Pelo menos 117 organizações não governamentais com provas dadas na área social e humanitária participam, este fim de semana, numa Feira de Voluntariado, em Matosinhos. O evento, aberto e destinado ao público, incluirá uma ação de recolha de lixo pelas ruas da cidade até à praia e um programa de conferências. André Villas-Boas, por exemplo, irá falar sobre como a paixão pelos carros deu origem a um projeto “do bem”
Partilhar, inspirar, envolver. À semelhança do lema olímpico “Mais rápido, mais alto, mais forte”, que motiva atletas dos quatro cantos do mundo, estes três verbos são o norte de uma Feira de Voluntariado que decorre, este fim de semana, em Matosinhos.
A iniciativa, que decorrerá na Quinta de Monserrate – Clube, visa promover o contacto entre organizações de ação social e humanitária, com trabalho desenvolvido em Portugal e no estrangeiro, e um público curioso e motivado para ajudar.
Num espaço verde circundante a oito campos de padel, pelo menos 117 organizações não governamentais terão um espaço físico para divulgar o seu trabalho, passar mensagem aos visitantes e captar apoios.
Ao estilo de vitamina de motivação, um conjunto de personalidades ligadas a ONG ou simplesmente dedicadas a causas vai partilhar experiências, em duas tardes de conferências, a partir das 15h.
15 testemunhos, 15 exemplos
Da lista de 15 palestrantes fazem parte o treinador André Villas-Boas (que canalizou a sua paixão por carros e ralis para fundar a Race for Good), Pedro Geraldes (organizador da TEDxPorto), Jorge Rosado (da Palhaços d’Opital, que realiza ações de diversão para idosos em ambiente hospitalar) ou Constança Vasconcelos Dias (da Just a Change, que reconstrói casas para pessoas necessitadas).
No domingo de manhã, a partir das 11h, o ativista alemão Andreas Noe (mediaticamente conhecido como Trash Traveler) orientará uma ação de recolha de plásticos, beatas e outros resíduos, que seguirá pelas ruas de Matosinhos, na direção da praia.
No programa das conferências, haverá também testemunhos na primeira pessoa de personalidades que são, em si mesmas, demonstrações de superação.
São disso exemplos Catarina Oliveira, uma nutricionista paraplégica que se tornou ativista pela igualdade de acesso a pessoas com cadeiras de rodas; ou o cigano romeno Cristian Georgescu, que assume o seu passado de toxicodependência e é hoje presidente da organização Saber Compreender, que apoia pessoas em situação sem-abrigo.
Esta Feira do Voluntariado é uma iniciativa da organização Prémios Coração e o Mundo. Fundada pelo médico Gustavo Carona, experiente em missões humanitárias internacionais, tem por objetivo, nas palavras do próprio, “fundir a credibilidade da melhor ajuda social e humanitária, com a criatividade que fará a bondade chegar ao grande público e contagiar todo e cada cidadão a fazer um bocadinho mais por um Mundo com mais Coração”.
Quando Gustavo Carona apresentou o projeto a Marcelo Rebelo de Sousa, a ideia não germinou. Agora que tem todo o tempo do mundo, privado de trabalhar pela doença, o sonho ganhou vida. Dezenas de voluntários estão já envolvidos na concretização dos “Prémios Coração e o Mundo”, destinados a reconhecer o trabalho sério e credível, muitas vezes invisível, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social. “Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”, diz o médico ao Expresso
“E o Prémio Coração e o Mundo vai para…” Nos últimos meses, é muito provável que o médico Gustavo Carona tenha “ouvido” esta frase, várias vezes, durante o sono. Afinal, ela remete para o projeto que o toma a tempo inteiro desde que foi forçado a deixar de trabalhar, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, há dois anos.
Com uma doença incurável que lhe provoca dor crónica e o condena a passar grande parte do dia deitado, este intensivista de 42 anos foi ao arquivo dos sonhos para dar sentido aos dias e prosseguir com as ações humanistas que sempre o entusiasmaram.
