas no cessar-fogo”.

Ofensiva sangrenta do Daesh

Apesar das iniciativas diplomáticas em curso, e da trégua oficialmente em vigor desde 30 de dezembro, no terreno a guerra está longe de estar terminada. No sábado, o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) — que não está abrangido pelo cessar-fogo e que continua a ter na cidade síria de Raqqa a sua principal fortaleza — lançou uma ofensiva contra as forças governamentais na província de Deir ez-Zor (leste) — rica em recursos petrolíferos — que os jiadistas controlam parcialmente. Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, o ataque fez 82 mortos.

À semelhança do Daesh, estarão também ausentes de Astana os grupos curdos. A Administração Obama defendeu a participação das Unidades de Proteção Popular (curdas), conhecidas pelas siglas PYD ou YPG, mas o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Mevlüt Çavuşoğlu, considerou essa possibilidade “um disparate”, defendendo: “Se for convidado um grupo terrorista, então também se deve convidar a Al-Nusra e o Daesh”. Ambos são rotulados “grupos terroristas” pelas Nações Unidas.

Para os turcos, as YPG são o braço sírio do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que luta por um Curdistão independente na Turquia e que Ancara considera ser um grupo terrorista.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 17 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui

Um grito em nome de Alepo

Esteve quase quatro anos em missão na Síria e foi testemunha de uma “convivência única” entre populações muçulmanas e cristãs. Hoje, a irmã argentina Maria de Guadalupe sente que é seu dever partilhar a sua experiência para alertar, sobretudo, para a situação em Alepo. Falámos com ela, aprendemos com ela, sofremos com ela

Na era da comunicação global e das grandes conquistas tecnológicas, nem sempre a verdade está à distância de um clique. E o conflito na Síria é um exemplo disso. “Estamos na era da comunicação, mas é lamentável que não se saiba a verdade sobre o que se passa em Alepo.

O que se vende no Ocidente é uma mentira, baseada em muita desinformação e ignorância”, acusa a irmã Maria de Guadalupe, de 43 anos, em entrevista ao Expresso. E concretiza: “A perseguição aos cristãos é desconhecida do resto do mundo”.

Missionária da Família Religiosa do Verbo Encarnado, congregação sediada em Buenos Aires — cidade onde nasceu o Papa Francisco —, Guadalupe esteve quase quatro anos em missão em Alepo, a segunda maior cidade síria e que hoje se encontra praticamente dizimada pela guerra. “Em termos humanos, Alepo foi a pior situação que alguma vez presenciei. Mas foi também, sem dúvida alguma, a minha melhor missão. Se voltasse atrás no tempo, pediria para ir para a Síria.”

Em Alepo, antes da guerra rebentar, a irmã testemunhou uma convivência entre muçulmanos e cristãos como nunca antes vira na região. “Nunca vi nada igual em 15 anos de missões no Médio Oriente.” A Síria era um país excecional, tinha um Estado laico e “Alepo era uma cidade desenvolvida, muito próspera, com um excelente nível académico — era uma cidade empresarial”, que rivalizava com Damasco, a capital. Pessoas de diferentes religiões eram colegas de trabalho e amigos.

Dirigindo um coro infantil na Catedral do Menino Jesus, no bairro de Shahba, onde vivem e trabalham os missionários da congregação da irmã Guadalupe FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Maria de Guadalupe chegou a Alepo em inícios de 2011, quando as manifestações populares da Primavera Árabe ainda não tinham saído às ruas da Síria e ninguém antevia a guerra sangrenta que se seguiria. Antes, tinha estado dois anos na cidade palestiniana de Belém (Cisjordânia) e 12 em Alexandria, no Egito.

Durante esse período, deslocou-se a vários países na região (Jordânia, Síria, Iraque e Tunísia) para trabalhar junto das comunidades cristãs locais. Quando lhe foi proposto que escolhesse o seu próximo destino, a missionária escolheu Alepo, pensando que iria poder desfrutar de um período mais calmo do que aquele que vivera no Egito.

