Perseguidos, mas não esquecidos

Por todo o mundo, o exercício da fé cristã chega a ganhar contornos de crime. Seja porque os crentes vivem sob a alçada de regimes que admitem uma religião só, seja devido à intolerância de sociedades nacionalistas, seja porque “califados oportunistas” substituem-se aos Estados, não faltam exemplos de perseguição aos cristãos

ILUSTRAÇÃO Cristiano Salgado

Aquele 8 de abril de 2021 tinha tudo para ser um dia normal no Hospital Civil de Faisalabad, na província paquistanesa do Punjab. Como muitas outras vezes, as enfermeiras Mariam Lal, de 54 anos, e Nawish Arooj, de 21, estavam de serviço na ala psiquiátrica. A descida aos infernos destas paquistanesas começou quando um paciente lhes deu para a mão um autocolante rasgado que tinha arrancado de um armário de medicamentos. O papel tinha impressa uma passagem do Alcorão. Na manhã seguinte, um grupo de pessoas em fúria confrontou as duas enfermeiras e acusou-as de blasfémia. Mariam e Nawish eram cristãs e aquele autocolante rasgado era a prova de um ato de “profanação do Alcorão”.

INFOGRAFIAS Carlos Esteves

No Paquistão, acusações de blasfémia, muitas vezes falsas, motivam atos de vingança e manifestações de ódio que, amiúde, resultam em linchamentos. Um número desproporcionalmente elevado de casos envolve cristãos. Das 1550 pessoas acusadas de blasfémia desde 1986, quando o código penal foi alterado para incluir o crime de “profanação do Alcorão”, os cristãos surgem implicados em cerca de 15% dos casos, ainda que correspondam a menos de 2% da população.

A partir do seu esconderijo, Mariam e Nawish partilharam a sua história com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre (AIS), que destacou o caso no relatório “Perseguidos e Esquecidos?”, divulgado em novembro passado. Esta instituição pontifícia, com sede na Alemanha e representação em Portugal, trabalha com base em dados que são do domínio público e, em especial, informações recolhidas junto da Igreja local.

As duas mulheres foram levadas e colocadas sob proteção policial. Numa decisão sem precedentes no Paquistão, dado os casos de blasfémia serem, frequentemente, punidos com pena de prisão, ambas foram libertadas sob fiança. É uma liberdade relativa, já que Mariam e Nawish passaram a viver em local secreto, temendo pela vida o tempo todo.

O relatório, que se publica desde 2004, conclui que hoje os cristãos são “vítimas de assédio por motivos religiosos, desde abusos verbais a assassínios, em mais países do que nunca”, lê-se. “Em muitos casos, se não na maioria, esta deterioração não afetou todo o país, mas apenas regiões específicas”, onde a presença de cristãos é expressiva.

Na última edição, pela primeira vez, o relatório destaca a situação na Nicarágua, onde o regime liderado por Daniel Ortega e sua mulher, Rosario Murillo, tem visado a Igreja Católica, seja expulsando membros do clero do país, obrigando ao encerramento de organizações geridas pela Igreja ou restringindo atividades religiosas, como impedir padres de entrarem em hospitais, mesmo que a pedido de doentes, para dar o sacramento da unção.

A 11 de fevereiro de 2023, D. Rolando Álvarez, o bispo de Matagalpa, foi destituído da cidadania e condenado, sem julgamento, a 26 anos de prisão, por um tribunal de Manágua, que o considerou “traidor à pátria”. O bispo é uma voz crítica do regime e nunca cedeu às pressões para se exilar. Acabou por ser expulso para o Vaticano, em janeiro de 2024, juntamente com outro bispo, 15 sacerdotes e dois seminaristas. Seguiu-se a anulação do estatuto jurídico de inúmeras instituições ligadas à Igreja e o confisco de bens. A pedido das autoridades de Manágua, a Santa Sé encerrou a sua representação diplomática na Nicarágua, na sequência da expulsão do país do núncio apostólico.

Califados oportunistas

Noutras latitudes, os cristãos sofrem às mãos dos chamados “califados oportunistas” que se tornaram uma grande preocupação, em particular na região do Sahel. As tradicionais estratégias de grupos jiadistas de matança e pilhagem deram lugar a uma tendência de imposição de sistemas fiscais e comerciais ilegais ao estilo de ‘um Estado dentro do Estado’ que, muitas vezes, visa as populações cristãs.

Nos últimos anos, em especial após o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh) ter sido derrotado no Iraque e na Síria, o epicentro da violência militante islamita deslocou-se do Médio Oriente para África. Na Nigéria, na véspera de Natal de 2023, mais de 300 cristãos foram mortos após extremistas da etnia fulani (muçulmana) invadirem mais de 30 aldeias, no estado de Plateau (centro). Dispararam armas de fogo, incendiaram localidades inteiras e destruíram reservas de alimentos. Jalang Mandong, que perdeu dez familiares no massacre, relatou à AIS que os ataques tiveram por objetivo “perturbar a celebração do Natal” e roubar terras às comunidades.

Os cristãos representam quase metade da população da Nigéria. Em especial no norte do país, onde continuam ativos grupos terroristas como o Boko Haram e o autoproclamado “Estado Islâmico da Província da África Ocidental”, são muitas vezes objeto de discriminação e acusações de blasfémia decorrentes da imposição da sharia (lei islâmica) em pelo menos 12 dos 36 Estados do país.

Na mesma área geográfica, o Burquina Fasso é um caso recente de agravamento da perseguição aos cristãos, que são minoritários no país. Um dos primeiros episódios que fez soar os alarmes aconteceu em outubro de 2023, quando, na região de Débé, dois escuteiros foram executados no interior de uma igreja por extremistas islâmicos — um em frente ao altar, o outro junto à estátua da Virgem Maria. Os jovens tinham por hábito escoltar crianças até uma escola na localidade vizinha de Tougan, onde estava estacionado o exército burquinense. Os terroristas tinham encerrado as escolas nas zonas onde estavam. Após este incidente, mais de 340 cristãos receberam um ultimato de 72 horas para abandonar as suas aldeias.

Os limites do Irão

“Os ataques de grupos islamitas afetaram vários grupos religiosos, incluindo os muçulmanos tradicionais”, lê-se no relatório, que cita o bispo burquinense Justin Kientega, de Ouahigouya, segundo o qual os cristãos são mais visados pelos jiadistas e enfrentam um controlo mais rigoroso e punições mais severas do que os seus vizinhos muçulmanos. “Não há liberdade de culto. Em algumas aldeias, [os jiadistas] permitem que as pessoas rezem, mas proíbem o catecismo; noutros locais, dizem aos cristãos para não se reunirem na igreja para rezar.”

A predominância da lei islâmica é fator de discriminação também no Irão, um Estado teocrático que tem um “grande ayatollah” no topo da pirâmide do poder. Nos últimos anos, os cristãos têm sofrido na pele a mão de ferro do regime que silenciou os gigantescos protestos populares que se seguiram ao “caso Mahsa Amini”, a muçulmana que foi detida e mortalmente agredida, em 2022, pela polícia de costumes, que fiscaliza nas ruas se a indumentária dos cidadãos respeita os preceitos da República Islâmica. No caso de Mahsa, consideraram que não levava o véu na cabeça, de uso obrigatório para as mulheres, corretamente colocado.