Numa das gavetas, do cérebro e da secretária, tinha guardado um projeto a que chamou, em tempos, “Prémios Coração e o Mundo”, uma espécie de “Óscares da Bondade”, como o próprio caracteriza em conversa com o Expresso. O médico idealizou-os como forma de reconhecimento do trabalho sério e credível, mas muitas vezes invisível aos olhos do grande público, de indivíduos e organizações em áreas de intervenção social.
“Acredito muito numa cultura de mérito e acredito que nos moldamos pela premiação. Se transportarmos isto para a linguagem empresarial, é só óbvio que o que se premeia é aquilo que depois as pessoas procuram. Nesse sentido, pareceu-me que premiar a bondade, com a vontade de construir uma sociedade com valores mais humanísticos, tem sido uma estratégia pouco utilizada”, diz.
“Há pessoas tão bonitas… Há coisas na nossa sociedade absolutamente maravilhosas a precisar de visibilidade…”
A ideia foi verbalizada pela primeira vez durante as reuniões do Grupo de Reflexão para o Futuro de Portugal, promovidas por Marcelo Rebelo de Sousa, entre 2018 e 2022. Carona era um dos “40 portugueses nascidos depois do 25 de Abril de 1974, a viverem no país e no estrangeiro, preferencialmente sem participação política, com percursos de sucesso, independência e rasgo”, como a iniciativa é descrita no site da presidência.
“Apresentei a ideia ao Presidente da República. Não deu em nada, mas ficou na minha cabeça. E agora saiu cá para fora.”
“Prémios Coração e o Mundo” é o projeto que ocupa Gustavo Carona desde que deixou de poder trabalhar RUI DUARTE SILVA
O foco na bondade e na compaixão decorre muito da experiência de mais de uma dúzia de missões humanitárias realizadas, desde 2009, ao serviço dos Médicos Sem Fronteiras, dos Médicos do Mundo e da Cruz Vermelha Internacional, em zonas de carência extrema como a Síria, a República Democrática do Congo, o Afeganistão ou o Sudão do Sul.
“Já tive experiências muito fortes de contacto com realidades de extrema pobreza em África, no Médio Oriente, em situações máximas de desespero, no meio da guerra, e senti uma enormíssima empatia pelo sofrimento destas pessoas. Eu compreendo que quem nunca lá esteve não tenha essa empatia. Não me sinto especial, o que sinto é que fui exposto a circunstâncias especiais.”
Com o mesmo ímpeto com que, durante anos, disponibilizou o seu tempo para correr mundo em socorro dos que mais sofrem, a 13 de novembro passado, Carona divulgou um vídeo nas redes sociais lançando a ideia dos “Prémios Coração e o Mundo” e pedindo ajuda para a concretizar.
O que se seguiu foi avassalador. O vídeo foi somando centenas de milhares de visualizações e as caixas de mensagens do médico viram-se inundadas com milhares de sugestões de nomes de organizações com trabalho digno de ser reconhecido ou simplesmente recados de amigos, conhecidos ou gente seduzida pelo apelo a disponibilizar-se para ajudar.
“A ideia pegou e eu fiquei super nervoso”, confessa. “E agora? Será que tinha conhecimento para montar uma coisa destas? Na verdade, só sei ser médico, tudo o resto é sonho. Comecei a acreditar quando vi pessoas de uma enormíssima qualidade a dizerem: ‘estou dentro, quero ajudar’.”
Foi o caso da realizadora Ana Rocha de Sousa, vencedora de um Leão do Futuro, no Festival de Cinema de Veneza, com o filme “Listen”. A cineasta ofereceu-se para fazer o guião da gala “Prémios Coração e o Mundo”, que já captou o interesse de duas televisões.