“Nunca pensei estar preparada para permanecer num país em guerra, mas eu já lá estava quando a guerra começou. Apercebi-me que tinha de ficar, pois Deus mo pedia. O meu superior sempre disse que temos de ir para onde ninguém queira ir. Esse lugar é Alepo”, cidade que está, desde há anos, a ser disputada pelo exército nacional, forças rebeldes laicas e jihadistas.

Guadalupe vivia na parte ocidental da cidade, controlada pelas tropas do Presidente Bashar al-Assad. “É um erro dizer que a Síria está a sofrer uma guerra civil. O país foi invadido por grupos armados estrangeiros, terroristas, que desde o início perseguem abertamente os cristãos e qualquer outro grupo que não corresponda ao seu fundamentalismo.”

Acusa o Ocidente de defender a liberdade, a democracia e os direitos humanos e, ao mesmo tempo, de financiar o terrorismo em nome de interesses económicos.

Além do trabalho pastoral na catedral, a congregação tem uma residência para estudantes universitárias oriundas de fora de Alepo FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Quando o Daesh se fez anunciar na Síria — estabelecendo em Raqqa a sua capital —, a missionária ainda estava no país. Mas nunca o enfrentou diretamente. “Se tivesse tido algum contacto com o Daesh não estaria cá hoje para contar”, diz, fazendo o gesto de quem corta a garganta. “Não há maneira de conversar com esta gente. O Daesh pratica uma intolerância total para com os cristãos. O sequestro ou a morte são inevitáveis.”

A irmã garante que apesar da devastação e das atrocidades cometidas em Alepo e noutras cidades da Síria, as populações resistem o mais possível a deixar as suas casas ou o país. Fugir é sempre a última opção, “o êxodo é forçado”. É resultado do desespero. Estima-se que, desde março de 2011, cerca de 11 milhões de sírios tenham fugido de casa. Muitos saíram mesmo do país.

Guadalupe saiu da Síria em finais de 2014. Hoje, sente que, de certa forma, a sua missão em Alepo ainda não terminou. Viaja por vários países, dando o seu testemunho para que os cristãos perseguidos, com quem se preocupa em especial, tenham uma voz que os defenda. Uma gota no oceano, mas uma gota necessária.

Chegou a Portugal no passado dia 18, a convite da fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre. Esteve no Porto, no Estoril, em Lisboa e esta quinta-feira à noite dará o seu testemunho em Almada, na Igreja Paroquial de São Tiago, pelas 21h15.

Na quarta-feira, a irmã Guadalupe deu o seu testemunho no Colégio de São Tomás, em Lisboa FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO

Para quem não a irá ouvir, ela apela: “Não podemos ser indiferentes ao que se passa em Alepo. Temos de rezar por eles e pela paz. E temos de cooperar, contribuindo para a paz com o nosso próprio comportamento. Somos seres humanos e vivemos em comunidade. Se eu faço o bem, isso repercute-se na sociedade e contribui para a paz. Se eu vivo em pecado, vício, egoísmo, isso repercute-se na sociedade e contribui para a guerra. O nosso comportamento não é indiferente. Através dele, cooperamos com a guerra ou com a paz.”

(Foto principal: A irmã Maria de Guadalupe esteve em missões no Médio Oriente durante 15 anos FAMÍLIA RELIGIOSA DO VERBO ENCARNADO)

Artigo escrito em conjunto com Flor Lança de Morais e publicado no “Expresso Diário”, a 24 de novembro de 2016 e republicado no Expresso Online, no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui

Jogos de guerra

Rússia e Estados Unidos retomam hoje, em Lausana, o diálogo sobre a Síria. Em cima da mesa está mais uma tentativa de cessar-fogo, num conflito onde os hospitais já se tornaram um alvo e que está refém de interesses geopolíticos

CARLOS LATUFF

A guerra na Síria transformou-se num banho de sangue contínuo sem que, nos corredores da política, se esboce uma solução credível para lhe pôr fim. Acordos de cessar-fogo sucedem-se sem resultados efetivos. O último, no mês passado, terminou com os EUA a anunciar o rompimento das conversações oficiais com a Rússia.

Esta semana, um dos cidadãos russos mais respeitados no Ocidente alertou para as consequências deste “divórcio”. “Penso que o mundo se aproxima perigosamente da zona vermelha. Não quero dar receitas concretas, mas isto tem de acabar”, afirmou Mikhail Gorbatchov, antigo líder da União Soviética. “Temos de retomar o diálogo. Ter-lhe posto fim foi um erro.”

As conversações sobre a Síria são retomadas este sábado, com um encontro previsto para Lausana (Suíça) entre os chefes da diplomacia dos Estados Unidos, Rússia, Turquia, Qatar, Arábia Saudita e Irão. Será um diálogo ao som das bombas, já que a 3500 km de distância, prosseguem os intensos bombardeamentos levados a cabo pelo Governo sírio sobre áreas de Alepo controladas pelos rebeldes — com apoio aéreo russo e terrestre de milícias apoiadas pelo Irão — e que não têm poupado civis nem hospitais.

No xadrez sírio, Estados Unidos e Rússia estão em lados opostos da barricada, arrastando atrás de si aliados com interesses particulares num amplo conflito travado, no terreno, entre forças leais ao Presidente Bashar al-Assad, oposição antigovernamental, forças curdas e milícias jiadistas, com o autodenominado Estado Islâmico (Daesh) à cabeça.

Cinco anos após o início do conflito na Síria, “a grande tragédia deste século”, como lhe chamou António Guterres — confirmado na quinta-feira secretário-geral da ONU 2017/2021 —, está refém de interesses geopolíticos, contraditórios entre si, que tornam a solução para o problema um grande quebra-cabeças.

RÚSSIA

Em defesa do aliado de sempre

O início da intervenção militar russa na Síria, a 30 de setembro de 2015 — em resposta a um pedido de ajuda oficial do Governo de Damasco —, constituiu um “game changer”, com um “peso pesado” da política internacional a tomar parte por um dos contendores. A Rússia é um aliado antigo da Síria, presente militarmente no país desde 1971 — ano em que Damasco arrendou a Moscovo a base naval de Tartus que possibilitou aos russos a sua única saída para águas quentes (Mediterrâneo). Situada numa região conflituosa como é o Médio Oriente — fronteira ao Cáucaso e à Ásia Central, territórios que há menos de 30 anos eram soviéticos —, a Síria garante aos russos um posto de vigia estratégico. A intervenção russa contribuiu para resultados mediáticos, como a reconquista da cidade histórica de Palmira ao Daesh, e desastrosos, como os bombardeamentos a hospitais. Em setembro, Washington acusou Moscovo de “violações flagrantes do direito internacional” na Síria. Guerras de palavras, apenas e só, já que nem EUA nem Rússia arriscam colocar “botas no terreno” para defender civis ou acabar com o conflito.

ESTADOS UNIDOS

Sem iniciativa nem autoridade

Em agosto de 2012, Barack Obama fez saber, alto e bom som, que o uso de armas químicas na Síria corresponderia ao desrespeito de um ultimato. Isso poderia levar à intervenção norte-americana no conflito. Um ano depois, quando foi conhecido o ataque químico em Ghouta, o Presidente dos EUA teve oportunidade de cumprir, mas não o fez. As cedências de Washington culminaram em finais de 2015 quando os EUA deixaram cair a exigência de uma “mudança de regime” em Damasco no quadro de uma solução para o conflito. Neste momento, o “polícia do mundo” está reduzido a um papel de negociador de tréguas e de instrutor e fornecedor de equipamento a forças afetas à oposição, nomeadamente curdas. A 28 de setembro, dias antes do fim do diálogo entre EUA e Rússia sobre a Síria, o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano era a voz da falta de iniciativa e autoridade do país nesta crise: “Grupos extremistas continuarão a explorar os vácuos na Síria para expandir operações, que podem incluir ataques contra interesses russos, talvez contra cidades russas”, disse John Kirby. “A Rússia continuará a mandar soldados para casa dentro de caixões e a perder material de guerra, nomeadamente aviões.”

TURQUIA

Curdos, nem vê-los. Negócios, bem-vindos

A Turquia está em acelerada reaproximação à Rússia, passada a tormenta provocada pelo abate de um caça russo junto à fronteira turca, a 24 de novembro de 2015. Esta segunda-feira, os Presidentes Recep Tayyip Erdogan e Vladimir Putin enterraram definitivamente o machado de guerra, assinando, em Istambul, um acordo relativo à construção de um gasoduto submarino (TurkStream) que tornará a Rússia menos dependente da Ucrânia. No conflito sírio, os dois países estão, porém, em lados opostos: Moscovo apoia Assad e Ancara grupos rebeldes. “Temos uma posição comum de que tudo deve ser feito para fazer chegar ajuda humanitária a Alepo”, disse Putin esta semana. E ficam-se por aí. Em entrevista ao “Komsomolskaya Pravda”, ontem, Bashar al-Assad desejou que a aproximação entre russos e turcos altere a política de Ancara em relação à Síria. Para a Turquia (membro da NATO), o conflito tem dois pilares difíceis de equilibrar: os turcos apoiam os rebeldes, mas não querem ver os curdos (que têm revelado serem as forças armadas mais capazes) ganhar território e aumentar o prestígio. Na Turquia, a minoria curda aspira à independência e Ancara quer evitá-la, custe o que custar.

FRANÇA

Caças nos céus da antiga colónia

Antigo poder colonial na Síria, a França tem sido o país ocidental mais ativo no conflito sírio: numa fase inicial, fornecendo “ajuda não-letal” a forças da oposição a Assad, depois apelando a uma intervenção militar após o massacre de Ghouta (2013) e, mais recentemente, armando grupos rebeldes e bombardeando. Após os atentados de Paris de 13 de novembro de 2015 — que o Presidente François Hollande atribuiu ao Daesh —, a França intensificou os ataques aéreos, ao abrigo do artigo 51º da Carta da ONU (legítima defesa). Há uma semana, no Conselho de Segurança da ONU, França e Espanha apresentaram uma proposta de resolução exigindo o fim dos bombardeamentos e dos voos militares sobre Alepo — a Rússia vetou (pela quinta vez num diploma sobre a Síria). À televisão TF1, Hollande defendeu que quem bombardeia Alepo (ou seja, Assad e Rússia) pratica “crimes de guerra” e deve ser levado ao Tribunal Penal Internacional. Na próxima semana, Putin era esperado em Paris para inaugurar uma catedral ortodoxa e visitar uma exposição de arte russa. “Fiz saber ao sr. Putin que se viesse a Paris, eu não o acompanharia em nenhuma cerimónia, mas que estaria pronto para falar sobre a Síria”, disse Hollande. “Ele decidiu adiar a visita.”

ÁRABES & IRÃO

Xiitas e sunitas complicam a equação

Além dos EUA, Rússia e Turquia, em Lausana estarão Arábia Saudita, Qatar e Irão. Os dois primeiros (árabes sunitas) apoiam rebeldes. O último (persa, xiita) é aliado de Assad, um muçulmano alauíta (xiita), que apoia de forma direta e indireta, através de combatentes do Hezbollah, o movimento xiita libanês. “O Hezbollah, integra as forças lideradas pela Rússia que apertam o cerco a Alepo em apoio de Assad. Pode pensar que com Damasco e Moscovo lhe dão mais liberdade para se armar”, alertou esta semana o diário israelita “Haaretz”. “Nessa circunstância, poderia tentar levar para o Líbano sistemas avançados, alguns de fabrico russo, que Israel disse no passado que não permitiria.” A guerra na Síria tem ainda margem para piorar.

Artigo publicado no Expresso, a 15 de outubro de 2016