Os cristãos também não escapam. A 13 de fevereiro de 2024, Laleh Saati, uma iraniana de 46 anos convertida ao cristianismo, foi levada de casa dos pais, nos arredores de Teerão. Durante o interrogatório, na prisão de Evin, foi confrontada com fotografias e vídeos da sua participação em eventos cristãos na Malásia, onde viveu anos antes e onde foi batizada. Levada a um tribunal revolucionário, foi-lhe perguntado porque tinha regressado se tinha “feito essas coisas fora do Irão”. Foi condenada a dois anos de prisão, acrescidos de mais dois de proibição de viajar.

Os cristãos detidos no Irão aumentaram de 59, em 2021, para 166, em 2023. “As autoridades têm cada vez mais como alvo pessoas que distribuem Bíblias”, diz o relatório da AIS. As confissões cristãs são reconhecidas, oficialmente, mas a leitura da Bíblia em língua farsi não é permitida.

Na Índia, onde o nacionalismo hindu tem originado perseguições às minorias cristã e, sobretudo, muçulmana, pelo menos 12 estados adotaram leis anticonversão. Essas medidas potenciam atos de hostilidade, como negar aos cristãos o acesso à água de um poço, o enterro de um ente querido ou atos de vandalismo, agressões ou assassínios. A 24 de junho, Bindu Sodi, de 32 anos, foi morta à machadada e à pedrada por um tio, na aldeia de Toylanka, no estado de Chhattisgarh, no centro do país. Duas semanas antes, o homem e um filho tinham invadido terrenos pertencentes à família de Bindu e cultivado uma parcela. O tio defendia que aquela família não tinha direito às terras porque se tinha convertido ao cristianismo. Foi apresentada queixa na polícia, mas antes que se apurasse de que lado estava a lei, Bindu pagou com a vida a intolerância do tio.

A incógnita síria

O ano de 2024 terminou com uma grande incógnita no mapa-mundo. O fim da era dos Assad na Síria colocou no poder um grupo sunita salafita jiadista (Hayat Tahrir al-Sham) liderado por um antigo aliado da Al-Qaeda. Os receios relativamente à perseguição de minorias religiosas (e mesmo de outras sensibilidades dentro do Islão além dos sunitas) manifestam-se perante episódios como o ocorrido a 23 de dezembro, na região de Hama (centro).

Na localidade de Suqaylabiyah, de maioria cristã, um grupo de homens encapuzados deitou fogo a uma grande árvore de Natal, montada numa praça. No dia seguinte, véspera de Natal, centenas de pessoas saíram à rua nas zonas cristãs de Damasco em protesto contra o ataque. Nesse mesmo dia, quando decorreram as cerimónias natalícias na Igreja da Senhora de Damasco (católica), havia no exterior pickups com homens afetos ao grupo islamita no poder… a garantir segurança. O tempo dirá se a nova Síria será tolerante em matéria de religião.

Artigo publicado no “Expresso E”, a 10 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui e aqui

Neste país, em vez de boletins em papel, usa-se berlindes para votar: um sistema colonial que o povo quer manter

A Gâmbia tem um sistema de votação único no mundo. Em vez de boletins em papel, os eleitores votam com recurso a berlindes. O sistema não é perfeito, mas é altamente popular. Porém, à medida que a democracia se consolida neste país da África Ocidental, após 22 anos de ditadura, organizar eleições torna-se um crescente pesadelo logístico

Na Gâmbia, as ‘urnas de voto’ são bidões personalizados para cada candidato SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Na esmagadora maioria dos países, um berlinde é um objeto recreativo, usado tanto em jogos tradicionais como em brincadeiras de criança. Na Gâmbia, porém, é um assunto de Estado.

É com berlindes que os cidadãos votam nas eleições. Em vez de usarem boletins de voto em papel ou terminais para voto eletrónico, os gambianos colocam berlindes em bidões metálicos personificados para cada candidato.

É assim há mais de 60 anos, “para todo o tipo de eleições, até mesmo referendos”, diz ao Expresso Sait Matty Jaw, professor de Ciência Política na Universidade da Gâmbia. “É um sistema altamente fiável e bem compreendido pelas pessoas, por isso utilizamo-lo para todas as eleições.”

Eleitores esperam para votar, numa assembleia em Banjul, a capital da Gâmbia SALLY HAYDEN / GETTY IMAGES

Concebido para facilitar a vida às pessoas analfabetas no exercício dos seus direitos democráticos, este sistema de votação remonta aos tempos coloniais. “Foi introduzido pelos britânicos em 1962. A Gâmbia estava dividida entre uma colónia e um protetorado”, entre 1821 e 1965, quando obteve a independência, acrescenta o académico gambiano.

“De um lado, havia pessoas formadas, mas a maioria da população que vivia no protetorado não tinha formação. Portanto, precisávamos de um sistema que as pessoas pudessem compreender facilmente e depois votar. Criou-se uma plataforma igual para todos.”

Como se vota na Gâmbia?

Em cada assembleia de voto, são colocados bidões que funcionam como ‘urna de voto’. Cada recipiente tem colados a fotografia e o nome de um candidato e o logótipo do seu partido. O bidão é pintado com a cor do partido em causa para facilitar a identificação.

O bidão está fechado com um tampo, o qual está perfurado por um pequeno tubo com um buraco. As latas são colocadas num compartimento (‘a cabine de voto’) para garantir a privacidade do ato eleitoral.

Depois de validar a elegibilidade do eleitor, a mesa entrega-lhe um berlinde. Ele dirige-se à cabine de voto e, escolhido o candidato, insere a pequena esfera pelo buraco aberto no tubo inserido no tampo.

No final da jornada eleitoral, os bidões e o tubo no tampo são selados YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

No interior do latão, há um mecanismo equipado com um pequeno sino, que toca assim que é atingido pelo berlinde. O som assemelha-se ao toque da campainha de bicicleta e é audível não só para o eleitor como para quem está de serviço na mesa de voto.

Para não haver barulhos a interferir com o som do sino, no fundo dos bidões é colocada areia ou serragem. E, no dia das eleições, não é autorizada a circulação de bicicletas nas imediações dos locais de voto.

O tilintar do sino indica à assembleia que mais um voto foi depositado. Para o eleitor, aquele “tlim” assegura-lhe que o seu voto entrou. É também uma garantia de segurança para os escrutinadores já que, na eventualidade de alguém, à socapa, tentar inserir vários berlindes no latão, é de imediato descoberto.

Uma desvantagem deste sistema é não permitir que os eleitores votem em branco sem que seja do conhecimento público. Ou seja, se o sino não se ouvir, indica regra geral a quem espera no exterior que quem está dentro não escolheu qualquer candidato.

Outro senão deste sistema é não conseguir impedir a tempo que um eleitor mal intencionado tente destruir os selos do bidão, na privacidade do gabinete de voto.

