A explosão de duas bombas numa cidade iraniana provocou, esta quarta-feira, mais de 100 mortos. Foi o último de uma série de ataques contra o Irão ou grupos armados aliados na região que indiciam uma intenção de provocação à República Islâmica. Dois investigadores ouvidos pelo Expresso coincidem na análise. A guerra não está a correr bem ao primeiro-ministro israelita. Prolongá-la e abrir novas frentes na região é uma necessidade de Benjamin Netanyahu, em nome da sua própria sobrevivência política

Há exatamente quatro anos, no aeroporto de Bagdade, capital do Iraque, um míssil certeiro disparado por um drone dirigido por forças dos Estados Unidos — era Donald Trump o inquilino da Casa Branca — atingiu mortalmente o general iraniano Qassem Soleimani.
Esta quarta-feira, a explosão de duas bombas, perto do Cemitério dos Mártires, onde Soleimani está enterrado, na cidade de Kerman (centro do Irão), provocaram pelo menos 103 mortos e 141 feridos. O banho de sangue levou o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, a cancelar a sua visita à Turquia, prevista para esta quinta-feira.
Este “ataque terrorista”, como depressa foi rotulado pelas autoridades iranianas, atingiu em cheio uma multidão que se dirigia para uma cerimónia em memória daquele herói nacional — que teve um papel determinante na derrota do Daesh no Iraque e na Síria.
A tragédia fez acionar os alertas da escalada do conflito na região do Médio Oriente, que, menos de 24 horas antes, já sofrera um poderoso abalo com o assassínio de Salah al-Aaruri, número dois do Hamas, num ataque com drone atribuído a Israel, no sul de Beirute, capital do Líbano.
“O significado dos dois ataques consecutivos não se prende com quem era Soleimani ou com o seu legado enquanto figura política e estratégica, mas com o simbolismo da sua liderança da Força Quds”, diz ao Expresso Mohammed Cherkaoui, professor na área da Resolução de Conflitos na Universidade George Mason (Virgínia, EUA). “O alvo de Kerman é a ligação Irão-Palestina, menos de 20 horas após o assassínio do número dois do Hamas, em Beirute.”
A Força Quds, que adota o nome árabe da cidade de Jerusalém, é uma unidade de elite dentro do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irão. Está encarregue do apoio de Teerão a um conjunto de peões na região, que atuam em nome do interesse nacional iraniano — como o grupo islamita palestiniano Hamas, o movimento xiita libanês Hezbollah e os rebeldes iemenitas hutis. Atualmente, todos estão empenhados, em maior ou menor grau, em ações de confronto com Israel.
Nenhum dos dois ataques foi reivindicado, mas na região aponta-se o dedo ao Estado judeu. Na rede social X, o deputado israelita Danny Danon, antigo embaixador nas Nações Unidas, confirmou suspeitas e felicitou “as Forças de Defesa de Israel, o Shin Bet, a Mossad e as forças de segurança pelo assassínio de Salah al-Aaruri”, no Líbano. “Qualquer pessoa envolvida no massacre de 7 de outubro deve saber que entraremos em contacto e apresentaremos a fatura.”
Nascido na cidade palestiniana de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, Salah al-Aaruri era o principal coordenador das ações do Hamas naquele território palestiniano. A confirmar-se a implicação de Telavive na sua morte, foi a primeira vez que Israel atacou na capital libanesa desde a guerra de 34 dias que travou com Hezbollah, no verão de 2006.
Com que objetivo o fez agora?
“Até agora, a guerra em Gaza do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, que dura há quase três meses, parece debater-se com dificuldades ao nível da erradicação do Hamas, da libertação dos reféns e da alteração da geopolítica da Faixa de Gaza”, continua o antigo membro do Painel de Peritos das Nações Unidas. “Parece ter mudado de tática na direção do norte, onde o Hezbollah poderá retaliar pelo assassínio do líder palestiniano, no sul de Beirute.”
Neste sentido, a intenção de Netanyahu seria mostrar mão dura e, ao mesmo tempo, procurar transmitir liderança e segurança ao povo israelita. Mas outra razão maior sobressai.
“Netanyahu está também a tentar provocar um confronto com os iranianos e, possivelmente, uma guerra regional. Acredita que é o melhor momento estratégico para puxar a perna dos Estados Unidos, numa demonstração de força contra o Irão, tomado pelo apelo de que há que parar o ‘Irão nuclear’, que vem desde o seu famoso discurso na Assembleia-Geral da ONU, em que mostrou o desenho de uma ‘bomba nuclear iraniana a fazer tique-taque’”, acrescenta.
Javad Heirannia, que dirige o Centro de Investigação Científica e Estudos Estratégicos do Médio Oriente, de Teerão, enumera indícios recentes que revelam que Israel está de olho no Irão. “As condições da guerra em Gaza e a intensificação dos ataques dos hutis do Iémen no Mar Vermelho e no Estreito de Bab al-Mandab aumentaram as tensões”, diz ao Expresso.
“Primeiro, Israel enviou uma mensagem de alerta e dissuasão ao Irão, ao levar a cabo atos de sabotagem dentro do país, incluindo um ataque cibernético a postos de gasolina. Depois, fez um aviso ainda mais sério, visando o comandante dos Guardas da Revolução na Síria. Com as explosões em Kerman, Israel elevou o nível de alerta dissuasor contra Teerão e anunciou que pode criar insegurança e atingir o Irão por dentro.”
O episódio na Síria de que fala Heirannia ocorreu a 25 de dezembro. Razi Mousavi, principal comandante da Força Quds nesse país e coordenador da relação entre Teerão e Damasco, foi morto na sua casa, no bairro de Sayida Zeinab, a sueste da capital síria, atingida por três mísseis.
“Israel realiza estes planos de assassínios contra o que considera serem ‘alvos ligados ao Irão’. Netanyahu internalizou o medo — nele mesmo e no Likud [o seu partido, no poder] e nos círculos políticos de direita — de que o principal inimigo de Israel é o Irão”, explica Mohammed Cherkaoui. “Agora, ele não está a travar uma guerra dual entre Israel e o Hamas, antes a arquitetar um extravasamento em formato triangular, onde o Hezbollah no Líbano, os hutis no Iémen, milícias armadas na Síria e no Iraque, e o Irão vão para um confronto de força. Confia no que considera ser uma mola para as relações Israel-Ocidente.”
Nasrallah ao ataque… verbal
Esta quarta-feira, o líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, fez um discurso evocativo do aniversário da morte de Soleimani. A milícia xiita que lidera — que é também uma formação política (Partido de Deus), com deputados eleitos e ministros no Governo — é um dos principais vértices do chamado “eixo de resistência” que o regime de Teerão promove junto de peões regionais, que atuam em seu nome.
A expectativa em relação à comunicação de Nasrallah redobrou de interesse após a morte do n.º 2 do Hamas em território libanês. Mas Nasrallah absteve-se de ameaças concretas. “Se o inimigo pensa travar uma guerra contra o Líbano, a nossa luta será sem teto, sem limites, sem regras”, disse Nasrallah, remetendo para sexta-feira um novo discurso sobre o assunto.
Em paralelo aos bombardeamentos e à ofensiva terrestre de Israel na Faixa de Gaza, tem-se registado troca de fogo entre forças israelitas estacionadas no norte de Israel e grupos do Hezbollah no sul do Líbano. De um lado e do outro já houve vítimas mortais, mas a situação ainda não evoluiu para uma guerra aberta.
Uma sucessão de ataques como os de Damasco, Beirute e, hoje, em Kerman potencia uma escalada que pode contagiar toda a região. Heirannia pensa que esse cenário não é do interesse de Teerão. “O Irão sabe que entrar numa guerra futura com Israel arrastará a América para esse conflito, e esta não é uma opção desejável para Teerão. Parece que o Irão vai adiar a vingança para outro momento. A questão principal é qual poderá ser a avaliação de Israel e qual a sua próxima ação. Não esqueçamos que as guerras sempre foram baseadas em erros de cálculo.”
Netanyahu quer o Irão na guerra
Após o ataque do Hamas a Israel, a 7 de outubro, o Irão negou envolvimento direto e tanto Israel como os Estados Unidos afastaram essa possibilidade no exercício de identificação de culpados. Para Cherkaoui, com o evoluir da guerra, a entrada do Irão num conflito abrangente tornou-se “o desejo ideal de Netanyahu por várias razões”.
“Primeiro, tem necessidade extrema de prolongar a guerra e abrir novas frentes na região. Também teme a retaliação política dos seus adversários e de um grande segmento da sociedade israelita que leve a perder o cargo e à possibilidade de um processo judicial e condenação que o leve à prisão”, conclui o académico.
“O que faz sentido para ele, agora, é gerir a sua guerra em Gaza pressionando no sentido de uma escalada regional. Recordemos como os governos ocidentais, de Washington a Berlim, se apressaram, política e militarmente, a proteger a segurança nacional de Israel a 7 de outubro de 2023, sob o lema: ‘Israel está sob ataque do Hamas’. Agora imagine-se o que faria o Ocidente em reação a: ‘Israel está sob ataque do Irão!’…
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de janeiro de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui




