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Ataques em Damasco, Beirute e Kerman revelam eixo de provocação ao Irão

A explosão de duas bombas numa cidade iraniana provocou, esta quarta-feira, mais de 100 mortos. Foi o último de uma série de ataques contra o Irão ou grupos armados aliados na região que indiciam uma intenção de provocação à República Islâmica. Dois investigadores ouvidos pelo Expresso coincidem na análise. A guerra não está a correr bem ao primeiro-ministro israelita. Prolongá-la e abrir novas frentes na região é uma necessidade de Benjamin Netanyahu, em nome da sua própria sobrevivência política

Duas iranianas juntos a um retrato de Qasem Soleimani, em Teerão MORTEZA NIKOUBAZL / GETTY IMAGES

Há exatamente quatro anos, no aeroporto de Bagdade, capital do Iraque, um míssil certeiro disparado por um drone dirigido por forças dos Estados Unidos — era Donald Trump o inquilino da Casa Branca — atingiu mortalmente o general iraniano Qassem Soleimani.

Esta quarta-feira, a explosão de duas bombas, perto do Cemitério dos Mártires, onde Soleimani está enterrado, na cidade de Kerman (centro do Irão), provocaram pelo menos 103 mortos e 141 feridos. O banho de sangue levou o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, a cancelar a sua visita à Turquia, prevista para esta quinta-feira.

Este “ataque terrorista”, como depressa foi rotulado pelas autoridades iranianas, atingiu em cheio uma multidão que se dirigia para uma cerimónia em memória daquele herói nacional — que teve um papel determinante na derrota do Daesh no Iraque e na Síria.

A tragédia fez acionar os alertas da escalada do conflito na região do Médio Oriente, que, menos de 24 horas antes, já sofrera um poderoso abalo com o assassínio de Salah al-Aaruri, número dois do Hamas, num ataque com drone atribuído a Israel, no sul de Beirute, capital do Líbano.

“O significado dos dois ataques consecutivos não se prende com quem era Soleimani ou com o seu legado enquanto figura política e estratégica, mas com o simbolismo da sua liderança da Força Quds”, diz ao Expresso Mohammed Cherkaoui, professor na área da Resolução de Conflitos na Universidade George Mason (Virgínia, EUA). “O alvo de Kerman é a ligação Irão-Palestina, menos de 20 horas após o assassínio do número dois do Hamas, em Beirute.”

A Força Quds, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão. Está encarregue do apoio de Teerão a um conjunto de peões na região, que atuam em nome do interesse nacional iraniano — como o grupo islamita palestiniano Hamas, o movimento xiita libanês Hezbollah e os rebeldes iemenitas hutis. Atualmente, todos estão empenhados, em maior ou menor grau, em ações de confronto com Israel.

Nenhum dos dois ataques foi reivindicado, mas na região aponta-se o dedo ao Estado judeu. Na rede social X, o deputado israelita Danny Danon, antigo embaixador nas Nações Unidas, confirmou suspeitas e felicitou “as Forças de Defesa de Israel, o Shin Bet, a Mossad e as forças de segurança pelo assassínio de Salah al-Aaruri”, no Líbano. “Qualquer pessoa envolvida no massacre de 7 de outubro deve saber que entraremos em contacto e apresentaremos a fatura.”

Nascido na cidade palestiniana de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, Salah al-Aaruri era o principal coordenador das ações do Hamas naquele território palestiniano. A confirmar-se a implicação de Telavive na sua morte, foi a primeira vez que Israel atacou na capital libanesa desde a guerra de 34 dias que travou com Hezbollah, no verão de 2006.

Com que objetivo o fez agora?

“Até agora, a guerra em Gaza do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que dura há quase três meses, parece debater-se com dificuldades ao nível da erradicação do Hamas, da libertação dos reféns e da alteração da geopolítica da Faixa de Gaza”, continua o antigo membro do Painel de Peritos das Nações Unidas. “Parece ter mudado de tática na direção do norte, onde o Hezbollah poderá retaliar pelo assassínio do líder palestiniano, no sul de Beirute.”

Neste sentido, a intenção de Netanyahu seria mostrar mão dura e, ao mesmo tempo, procurar transmitir liderança e segurança ao povo israelita. Mas outra razão maior sobressai.

