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A nova ‘moeda de troca’ da política internacional

Vários países estão a usar a vacina para a covid-19 para projetar poder. Ao doarem milhares de doses, solucionam problemas, mas a prazo buscam compensações políticas

O arsenal de armas de soft power com que os Estados procuram projetar a sua influência no mundo sem recorrer à guerra ganhou um novo elemento — a vacina para a covid-19. Desde que soou o tiro de partida da imunização em todo o mundo, alguns países têm doado milhões de doses a terceiros com indisfarçável interesse político.

“A vacina está a ser usada como qualquer outro instrumento de política externa, é um meio para atingir um fim maior”, explica ao Expresso Pedro Ponte e Sousa, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A prática assemelha-se a outros benefícios económicos que normalmente se utilizam como ‘cenoura’ destinada a premiar o comportamento de um Estado ou levar a um comportamento que se pretende.” Ajuda humanitária, alívio de dívida, assistência bilateral, dinheiro a fundo perdido ou empréstimos, acesso a tecnologia, participação em organizações internacionais… “Usa-se uma ferramenta económica, mas o objetivo é político.”

China, Índia e Rússia — pesos-pesados da geopolítica mundial e produtores da vacina — têm direcionado milhões de doses para fora do país, quando a inoculação das respetivas populações está numa fase inicial. “A vacina é tão ou mais valiosa para qualquer dos Estados em causa do que qualquer apoio económico ou financeiro, pelo que é provável que as consequências desta ação, o efeito permanente deste soft power, seja mais durável no tempo”, acrescenta o académico. “Esse apoio, em momentos difíceis, vai deixar uma marca consistente tanto nos decisores como na população.”

CHINA: Enterrar o “vírus chinês”

Para a China — onde começou a pandemia —, a vacina revelou-se uma oportunidade para acabar com a narrativa do “vírus chinês”, que Donald Trump, ex-Presidente dos Estados Unidos, propalou até à exaustão. Com quatro vacinas aprovadas (Sinopharm, Sinovac, CanSino e Sinopharm Wuhan), presenteá-las a terceiros é para Pequim um atalho eficaz para melhorar a imagem.

No início de fevereiro, a China anunciou a doação de vacinas a 14 países asiáticos e africanos e a intenção de “assistir” outros 38. As 100 mil doses enviadas para a Guiné Equatorial, por exemplo, garantiram a imunidade de 4% da população.

A dimensão asiática desta “diplomacia da vacina” é, para a China, muito condicionada pela rivalidade com a Índia. O primeiro país a receber a vacina chinesa de graça foi o Paquistão, arquirrival da Índia. Outro beneficiário foi o Sri Lanka, ‘campo de batalha’ entre chineses e indianos pelo domínio da Ásia do Sul. A 28 de janeiro chegaram ao país 500 mil doses oferecidas pela Índia. À espera, no aeroporto de Colombo, o Presidente Gotabaya Rajapaksa agradeceu a “generosidade”. Na Índia, a imprensa tratou o assunto como vitória diplomática sobre a China. Dias depois, Pequim fez chegar ao Sri Lanka 300 mil doses da sua vacina.

Com mais de 1400 milhões de habitantes, a China tinha vacinado, até 28 de fevereiro, apenas 3,65% da sua população — Portugal vai nos 8,68%. Essa circunstância não contém o regime comunista no seu esforço de afirmação externa. “O facto de as democracias estarem (mais) sujeitas a pressões e escrutínio públicos poderá promover a lógica de ‘os nossos primeiro’ e levar a que regimes autocráticos, menos limitados na alocação de recursos e na elaboração da sua política externa, possam dedicar-se mais a essa oferta”, diz Ponte e Sousa. “Os regimes autocráticos precisam mais desse apoio internacional para melhorar a sua imagem. Poderão ‘esforçar-se mais’ para obtê-lo.”