O sofá da sala e a cama no quarto tornaram-se as novas secretárias de escritório de Gustavo Carona RUI DUARTE SILVA
Carona pensou no que tinha pela frente e começou a distribuir trabalho pelas mãos solidárias que se lhe estendiam. Para rastrear os milhares de comentários nas redes e agrupar as organizações sugeridas por categorias, pediu ajuda à Beira Aproxima, uma associação humanitária formada por estudantes de Medicina da Universidade da Beira Interior, com sede na Covilhã, vocacionada para realizar missões de voluntariado em países em desenvolvimento, da qual o médico portuense é padrinho.
Este apuramento é essencial para que, posteriormente, um júri composto por “pessoas com décadas de ação humanitária”, dirigentes de organizações experientes na área social e humanitária, já consagradas a nível nacional, selecione 68 organizações — quatro por 17 categorias — que serão as protagonistas da gala “Prémios Coração e o Mundo”.
As 17 categorias que irão a votos são: habitação, arte de intervenção, terceira idade, pessoas com deficiência, pessoas em situação de sem-abrigo, direitos das mulheres, pobreza, direitos LGBT+, jornalismo, além-fronteiras – Saúde, além-fronteiras – Educação, refugiados e imigrantes, alterações climáticas, pessoa, crianças e adolescentes em risco, racismo e defesa dos animais.
“Porque é que nos estamos sempre a queixar de que a sociedade é fútil, se aquilo que premiamos é futilidade? Se premiarmos bondade e humanidade, a sociedade vai ser mais bondosa, mais humana”
Este projeto não pretende ocultar os problemas, visando “também mostrar a beleza das soluções. Claro que há coisas tristes, mas passam a ser as coisas mais bonitas do mundo se nós olharmos de coração aberto e fizermos parte da ajuda”.
Gustavo Carona e o inseparável Zaidu, um dos seus dois cães, na sua casa, em Matosinhos RUI DUARTE SILVA
No espetáculo que se projeta, o público será chamado a votar para distinguir uma organização em cada categoria. Será um reconhecimento meramente simbólico já que o objetivo é que todas as 68 associações recebam um prémio monetário de igual valor.
“O vencedor receberá uma estatueta. Mas, para tentarmos manter um princípio de equidade, para contrapormos o facto de, por um lado estarmos a pôr organizações a competir entre si, e por outro, todas fazerem um trabalho incrível, vamos premiar monetariamente todas de igual forma”, explica Carona. Cada uma à sua maneira, todas contribuem para “o verdadeiro impacto”.
Fruto de uma exposição mediática que já leva alguns anos, primeiro decorrente das missões humanitárias e, mais recentemente, de múltiplas intervenções públicas a propósito da pandemia, Carona chegou facilmente à fala com um conjunto de figuras públicas pedindo-lhes que apadrinhassem/amadrinhassem a iniciativa e tentassem contagiar outros pares, ou simplesmente divulgassem a ideia dos Prémios nas suas redes sociais.
Como que a comprovar esta dinâmica, a conversa com o Expresso é interrompida pela chegada de uma SMS com boas notícias. É enviada pelo ex-futebolista Tarantini (Rio Ave), informando ter já garantida a adesão ao exército de voluntários de dois outros futebolistas internacionais.
Um exército de voluntários
Do sonho à realidade, este exército de voluntários tem ainda muito trabalho pela frente: a construção de um site (prestes a surgir), a constituição de uma associação para efeitos de questões administrativas, campanhas de angariação de fundos e de patrocinadores, além da produção do espetáculo.
“Às vezes digo que quero que isto seja sexy. Porquê? Não podemos ter uma plateia de pessoas a bater palmas com muita pena dos pobrezinhos… Isto tem de envolver artistas bons, conhecidos, mas também que tenham ação humana na sua forma de estar. E toda a apresentação da gala que seja alegre, que seja a projeção de sorrisos pelo bem que estas pessoas fazem à nossa sociedade”, diz.
“Não acham bonito premiar as pessoas mais humanas da nossa sociedade?”
Corrida a cortina da gala, Carona gostava que “as associações se sentissem orgulhosas do seu trabalho e fossem reconhecidas por uma grande fatia dos portugueses por aquilo que fazem. Elas precisam de ser incentivadas. Essa seria a conquista”.
(FOTO PRINCIPAL Gustavo Carona passa grande parte do dia deitado, a única posição que o alivia das dores crónicas RUI DUARTE SILVA)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de março de 2023. Pode ser consultado aqui
Faz parte dos domicílios cubanos há quase 60 anos, mas está de saída. O pequeno “caderno de abastecimento”, com que os cidadãos adquirem produtos básicos a preços subsidiados, tem fim anunciado. Um economista cubano explica ao Expresso qual parece ser a futura estratégia do regime de Havana: subsidiar pessoas e não produtos
Ultrapassada a era dos Castro, Cuba continua a trilhar o caminho da mudança. Sem data concreta na agenda, as autoridades de Havana preparam-se para acabar com um dos principais símbolos da Revolução comunista de 1959 — a libreta de abastecimiento.
Este pequeno caderno, que nas últimas décadas é presença constante nas casas cubanas, garante a cada família o acesso a um cabaz básico de produtos subsidiados pelo Estado, a esmagadora maioria deles importada.
“O caderno de abastecimento foi criado em 1962, dura há muito tempo. No princípio, foi uma coisa justa e creio que sim, ajudou a distribuir entre todos os produtos que o Estado podia produzir ou importava”, explica ao Expresso o economista cubano Omar Everleny. “Mas na realidade é um símbolo da escassez do Estado, que teve de subsidiar os produtos que ali se vendem, durante muito tempo.”
Na lista de produtos comparticipados há arroz, ovos, açúcar, frango, massa, sal, azeite, café, leite, pão, dietas especiais para crianças, grávidas e doentes. Estima-se que o Estado cubano gaste anualmente cerca de 1000 milhões de dólares (850 milhões de euros) com este sistema, no qual estão inscritas quase quatro milhões de famílias, e que já não colhe a unanimidade de outros tempos.
À entrada de uma mercearia de Havana, um quadro informa quais os produtos que podem ser comprados através da caderneta de racionamento YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES
“Hoje a libreta é também um símbolo de desigualdade, já que se entrega o mesmo a um aposentado do Estado, com poucos rendimentos, e a uma pessoa que tem um negócio e vai de férias para o estrangeiro”, comenta Everleny, antigo professor catedrático na Universidade de Havana. “Por isso, acredito que o Estado passe a uma fase em que prefira subsidiar pessoas e não produtos.”
Durante a presidência de Raúl Castro (2008-2018), o irmão de Fidel qualificou o mecanismo de obsoleto. Para reduzir subsídios, cortou alguns artigos do cabaz básico — batata, grão-de-bico, cigarros, charutos, sabonetes e pasta dos dentes —, que passaram a ser vendidos apenas no mercado livre. Raúl considerava que o mecanismo, “com os anos, tornou-se uma carga insuportável e um desincentivo ao trabalho”.
Exemplo de um cabaz básico, numa casa de El Caney, na província de Santiago de Cuba YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES
O fim da caderneta foi abordado na quinta-feira passada pelo atual Presidente cubano, no programa televisivo “Mesa Redonda”, criado por Fidel Castro. Miguel Díaz-Canel esclareceu que a libreta deixará de existir após a conclusão da anunciada reforma monetária que o regime de Havana tem em vista, visando eliminar uma das duas moedas oficiais que circulam na ilha.
No território, coexistem o peso cubano (CUP) e o peso convertível (CUC). O CUP é a moeda em que os cubanos recebem salários e pensões e equivale, atualmente, a quatro cêntimos do dólar. O CUC é a moeda usada pelos turistas e por quem trabalha no sector do turismo, a galinha dos ovos de ouro da economia cubana. Criado em 1994, o CUC é paritário ao dólar norte-americano e não é aceite em muitas lojas e farmácias. Havana quer acabar com o CUC e ficar com o CUP como moeda única de Cuba.