“Netanyahu está também a tentar provocar um confronto com os iranianos e, possivelmente, uma guerra regional. Acredita que é o melhor momento estratégico para puxar a perna dos Estados Unidos, numa demonstração de força contra o Irão, tomado pelo apelo de que há que parar o ‘Irão nuclear’, que vem desde o seu famoso discurso na Assembleia-Geral da ONU, em que mostrou o desenho de uma ‘bomba nuclear iraniana a fazer tique-taque’”, acrescenta.

Javad Heirannia, que dirige o Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão, enumera indícios recentes que revelam que Israel está de olho no Irão. “As condições da guerra em Gaza e a intensificação dos ataques dos hutis do Iémen no Mar Vermelho e no Estreito de Bab al-Mandab aumentaram as tensões”, diz ao Expresso.

“Primeiro, Israel enviou uma mensagem de alerta e dissuasão ao Irão, ao levar a cabo atos de sabotagem dentro do país, incluindo um ataque cibernético a postos de gasolina. Depois, fez um aviso ainda mais sério, visando o comandante dos Guardas da Revolução na Síria. Com as explosões em Kerman, Israel elevou o nível de alerta dissuasor contra Teerão e anunciou que pode criar insegurança e atingir o Irão por dentro.”

O episódio na Síria de que fala Heirannia ocorreu a 25 de dezembro. Razi Mousavi, principal comandante da Força Quds nesse país e coordenador da relação entre Teerão e Damasco, foi morto na sua casa, no bairro de Sayida Zeinab, a sueste da capital síria, atingida por três mísseis.

“Israel realiza estes planos de assassínios contra o que considera serem ‘alvos ligados ao Irão’. Netanyahu internalizou o medo — nele mesmo e no Likud [o seu partido, no poder] e nos círculos políticos de direita — de que o principal inimigo de Israel é o Irão”, explica Mohammed Cherkaoui. “Agora, ele não está a travar uma guerra dual entre Israel e o Hamas, antes a arquitetar um extravasamento em formato triangular, onde o Hezbollah no Líbano, os hutis no Iémen, milícias armadas na Síria e no Iraque, e o Irão vão para um confronto de força. Confia no que considera ser uma mola para as relações Israel-Ocidente.”

Nasrallah ao ataque… verbal

Esta quarta-feira, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, fez um discurso evocativo do aniversário da morte de Soleimani. A milícia xiita que lidera — que é também uma formação política (Partido de Deus), com deputados eleitos e ministros no Governo — é um dos principais vértices do chamado “eixo de resistência” que o regime de Teerão promove junto de peões regionais, que atuam em seu nome.

A expectativa em relação à comunicação de Nasrallah redobrou de interesse após a morte do n.º 2 do Hamas em território libanês. Mas Nasrallah absteve-se de ameaças concretas. “Se o inimigo pensa travar uma guerra contra o Líbano, a nossa luta será sem teto, sem limites, sem regras”, disse Nasrallah, remetendo para sexta-feira um novo discurso sobre o assunto.

Em paralelo aos bombardeamentos e à ofensiva terrestre de Israel na Faixa de Gaza, tem-se registado troca de fogo entre forças israelitas estacionadas no norte de Israel e grupos do Hezbollah no sul do Líbano. De um lado e do outro já houve vítimas mortais, mas a situação ainda não evoluiu para uma guerra aberta.

Uma sucessão de ataques como os de Damasco, Beirute e, hoje, em Kerman potencia uma escalada que pode contagiar toda a região. Heirannia pensa que esse cenário não é do interesse de Teerão. “O Irão sabe que entrar numa guerra futura com Israel arrastará a América para esse conflito, e esta não é uma opção desejável para Teerão. Parece que o Irão vai adiar a vingança para outro momento. A questão principal é qual poderá ser a avaliação de Israel e qual a sua próxima ação. Não esqueçamos que as guerras sempre foram baseadas em erros de cálculo.”

Netanyahu quer o Irão na guerra

Após o ataque do Hamas a Israel, a 7 de outubro, o Irão negou envolvimento direto e tanto Israel como os Estados Unidos afastaram essa possibilidade no exercício de identificação de culpados. Para Cherkaoui, com o evoluir da guerra, a entrada do Irão num conflito abrangente tornou-se “o desejo ideal de Netanyahu por várias razões”.

“Primeiro, tem necessidade extrema de prolongar a guerra e abrir novas frentes na região. Também teme a retaliação política dos seus adversários e de um grande segmento da sociedade israelita que leve a perder o cargo e à possibilidade de um processo judicial e condenação que o leve à prisão”, conclui o académico.