Concluída a votação, funcionários da Comissão Eleitoral Independente preparam-se para contar os berlindes (votos) YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Terminada a votação, os votos são contados na hora, no local. Os berlindes são despejados para tabuleiros [personalizados para o efeito] e todos podem ficar de pé a assistir à contagem. Por isso, é muito difícil roubar”, diz Sait Matty Jaw.

Contar berlindes é mais rápido do que escrutinar votos em papel. O risco de erro é menor, como menores são os custos da organização, uma vez que, ao contrário dos boletins em papel, os berlindes são aproveitados de umas eleições para as outras. Ao gerar menos lixo, o escrutínio com berlindes é também mais amigo do ambiente.

Terminada a contagem, os berlindes voltam para dentro do bidão, não vá haver necessidade de recontagem. Depois, lata e tubo são selados.

Tabuleiro usado na contagem de votos YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

“Desde 1962, isto faz parte da nossa cultura política, da evolução política do país e, por isso, há um apego a este sistema com berlindes. As pessoas estão habituadas e sabem que é único, por isso a maioria dos gambianos quer mantê-lo, apesar da origem colonial”, diz Sait Matty Jaw, que é também diretor executivo do Center for Research and Policy Development (CRPD).

Este think tank gambiano foi fundado em 2018, para responder à crescente necessidade de investigação, advocacia e formação, num contexto pós-autoritário. “Focamo-nos na governação democrática, nos direitos humanos e na justiça social”, lê-se no site da organização.

“As pessoas sentem-se confortáveis com este sistema. É altamente fiável porque o país usa-o desde 1962. E não importa se o eleitor tem formação ou não, toda a gente pega num berlinde e coloca-o no barril. Tem algum tipo de significado cultural para as pessoas, uma vez que é aquilo a que estão habituadas.”

Nas instalações da Comissão Eleitoral Independente, em Serekunda, um funcionário pinta os bidões YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

Em determinados círculos gambianos, discute-se, no entanto, a hipótese de se substituir este sistema pelo mais universal voto em papel. “Tem havido discussões. Penso que serão defendidas sobretudo pela Comissão Eleitoral Independente (CEI), para quem o sistema de berlindes é um pesadelo em termos logísticos, dada a quantidade de bidões necessários”, explica o professor da Universidade da Gâmbia.

“Mas não é só uma questão logística. O país está a abrir-se, a democracia está a fazer o seu caminho e há cada vez mais pessoas a participar na política. Por exemplo, nas últimas eleições presidenciais [a 4 de dezembro de 2021], tivemos seis candidatos. E temos atualmente cerca de 20 partidos políticos. Então, imagine se todos estes partidos políticos apresentarem candidatos às eleições…”, diz.

Os preparativos são um grande fardo. Por isso, tanto a CEI como um grande número de partidos políticos são a favor dos boletins de voto em papel. Mas resta saber como se convence as pessoas de que os boletins são mais seguros… Para já, elas preferem o sistema de berlindes.”

À medida que mais candidatos participam nas eleições, a logística torna-se mais complicada YUSUPHA SAMA / ANADOLU / GETTY IMAGES

A democracia na Gâmbia foi restabelecida em 2016, após 22 anos de ditadura. Nesse ano, Yahya Jammeh, o líder autoritário, sujeitou-se a eleições e perdeu para Adama Barrow, o atual Presidente (reconduzido pelas eleições de 2021), num desfecho que a BBC qualificou de “resultado eleitoral chocante”. Neste país, o Presidente é eleito à primeira para um mandato de cinco anos.

O ditador Jammeh recusou aceitar o resultado e acabou por seguir para o exílio na Guiné Equatorial, onde Teodoro Obiang, que tem 82 anos, é Presidente há 45. Desde então, a Gâmbia tem pela frente o desafio da consolidação democrática.

“Estamos a fazer a transição de 22 anos de ditadura para a democracia”, conclui Sait Matty Jaw. “Já passaram oito anos e ainda não conseguimos uma nova Constituição. Existe um projeto no Parlamento, mas tem havido problemas em chegar a acordo. Isso está a criar problemas à nossa transição efetiva para a democracia.”

Neste contexto, uma reforma eleitoral está longe de ser uma prioridade. “Agora que vamos a caminho das eleições presidenciais de 2026, não creio que vá haver qualquer medida para mudar o sistema de voto. No futuro próximo, ainda teremos o berlinde.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Benjamin Netanyahu vai depor em tribunal: de que é acusado? Em que penas incorre? Em que circunstância terá de deixar o poder em Israel?

O primeiro-ministro de Israel começa, esta terça-feira, a responder perante a justiça do seu país: Benjamin Netanyahu é acusado de corrupção e enfrenta penas que podem colocar um ponto final à sua longa, e única, carreira política. “Bibi” também é alvo de um mandado de detenção internacional emitido pelo Tribunal Penal Internacional, por crimes de guerra e contra a humanidade na Faixa de Gaza

O primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu está a ser julgado há mais de quatro anos e meio, mas apenas esta terça-feira começa, finalmente, a prestar depoimento num tribunal de Jerusalém. É a primeira vez em 76 anos de história do Estado judeu que um primeiro-ministro em funções tem de se defender de acusações criminais.

Por que razão vai depor em tribunal?

Benjamin Netanyahu começou por ser implicado numa investigação policial desencadeada em dezembro de 2016. Quase três anos depois, a 21 de novembro de 2019, o procurador-geral Avichai Mandelblit largou uma bomba em público e anunciou que Netanyahu era acusado de fraude, abuso de confiança e aceitação de subornos.

À época, estava em funções o 34.º Governo, o quarto liderado por Netanyahu, que, além de primeiro-ministro, desempenhou funções de ministro da Defesa, da Aliyah e da Absorção, da Economia, da Saúde e das Comunicações nesse executivo. Em face das acusações, foi forçado a renunciar às várias pastas que detinha, conservando apenas a chefia do governo.

O julgamento de Netanyahu começou a 24 de maio de 2020, no Tribunal Distrital de Jerusalém. Os depoimentos das 333 testemunhas arroladas pela acusação começaram a 5 de abril de 2021 e terminaram em julho de 2024. Esta terça-feira, é a vez da defesa começar a apresentar argumentos.

De que é acusado Netanyahu?

O nome do primeiro-ministro surge implicado em três processos por crimes de corrupção.

No primeiro, o “Caso 1000”, Netanyahu e a mulher, Sara, são acusados de recebimento de presentes luxuosos, como champanhe e charutos, no valor de centenas de milhares de dólares, de Arnon Milchan, um produtor de filmes israelita em Hollywood, e do multimilionário australiano James Packer, em troca de favores políticos. Neste caso em concreto, Netanyahu é acusado de fraude e abuso de confiança.

No segundo, o “Caso 2000”, é acusado de negociar com Arnon “Noni” Mozes, editor do popular jornal diário “Yedioth Ahronoth”, uma cobertura mediática favorável. Em troca, o primeiro-ministro promoveria legislação que penalizaria um jornal concorrente, o “Israel Hayom”. Também neste caso, Netanyahu é acusado de fraude e abuso de confiança.

No terceiro, o “Caso 4000”, Netanyahu é acusado da autorização de decisões regulatórias que beneficiaram financeiramente Shaul Elovitch, acionista da gigante de telecomunicações Bezeq Telecom Israel, em troca de cobertura mediática positiva do casal Netanyahu no site de notícias Walla, propriedade de Elovitch. Neste caso, além de fraude e abuso de confiança, Netanyahu também é acusado de recebimento de suborno.

Netanyahu nega todas as acusações, considerando-as parte de uma ‘caça às bruxas’ com motivações políticas.

Porque demorou tanto tempo?

A acusação diz que a defesa tentou propositadamente prolongar o julgamento, pedindo adiamentos repetidamente e prolongando interrogatórios. Já a defesa culpa a acusação de ter chamado muitas testemunhas.

Entre os convocados estão antigos colaboradores próximos de Netanyahu que se voltaram contra ele, um antigo primeiro-ministro (Ehud Olmert), o atual líder da oposição (Yair Lapid) e antigos chefes de segurança e personalidades dos meios de comunicação social.

O documentário “The Bibi Files”, lançado este ano, permite um vislumbre sobre os meandros do caso, com base em vídeos de interrogatórios da polícia.

Além disso, as diligências da Justiça foram ainda afetadas pela pandemia de Covid-19 e pelo ataque mais mortífero da sua história, a 7 de Outubro de 2023, perpetrado pelo Hamas. Em retaliação, a ofensiva militar na Faixa de Gaza colocou Israel em estado de alerta permanente desde então. Pelo menos três testemunhas de acusação morreram, entretanto.

A guerra em Gaza não inviabiliza o julgamento?

Pode conferir-lhe um caráter mais dramático, mas não impede que se desenrole conforme o previsto. Ainda assim, os advogados do primeiro-ministro alegaram que a guerra tem impedido Netanyahu de se preparar adequadamente para prestar declarações e solicitaram o adiamento, mas o tribunal não acedeu ao pedido.

Esta segunda-feira, o tribunal rejeitou um pedido de adiamento do depoimento de Netanyahu feito por 12 membros do gabinete de segurança do Governo de Israel. “Os juízes estão a prejudicar a segurança de Israel”, reagiu o ministro das Finanças, o extremista Bezalel Smotrich, à recusa do tribunal.

A audiência a Netanyahu, que deverá prolongar-se por várias semanas, decorrerá numa sala subterrânea do Tribunal Distrital de Telavive, e não no tribunal de Jerusalém onde o processo decorreu até agora. Esta mudança de local foi recomendada pelos serviços de segurança internos de Israel (Shin Bet) e justificada com razões de segurança.

O tribunal determinou que em cada semana haverá três sessões com Netanyahu. Os seus advogados solicitaram a redução para duas, mas o tribunal recusou, considerando “não encontrar razão imperiosa alguma” para autorizar a redução de dias de comparência de Netanyahu.

O tribunal anuiu, porém, em adiar o início das sessões das 9h para as 10h. A defesa do primeiro-ministro argumentou que “ele trabalha quase todos os dias até altas horas da noite, seja devido a reuniões do governo, briefings de segurança ou à necessidade de comunicar com várias entidades no estrangeiro”. As sessões terminarão às 15h.

Em que tipo de penas incorre Netanyahu?

Se for condenado, enfrenta penas diferenciadas em função dos crimes praticados. “A pena máxima para o crime de suborno é de 10 anos de prisão. Mas na realidade, e tendo em conta que esta não é a forma mais grave de suborno, provavelmente ficar-se-ia apenas por alguns anos”, explica ao Expresso Amir Fuchs, do Instituto de Democracia de Israel.

“Além disso, existe a possibilidade de Netanyahu não ser condenado por suborno, mas sim por abuso de confiança. Esta é uma infração de um máximo de três anos. Nesse caso, existe a possibilidade de ele não ser efetivamente preso, mas isso significaria o fim da sua carreira.” Para o crime de fraude, a moldura penal é igualmente de até três anos de prisão.

Conhecida a sentença, quer Netanyahu, quer o Estado podem recorrer da decisão para o Supremo Tribunal, o que arrastará ainda mais a resolução do caso, previsivelmente durante anos.

Em que circunstância será obrigado a deixar o poder?

“Apenas se for condenado e a fase de recurso estiver concluída”, responde Amir Fuchs. “Tem de haver uma condenação final.” Ou seja, o julgamento não é inibidor que continue em funções como primeiro-ministro.

Netanyahu será ouvido por um coletivo composto por três juízes, presidido por Rivka Friedman-Feldman, de 62 anos. Em 2014, esta juíza condenou o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert a seis anos de prisão por recebimento de suborno e obstrução à justiça.

Netanyahu é o israelita que mais tempo serviu como primeiro-ministro.

O polémico plano de reforma judicial pode interferir no julgamento?

Por proposta do Governo, Israel tem em curso um controverso projeto de revisão do sistema judicial. Os defensores dizem que visa retirar poderes aos juízes, que não são eleitos, e devolvê-los ao Parlamento, eleito por sufrágio universal. Os críticos alegam que é um atalho para o autoritarismo e uma ferramenta ao dispor de Netanyahu para se desembaraçar dos seus problemas com a justiça.

No atual contexto, “a forma mais fácil é tentar demitir o procurador-geral e nomear um outro mais conveniente. O procurador-geral [atualmente a jurista Gali Baharav-Miara, com quem o primeiro-ministro tem uma relação conflituosa], é o procurador-chefe e pode encerrar o caso”, explica Amir Fuchs.

“Mas é claro que [destituir a procuradora-geral] originaria um veredito do tribunal de que despedi-la não é razoável. É por isso que um dos componentes do plano de revisão foi eliminar [no Parlamento] a lei da razoabilidade [que possibilita que o Supremo bloqueie decisões do Governo que considere irracionais]. Mas isso falhou [porque o Supremo anulou a deliberação do Parlamento].”

O projeto de revisão judicial originou protestos populares de centenas de milhares de pessoas em Israel. Os manifestantes temem o impacto na qualidade da democracia do país — pela alteração significativa no equilíbrio de poderes — e também a instrumentalização por parte de Netanyahu para benefício próprio.

“É claro que ele também pode tentar nomear juízes para o Supremo Tribunal que, no final, tratará do seu recurso. Mas isso é demasiado improvável”, acrescenta o investigador do Instituto de Democracia de Israel.

Há relação entre este julgamento e o processo no Tribunal Penal Internacional (TPI)?

Não. Um decorre na justiça do país, vai para cinco anos e o outro no âmbito do direito internacional, com origem na guerra em Gaza.

Foi a 21 de novembro passado que o TPI emitiu mandados de detenção contra o primeiro-ministro e o ministro da Defesa de Israel, considerando Netanyahu e Yoav Gallant co-autores de crimes de guerra e contra a humanidade e outros “atos desumanos” contra a população de Gaza.

Israel, que não é membro do TPI, pode alegar que não se sente obrigado a cumprir com as deliberações do tribunal internacional. Mas os dois governantes israelitas acusados ficam sujeitos ao que decidirem os 124 países signatários do Estatuto de Roma, no caso de os visitarem.

(FOTO Mural questiona as verdadeiras prioridades de Benjamin Netanyahu, numa rua de Telavive OREN ROZEN / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de dezembro de 2024. Pode ser consultado aqui

“Dois terços dos países do mundo” podem prender Netanyahu, mas “na prática é pouco provável” que tal aconteça

O primeiro-ministro de Israel é procurado pelo mais importante tribunal do mundo por crimes de guerra e contra a Humanidade. Viajar para o estrangeiro passou a ser um quebra-cabeças para Benjamin Netanyahu: há 124 países signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, muitos dos quais com boas relações com Israel, mas também defensores do direito e da justiça internacional

Se o primeiro-ministro de Israel, o ex-ministro da Defesa israelita e o chefe do braço militar do Hamas — presumivelmente morto por Israel em julho — entrassem num dos 124 Estados-membros signatários do Tribunal Penal Internacional (TPI), os três poderiam ser presos pelas forças policiais dos respetivos países. No entanto, “na prática é pouco provável” que isso aconteça, afirmam ao Expresso professores de Direito Internacional.

Quinta-feira passada, o TPI emitiu mandados de detenção contra os israelitas Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, e o palestiniano Mohammed Deif por crimes contra a Humanidade e crimes de guerra. O Tribunal de Haia não tem capacidade de prender diretamente os suspeitos que procura: “É óbvio que não pode haver uma força policial internacional com autoridade para atravessar fronteiras e ir a países sem o seu consentimento”, começa por dizer William Schabas, especialista em Direito Penal Internacional e Direitos Humanos, em declarações ao Expresso.

Por outro lado, “o TPI tem no total 124 forças policiais — são as forças policiais dos seus Estados-membros”, acrescenta, referindo-se aos países que ratificaram o Estatuto de Roma, que fundou o Tribunal em 2002. É o caso de todos os países da União Europeia, mas não de nações proeminentes como os Estados Unidos, Israel, Rússia, China ou Índia, que não têm obrigação legal de cooperar com esta instância judicial.

Netanyahu acusa procurador

“A grande maioria dos Estados-membros do TPI, incluindo Portugalprenderá certamente os suspeitos se estes entrarem no seu territórioNa prática, é pouco provável que Netanyahu e Gallant se desloquem a Estados que ratificaram o Estatuto de Roma. Já dos cerca de 75 Estados que não o ratificaram, muitos não são o que se poderia chamar de ‘amigos de Israel’, e por isso também não é provável que Netanyahu se desloque a esses países”, afirma o professor da Universidade de Middlesex (Reino Unido) e da Universidade Leiden (Países Baixos).

Netanyahu não tardou a reagir com “repugnância” às “ações absurdas e falsas” do Tribunal de Haia, que classificou de “antissemita”, “tendencioso” e “discriminatório”. Segundo o primeiro-ministro israelita, o procurador-geral do TPI, Karim Khan, é “corrupto” e “está a tentar salvar-se de acusações de assédio sexual e por juízes tendenciosos”, atirou, referindo-se às notícias publicadas pela imprensa britânica e americana, que acusam Khan de alegado assédio sexual a uma jovem da equipa de acusação.

Quem cumpre e quem bate o pé ao TPI?

“Um total de 124 Estados — cerca de dois terços dos países do mundo — aderiram ao tratado do Tribunal Penal Internacional”, lembra Diane Marie Amann, professora de Direito Internacional na Faculdade de Direito da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos. “Este compromisso de cooperação tem sido interpretado significando que os Estados-membros devem executar as ordens do TPI. Essas ordens podem dizer respeito ao acesso a testemunhas ou a provas físicas, e podem também incluir mandados que visem a detenção de indivíduos”, acrescenta ao Expresso.

Só que a emissão dos mandados de captura contra Netanyahu não colheu unanimidade entre os 124 países e, na prática, há quem tenha argumentos para não o fazer. É o caso de Viktor Orbán, primeiro-ministro da HUNGRIApaís que aderiu ao TPI em 1999 e ratificou o Estatuto em 2001, quando, em Budapeste, estava no poder… Viktor Orbán. Agora, o chefe do Governo classificou os mandados do TPI de “escandalosamente descarados” e “cínicos”. Numa atitude desafiadora, revelou a intenção de convidar Netanyahu para visitar a Hungria.

“Isto é errado por si só”, disse na sexta-feira, em entrevista à rádio estatal húngara. “Portanto, não há outra escolha: temos de confrontar esta decisão e, por isso, ainda hoje convidarei o primeiro-ministro dos israelitas, o Sr. Netanyahu, para visitar a Hungria.”

Orbán já antes fizera saber que não cumpriria o mandado de detenção contra Vladimir Putin, emitido a 17 de março de 2013, por “responsabilidade individual” nos crimes de guerra de “deportação ilegal” e “transferência ilegal” de crianças das zonas ocupadas da Ucrânia para território russo.

Ao nível de Orbán, em defesa férrea dos governantes israelitas, está o Presidente da ARGENTINA, Javier Milei, que discordou da posição do TPI e descreveu os mandados como “um ato que distorce o espírito da justiça internacional”. Acrescentou: “Esta resolução ignora o direito legítimo de Israel de se defender contra ataques constantes de organizações terroristas como o Hamas e o Hezbollah”.

Na mesma linha, outro país latino-americano colocou-se ao lado de Israel: o PARAGUAI. “Esta decisão viola o direito legítimo de Israel de se defender. O Paraguai rejeita veementemente a exploração política do direito internacional e considera que esta decisão compromete a legitimidade do Tribunal, além de enfraquecer os esforços pela paz, segurança e estabilidade no Médio Oriente”, defendeu o Governo.

Aliado histórico de Israel, o Paraguai foi um dos países que seguiram os Estados Unidos no reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, durante a Administração Trump, tendo decidido mudar a embaixada de Telavive para a cidade santa. Recentemente, o Presidente israelita, Isaac Herzog, convidou o homólogo paraguaio, Santiago Peña, para realizar uma visita de Estado a Israel, coincidente com a viagem do paraguaio para inaugurar a embaixada em Jerusalém.

Como se posicionam os europeus?

Todos os 27 membros da União Europeia (UE) são Estados signatários do TPI. Além da estrondosa reação da Hungria, as posições dos europeus oscilam entre países que acolhem a decisão do TPI e garantem que a vão cumprir e outros que denunciam o que dizem tratar-se de uma posição política, sem concretizar como vão atuar.

‘Cumprimos o mandado e vamos prender’

Nos PAÍSES BAIXOS, onde recentemente houve incidentes envolvendo grupos pró-Palestina e adeptos de um clube israelita, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caspar Veldkamp, defendeu, diante do Parlamento, que o país irá atuar em conformidade com os mandados. “Os Países Baixos respeitam, obviamente, a independência do TPI. Somos obrigados a cooperar com o TPI e o fá-lo-emos.” Veldkamp tinha uma visita a Israel prevista para esta semana, que foi cancelada, após conversa telefónica com o homólogo israelita, Gideon Sa’ar, que lhe comunicou desilusão pela posição de Amesterdão.

Também a vizinha BÉLGICA defendeu que “os responsáveis ​pelos crimes cometidos em Israel e Gaza devem ser processados ​​ao mais alto nível, independentemente de quem os cometeu”, via Ministério dos Negócios Estrangeiros. Petra De Sutter, vice-primeira-ministra, subiu a fasquia e afirmou que “a Europa deve cumprir” os mandados, instando as nações europeias a imporem sanções económicas e a suspenderem os acordos comerciais com Israel. “Os crimes de guerra e os crimes contra a Humanidade não podem ficar impunes.”

PORTUGAL integra o grupo dos países que comunicaram a sua posição de forma clara. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, disse que o país está “vinculado” às decisões do TPI, enquanto seu Estado-membro, e garantiu que Portugal vai cumprir as suas “obrigações internacionais”, caso haja necessidade.

‘Cumprimos o mandado, mas a decisão é má’

Um conjunto de países tem posição híbrida, afirmando o seu compromisso com o TPI, mas criticando a equiparação entre Israel e o Hamas. É exemplo a ÁUSTRIA, onde o ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Schallenberg, considerou a deliberação “totalmente incompreensível” e os mandados contra os governantes israelitas “ridículos”. Viena diz-se, porém, forçada a efetuar detenções se Netanyahu e Gallant puserem pé no seu território. “O Direito Internacional não é negociável e aplica-se em todo o lado, em todos os momentos. Mas esta decisão é um mau serviço à credibilidade do Tribunal.”

Petr Fiala, primeiro-ministro da REPÚBLICA CHECA, disse que “a infeliz decisão do TPI mina a autoridade noutros casos, ao equiparar os representantes eleitos de um Estado democrático aos líderes de uma organização terrorista islâmica”. Concordando com as críticas de Fiala, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jan Lipavsky, disse que a Chéquia “defenderá sempre a adesão ao direito internacional”.

A posição da ITÁLIA pode encaixar-se nesta categoria, mas depende de quem fala. O ministro da Defesa, Guido Crosetto, defendeu que, embora Roma considere a decisão do TPI “errada” ao colocar “ao mesmo nível” os líderes de “uma organização terrorista criminosa” e os do país “que tenta erradicá-la”, a Itália é obrigada a prender Netanyahu e Gallant. “Ao aderir ao tribunal, devemos aplicar as suas decisões”, disse. “Todos os Estados que aderirem são obrigados — a única forma de não o aplicar será retirar-se do tratado.”

Já o ministro dos Negócios Estrangeiros italiano, Antonio Tajani, reiterou apoio ao TPI, “lembrando sempre que o tribunal deve desempenhar um papel jurídico e não político”, disse. “Avaliaremos em conjunto com os nossos aliados o que fazer e como interpretar esta decisão.” Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro, instalou a confusão ao expressar total apoio a Netanyahu. “Ele é bem-vindo” a Itália. “Os criminosos de guerra são outros.”

‘Cumprimos o mandado, pela Palestina’

No decurso da guerra em Gaza, dois membros da UE reconheceram o Estado da Palestina. Um deles foi ESPANHA, que “cumprirá com os seus compromissos e obrigações”, disse o Governo de Pedro Sánchez.

“Estas acusações [do TPI] não podiam ser mais graves”, afirmou o primeiro-ministro da IRLANDA. Simon Harris considerou a situação no território palestiniano “uma afronta à Humanidade” e acrescentou: “Quem quer que esteja em condições de ajudar o TPI a realizar o seu trabalho vital deve agora fazê-lo com urgência”.

‘Estamos vinculados, mas vamos analisar’

Acusando a sensibilidade do caso, quer Berlim quer Paris expressaram hesitações. Annalena Baerbock, ministra dos Negócios Estrangeiros da ALEMANHA, disse que o seu país está “vinculado” ao TPI e respeita o direito internacional. Porém, se Netanyahu e Gallant serão ou não detidos no país é, por enquanto, uma questão “teórica” que a Alemanha irá “examinar”.

Já em Paris, um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Christophe Lemoine, afirmou que FRANÇA reagirá “em linha com o Estatuto do TPI”, mas recusou-se a dizer se o país tenciona prender os governantes israelitas. “É algo legalmente complexo, por isso não vou comentar hoje.”

A 21 de maio, quando o procurador-geral do TPI, Karim Khan, anunciou que ia solicitar mandados de detenção para os dois governantes israelitas e três dirigentes do Hamas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês emitiu um comunicado: “A França apoia o TPI, a sua independência e a luta contra a impunidade em todas as situações.”

No REINO UNIDO, que Netanyahu visitou no ano passado, o discurso é de “respeito pela independência do TPI, que é a principal instituição internacional para investigar e processar os crimes mais graves de interesse internacional”. Um porta-voz do primeiro-ministro Keir Starmer disse que o país “cumprirá as suas obrigações legais” e, questionado se o Governo irá executar os mandados, acrescentou: “Não vamos entrar em suposições”.

Emily Thornberry, presidente (trabalhista) da comissão de Negócios Estrangeiros do Parlamento britânico, foi mais esclarecedora. “Se Netanyahu vier à Grã-Bretanha, a nossa obrigação ao abrigo da Convenção de Roma será prendê-lo conforme o mandado do TPI”, disse. “Não é bem uma questão de dever, somos obrigados a fazê-lo porque somos membros do TPI.”

Estados Unidos de portas escancaradas

Seja Joe Biden ou Donald Trump o inquilino da Casa Branca, Netanyahu será sempre bem-vindo em Washington. Israel tem uma aliança de décadas com os Estados Unidos o que lhe garante amigos nas fileiras dos dois grandes partidos norte-americanos. A 24 de julho passado, o primeiro-ministro israelita ultrapassou Winston Churchill e tornou-se o líder mundial a discursar mais vezes no Congresso dos Estados Unidos.

Os ESTADOS UNIDOS, que não são membros do TPI, arrasaram a deliberação da justiça internacional. “A emissão de mandados de detenção pelo TPI contra os líderes israelitas é ultrajante”, defendeu Biden. “Deixem-me ser claro mais uma vez: seja o que for que o TPI possa implicar, não há equivalência — nenhuma — entre Israel e o Hamas. Estaremos sempre ao lado de Israel contra as ameaças à sua segurança.”

Em maio passado, quando o procurador-geral do TPI solicitou os mandados, Washington opôs-se e afirmou que não tinha sido dada aos israelitas a possibilidade de investigarem, eles próprios, as acusações que lhe faziam. Agora, uma das reações mais inflamadas partiu de Lindsey Graham, senador há mais de 20 anos pelo Partido Republicano, que ameaçou os países aliados com sanções se executarem o mandado do TPI.

“A qualquer aliado, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, se tentarem ajudar o TPI, iremos sancionar-vos”, disse, à Fox News. “Se ajudarem o TPI como nação e forçarem o mandado de captura contra Bibi [Netanyahu] e Gallant, o ex-ministro da Defesa, vou impor-vos sanções como nação”, disse. “Terão de escolher entre o TPI desonesto ou a América.”

CANADÁ, precisamente um dos países ameaçados por Graham, foi inequívoco no apoio à decisão do TPI. “Sempre disse que é muito importante que todos cumpram o direito internacional”, disse o primeiro-ministro, Justin Trudeau. “Defendemos o direito internacional e cumpriremos todos os regulamentos e decisões dos tribunais internacionais.”

Uma das reações mais simbólicas em relação a esta questão foi a da ÁFRICA DO SUL, que é membro do TPI e está na origem de um processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, o órgão jurisdicional da ONU. Pretória considerou a deliberação “um passo significativo na direção da justiça para os crimes contra a Humanidade e os crimes de guerra na Palestina”.

O Governo sul-africano declarou “o seu compromisso com o direito internacional” e apelou à comunidade internacional “que defenda o Estado de Direito e garanta a responsabilização por violações dos direitos humanos”. Esta posição tem, porém, uma fragilidade…

Em 2015, a África do Sul optou por não prender o então Presidente do Sudão, Omar al-Bashir, acusado de crimes de guerra na região do Darfur e alvo de um mandado do TPI. Mais tarde, o Supremo Tribunal de Recurso da África do Sul decidiu que a não detenção de Bashir fora ilegal.

Entre os países árabes e muçulmanos que se pronunciaram, há unanimidade em relação à urgência em sentar Israel no banco dos réus. A JORDÂNIA, que tem um tratado de paz com Israel há 30 anos, defendeu que a decisão do TPI “deve ser respeitada e aplicada sem seletividade”. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, acrescentou que a decisão do tribunal é “uma mensagem para toda a comunidade internacional, que enfatiza a necessidade de travar os massacres contra o povo palestiniano”.

O vizinho IRAQUE valorizou “a postura corajosa e justa assumida pelo TPI”, disse o porta-voz do governo, Basim al-Awadi. “Esta decisão histórica afirma que, por mais opressão que persista e tente prevalecer, a justiça e a verdade irão enfrentá-la e impedir que domine o mundo.”

Do Magrebe, a ARGÉLIA descreveu o veredicto do TPI como “passo importante e avanço tangível para acabar com décadas de impunidade e a evasão de responsabilização e punição por parte da ocupação israelita”.

Durante os meses de guerra em Gaza, o Presidente da TURQUIA — que várias vezes abriu as portas ao Hamas — tem sido das vozes mais críticas de Israel, ao ponto de comparar Netanyahu a Hitler. Recep Tayyip Erdogan elogiou a “decisão corajosa” do TPI e disse que os mandados de detenção “renovam a confiança da humanidade no sistema internacional”.

“Emitir um mandado de detenção não é suficiente”, reagiu o Líder Supremo do IRÃO, o ayatollah Ali Khamenei. “Deveria ser emitida uma sentença de morte para Netanyahu.”

Texto escrito com Mara Tribuna.

(FOTO Edifício do Tribunal Penal Internacional, em Haia, Países Baixos PETER DEJONG / AP)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de novembro de 2024. Pode ser consultado aqui

Cessar-fogo em Gaza e retaliação do Irão a Israel: as duas frentes de um jogo perigoso

As negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza, previstas para quinta-feira, são uma prova de fogo para o Irão: uma trégua pode fazer abortar o prometido ataque contra Israel, em retaliação pelo assassínio do líder do Hamas em Teerão. Em cima da mesa das conversações está um plano em três fases, apresentado por Joe Biden, que, pela primeira vez em dez meses de guerra, propõe uma “cessação permanente das hostilidades”

A região do Médio Oriente vive dias profundamente contraditórios em que tanto se fala de um iminente ataque do Irão contra Israel como de negociações com vista a um cessar-fogo na Faixa de Gaza. A verdade é que a conclusão do segundo processo — a trégua em Gaza — pode determinar a ocorrência do primeiro — a retaliação iraniana contra Israel.

Israel e o Hamas estão convocados para nova jornada de negociações indiretas, agendadas para esta quinta-feira. Sobre a mesa está um plano que, pela primeira vez, aborda uma “cessação permanente das hostilidades”, incluindo a retirada israelita de Gaza e a libertação dos reféns.

“Concordamos que não pode haver mais atrasos”, defenderam o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, o Presidente francês, Emmanuel Macron, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, numa declaração conjunta divulgada na segunda-feira.

A concretizarem-se, serão as primeiras negociações com Yahya Sinwar na liderança do Hamas, a partir dos túneis de Gaza. Até recentemente, o interlocutor era Ismail Haniyeh, exilado no Catar, que foi assassinado em Teerão, a 31 de julho, num atentado atribuído a Israel, embora não reivindicado pelo Estado hebraico.

Porquê negociar agora?

A guerra em Gaza dura há mais de dez meses, o território está cada vez mais inabitável, o número de mortos entre a população civil não cessa de aumentar e os reféns israelitas tardam em regressar a casa. Paralelamente, a região está cada vez mais perto de uma guerra generalizada.

Na semana passada, os mediadores Catar, Egito e Estados Unidos instaram Israel e o Hamas a retomarem as discussões, a 15 de agosto, no Cairo ou em Doha, para discussão de um “acordo-quadro” cuja finalização está presa “apenas pelos detalhes”.

“Não há mais tempo a perder nem desculpas de qualquer das partes para mais atrasos. É tempo de libertar os reféns, iniciar o cessar-fogo e aplicar este acordo”, defenderam os presidentes Joe Biden (Estados Unidos), Abdel Fattah el-Sisi (Egito) e o emir Tamim bin Hamad Al Thani (Catar), num comunicado conjunto de 8 de agosto.

Em cima da mesa está uma proposta apresentada pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a 31 de maio, numa intervenção a partir da Casa Branca. “Depois de intensa diplomacia levada a cabo pela minha equipa e das minhas muitas conversas com os líderes de Israel, Catar, Egito e outros países do Médio Oriente, Israel apresentou uma nova proposta abrangente. É um roteiro para um cessar-fogo duradouro e para a libertação de todos os reféns. Esta proposta foi transmitida pelo Catar ao Hamas.”

A data das negociações poderá não ser inocente. Na próxima segunda-feira, nos Estados Unidos, arranca, em Chicago, a convenção do Partido Democrata que deverá confirmar o ticket Kamala Harris-Tim Walz na corrida à Casa Branca. Como ficou visível na recente visita a Washington do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a questão palestiniana divide fortemente o Partido Democrata.

Um eventual acordo de cessar-fogo seria uma grande vitória para Biden e para a sua “diplomacia paciente”, como lhe chamou o jornal americano “The Washington Post”. O Presidente dos Estados Unidos tem tentado equilibrar o papel do seu país como pacificador do Médio Oriente, enquanto mantém apoio incondicional a Israel.

Que plano está na mesa do diálogo?

A proposta que israelitas e Hamas têm em mãos vai além das anteriores. Pela primeira vez, aborda um cenário de fim da guerra, uma “cessação permanente das hostilidades”, que inclui a retirada militar israelita completa da Faixa de Gaza e o regresso de todos os reféns vivos. Em concreto, prevê três fases.

FASE 1 — Decorreria durante seis semanas e passaria por um cessar-fogo “total e completo”, retirada das forças israelitas de “todas as zonas povoadas” da Faixa de Gaza, libertação de reféns – incluindo mulheres, idosos e feridos – em troca da libertação de centenas de prisioneiros palestinianos. Civis palestinianos seriam autorizados a regressar a casa “em todas as áreas de Gaza”, incluindo ao norte do território. Haveria um aumento da ajuda humanitária, com a previsão de 600 camiões a entrar diariamente em Gaza. Centenas de milhares de abrigos temporários seriam fornecidos pela comunidade internacional.