Nesta mercearia de Havana, não se aceita CUC, o peso convertível. Esta moeda é usada no sector do turismo YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES
O Presidente cubano garantiu que a reforma monetária não irá pôr em causa a continuidade de grandes conquistas da Revolução, como a saúde e a educação universal gratuitas. Díaz-Canel assegura que nenhum cubano ficará desamparado: “Se alguém ficar numa situação de vulnerabilidade, o Governo procurará forma de apoiá-lo”.
Comenta o economista Everleny: “Cuba vive uma das crises mais profundas da sua história e não tem recursos financeiros para continuar a usar essa variável universalista”, como é a libreta. “Mas será um processo gradual, não será uma decisão repentina, não creio que seja este ano, talvez em meados do próximo”.
Paralelamente ao défice crónico na balança de pagamentos, o país acumula dificuldades em virtude da pandemia de covid-19, que afastou os turistas da ilha caribenha, da diminuição das remessas enviadas pela diáspora e também das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados Unidos. A escassez de alimentos, produtos de higiene e medicamentos nas prateleiras dos espaços comerciais é a consequência mais visível desta crise.
Esta cubana regressa a casa de mãos cheias, após abastecer-se numa ‘bodega’, em San Luis YAMIL LAGE / AFP / GETTY IMAGES
Instituída pela Lei 1015, de 12 de março de 1962, a caderneta de abastecimento foi criada por Fidel Castro para enfrentar a falta de alimentos que derivou do embargo económico decretado pelos Estados Unidos, principal parceiro comercial à época.
Ainda que o cabaz básico não fosse suficiente para alimentar uma família, era uma ajuda substancial para muita gente. “O cabaz básico, que se entregava mensalmente, garantia menos de 12 dias das necessidades alimentares da população. O resto tinha de ser adquirido a preços de mercado, ou mais altos do que os do cabaz, especialmente os produtos agrícolas”, explica o economista Everleny.
“Hoje a sociedade cubana não é a mesma: 33% do emprego está no sector privado ou cooperativo, ou seja, sem os salários fixos e baixos pagos pelo Estado. Outra parte importante recebe remessas do exterior e outro grupo importante mora no exterior, ou seja, a população não é tão homogénea como nos anos 80.”
Conclui Omar Everleny: “Acredito que parte da população, uns 25%, não esteja preparada nem consiga aguentar o cancelamento da libreta de abastecimiento. O Estado deve mostrar a capacidade necessária para criar mecanismos financeiros que compensem a população que tenha de adquirir os bens do velho cabaz subsidiado, aos preços que esses produtos atinjam”.
(Uma cubana de Santiago de Cuba mostra a sua ‘libreta’, a caderneta de racionamento que lhe permite comprar mantimentos a baixos preços, graças aos subsídios do Estado AFP / GETTY IMAGES)
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui
O coronavírus dissuadiu manifestações populares que, por todo o mundo, mobilizavam milhões de pessoas. Até que a tormenta passe, no Brasil faz-se barulho às janelas com recurso a tachos e panelas e na Argélia utiliza-se o pilão e o almofariz. Israel mostrou há dias como, no curto prazo, podem ser os novos protestos de rua
O coronavírus calou de um dia para o outro os protestos populares globais que eclodiram em força em 2019 e prometiam continuar a conquistar latitudes este ano. Mas não tendo desaparecido as razões de queixa que estiveram na sua origem, há indícios de que, mais cedo ou mais tarde, as palavras de ordem voltem a soar nas ruas.
“As manifestações foram suspensas pelo Hirak [o movimento organizador] por causa do coronavírus. Enquanto essa pandemia estiver presente, as marchas não poderão continuar”, diz ao Expresso o argelino Said Touati, que durante os protestos foi uma espécie de repórter voluntário captando imagens para depois divulgar no Twitter. Porém, garante: “A seguir ao fim da pandemia, as marchas vão continuar”.
A Argélia levava 56 semanas consecutivas de manifestações pacíficas, convocadas sobretudo através do Facebook, que já tinham alcançado resultados impensáveis no início da contestação. “Derrotaram o quinto mandato do Presidente Abdelaziz Bouteflika [que estava no poder desde 1999] e obrigaram-no a deixar o cargo de forma humilhante”, explica ao Expresso o argelino Youcef Bouandel, professor de Ciência Política na Universidade do Qatar.
“Vários membros dos seus sucessivos governos (incluindo dois primeiros-ministros), altas patentes das forças armadas (incluindo dois chefes dos serviços de segurança), vários empresários com ligações a Bouteflika e que dilapidaram o país estão presos. E, mais importante, o seu irmão mais novo e ex-conselheiro, Said, está atrás das grades.”
Pensa-se que — com Abdelaziz confinado a uma cadeira de rodas desde 2013, na sequência de um acidente vascular cerebral — era Said quem efetivamente estava aos comandos do país.
Conquista após conquista, os argelinos continuaram nas ruas exigindo mais democracia e o fim do regime. Mas a covid-19 — que atualmente mata mais na Argélia do que em qualquer outro país africano — empurrou-os para dentro de casa.
“Nesta altura, o movimento de protesto está a reorganizar-se”, diz ao Expresso Riccardo Fabiani, diretor para o Norte de África do International Crisis Group (ICG). “Uma vez que é impossível continuar a protestar nas ruas, muitos ativistas estão a prestar ajuda aos hospitais e às famílias necessitadas por causa das medidas de restrição impostas pelo Governo.”
“Cacerolazo” magrebino
Sendo impossível protestar nas ruas, há argelinos que o fazem à janela ou à varanda, numa espécie de versão magrebina do “cacerolazo” latino-americano, em que se mostra o descontentamento batendo em tachos e panelas. “Aqui utilizam o pilão e o almofariz, para mostrarem apoio aos detidos do Hirak e aos presos políticos e de opinião”, diz Said. “Por causa do confinamento, fazem-no em casa ou às varandas.”
É o que acontece também no Brasil onde as janelas de muitos prédios das grandes cidades passaram a ser palcos de protestos contra o Presidente Jair Bolsonaro pela forma negligente como tem gerido a pandemia.
“Temos a expectativa de que a instabilidade política decorrente desta crise ocorra por um longo período”, diz ao Expresso Richard Gowan, diretor para as Nações Unidas do ICG.
“O declínio dos protestos a curto prazo é enganador. Os choques sociais e económicos causados pela pandemia criarão tensões e raiva que se podem traduzir em agitação e protestos durante meses ou anos. Os governos autoritários podem parecer que estão a gerir a doença de forma eficaz no curto prazo, porque podem usar métodos pesados para reprimir dissidências e protestos. Mas isso lançará as sementes de futuras crises.”
No sábado passado, a polícia de Hong Kong prendeu 15 ativistas veteranos — entre os quais Martin Lee, de 81 anos, advogado e fundador do Partido Democrático —, acusando-os de organização e participação em protestos ilegais em 2019.
Também nesta região administrativa especial da China, o coronavírus obrigou ao fim das manifestações pró-democracia, com uma curiosa ironia… Em outubro passado, para combater os protestos no território, o governo liderado por Carrie Lam proibiu o uso de máscaras, que os manifestantes usavam para se protegerem dos gases tóxicos lançados pela polícia ou para ocultarem identidades, com receio de represálias. Neste contexto pandémico, nem Carrie Lam abdica de usar máscara.
Domingo passado, Israel deu o mote para o modelo que os protestos antigovernamentais podem vir a assumir, pelo menos a curto prazo. Cerca de 2000 pessoas “encheram” a Praça Rabin, em Telavive, numa manifestação contra algumas medidas que consideram ser “antidemocráticas” adotadas pelo Governo em nome do combate à pandemia. Os manifestantes estavam protegidos com máscaras ou viseiras e afastados entre si no cumprimento da distância de segurança.
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de abril de 2020. Pode ser consultado aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.