“O que faz sentido para ele, agora, é gerir a sua guerra em Gaza pressionando no sentido de uma escalada regional. Recordemos como os governos ocidentais, de Washington a Berlim, se apressaram, política e militarmente, a proteger a segurança nacional de Israel a 7 de outubro de 2023, sob o lema: ‘Israel está sob ataque do Hamas’. Agora imagine-se o que faria o Ocidente em reação a: ‘Israel está sob ataque do Irão!’…

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Um convidado caro aos talibãs

O líder da Al-Qaeda foi morto por um drone dos EUA, em Cabul. Os tiros atingiram também o regime talibã

Nos últimos anos, alguns dos maiores êxitos dos Presidentes dos Estados Unidos em matéria de política externa passaram pela eliminação de terroristas com influência global. A 2 de maio de 2011, Barack Obama anunciou a morte do inimigo público nº 1 da América, o então líder da Al-Qaida, Osama bin Laden, que dirigiu os atentados de 11 de Setembro de 2001. “É a conquista mais significativa, até à data, no esforço da nossa nação para derrotar a Al-Qaida.”

A 27 de outubro de 2019, Donald Trump congratulou-se com a eliminação de Abu Bakr al-Baghdadi, chefe do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), que dominou com grande crueldade parte significativa do Iraque e da Síria. “Morreu como um cão, como um covarde. O mundo é agora um lugar muito mais seguro.”

Esta semana, Joe Biden adicionou à lista dos troféus Ayman al-Zawahiri, antigo líder da Jihad Islâmica Egípcia, que esteve com Bin Laden na fundação da Al-Qaida (“A Base”) em 1988, foi cérebro dos atentados em Washington e Nova Iorque e sucedeu a Bin Laden à frente da organização. “Foi feita justiça e esse terrorista já não existe.”

Varanda indiscreta

Ao contrário de Bin Laden e Al-Baghadi, que morreram durante operações especiais americanas no Paquistão e na Síria, respetivamente, Al-Zawahiri foi liquidado no Afeganistão por um drone da Força Aérea dos Estados Unidos operado pela CIA. Eram 6h18 de 30 de julho quando dois mísseis foram disparados na direção do homem, de 71 anos, que estava à varanda de casa. Esse hábito frequente facilitou a observação de quem já o tinha debaixo de olho e a confirmação da sua identidade.

O terrorista não estava escondido numa qualquer gruta remota, mas numa moradia do bairro de Sherpur, em Cabul, perto de edifícios onde, até há um ano, funcionavam embaixadas ocidentais. Segundo o jornal “The New York Times”, “vivia numa casa que era propriedade de um dos principais assessores de Sirajuddin Haqqani, ministro do Interior dos talibãs e membro da rede terrorista Haqqani [radical], com ligações próximas à Al-Qaida”. Há anos que o FBI promete uma recompensa de mais de 10 milhões de dólares (€9,8 milhões) por informações que levassem diretamente à sua captura.

Fundos podem não descongelar

A presença do líder da Al-Qaida no Afeganistão expôs um duplo embaraço. Os talibãs — que se comprometeram no Acordo de Doha, assinado com os Estados Unidos em 2020, a não mais dar guarida à Al-Qaida — carecem de argumentos convincentes para justificar a presença de Al-Zawahiri na capital. E os próprios Estados Unidos viram reabrir-se o debate sobre a caótica e até humilhante retirada militar do Afeganistão, perante a constatação de que 20 anos de guerra não destruí­ram a aliança entre a Al-Qaida e os talibãs afegãos.

Mas é pelo lado afegão que a corda parte. Este caso “terá impacto na relação entre Estados Unidos e talibãs”, comenta ao Expresso Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group (ICG) para o Afeganistão. “Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Al-Zawahiri em Cabul? Porque lhe deram abrigo? Ou porque não quiseram ou não puderam tomar medidas contra ele? Pelo menos no curto prazo isto irá limitar a capacidade e os esforços diplomáticos relativos à prestação de assistência humanitária e ao descongelamento de ativos.”

“Os talibãs terão dificuldade em dar respostas. Porque estava Ayman al-Zawahiri em Cabul? Deram-lhe abrigo? Tomaram medidas contra ele?”

Nos dias que antecederam a execução de Al-Zawahiri, a Administração Biden e os talibãs estavam em conversações para encontrar forma de o Governo afegão aceder às reservas do Banco Central do país depositadas nos Estados Unidos. Washington congelou fundos no valor de sete mil milhões de dólares (€6850 milhões) após a tomada do poder pelos talibãs, a 15 de agosto de 2021.

Esse diálogo, no Catar, foi acelerado pela pandemia, o impacto da guerra na Ucrânia e, sobretudo, por um forte sismo que, a 22 de junho passado, matou mais de mil pessoas. “Os dois lados estavam perto de um acordo”, diz Bahiss. Mas este caso “torna muito mais difícil para os americanos libertarem fundos diretamente para os talibãs ou para um mecanismo em que estes tenham controlo sobre essas reservas”.

Numa primeira reação ao ataque, os talibãs disseram apenas tratar-se de uma “clara violação” dos princípios internacionais e do pacto de Doha. Quarta-feira, em declarações à televisão afegã Tolo News, Abdul Salam Hanafi, segundo vice-primeiro-ministro do país, acrescentou: “A política do Emirado Islâmico, que tem sido repetidamente comunicada ao povo, é de que o nosso solo não pode ser usado contra os nossos vizinhos.”

Saem os EUA, entra Al-Zawahiri

O analista do ICG descodifica a retórica de Cabul. “Os talibãs poderão contra-argumentar que estão a tomar medidas contra grupos radicais para lhes restringir a liberdade. Se defenderem que trouxeram Al-Zawahiri para Cabul para algum tipo de prisão domiciliária ou outra forma de controlar os seus movimentos e as suas ações, poderão dizer que os Estados Unidos violaram o Acordo de Doha, enquanto eles tomaram medidas para impedir o líder da Al-Qaida de amea­çar a segurança dos Estados Unidos e dos seus aliados.”

O percurso de Al-Zawahiri desde o 11 de Setembro não é rastreável com exatidão. Pensa-se que, desde o início do século, tenha vivido na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão. “Os nossos serviços de informações localizaram-no no início deste ano. Tinha-se mudado para o centro de Cabul para se juntar a membros da sua família direta”, disse Biden na comunicação ao país.

O que fazia no Afeganistão e o que planeava fazer pelo mundo poderá não ser fácil de reconstituir. A operação dos SEAL da Marinha americana que surpreendeu Bin Laden numa moradia de Abbottabad permitiu recolher muito material, mas o mesmo não se aplica ao tipo de ataque que matou Al-Zawahiri.

Se se mudou para Cabul após a retirada americana, acentua-se o embaraço de Biden, que, à época, respondeu assim aos críticos: “Que interesse temos no Afeganistão, agora que a Al-Qaida se foi? Fomos para lá com o objetivo expresso de nos livrarmos da Al-Qaida no Afeganistão. E conseguimos.” Até Al-Zawahiri assomar a uma varanda de Cabul.

AL-QAEDA: MORRER OU RENASCER?

A 11 de agosto de 1988, uma reunião em Peshawar (Paquistão) entre Osama bin Laden, Ayman al-Zawahiri e Sayyed Imam Al-Sharif (Dr. Fadl) criou a Al-Qaeda. O saudita Bin Laden era o garante de uma riqueza infinita, o egípcio Al-Zawahiri personificava a crença inabalável no radicalismo islâmico e o intelectual e também egípcio Fadl a base filosófica da jihad. Os dois primeiros estão mortos e o último não é opção para lhes suceder na liderança da organização. Em 2007, renunciou à violência e distanciou-se do jiadismo global. O nome de que se fala para assumir o comando da Al-Qaeda é o de Seif al-Adel. Este egípcio de mais de 60 anos tem ficha aberta no FBI, que o procura por envolvimento nos atentados de 7 de agosto de 1998 contra as embaixadas dos Estados Unidos na Tanzânia e no Quénia. “Se a Al-Qaeda escolher alguém que esteja fora do Afeganistão, a longo prazo isso pode desviar o foco desse país”, defende Ibraheem Bahiss, analista do International Crisis Group. “A Al-Qaeda tem uma presença muito pequena no Afeganistão, dezenas ou centenas de pessoas no máximo. Em territórios africanos, como a Somália, tem uma presença muito maior.” E conclui: “Dependendo de quem for escolhido para liderar a Al-Qaeda, não é necessariamente um golpe fatal para a organização. A Al-Qaeda não é desafiada hoje da mesma forma que já o foi pelo Daesh. E pode usar a vitória dos talibãs no Afeganistão para se promover e recuperar da perda que sofreu.”