FASE 2 — Haveria uma troca de prisioneiros que permitiria a libertação dos restantes reféns vivos, incluindo os soldados do sexo masculino. As forças israelitas retirar-se-iam de Gaza e “desde que o Hamas cumpra os seus compromissos”, o cessar-fogo temporário evoluiria — “nas palavras da proposta israelita”, enfatizou Biden — para uma “cessação permanente das hostilidades”.

FASE 3 — Teria início um grande projeto de reconstrução de Gaza. Os restos de reféns mortos seriam devolvidos às famílias.

    Este plano foi confirmado pela resolução 2735 do Conselho de Segurança, a 10 de junho passado, com 14 votos a favor e abstenção da Rússia.

    Como reagiu o Hamas à proposta?

    A 2 de julho, o Hamas respondeu positivamente ao plano de cessar-fogo anunciado por Biden, abdicando da exigência que vinha fazendo no sentido de um cessar-fogo total e permanente antes de se comprometer com qualquer acordo. Passado mais de um mês, o grupo jiadista defende que as negociações previstas para esta semana devem ser retomadas com base na proposta apresentada por Biden e no ponto do seu ‘sim’ dado em julho.

    O Hamas receia que, assim que as negociações forem retomadas, Israel possa apresentar novas condições. O grupo palestiniano diz ter demonstrado flexibilidade, mas que Israel não revela seriedade na vontade de alcançar uma trégua. Estas dúvidas tornam a presença de uma delegação do Hamas incerta nas negociações desta semana.

    “O que obstrui o sucesso da última proposta é a ocupação israelita”, disse Jihad Taha, porta-voz do Hamas. “Preencher as restantes lacunas no acordo de cessar-fogo passa por exercer pressão real sobre o lado israelita, que estava, e ainda está, a praticar uma política de colocação de obstáculos no caminho do êxito de quaisquer esforços que levem ao fim da agressão.”

    Que defende Israel?

    Israel anuiu ao envio de uma equipa de negociadores às conversações desta semana. Mas no país, a resistência a um entendimento com o Hamas é forte, a começar pelo próprio primeiro-ministro, que sempre defendeu que não aceitaria um acordo que estipulasse o fim da guerra sem a derrota total do Hamas. “O objetivo é o regresso dos reféns e desenraizar o regime do Hamas em Gaza”, defende Netanyahu.

    Segundo um artigo publicado, esta terça-feira, pelo jornal americano “The New York Times”, documentos que detalham as mais recentes posições negociais revelam que “Israel foi menos flexível nas recentes negociações de cessar-fogo em Gaza” e que “fez cinco novas exigências”.

    Dois exemplos: Israel exigiu que as suas forças continuem a controlar a fronteira sul da Faixa de Gaza (o Corredor Philadelphi, junto ao Egito) e impôs restrições ao regresso de deslocados palestinianos à parte norte do território, o que não constava na proposta apresentada por Biden. Segundo a imprensa israelita, a introdução de novas exigências foi feita por Netanyahu. Na prática, contribuem para sabotar a proposta de cessar-fogo, o que originou um braço de ferro entre o primeiro-ministro e a sua equipa de negociadores.

    Na semana passada, o jornal digital israelita “The Times of Israel” descreveu discussões acaloradas entre responsáveis políticos e da área da segurança israelitas a propósito da proposta de cessar-fogo. “Altos funcionários, incluindo o ministro da Defesa, Yoav Gallant, e o chefe das FDI [Forças de Defesa de Israel], Herzi Halevi, terão dito […] ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu que a sua insistência em novos termos sabotaria o acordo de cessar-fogo e a libertação de reféns em negociação, levando o primeiro-ministro a afirmar que foi o Hamas, e não ele, a introduzir novas exigências”, relata a publicação.

    Outra altercação descrita por “The Times of Israel” envolveu o chefe da Mossad, que tem liderado as negociações por parte de Israel. David Barnea terá dito, numa reunião com o primeiro-ministro, que há um acordo pronto e que Israel deve aceitá-lo. “Você é fraco!”, terá gritado Netanyahu. “Não sabe como conduzir uma negociação difícil. Está a pôr palavras na minha boca. Em vez de pressionar o primeiro-ministro, pressione Sinwar.” Segundo o jornal, posteriormente, o gabinete do primeiro-ministro negou a afirmação.

    A imprensa israelita escreve que, além do líder da Mossad, são favoráveis a um acordo de cessar-fogo o chefe das FDI, Herzi Halevi, e Ronen Bar, chefe do Shin Bet, a agência interna de segurança de Israel. Para os três, dez meses de uma guerra intensa em Gaza infligiram danos suficientes à capacidade militar do Hamas.

    Outro crítico da atuação de Netanyahu no atual contexto é Benny Gantz, que abandonou o gabinete de guerra em junho em rota de colisão com o primeiro-ministro e que o acusa de dar prioridade à sobrevivência do seu governo em detrimento do resgate dos reféns. “A segurança de Israel durante a campanha mais difícil da sua história tornou-se vítima de caprichos políticos”, disse Gantz, veterano militar tornado político centrista.

    Há relação entre estas negociações e o esperado ataque do Irão a Israel?

    São, basicamente, duas faces de uma mesma moeda. Esta terça-feira, a agência Reuters avançou que “só um acordo de cessar-fogo em Gaza decorrente das negociações esperadas para esta semana impediria o Irão de retaliar diretamente contra Israel”. A convicção decorre de afirmações de “três altos funcionários iranianos”.

    Para o Irão, não retaliar o atentado que vitimou o líder do Hamas, em território iraniano, será admitir fraqueza. Haniyeh estava no Irão a convite do regime, assistira nesse dia à tomada de posse do Presidente Masoud Pezeshkian e ficara alojado numa casa controlada pelos Guardas da Revolução, onde foi morto. Teerão atribui o ataque a Israel.

    Por outro lado, o regime dos ayatollahs está consciente que esse atentado adicionou complexidade a quaisquer negociações com vista a um cessar-fogo em Gaza. Se o Irão retaliar sobre Israel, não só se arrisca a destruir as hipóteses de um cessar-fogo como potencia uma guerra alargada na região.

    Em Teerão, ações como o atentado que vitimou Haniyeh ou, noutra escala, bombardeamentos como o de sábado, que visou uma escola transformada em abrigo para deslocados, na cidade de Gaza, são “armadilhas” de Netanyahu para arrastar o Irão para uma guerra mais ampla, em especial à medida que aumenta a pressão para um cessar-fogo.

    As opções do Irão são limitadas. A aliança dos Estados Unidos com Israel dissuade a República Islâmica de avançar para ações maiores, diretamente ou por procuração. E a continuação dos combates em Gaza corre o risco de contaminar o Líbano e resultar numa derrota do Hezbollah, o aliado mais importante do Irão.

    Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de agosto de 2024. Pode ser consultado aqui

    Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.