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Raptos, tortura e execuções sumárias. Métodos de Assad são copiados por grupos da oposição

Na Síria, em áreas controladas pela oposição a Bashar al-Assad, os civis não estão a salvo de atrocidades. Um novo relatório da Amnistia Internacional denuncia os abusos cometidos por grupos armados afetos à oposição

No conflito da Síria, ninguém cumpre as regras da guerra. Grupos jiadistas e movimentos afetos à oposição levam a cabo formas de abuso semelhantes aos métodos de tortura atribuídos às forças leais ao Presidente Bashar al-Assad, denuncia, esta terça-feira, um relatório da Amnistia Internacional.

“As forças do Governo têm sido responsáveis pela maioria das violações, incluindo crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sujeitando dezenas de milhares [de pessoas] a detenções arbitrárias, tortura e outros maus-tratos e desaparecimentos forçados”, lê-se no documento. “No entanto, os abusos por parte de grupos armados não-estatais têm agravado o sofrimento dos civis. Os grupos armados que se opõem ao Governo sírio praticaram violações graves do direito internacional humanitário, incluindo sequestros, tortura e execuções sumárias.”

O documento — intitulado “A tortura foi o meu castigo” — tem na sua origem entrevistas a 70 pessoas que vivem ou trabalham na província de Idlib e partes de Alepo, áreas controladas por rebeldes, no noroeste da Síria.

Um deles é Ibrahim (nome fictício), que afirma ter sido raptado pelo grupo islamita Jabhat al-Nusra — o braço da Al-Qaeda na Síria —, em 2015. “Eu tinha ouvido e lido sobre as técnicas de tortura das forças de segurança governamentais. Pensei que estaria protegido disso, dado que moro numa área controlada pela oposição. Estava enganado. Fui sujeito às mesmas técnicas de tortura às mãos da Jabhat al-Nusra”, testemunhou.

Segundo o relatório, as formas de tortura atribuídas a grupos da oposição incluem o espancamento com objetos, as posições “shabeh” (a vítima fica suspensa do teto pelos pulsos durante horas) e “dulab”, em que a vítima é enfiada num pneu (a cabeça fica colada aos joelhos) sendo depois espancada.

Ouvir certa música é perigoso

Para além da Jabhat al-Nusra, o relatório enumera mais quatro grupos armados implicados em relatos de atrocidades sobre civis: a Frente al-Shamia, o Movimento Nour al-Dine Zinki e a Divisão 16, em Alepo (membros da coligação Conquista de Alepo), e a Jabhat al-Nusra e o Movimento Islâmico Ahrar al-Sham, em Idlib (que integram a coligação Exército da Conquista).

“Alguns destes grupos, compostos predominantemente por cidadãos sírios, foram controlando áreas cada vez maiores da cidade de Alepo, de Idlib e arredores, entre 2012 e 2015, e permaneceram no poder nessas zonas até hoje com o apoio de Governos como do Qatar, Arábia Saudita, Turquia e Estados Unidos”, lê-se no relatório. “E ao fazerem-no, estabeleceram instituições administrativas e quase judiciais.”

Se, numa fase inicial deste conflito, muitos civis terão sentido alívio quando as suas áreas de residência caíram nas mãos de grupos que combatiam o regime de Damasco, hoje muitos civis vivem num medo constante de serem raptados. Basta serem apanhados a criticar esses grupos ou a não cumprirem as estritas normas sociais por eles impostas.

Imad (nome fictício) relatou à Amnistia Internacional um ataque à Rádio Fresh, uma estação da cidade de Kafranbel, no norte da província de Idlib, a 10 de janeiro passado: “Alguns combatentes da Jabhat al-Nusra invadiram a estação às sete da manhã. Eu vi os carros, tinham o logotipo deles estampado nas portas. Confiscaram e destruíram algum equipamento e começaram a gritar que nós estávamos a passar música inapropriada na rádio. Nós passávamos canções revolucionárias ou então da Fairuz [uma cantora libanesa muito popular em todo o mundo árabe]. Prenderam dois funcionários. Durante dois dias não soubemos deles. Depois foram libertados após ‘confessarem’ terem praticado o mal. Continuamos a passar música mas muito menos do que anteriormente. Estamos mais cautelosos”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de julho de 2016. Pode ser consultado aqui

Uma trégua com graves fragilidades

Entra em vigor no próximo sábado, mas deixa de fora o Daesh e outros grupos jiadistas. A oposição teme que o cessar-fogo negociado por EUA e Rússia beneficie, acima de tudo, Bashar al-Assad

Estados Unidos e Rússia anunciaram uma trégua para a guerra na Síria, prevista para entrar em vigor à meia-noite de sábado, em Damasco (menos duas horas em Lisboa). As partes em confronto têm até ao meio dia de sexta-feira para comunicar a sua adesão ao cessar-fogo.

O plano foi discutido ao telefone por Barack Obama e Vladimir Putin, chefes de Estado dos dois pesos pesados da política internacional, que, neste conflito, estão em lados opostos da barricada: Moscovo é o mais forte aliado de Bashar al-Assad (apoiado também pelos Irão e pelo libanês Hezbollah, ambos xiitas) e Washington está do lado da oposição (tal como Arábia Saudita e Turquia, ambos sunitas).

Anunciada na segunda-feira, através de um comunicado conjunto de Rússia e EUA, a trégua prevê o fim da troca de fogo entre as forças leais ao Presidente Assad e grupos da oposição.

O acordo deixa, porém, de fora grandes protagonistas dos combates — o autodenominado Estado Islâmico (Daesh), a Frente al-Nusra (associada à Al-Qaeda), e outras organizações igualmente rotuladas como terroristas pelo Conselho de Segurança da ONU.

“Para nós, a Al-Nusra é um ponto problemático, porque esse grupo está presente não só em Idlib, como também em Alepo, em Damasco e no sul”, reagiu Khaled Khoja, atual presidente da Coligação Nacional de Forças Revolucionárias e de Oposição da Síria. “O que é crítico aqui é que civis ou o Exército Livre da Síria (rebeldes) possam ser alvejados a pretexto de ser a Al-Nusra o alvo dos bombardeamentos.”

Esta terça-feira, o Governo sírio anunciou que aceita a trégua e que vai coordenar com a Rússia a decisão de quais os grupos ou áreas abrangidos pela “cessação de hostilidades”. Para a oposição ao regime, esta trégua irá dar cobertura a Assad — que desde setembro tem beneficiado com os bombardeamentos da aviação russa — para continuar a investir sobre áreas rebeldes.

“A Rússia e o regime irão visar áreas dos grupos revolucionários a pretexto de ali haver membros da Frente al-Nusra”, acusou Bashar al-Zoubi, responsável político do Exército Yarmouk, uma das fações que integram o Exército Livre da Síria (rebelde). “Nós sabemos como essas áreas são mistas. Se isso acontecer, esta trégua vai colapsar.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de fevereiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Fantasia num filme de terror

Entra em vigor no próximo sábado, mas deixa de fora o Daesh e outros grupos jiadistas. A oposição teme que o cessar-fogo negociado por EUA e Rússia beneficie, acima de tudo, Bashar al-Assad

Estados Unidos e Rússia anunciaram uma trégua para a guerra na Síria, prevista para entrar em vigor à meia-noite de sábado (horário de Damasco, menos duas horas em Lisboa). As partes em confronto têm até ao meio dia de sexta-feira para comunicar a sua adesão ao cessar-fogo.

Esta seria uma boa notícia — sobre um conflito que, em março, dobrará o seu quinto ano de duração, onde já perderam a vida mais de 250 mil pessoas e que se tornou a maior fonte de refugiados da atualidade — não fossem as dúvidas que se acumulam sobre a viabilidade da trégua.

Anunciada na segunda-feira, através de um comunicado conjunto de Rússia e Estados Unidos, que, neste conflito, estão em lados opostos da barricada — Moscovo apoia Bashar al-Assad, juntamente com o Irão e o libanês Hezbollah, ambos xiitas; Washington está do lado da oposição, tal como Arábia Saudita e Turquia, ambos sunitas —, a trégua prevê o fim da troca de fogo entre as forças leais ao Presidente Assad e grupos da oposição.

O acordo deixa, porém, de fora grandes protagonistas dos combates — o autodenominado Estado Islâmico (Daesh), a Frente al-Nusra (associada à Al-Qaeda) e outras organizações igualmente rotuladas como “terroristas” pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

“Para nós, a Al-Nusra é uma questão problemática, porque esse grupo está presente não só em Idlib, como também em Alepo, em Damasco e no sul”, reagiu Khaled Khoja, atual presidente da Coligação Nacional de Forças Revolucionárias e de Oposição da Síria. “O que é crítico aqui é que civis ou o Exército Livre da Síria [rebeldes moderados] possam ser atingidos a pretexto de ser a Al-Nusra o alvo dos bombardeamentos.”

Esta terça-feira, o Governo sírio anunciou que aceita a trégua e que vai coordenar com a Rússia a decisão de quais os grupos ou áreas abrangidos pela “cessação de hostilidades”. Para a oposição ao regime, uma possível paragem nos combates dará cobertura ao ditador Assad para continuar a investir sobre áreas rebeldes.

Se o Presidente tem recuperado algum controlo territorial, muito se deve ao apoio da aviação russa que, desde setembro, tem bombardeado em defesa do regime de Damasco. “O apoio russo e iraniano foi essencial aos avanços do nosso exército”, afirmou Bashar al-Assad, ao jornal espanhol “El País”, numa entrevista publicada no domingo. “Nós precisamos dessa ajuda por uma simples razão: porque mais de 80 países apoiaram os terroristas [como Assad se refere à oposição] de várias formas, alguns diretamente com dinheiro, com apoio logístico, com armamento, com recrutamento [de combatentes].”

Do lado da oposição, Bashar al-Zoubi, responsável político do Exército Yarmouk, uma das fações que integram o Exército Livre da Síria (rebelde), não tem grande confiança nesta trégua. “A Rússia e o regime irão visar áreas dos grupos revolucionários a pretexto de ali haver membros da Frente al-Nusra. Nós sabemos como essas áreas são mistas. Se isso acontecer, esta trégua vai colapsar.”

Esta é a primeira tentativa para trazer uma pausa ao conflito desde que, em 2012, um cessar-fogo mediado pelas Nações Unidas durou escassas horas. Mas olhando para a situação no terreno, e a ausência de qualquer dimensão política, mais parece ser este acordo uma resposta às situações de emergência humanitária do que um contributo sério para tirar os sírios do pesadelo da guerra. Um pesadelo que só Assad parece não ver: esta segunda-feira, ele marcou eleições legislativas para 13 de abril.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 23 de fevereiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Mais de 20 países reunidos em Roma para desenhar estratégia de liquidação do Daesh

Além da cimeira em Itália, há uma outra em curso em Genebra — a Síria faz parte da discussão nos dois cenários. Oposição a Assad, que está na Suíça, já avisou: “Não estamos aqui para negociar, mas para testar as intenções do regime”

Discute-se esta terça-feira em Roma o fim do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh). Em Genebra, arrancaram oficialmente as conversações de paz sobre o conflito na Síria. As duas cimeiras são as faces de uma mesma moeda chamada “guerra na Síria”, que dura há quase cinco anos, já matou mais de 250 mil pessoas e forçou mais de 10 milhões a fugir de casa, e muitas delas do país.

Na capital italiana, 23 países membros da Coligação Global contra o Daesh discutem a estratégia de combate aos jiadistas na Síria e no Iraque e também formas de contrariar a ascensão do grupo extremista na Líbia.

Mais de quatro anos após a execução de Muammar Kadhafi, durante a Primavera Árabe, fações rivais continuam a disputar o poder, tornando o território cada vez mais vulnerável a grupos jiadistas.

Em dezembro, o Daesh declarou a cidade líbia de Sirte, na costa mediterrânica, a sua capital no norte de África.

A coligação anti-Daesh é liderada pelos Estados Unidos, que defendem que o Presidente Bashar al-Assad perdeu toda a legitimidade para continuar a governar o país. Washington admite, porém, que, nesta altura, o principal objetivo é refrear os avanços jiadistas. Em discussão estão, por exemplo, formas de estabilizar cidades como Tikrit, no Iraque, reconquistadas ao Daesh.

Segundo a agência Reuters, o Pentágono (sede do Departamento de Defesa dos EUA) vai pedir, no orçamento para 2017, um reforço de 35% da verba destinada ao combate ao Daesh, que deverá passar a rondar os 7000 milhões de dólares (6400 milhões de euros).

Uma vitória: todos estão a bordo

A reunião de Roma coincide com as conversações de paz sobre o conflito sírio, que arrancaram “oficialmente” na segunda-feira, muito a custo, na sede da ONU em Genebra. O enviado das Nações Unidas Staffan de Mistura reconheceu que as conversações serão “complicadas e difíceis”, mas que o povo sírio merece “ver algo concreto, para além de uma negociação longa e dolorosa”.

“O primeiro objetivo imediato é assegurar que as conversações continuam e que todos estarão a bordo”, disse o diplomata italo-sueco.

Governo e oposição estão representados à mesa do diálogo, mas, entre os opositores, não há confiança em relação a um desfecho positivo.

“Ficaremos aqui uns dias. Deixo claro que é por apenas uns dias”, disse o representante da oposição Monzer Makhous. “Se não houver progressos no terreno, vamos embora… Não estamos aqui para negociar, estamos para testar as intenções do regime.”

A oposição tem feito depender a sua participação em conversações que envolvam as autoridades de Damasco do fornecimento de assistência humanitária a populações sitiadas.

Na segunda-feira, a ONU anunciou que o regime sírio autorizou o envio de ajuda humanitária para Madaya, nos arredores de Damasco, que está cercada por forças de Assad.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de fevereiro de 2016. Pode ser consultado aqui

Troca de populações atravessa três países

A evacuação de três localidades sírias, esta segunda-feira, obriga populações a entrarem em dois países vizinhos antes de regressarem à Síria. Um processo complicado que espelha a complexidade deste conflito, a três semanas de uma nova ronda de conversações de paz, em Genebra

Três localidades sírias começaram a ser evacuadas, esta segunda-feira, na sequência de “acordos locais de reconciliação” entre regime e rebeldes. Mediados pelas Nações Unidas, em setembro passado, estes entendimentos visam levar os rebeldes a depor as armas em troca de assistência humanitária a populações sitiadas há meses.

Zabadani, junto à fronteira com o Líbano, era, até agora, uma cidade controlada por forças rebeldes e cercada por forças governamentais (apoiadas pelo movimento xiita libanês Hezbollah).

Um cortejo de veículos da Cruz Vermelha Internacional e das Nações Unidas transportou, esta segunda-feira, cerca de 120 combatentes e famílias, alguns deles feridos, através da fronteira com o Líbano. Em Beirute, estas pessoas apanharão um avião rumo à Turquia, para depois voltarem a entrar em território sírio, onde serão recolocadas em áreas controladas pelos rebeldes, na província de Idlib (noroeste).

Em contrapartida, precisamente em Idlib, um processo semelhante decorre nas aldeias xiitas de Fuaa e Kafraya (apoiantes do regime), que têm vivido sitiadas por forças sunitas, desde março.

Cerca de 335 pessoas, selecionadas entre os habitantes mais necessitados em termos médicos, beneficiarão de passagem segura, por terra, através do posto fronteiriço sírio-turco de Bab al-Hawa. Depois seguirão de avião até ao aeroporto de Beirute (Líbano) e regressarão por terra para zonas controladas pelo Governo sírio, nos arredores de Damasco.

Assad fortalece posição

A concretização de um outro acordo, visando a transferência de milhares de rebeldes — incluindo jiadistas do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) — de dentro e dos arredores do campo de refugiados palestinianos de Yarmouk, a sul de Damasco, foi suspenso após o assassínio de um importante líder rebelde.

Zahran Alloush, comandante do Jaysh al-Islam (próximo da Arábia Saudita), foi morto na sexta-feira, num bombardeamento sobre a área de Ghouta, um bastião da oposição a leste de Damasco. Figuras da oposição atribuem o ataque à aviação russa, que bombardeia na Síria desde 30 de setembro em apoio do Presidente Bashar al-Assad.

Recentemente, o Jaysh al-Islam participou, na Arábia Saudita, em conversações de grupos da oposição, visando a preparação da terceira ronda de conversações de paz previstas para 25 de janeiro, em Genebra.

A eliminação de líderes como Zahran Alloush, que, no campo político, poderiam emergir como alternativas a Bashar al-Assad, fortalecem a posição do Presidente sírio e a sua retórica segundo a qual a alternativa à sua liderança é o terrorismo do Daesh.

A 15 de dezembro, após um encontro em Moscovo entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, os Estados Unidos deixaram cair a exigência da saída de Bashar al-Assad do poder. “Os Estados Unidos e os nossos parceiros não procuram a chamada mudança de regime”, afirmou Kerry.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de dezembro de 2015. Pode ser consultado aqui