(FOTO O saudita Osama bin Laden e o egípcio Ayman al-Zawahiri, a cúpula da Al-Qaeda, durante uma entrevista com o jornalista paquistanês Hamid Mir, publicada no jornal paquistanês “Dawn”, a 10 de novembro de 2001. Hamid Mir é o único jornalista que entrevistou Bin Laden após o 11 de Setembro HAMID MIR / EDITOR / AUSAF NEWSPAPER FOR DAILY DAWN / HANDOUT VIA REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de agosto de 2022. Pode ser consultado aqui

O líder foi morto, mas o Daesh ainda vive

Sem o território que já teve na Síria e no Iraque, o grupo tenta reagrupar-se e expandir influência para longe

Bandeira do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) WIKIMEDIA COMMONS

Nos últimos dez anos, três Presidentes dos Estados Unidos foram creditados com um reconhecimento quase universal ao anunciarem a morte do “terrorista mais procurado do mundo” às mãos de forças especiais norte-americanas. A 2 de maio de 2011, Barack Obama comunicou a morte de Osama bin Laden, o carismático líder da Al-Qaeda. A 27 de outubro de 2019, Donald Trump descreveu a execução do misterioso Abu Bakr al-Baghdadi, “califa” do autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh), “após entrar num túnel sem saída, a choramingar e a gritar”.

A 3 de fevereiro passado, foi Joe Biden a confirmar o óbito do desconhecido Abu Ibrahim al-Hashimi al-Qurayshi, sucessor de Al-Baghdadi no Daesh. Este “terrorista horrível”, contou o Presidente, morreu durante “uma operação de contraterrorismo destinada a proteger o povo americano e os nossos aliados, e a tornar o mundo um lugar mais seguro”. Será mesmo?

“Penso que o Daesh está moribundo, em vias de ser erradicado definitivamente. Mas isso não quer dizer que não apareça outra afirmação de radicalismo islâmico”, diz ao Expresso Luís Saraiva, professor na Universidade Lusíada. “Aconteceu com a Al-Qaeda [no Iraque], que deu origem a este ‘Estado Islâmico’. Ainda existem resquícios da Al-Qaeda. O Daesh pode também originar uma evolução, decorrente até da perseguição que a comunidade internacional lhe faz.”

O Daesh é ‘um filho’ da guerra no Iraque, após a invasão americana de 2003. Tem na origem a Al-Qaeda no Iraque, que se alimentou da desintegração do Estado e da destruição do país para crescer. Em 2014, anunciou a criação de um “califado”, com a ambição de estender fronteiras da Índia à Península Ibérica. Embora longe de o concretizar, chegou a controlar um território comparável à Grã-Bretanha, que se estendia entre a Síria e o Iraque.

Em perda, mas capaz

Ao mesmo ritmo que o Daesh ganhou território, também o perdeu, pressionado pela guerra declarada pela coligação militar internacional. Em março de 2019, a conquista da localidade síria de Al-Baghuz pelas Forças Democráticas Sírias, lideradas pelos curdos e apoiadas pelos EUA, foi considerada o fim do “califado”.

“Desde então, o Daesh tem adotado uma atitude mais discreta. O Daesh não é a mesma potência de 2014, mas não deixou de ser uma organização capaz”, diz ao Expresso Carolina Novo, investigadora independente na área do terrorismo e ideologia do Daesh. “Diria que o grupo atravessa mais uma das muitas reorganizações por que já passou. Não apenas ao nível dos seus membros e líder, mas de estratégia. Já não é um protoestado, mas uma organização insurgente.”

O Daesh atravessa mais uma de muitas reorganizações, ao nível de membros, líder e estratégia

Uma prova de resiliência reveladora do empenho do Daesh em reorganizar-se foi o assalto à prisão de Ghwayran, no nordeste da Síria, a 20 de janeiro, por mais de cem homens armados. Aquele que é o principal centro de detenção de jiadistas albergava, na altura, cerca de 3500 — estima-se que também 800 menores, alguns com nacionalidade estrangeira.

Numa demonstração do que é a Síria hoje, a prisão é controlada não pelas forças do Presidente Bashar al-Assad, mas pelos curdos, que só recuperaram o controlo do local após dias de troca de fogo. Este é considerado o maior ataque do Daesh desde a perda do califado, ainda que a maioria dos fugitivos tenha sido recapturada.

Território não é prioridade

“Penso que este episódio demonstra que o grupo não está moribundo, mas a reequipar-se. É importante notarmos que a sua aparente destruição já aconteceu antes. Muitas vezes já se tentou prever o fim do Daesh”, diz Carolina Novo, mestre em História e Relações Internacionais pela Universidade do Porto. “Foi durante um período em que parecia moribundo que o grupo se reergueu mais forte do que nunca e estabeleceu o ‘Estado Islâmico’. Não acredito que vá acontecer na mesma dimensão agora, mas penso que pode servir de lição.”

Contrariamente à estratégia passada, hoje a reinvenção do grupo jiadista não passa pela conquista de uma base territorial, antes “por favorecer a criação de grupos afiliados”, diz a investigadora. “Já o fez em África e na Ásia. Paralelamente, no Médio Oriente, continua a realizar ataques terroristas. Neste momento, a estratégia passa mais por uma atuação descentralizada.”

Franchising terrorista

Luís Saraiva, investigador no Instituto Universitário Militar, refere que os territórios férteis à expansão do Daesh são aqueles onde o controlo e a capacidade de segurança dos Estados evidenciam fragilidades. “Aí vemos aparecer uma espécie de franchising, com grupos radicalizados, islâmicos ou não, a tentarem usar o nome do ‘Estado Islâmico’ para terem alguma projeção internacional. São grupos regionais ou locais que aproveitam o apoio ideológico ou a bandeira do ‘Estado Islâmico’ para dizerem que têm relevância.”

A estratégia do grupo passa por favorecer a criação de grupos afiliados. Já o fez em África e na Ásia

Isso acontece, atualmente, na região moçambicana de Cabo Delgado e em vários outros países, como o Afeganistão. Há duas semanas, Washington anunciou uma recompensa de até 10 milhões de dólares (€8,8 milhões) por informações que conduzam à localização de Sanaullah Ghafari, chefe do Daesh-Khorasan, a designação do grupo no Afeganistão.

Na memória dos Estados Unidos está ainda o negro 26 de agosto passado, em que um único bombista suicida afeto ao Daesh-K matou 13 norte-americanos e pelo menos 170 afegãos no aeroporto de Cabul, quando as tropas internacionais regressavam definitivamente a casa, após uma missão de 20 anos, e milhares de afegãos tentavam, de forma caótica, apanhar boleia para fugir aos talibãs regressados ao poder.

A importância do líder

A história do Daesh, como a da Al-Qaeda, mostra, porém, que a eliminação dos líderes, mesmo os mais carismáticos, não significa a erradicação automática do grupo. Quando muito, dá origem a nova metamorfose.

“À medida que a natureza e estratégia do Daesh se alteram, o mesmo acontece com o papel do chefe. Ainda que seja sempre importante, o grupo depende dele de formas diferentes, consoante a fase em que se encontra”, diz a investigadora Carolina Novo. “Quando o grupo se apresentava, em 2014, como uma entidade estatal, a figura de um líder competente e experiente era crucial para controlar todos os aspetos quotidianos relacionados com o território. Hoje, tendo em conta que o grupo se encontra dividido e se tem dedicado essencialmente a operações de guerrilha e insurgência, uma estrutura de liderança não parece ser tão crucial.”

ONDE ESTÁ O DAESH?

SÍRIA E IRAQUE — Tenta reorganizar-se após ter perdido o “califado”. Os assaltos a prisões são um modus operandi prioritário

ÁFRICA OCIDENTAL — Os países mais permeáveis são Nigéria, Chade, Camarões, Mali, Níger e Burkina Faso. Beneficia do enfraquecimento do Boko Haram e da anunciada retirada das tropas francesas

ÁFRICA CENTRAL — Engloba nesta sua “província” dois países: a República Democrática do Congo, onde, este mês, um grupo ugandês leal ao Daesh invadiu uma prisão; e Moçambique, onde está ativo em Cabo Delgado

NORTE DE ÁFRICA — Outrora feudo da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, o Daesh está ativo na Líbia e no Egito (Península do Sinai). Na Argélia, está adormecido

ÁSIA ORIENTAL — Atua nas Filipinas, país cristão, através de grupos locais. A 27 de janeiro de 2019, reivindicou um ataque a uma igreja (18 mortos e 82 feridos). Também está ativo na Indonésia