ÍNDIA: A farmácia do mundo

A pandemia permitiu à Índia mostrar os músculos ao nível da produção de vacinas e afirmar-se como “a farmácia do mundo”. O Instituto Serum (privado e com sede em Pune) é o maior fabricante mundial de vacinas — estima-se que 65% das crianças de todo o mundo recebam pelo menos uma vacina ali produzida. Diariamente, o Instituto fabrica 2,5 milhões de doses da vacina da AstraZeneca-Oxford para a covid-19 (chamada localmente Covishield), destinada aos mercados externo e interno.

Outro laboratório indiano — Bharat Biotech, que exporta para mais de 120 países — desenvolveu uma vacina própria (Covaxin). Autorizada apenas na Índia, foi administrada ao primeiro-ministro Narendra Modi.

A “diplomacia da vacina” tem permitido a Nova Deli rentabilizar a política de “vizinhança primeiro”, teorizada por Modi, e dar réplica ao avanço da China. Nesse espírito, Sri Lanka, Nepal, Maldivas, Maurícias, Butão, Bangladesh, Seychelles, Afeganistão e Myan­mar já receberam doações da Índia.

Com base no princípio filosófico indiano Vasudhaiva Kutumbakam — frase em sânscrito, encontrada em textos hindus, que significa “o mundo é uma família” —, a Índia já começou a doar vacinas para fora da região. Nas redes sociais, Nova Deli vai publicitando a chegada de carregamentos da Covishield a um novo país com a hashtag #VaccineMaitri (“vacina pela amizade”). Só esta semana, pelo menos Ruanda, Quénia, Nigéria, Angola, Senegal e Camboja receberam doses made in Índia. Até quarta-feira o país enviara 45,6 milhões para 46 países — 7,1 milhões a título gratuito.

RÚSSIA: Reforçar estatuto

Ao batizar a vacina de Sputnik V — recuperando uma designação que remete para os anos gloriosos da exploração espacial da União Soviética —, a Rússia não escondeu a intenção de a usar para reclamar estatuto internacional.

A Sputnik V foi a primeira vacina para a covid-19 aprovada em todo o mundo para uso doméstico, no longínquo 11 de agosto de 2020. Despertou dúvidas acerca da sua eficácia ao não cumprir todas as etapas do processo de produção. O Presidente Vladimir Putin disse que a tomaria, mas até ao momento ainda não o fez. Fora de portas, porém, a Sputnik-V já está a ser usada como bandeira.

A Alrosa — empresa russa parcialmente estatal, líder mundial da mineração de diamantes — anunciou a compra de dezenas de milhares de doses dessa vacina para oferecer a Angola e ao Zimbabwe, países onde opera.

Na ânsia de exportar a sua vacina, o Kremlin conta com um ‘aliado’ inesperado: a resistência do povo à vacinação, que tem feito sobrar doses. “Pergunto-me porque está a Rússia a oferecer, teoricamente, milhões e milhões de doses, embora não avance o suficiente na vacinação do seu próprio povo”, insinuou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, decerto incomodada com a interferência russa na coordenação europeia. É que, por força dos atrasos na entrega das vacinas contratualizadas por Bruxelas, a Rússia já conseguiu vender a Sputnik-V à Hungria.

OUTROS EXEMPLOS

SÉRVIA — Comprou vacinas à China, à Rússia e à Pfizer e distribuiu uns milhares de doses pela vizinhança, em especial um país com quem estava em guerra há menos de 20 anos: Bósnia-Herzegovina. Antes ofereceu vacinas à Macedónia do Norte e Montenegro.

ISRAEL — Quase a tornar-se o primeiro a vacinar toda a população, ofereceu doses a países que aceitaram transferir as suas embaixadas para Jerusalém (Guatemala, Honduras, República Checa). Comprou vacinas à Rússia para entregar à Síria em troca da libertação de uma israelita.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS — A riqueza proveniente do petróleo permitiu-lhe comprar vacinas para oferecer a países onde tem interesses comerciais ou estratégicos. As Seicheles (100 mil habitantes), onde têm projetos energéticos e são parceiros no combate à pirataria, receberam 50 mil doses.

(ILUSTRAÇÃO PIXAHIVE)

Artigo publicado no “Expresso”, a 5 de março de 2021. Pode ser consultado aqui