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Decapitar: História antiga e cruel

Sempre que o Daesh (“Estado Islâmico”) decapita reféns, mais do que os indivíduos em questão pretende anular tudo aquilo que representam. Foi assim com o norte-americano Peter Kassig, raptado a 1 de outubro de 2013 quando fazia trabalho humanitário na Síria, e de 12 soldados do Exército sírio, decapitados por outros tantos carrascos numa encenação filmada e posta a circular na internet esta semana. Nas mãos dos extremistas estão ainda o jornalista britânico John Cantlie e uma norte-americana de 26 anos, cuja identidade não foi revelada. Pelo menos.

Com maior ou menor teatralização, decapitar inimigos é uma tática que atravessou a História, desde o momento da forja das primeiras espadas. Separar a cabeça do corpo era uma forma de execução rápida, barata e eficaz.

Nas suas crónicas sobre as Cruzadas, Fulquério de Chartres, capelão do exército de Balduíno de Bolonha, conta como os cristãos decapitaram 10 mil judeus e árabes na conquista de Jerusalém (1099).

Rápida e reputadamente indolor, tornou-se, na Europa, uma forma de “morte digna” para a nobreza indesejada, por oposição ao infame enforcamento, reservado ao povo. Democratizou-se e industrializou-se com a Revolução Francesa, mas com o tempo as guilhotinas passaram da praça pública para o interior das prisões. A última em França foi em 1977, na prisão Les Baumettes, em Marselha. (Na Suécia foi em 1910 e na Alemanha em 1949.) A pena capital — “caput”, em latim, significa “cabeça” — só foi abolida em França em 1982.

Após o 11 de Setembro, a decapitação do jornalista americano Daniel Pearl, no Paquistão, às mãos da Al-Qaida, deu o mote para a era das trevas que se seguiria. Entre os fanáticos da Jihad popularizou-se com Abu Musab al-Zarqawi, abatido em 2006 por forças dos EUA. O jordano liderava a Al-Qaida no Iraque, precursora do Daesh, que hoje domina parte da Síria e Iraque e inspira a barbárie fora de portas. A 22 de maio de 2013, o soldado britânico Lee Rigby foi degolado por um extremista britânico numa rua de Londres à luz do dia.

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pessoas foram decapitadas, este ano, na Arábia Saudita, o único país que executa penas assim. Iémen, Qatar e Irão preveem o método mas não o aplicam

TRÊS PERGUNTAS A PAULO MENDES PINTO, DIRETOR DO CURSO CIÊNCIA DAS RELIGIÕES DA UNIVERSIDADE LUSÓFONA

Qual o significado de decapitar?
Historicamente, o ato de decapitar já se encontra atestado na Idade do Bronze. Na Paleta de Narmer, fonte importante para se conhecer a unificação do Antigo Egito, na passagem do IV para o III milénio a.C., o monarca surge junto a uma fiada de guerreiros inimigos mortos, deitados no chão com a cabeça entre as pernas. É uma morte “eficaz”: passar o pescoço a fio de espada é uma forma de garantir que nenhum inimigo sobrevive. Mas a simbologia do ato vai mais longe. No Mediterrâneo, a degola é a forma mais comum de sacrificar um animal. Esse sacrifício apela ao uso simbólico e ritual do sangue: os corpos devem ser sangrados. A única forma eficaz para sangrar um animal é pelo pescoço. Neste sentido, decapitar já não é apenas matar, mas tem o intuito de vazar o corpo do líquido da vida.

Com que fim?
Ao separar o órgão que se julgava do pensamento, o coração, do órgão de expressão, a boca, decreta-se ao defunto a incapacidade de proferir e realizar no Além ritos e afirmações que lhe dariam acesso à eternidade. O corpo deixa de ser uno e coeso. Para as religiões nascidas no Mediterrâneo, a inviolabilidade do corpo é condição para que num dia de Juízo Final possa haver um novo tempo.

A decapitação tem um significado especial no Islão?
Os radicais islâmicos pegam em versículos corânicos de tradução complexa e sustentam assim, teologicamente, o ato. Estes radicais seguem uma linha de leitura literalista do texto sagrado, não atualizando a sua interpretação. Quase todos os textos sagrados decretaram, algures, a morte nas formas mais bárbaras. Está na mente dos crentes seguir, ou não, a literalidade. Os textos sagrados são sempre reflexo de um tempo. Hoje, o caminho mais importante que veremos fazer muitos teólogos islâmicos é o da contemporaneização da interpretação, em vez da literalização. É inevitável que esse esforço venha a fazer-se, tanto mais que o que agora se abre com o autoproclamado “Estado Islâmico” vai deixar muitas e profundas feridas dentro do próprio Islão.

EPISÓDIOS HISTÓRICOS

A FÉ DE ABRAÃO
O patriarca das três religiões monoteístas dispõe-se a degolar o filho Isaac como prova de fé.

DAVID & GOLIAS
O gigante filisteu é derrubado por uma pedra atirada pelo israelita David que depois lhe corta a cabeça.

JUDITH VENCE O DITADOR
Viúva judia, seduz o general assírio Holofernes, no séc. VI a.C. e decapita-o, salvando a sua cidade, Betulia, do tirano Nabucodonosor.

SÃO JOÃO BATISTA, O MÁRTIR
Herodes manda executar o pregador João Batista. A sua cabeça é entregue, numa bandeja, a Salomé, neta do monarca.

ANA BOLENA, SEMPRE RAINHA
Mulher de Henrique VIII, em 1536 é decapitada por um francês. Não aceita um carrasco inglês, que usava machado; com espada, podia morrer de cabeça erguida.

REVOLUÇÃO FRANCESA
Em 1789, o médico Guillotin apresenta uma invenção na Assembleia: “Senhores, com a minha máquina, farei saltar a cabeça num abrir e fechar de olhos sem sofrimento… O mecanismo cai como um raio, a cabeça voa, o sangue jorra, o homem deixa de existir!” No máximo, o condenado terá, “na nuca, uma sensação de hálito fresco”.

GUERRA NOS PRESÍDIOS
O Primeiro Comando da Capital, criado em 1993, degola inimigos para controlar prisões brasileiras.

Artigo publicado no Expresso, a 22 de novembro de 2014 e republicado no “Expresso Online”, a 27 de julho de 2016. Pode ser consultado aqui

Samantha, britânica, viúva e terrorista

Um dos principais suspeitos do ataque ao centro comercial de Nairobi é uma britânica de 29 anos. Há algum tempo que Samantha Lewthwaite está associada a atividades terroristas

Samantha Lewthwaite é uma britânica de 29 anos suspeita de ser um dos principais operacionais da célula terrorista que atacou o centro comercial de Nairobi.

Branca, loira e mãe (as informações sobre o número de filhos variam entre os dois e os quatro), ela é a viúva de Germaine Lindsay, um dos quatro bombistas suicidas dos atentados de 7 de julho de 2005, em Londres (56 mortos).

As suspeitas sobre Samantha decorrem de testemunhos de sobreviventes, que afirmam ter visto “uma mulher branca, velada” entre os sequestradores. Alguns dizem mesmo que a mulher era a voz de comando entre os terroristas.

Segundo o diário britânico “The Mirror”, o grupo terrorista Al-Shabaab — que reivindicou o ataque — louvou, numa mensagem no Twitter, a “irmã branca” e manifestou orgulho em te-la nas suas fileiras. A conta @HSM_PRESS2 foi, entretanto, suspensa.

Uma jovem normal

Filha de um militar, Samantha é oriunda de Banbridge, County Down, na Irlanda. Aos 15 anos, converteu-se ao Islamismo e, em 2002 — tinha 18 anos —, casou-se com Germaine Lindsay, nascido na Jamaica, também ele, um convertido à religião muçulmana.

Educado pela mãe, na área de Huddersfield, West Yorkshire, Germaine (conhecido por Abdullah Shaheed Jamal) nunca escondeu os seus pontos de vista extremistas, tendo mesmo alarmado alguns professores pelas suas tentativas de radicalizar alunos mais novos.

Em setembro de 2003, o casal estabeleceu-se em Aylesbury, Buckinghamshire. “Ela era uma rapariga média, britânica, jovem, normal. Tinha uma grande personalidade. Não tinha muita confiança”, testemunha Raj Khan, vereador do distrito de Aylesbury, que conhece a família de Samantha.

Após o 7 de julho de 2005, onde Germaine matou 26 pessoas após fazer-se explodir na estação de metro de King’s Cross, Samantha foi dada como fugitiva, juntamente com os filhos.

Um rasto de atividades suspeitas 

Em dezembro de 2011, a polícia queniana invadiu um apartamento em Mombaça, onde encontrou químicos semelhantes àqueles usados nos ataques de Londres. O apartamento estava arrendado em nome de Samantha, que, porém, não foi capturada.

No local, foi detido um britânico, convertido ao Islão, Jermaine Grant, que afirmou trabalhar para Samantha. O julgamento de Grant, de 30 anos, começou hoje, em Mombaça, sob fortes medidas de segurança.

A 29 de fevereiro de 2012, o influente “The Times” publicou uma foto de Samantha na capa e titulou: “Viúva de bombista do 7 de julho perseguida em alerta terrorista”.

O artigo referia que Samantha, que usava várias identidades, incluindo a verdadeira, era procurada pelas autoridades quenianas por suspeitas de envolvimento em atividades terroristas. No mês seguinte, Samantha terá fugido para a Somália.

“Em artigos na imprensa, Lewthwaite tem sido descrita como uma financiadora, recrutadora e treinadora da Al-Qaeda e a criadora de um esquadrão jihadista feminino em África”, escreve o “Christian Science Monitor”. “Ela tem sido acusada de orquestrar ataques com granadas em centros de oração de ‘infiéis do Islão’ e cre-se que está por detrás do ataque num bar de Mombaça durante a transmissão de um jogo (Inglaterra-Itália) do Euro 2012.”

Um dos falsos passaportes que Samantha Lewthwaite terá usado
Samantha Lewthwaite, de 29 anos, nasceu na Irlanda do Norte
Samantha é viúva de um dos bombistas suicidas do atentado de 7 de julho de 2005 em Londres
As autoridades quenianas acreditam que a jovem ajudou a organizar o atentado ao centro comercial Westgate
Há relatos de sobreviventes que dizem ter visto “uma mulher branca, velada” entre os sequestradores

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de setembro de 2013. Pode ser consultado aqui

Razia no aparelho de segurança sírio

Um atentado suicida atingiu, hoje, a célula de crise do regime sírio, matando ministros e altos responsáveis pela segurança do Estado. O atacante trabalhava como guarda-costas no círculo próximo do Presidente Bashar al-Assad

Um atentado suicida no interior do quartel-general da Segurança Nacional, no bairro de Rawda, em Damasco, provocou uma razia no aparelho securitário do regime sírio. Entre os mortos constam o ministro do Interior, Mohammed Ibrahim al-Shaar, o ministro da Defesa, General Daoud Rajha, e o seu vice, Assef Shawkat, cunhado do Presidente Bashar al-Assad.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos classificou a morte de Shawkat como um “duro golpe para o regime sírio uma vez que ele desempenhava o papel principal nas operações do Exército regular visando o esmagamento da revolução”.

No ataque, morreram também Hafez Makhlouf, chefe do departamento de investigação dos serviços secretos, e o General Hassan Turkmani, um ex-ministro da Defesa e atual conselheiro do Vice-Presidente sírio. Entre os feridos com gravidade está o chefe do gabinete de Segurança Nacional, General Hisham Ikhtiyar.

Guarda-costas e inflitrado

O ataque foi perpetrado por um guarda-costas do círculo próximo do Presidente que terá detonado um cinto de explosivos dentro da sala onde estava reunida a chamada Célula de Crise. Este grupo era constituído pelos principais ministros e responsáveis pela segurança do Estado e obedecia a ordens diretas do Presidente Al-Assad. Duas organizações reivindicaram o atentado.

O Exército Sírio Livre (o grupo rebelde que tem sido o principal motor dos combates contra o Exército de Assad) congratulou-se com as “boas notícias relativamente à operação espetacular” que matou oficiais “responsáveis por massacres bárbaros”. Na sua página no Facebook, o grupo islamita Liwa al-Islam (Brigada do Islão) também assumiu a autoria do atentado.

Pressão aumenta na ONU

Em 16 meses de contestação anti-regime, este foi o atentado mais mortífero contra as esferas políticas próximas de  Bashar al-Assad. E aconteceu horas antes de um importante debate no Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre novas sanções à Síria. Mais uma vez, na ONU, espera-se um braço de ferro entre as potências ocidentais e, em defesa do regime sírio, a Rússia e a China.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de julho de 2012. Pode ser consultado aqui

“Bin Laden nunca usou mulheres nas suas batalhas”

Ferida no raide de Abbottabad, a quinta esposa de Bin Laden está sob custódia do Paquistão. Homem que arranjou o casamento alerta para o perigo de ser entregue aos EUA

A família de Osama bin Laden INFOGRAFIA DAILY MAIL

“Pia, zelosa, nova, de boas maneiras, oriunda de uma família decente e, acima de tudo, paciente. Ela terá de assumir as minhas circunstâncias excecionais.” Quando Osama Bin Laden decidiu casar-se pela quinta vez, não se inibiu de discriminar as características desejadas para a sua futura esposa.

A ‘encomenda’ foi feita a um sheikh iemenita, residente em Cabul e próximo do líder da Al-Qaeda. Estava-se em setembro de 1999 e Bin Laden, com 44 anos, vivia no Afeganistão, a coberto do regime talibã que governava o país. Rashad Mohammed Saeed Ismael, o tal sheikh iemenita, pregava na capital afegã.

O pedido chegou um dia por telefone. Rashad logo identificou o par ideal para Bin Laden: Amal Ahmed al-Sadah, de 17 anos, filha de um operário da construção civil. Fora sua aluna e vivia na sua cidade natal: Ibb, no sudoeste do Iémen.

Casamento no coração da luta talibã

O iemenita procurou a rapariga, explicou-lhe quem era Bin Laden e descreveu-lhe o seu modo de vida saltimbanco. A jovem aceitou e a sua família recebeu um dote de 5000 dólares. Seguiu para o Paquistão onde, dias depois, Bin Laden acorreu para a levar para o Afeganistão. Casaram-se em Kandahar, ainda hoje o coração da insurgência talibã.

A 2 de maio de 2011, Amal ficou ferida durante o raide norte-americano à casa onde vivia, em Abbottabad, no Paquistão, juntamente com Bin Laden. Juntamente com Safiyah, a filha de 10 anos, está agora sob custódia das autoridades paquistanesas.

Rashad, que se afirma como um forte apoiante da Al-Qaeda no Iémene, exige que Amal regresse ao país onde nasceu. “No Islão, temos uma prática chamada ardth [honra familiar]. Quando uma mulher como Amal fica viúva, é dever de todos os muçulmanos cuidar dela e assegurar-lhe segurança. O povo do Iémene quer que ela regresse a casa.”

Honra das mulheres é intocável

Rashad acredita que o destino da família de Bin Laden pode ter consequências mais gravosas do que a própria morte do líder da Al-Qaeda. “Nós [Al-Qaeda no Iémene] recebemos a notícia da morte de Bin Laden com felicidade porque sabíamos que ele queria morrer como um mártir às mãos dos americanos. Mas o destino da sua família é uma questão de honra das mulheres, algo que consideramos intocável.”

Há quem receie que se Amal voltar ao Iémene possa ser utilizada como peão, no âmbito da revolução em curso no país e ser entregue pelo contestado Presidente Ali Abdullah Saleh aos Estados Unidos.

Para Rashad, qualquer ação dos EUA contra Amal ou a sua família “causará uma explosão entre o ocidente e o mundo islâmico. As mulheres não são combatentes. A América sabia que Bin Laden nunca usou mulheres nas suas batalhas”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de maio de 2011. Pode ser consultado aqui