IÉMEN — Está há oito anos neste país em guerra e onde tem sede o braço mais ativo da Al-Qaeda (na Península Arábica)

MALDIVAS — Estreou-se em 2020: incendiou cinco lanchas e dois botes,na ilha de Mahibadhoo

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de fevereiro de 2022

O Daesh desapareceu? Longe disso: nestes locais o terror continua

Primeiro quiseram construir um califado no norte da Síria e do Iraque, e marcaram para sempre aqueles povos com os seus métodos horrendos de perseguição e tortura. Uma coligação internacional ajudada pelos curdos quase eliminou a presença deste grupo terrorista islâmico, mas os que creem na sua doutrina espalharam-se pelo mundo. Hoje é em África e na Ásia que apostam a maioria dos seus recursos e ainda há milhares de combatentes em todo o mundo que juraram manter este reinado do terror. Na Europa, o perigo é quem se radicaliza cá. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Áustria, França, Moçambique, Afeganistão, Egito, República Democrática do Congo, Arábia Saudita…

Só nos últimos dois meses, todos estes países sofreram ataques terroristas reivindicados ou inspirados pelo autodenominado Estado Islâmico. O Daesh, como é conhecido pelo seu acrónimo árabe, perdeu o califado que proclamou em partes da Síria e do Iraque
e viu o seu líder suicidar-se quando se sentiu acossado por militares norte-americanos.
O movimento enfraqueceu, mas está longe de erradicado.

No final de 2020, vários grupos terroristas com implantação regional assumem-se como extensões do Daesh, em especial em África e na Ásia, onde as regiões controladas pelos jiadistas são designadas de “províncias” pela organização central.

É o caso da Província da África Ocidental, um braço do Daesh com uma ascensão fulgurante. Resultou de uma cisão no Boko Haram e está ativo nos quatro países que rodeiam o Lago Chade: Nigéria, Niger, Chade e Camarões. Estima-se que seja a célula africana do Daesh com mais combatentes nas suas fileiras.

Para leste, a Província da África Central é o braço mais recente do Daesh em todo o mundo. Atualmente é responsável por duas rebeliões: uma no leste da República Democrática do Congo, na região do Kivu, e outra no norte de Moçambique, na província de Cabo Delgado.

Neste país de língua oficial portuguesa, os jiadistas têm crescido em alcance e sofisticação. Demonstram toda a sua crueldade queimando aldeias inteiras, raptando e decapitando locais.

Ainda em África, a região do Sahel é território propício às movimentações do Daesh no Grande Sara. Esta célula resultou de uma cisão no seio de um grupo associado à rival Al-Qaeda e está ativa em três países.

Encontramos ainda a impressão digital do Daesh na Líbia, Tunísia, Argélia, Egito, Somália, Quénia, Tanzânia e Uganda.

E noutros continentes também, como a Ásia. Às portas do Médio Oriente, a Península do Sinai abriga um dos ramos mais antigos do Daesh, com origem num grupo jiadista fundado após a desagregação do poder no Egito e a seguir ao movimento da Primavera Árabe.

Mais para leste, no martirizado Afeganistão, um dos principais focos de violência é atualmente o ramo local do Daesh, o grupo Província do Khorasan, numa referência a uma região histórica da Antiga Pérsia. O Daesh é sunita, tal como os talibãs, mas ao contrário destes rejeita qualquer tipo de negociação com o Ocidente. É, por isso, ainda mais extremista do que os talibãs.

Seguindo ainda mais para oriente, encontramos outro país fustigado pelo Daesh: as Filipinas, consideradas pelos jiadistas a sua Província da Ásia Oriental. Um dos grupos locais que lhe jurou lealdade é o histórico Abu Sayyaf, que leva mais de 30 anos de rebelião contra o poder central naquele país de maioria católica.

Na Europa, a estratégia do Daesh não passa por estabelecer bases. Os ataques são levados a cabo por simpatizantes desta doutrina extremista, homens regressados da Síria ou do Iraque ou radicalizados nos próprios países onde vivem.

Episódio gravado por Ana França.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Samuel foi decapitado. Nadine foi degolada. Por que razão alguns terroristas atacam de forma bárbara?

Nalguns atentados terroristas o atacante age motivado não só pela vontade de matar como também de profanar o corpo. Há razões históricas e religiosas que explicam o recurso à decapitação ou à degola como forma de execução. Um estudioso da Ciência das Religiões diz ao Expresso que é mais provável que, nos dias de hoje, se trate de um fenómeno de imitação dos métodos do Daesh

Pintura de Matthias Stom (séc. XVII) alusiva à decapitação de São João Baptista, a mais importante do mundo ocidental. Exigida por Salomé, a cabeça do pregador foi entregue numa bandeja à neta de Herodes WIKIMEDIA COMMONS

Em outubro passado, dois atentados em solo francês assumiram contornos particularmente cruéis. No dia 16, na cidade de Conflans-Sainte-Honorine, Samuel Paty, professor de 47 anos, foi decapitado por um refugiado de 18 anos de origem chechena. Numa aula sobre liberdade de expressão, o docente havia mostrado caricaturas do profeta Maomé, desencadeando a ira do radical islâmico.

A 29 seguinte, um cidadão tunisino esfaqueou mortalmente três pessoas no interior da Basílica de Notre-Dame de l’Assomption, em Nice. Nadine Devillers, uma mulher de 60 anos, foi degolada, mas a intenção do atacante era decapitá-la.

Uma facada certeira teria sido suficiente para tirar a vida a qualquer das vítimas, mas estes agressores investiram de forma deliberada com a intenção de cortar-lhes a cabeça.

Várias razões explicam uma motivação dessa natureza, desde logo a propaganda que resulta de um ato tão bárbaro. “Quando o ISIS [o autodenominado ‘Estado Islâmico’, também conhecido pelo acrónimo Daesh] degolava pessoas, filmava a execução e punha as imagens a circular nas redes sociais, havia no gesto uma dimensão de propaganda. Degolar é uma imagem tão brutal que induz um medo terrível”, explica ao Expresso Paulo Mendes Pinto, coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.

“Ainda hoje, no Ocidente, nos nossos códigos penais, temos o crime de profanação de cadáver. Ou seja, uma coisa é matar alguém, que é um crime; outra coisa é, além de matar, profanar o cadáver, criar uma destruição no corpo que o torne irreconhecível.”

Demonstração de poder

Em várias civilizações milenares, há toda uma herança associada ao ato de decapitar como demonstração de poder. “Nas civilizações mais antigas do Médio Oriente, a decapitação surge como uma forma não propriamente usual, mas das mais brutais e das mais usadas em termos icónicos para se mostrar que se dominou alguém”, diz Paulo Mendes Pinto.

Na Paleta de Narmer, por exemplo, que é uma placa com inscrições e relevos representando a unificação do Antigo Egito, o monarca surge junto a uma fila de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão lado a lado e com as respetivas cabeças cortadas entre os pés. Também no império Assírio-Babilónico há copiosa iconografia que mostra o rei a contar os corpos de uma batalha: num monte há corpos, noutro cabeças.

Vazar o corpo do líquido da vida

Numa outra componente deste fenómeno, degolar surge como forma mais comum de sacrificar um animal, sangrando-o pelo pescoço. Num ser humano, passar uma lâmina no pescoço é garantia de morte eficaz, nenhum inimigo sobrevive. Matar com recurso à degola tem o intuito de “vazar o corpo do líquido da vida”, explica Mendes Pinto.

Há ainda uma dimensão espiritual no ato de decapitar. “Há muitas visões do fim do mundo, do fim dos tempos, em que se dará a ressurreição final de todos aqueles que foram vivos”, explica o professor. “Há muitos movimentos religiosos que acreditam que para esse juízo final poder ter lugar, o corpo tem de estar inteiro.”

Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição essencial para que no dia do Juízo Final possa haver um novo tempo. Logo, separar a cabeça do resto do corpo é uma forma de impedir que o defunto ganhe a Eternidade.

Uma forma de “morte digna”

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma técnica que atravessou a História, desde foram forjadas as primeiras espadas. Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Na Europa, tornou-se uma forma de “morte digna” para a nobreza — rápida e supostamente indolor —, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. O método generalizou-se com a Revolução Francesa e, com o passar do tempo, a guilhotina passou das praças públicas para o interior das prisões.

Para Mendes Pinto, o grau de consciência de todos estes aspetos por parte de quem, nos dias de hoje, realiza este tipo de ataques será reduzido. “Alguém, fundamentalista islâmico, viu as imagens há quatro, cinco anos de gente a ser degolada pelo ISIS e, quanto mais não seja, faz exatamente o mesmo por imitação.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui