Um mundo cada vez mais seco

Ao aproximar-se mais um Dia Mundial da Água, multiplicam-se os alertas sobre a escassez do «ouro azul». A sobreexploração dos recursos e o aumento de 40% do consumo até 2025 levam os especialistas a falar em crise — quando um quinto da humanidade não tem acesso a água potável

A escassez de água será um problema cada vez mais grave a nível mundial, que se agudizará com o crescimento demográfico e a urbanização. O facto de os recursos hídricos já serem sobreexplorados e de se prever um aumento de 40% do consumo de água até 2025 leva alguns especialistas a alertar, já, para uma crise mundial do «ouro azul».

Segundo o relatório «Visão 21» — elaborado pela Comissão Mundial da Água e que está a ser discutido no II Fórum Mundial da Água, que decorre, desde ontem e até quarta-feira, em Haia —, um quinto dos habitantes do planeta não dispõe de água potável para consumo, enquanto metade não tem acesso às condições mínimas de higiene e saneamento (ver infografia).

Segundo o documento, o combate a esta miséria passa pela implementação de projectos locais, que impliquem e responsabilizem directamente as comunidades e cada cidadão.

Mulheres são essenciais

A este nível local, o papel da mulher é incontornável, pois a gestão da água doméstica passa pelas suas mãos.

Paralelamente, é rejeitada a habitual política de os Estados responderem aos desafios da água construindo megaprojectos hidráulicos, economicamente dispendiosos e ecologicamente polémicos.

Um dos projectos locais em marcha envolve os 44 milhões de habitantes do estado indiano de Gujarat. Quando foi solicitado às autoridades locais que elaborassem um plano prático no sentido de melhorar os padrões higiénicos da população, a prioridade foi dada à educação: noções de higiene e saneamento nos planos curriculares e a construção de lavabos em todas as escolas.

Os países do Sul da Ásia — a Índia, o Paquistão, o Bangladesh e o Nepal — registam os piores índices mundiais ao nível dos serviços sanitários, só sendo ultrapassados pela África subsariana. Nessas latitudes, a falta de infra-estruturas «instituiu» a regra da defecação a céu aberto, pelo que doenças como a cólera, a difteria, o tifo e a hepatite proliferam a grande velocidade.

Em 1998, segundo a Organização Mundial de Saúde, morreram 3,4 milhões de pessoas — 2 milhões das quais eram crianças —, na sequência de doenças associadas a água contaminada, a maior parte das quais de diarreias e de malária. Em média, terão, pois, morrido quase 10 mil pessoas por dia, o equivalente à lotação de 24 aviões Boeing 747.

Até 2025, segundo as contas da Comissão Mundial da Água, o investimento global com a água — actualmente calculado em cerca de 80 mil milhões de dólares por ano (16 mil milhões de contos) — deverá ascender até aos 180 mil milhões (36 mil milhões de contos: 17% para a agricultura, 41% para a indústria, ambiente e energia e 42% para o fornecimento de água e saneamento básico.

É que, paralelamente às previsões segundo as quais o consumo de água aumentará cerca de 40%, é um dado adquirido que a população continuará a aumentar e, o mais preocupante, a concentrar-se junto às grandes bacias hídricas.

Nas vésperas de se celebrar mais um Dia Mundial da Água, na próxima quarta-feira, Brian Appleton, um perito da ONU em questões da água, não se mostra muito optimista: «Estamos a perder a batalha».

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de março de 2000. Pode ser consultado aqui

Jovens monarcas

Herdeiros dos tronos da Jordânia e de Marrocos, cresceram e formaram -se no Ocidente. Regressaram como soberanos, e desde o início marcaram uma nova forma de reinar: querem estar próximos dos seus povos

PIXABAY

À porta do terceiro milénio, o mundo árabe revela indícios de querer liderar uma espécie de revolução silenciosa. Jordânia e Marrocos têm, desde o ano passado, soberanos jovens que, com aparente naturalidade, imprimiram um estilo novo de reinar — porventura mais moderno e menos imortal — e afastaram a tentação de serem permanentemente comparados aos seus carismáticos pais. Abdallah II e Mohammed VI ainda estão a escrever o primeiro capítulo dos seus reinados, mas talvez seja já suficiente para afugentar o perigo de passarem à história como o filho de Hussein e o filho de Hassan II.

Com alguns dias de reinado, Abdallah da Jordânia abriu o seu livro de aventuras e assinou uma forma original de governar. De tempos a tempos, inspira-se no maior dos mestres do disfarce, encarna o mais anónimo dos cidadãos e sai à rua disposto a avaliar, com os seus próprios olhos, o empenho dos funcionários governamentais e a auscultar as queixas do seu povo.

Trajado a rigor, já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente. Num centro de assistência social, fez tantas perguntas aos idosos que esperavam por atendimento que teve mesmo de enfrentar a ira dos responsáveis pelo estabelecimento.

Já o seu pai era um perito nestas artimanhas. Da última vez que o fizera, há pouco menos de dez anos, numa altura em que a Polícia andava a testar um novo equipamento de radar, saiu do palácio montado numa moto, conduziu-a a alta velocidade, pelo centro de Amã, e só foi apanhado 90 minutos depois.

Abdallah assinou uma forma original de governar. Já fez de repórter de televisão, de taxista, de mendigo e de doente 

O método de Abdallah pode, pois, não ser inédito, mas é altamente mediático e popular. Quando, no local do crime, se vê obrigado a revelar a sua identidade, é frequentemente brindado com aplausos. E as consequências destas missões incógnitas não podiam ser mais satisfatórias: Eles começaram a tratar toda a gente como um rei, porque nunca sabiam se a próxima pessoa da fila a ser atendida era o rei, afirmou Abdallah.

Segundo o monarca, a ideia inicial era usar os disfarces para contornar algumas situações mais incómodas e passar despercebido. Em Maio do ano passado, por exemplo, durante uma visita a Washington, Abdallah resolveu ir ao cinema. Acabei no meio de um desfile de dez automóveis, com carros da polícia, sirenes e 26 agentes dos serviços secretos. Eu nunca me tinha sentido tão embaraçado na minha vida.

Em Marrocos, Mohammed ainda não tentou a arte do disfarce, mas, tal como o seu colega jordano, faz do contacto directo com as populações ponto de honra. E quando se refugia num dos seus maiores prazeres a condução de potentes automóveis , pára sempre que alguém o reconhece e lhe pede para falar. Ele tem uma personalidade afectuosa e um interesse pessoal nas pessoas que encontra, a quem gosta de perguntar pelas famílias e empregos. Parece não gostar de protocolos e cerimoniais e prefere uma abordagem mais modesta, assim o caracterizou um alto funcionário marroquino.

Para quem não convive com Mohammed, a sua personalidade vai-se compondo à custa de pequenos episódios. O monarca alauita surpreende ao não fazer uso das benesses” inerentes à sua condição real. Quando lhe apetece jogar golfe, não ordena o encerramento do campo, para que dele usufrua em exclusividade, e quando conduz.., obedece aos semáforos.

Em Marrocos, Mohammed, tal como o seu colega jordano, faz ponto de honra do contacto directo com as populações

Quando, há pouco menos de meio ano, uma avaria geral deixou o palácio real às escuras, três empresas apresentaram orçamento para a reparação, um dos quais bastante inferior aos restantes. Intrigado, Mohammed quis saber qual a razão da diferença. Não há necessidade de arranjar toda a instalação, como os outros preconizam. Basta reparar duas ou três coisitas, justificou o electricista. Sensibilizado, o rei não só lhe adjudicou a obra como ainda arredondou muito por alto o seu preço. Em sinal de encorajamento, precisou Mohammed.

Consta que, num festival de música, ficou furioso quando reparou que tinha sido montada uma estrutura para o proteger da chuva e que nada tinha sido feito para abrigar os artistas. Cioso da sua vida privada, Mohammed reage mal à publicação de fotografias suas disparadas em momentos de descontracção, seja aos comandos de um jet-ski ou durante um passeio em jeans. Inseparável dos seus óculos de sol, não se livra da fama de playboy, assente no facto de, aos 36 anos, continuar solteiro.

De facto, na cultura árabe, não é frequente um herdeiro ascender ao trono sem ter, previamente, constituído família. No caso de Mohammed, porém, tal não dificultou a sua aceitação por parte dos súbditos, embora no caso jordano o casamento tenha engrandecido a popularidade do soberano. A 10 de Junho de 1993, o príncipe Abdallah tinha casado com Rania al-Yassin, uma palestiniana formada em gestão, nascida no Kuwait, em 1970. Esposa dedicada e mãe extremosa de dois pequenos filhos, Rania é uma digna herdeira da beleza e charme da rainha Noor — a última esposa do rei Hussein —, bem como do seu espírito solidário e voluntarista. A sua coroação aos 28 anos tornou-a a mais jovem rainha do mundo e catapultou-a para o exíguo firmamento das estrelas da realeza.

Hoje, o casal real hachemita é assunto obrigatório da imprensa cor-de-rosa, ameaçando seriamente o protagonismo que a família real monegasca assumiu após o desaparecimento da princesa Diana. Fora dos compromissos oficiais, o casal procura levar uma vida tão normal quanto possível. Uma vez por semana, fazem questão de sair com os amigos para uma noitada de convívio. É bom as pessoas verem o rei e a rainha a comer um hamburguer no Planet Hollywood. Passa a mensagem certa: Ali estão eles, fazem parte da nossa sociedade, exemplificou Abdallah.

Mas o simbolismo da rainha Rania transcende, em muito, o glamour” social. Desde que Abdallah foi nomeado príncipe herdeiro, a 25 de Janeiro de 1999, ela tem representado um papel importante na afirmação do marido junto do seu povo.

Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o varão do soberano

Nascido a 30 de Janeiro de 1962, Abdallah cresceu sem a pressão de vir a ser o futuro rei, apesar de ser o primeiro varão do soberano. Em 1965, uma emenda constitucional tinha-o afastado da linha de sucessão, devido à sua tenra idade e ao facto de ser filho de uma inglesa — Antoinette (Toni) Gardiner —, o que motivara o “veto da influente mãe de Hussein. O mesmo diploma nomeara Hassan, um irmão mais novo do rei, seu herdeiro, mas os abusos por ele cometidos, enquanto regente, durante a longa ausência do malogrado rei, em 1998 — quando esteve em tratamentos, nos EUA — desgostaram Hussein. Por isso, embora lógica, a entronização de Abdallah foi inesperada. E não deixou de causar alguma surpresa, até porque era sabido que o favorito de Hussein era Hamza, o filho mais velho do seu matrimónio com Noor, nascido em 1980.

A escolha de Abdallah causou surpresa e insegurança num povo que temia pelo seu futuro, agora nas mãos de um desconhecido. Eu fui de repente atirado para uma posição à qual nunca tinha aspirado, nem tão-pouco desejado, mas tal foi a directiva de Sua Majestade, confessou Abdallah. Não tenho nenhuma preparação como príncipe herdeiro, mas também não acho que alguém esteja preparado para ser rei até calçar os sapatos, era esta a sua filosofia.

E é precisamente perante as dificuldades em suceder ao pai no coração dos súbditos que a palestiniana Rania constitui um trunfo” para Abdallah. Num país onde 60% da população é originária da Cisjordânia, a presença de um dos seus na corte tranquiliza, mesmo que ao lado de uma pessoa que passou metade da vida além- fronteiras. Afinal de contas, ele é casado com uma palestiniana, resignou-se Abu Adnan, um comerciante de verduras de Amã. Abdallah efectuou todos os seus estudos entre a Inglaterra e os EUA, facto que o faz dominar na perfeição a língua inglesa e ter algumas deficiências na pronúncia de certos sons do árabe.

Contrariamente, Mohammed, o primeiro filho varão de Hassan, fora preparado para reinar, desde o dia em que nasceu, a 21 de Agosto de 1963, pelo que fala fluentemente árabe, francês, espanhol e inglês. Sob a severa e exigente orientação do pai — a quem passou a tratar por Majestade, aos 13 anos —, Mohammed estudou em Marrocos. Depois de se licenciar em Direito, em 1985, rumou para Bruxelas — onde estagiou junto de Jacques Delors, na Comissão Europeia — e para a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque. Em 1993, doutorou-se na Universidade de Nice. Quero que os meus filhos tenham horror da mediocridade, era uma das máximas de Hassan.

Contrariamente ao pai, Mohammed inscreveu os assuntos internos como tarefa prioritária

Por causa do carácter crucial que atribuía à formação, os receios de Estado sobrepuseram-se à afectividade quando, em Setembro de 1985, o Mercedes que o filho guiava caiu numa ravina. A inquietude do rei foi superior à do pai. Eu apercebi-me que o príncipe herdeiro tinha passado ao lado de uma catástrofe. Eu vi 20 anos de educação, de formação, completamente destruídos, declarou Hassan II.

Durante dois longos reinados — 46 anos de Hussein e 38 de Hassan —, os príncipes viveram na sombra de dois líderes míticos que asseguraram a unidade nacional com punhos-de-ferro. A entronização dos dois jovens, horas após a morte dos pais — a de Abdallah II a 7 de Fevereiro de 1999 e a de Mohammed VI a 23 de Julho seguinte —, correspondia à coroação de dois verdadeiros enigmas, mas, ao mesmo tempo, à injecção de sangue novo em reinos politicamente estagnados, economicamente débeis e socialmente fracturados. Afirmou então Abdallah: Eu tenho 37 anos e 70% do meu país é mais novo do que eu, portanto eu penso que os líderes da minha geração talvez reflictam melhor as atitudes das gerações mais novas.

Quando subiu ao trono, a juventude de Mohammed foi celebrada de forma eufórica. Em Marrocos, 80% da população nasceu após a independência (1956). Eu não posso saber, com certeza, que tipo de rei será Mohammed, mas já era altura de um homem mais jovem assumir o comando, confessou um comerciante de Casablanca. O rei da mudança chegou. Muitas cabeças vão rolar. Sua Majestade vai ser uma boa surpresa. Ele viu os erros do seu pai e vai fazer o contrário! Todo o mundo procura a justiça, o fim da corrupção, a liberdade. Graças à sua mentalidade de jovem, nós vamos consegui-lo, escreveu um jornalista marroquino.

Contrariamente ao pai, cuja reconhecida visão histórica e inteligência lhe tinham granjeado um papel de destaque na aproximação israelo-árabe, Mohammed inscreveu os assuntos domésticos como tarefa prioritária da sua ordem de trabalhos. Hassan II era um génio da política externa, não da interna! Como compensação, o que interessa ao novo rei somos nós, as nossas necessidades, escreveu o mesmo jornalista. Hassan II evocava, facilmente, a propósito da dureza da vida quotidiana dos seus súbditos, a coragem do seu querido povo. Enquanto a reacção de Sidi Mohammed consiste, antes, em interrogar-se o que pode ser feito para melhorar a situação. Ele vê os indivíduos onde o seu pai não via mais do que o povo, analisou um observador ocidental.

Na Jordânia, Abdallah é um modelo no que toca à combinação da modernidade com a tradição. Com a mesma facilidade com que leva a família para umas férias na Côte dAzur, ele senta-se nas tendas das tribos beduínas e escuta os sábios conselhos dos anciãos. Cada monarca tem o seu próprio estilo. Hussein era Deus, o pai. Abdallah é mais humano, é antes um irmão mais velho, disse um jornalista.

Na Jordânia como em Marrocos, os velhos soberanos deixaram de herança uma monarquia incontestada. E mesmo aqueles que não morrem de amores pela instituição monárquica não ficam indiferentes ao permanente estado de graça em que os jovens monarcas parecem viver. Vamos acabar sendo todos monárquicos!, afirmou um jornalista marroquino. Hoje, com o nosso rei Mohammed, sentimo-nos como os espanhóis que não são monárquicos mas antes juancarlistas, disse um outro.

Mohammed e Abdallah são amigos próximos. Juntamente com o Sheik Hamad, do Bahrain, eles são as faces visíveis de uma nova geração de líderes num mundo árabe onde ainda predominam as personalidades que fizeram a transição do período colonial para a independência. Em sentido figurado, são uma espécie de crianças desprotegidas rodeadas de gerontes experientes. Nós fomos todos educados no Ocidente e somos muito amigos. Estamos sempre a falar e comparamos notas, comparamos problemas — que são todos muito parecidos — e partilhamos as nossas experiências e como resolvemos os problemas. É, na verdade, fascinante. Eu não tenho esta intimidade com a geração mais velha, afirmou Abdallah.

Com percursos ainda curtos, estas almas gémeas dão o mote para a era das sucessões que se aproxima e onde os casos sírio, saudita, iraquiano e palestiniano serão, com toda a certeza, alvo de muita curiosidade.

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 11 de março de 2000

Europa prepara dia ‘anti-automóvel’

Preocupada com a poluição do ar, a União Europeia está a preparar um «Dia Europeu Livre de Automóveis»

Para «atacar» um dos maiores problemas das grandes cidades neste virar de século — o da poluição atmosférica, gerada em grande parte por um trânsito infernal —, a Comissão Europeia está a preparar um «Dia Europeu Livre de Automóveis».

A mega-operação — que pretende ser a mais ampla e mais mobilizadora iniciativa do género realizada desde sempre — será levada a cabo apenas no dia 22 de Setembro, mas os seus contornos deverão ser divulgados na próxima sexta-feira, em Bruxelas, pela Comissária Europeia para o Ambiente, Margot Wallstrom, a ministra francesa do Ambiente, Dominique Voynet, e o seu homólogo italiano, Edo Ronchi.

Ministros de bicicleta

A campanha surge na sequência de uma edição pioneira («En ville, sans ma voiture»), lançada pelo Governo francês, a 22 de Setembro de 1998, em 34 cidades de França.

No ano seguinte, a iniciativa estendeu-se a mais 31 cidades francesas e contagiou algumas metrópoles dos países vizinhos: 92 italianas e 6 suíças. Nesse dia, mais de 20 milhões de pessoas colaboraram, activamente, com a iniciativa (que se prolongou das 7 às 21 horas), 85% das quais manifestaram o desejo de a ver repetida com mais frequência. E nem mesmo Dominique Voynet se absteve de participar, ao partir, de manhã, para o Conselho de Ministros, acompanhada por alguns colegas de Governo… de bicicleta.

O objectivo da edição 2000 — pela amplitude pan-europeia que os organizadores desejam —, é, seguramente, o mais ambicioso de sempre. França, Itália, Bélgica, Áustria, Dinamarca e Finlândia já se comprometeram com o evento.

O ministro português do Ambiente, José Sócrates, também deverá confirmar a participação de Portugal no evento.

Segundo estudos recentes — efectuados conjuntamente por franceses, alemães e britânicos —, 50% dos europeus não hesitam em recorrer ao seu automóvel quando têm de percorrer uma distância inferior a 3 quilómetros, 25% fazem-no para andar menos de um quilómetro e mais de 10% para percorrer 500 metros.

A necessidade de alterar o comportamento das populações citadinas no que respeita aos hábitos de mobilidade e a urgência em recuperar alguma da qualidade de vida que a grande maioria das cidades perdeu desencadeou, ao longo da década de 90, várias iniciativas, em outros tantos países.

São precisamente estas acções que são designadas, genericamente, «car free day» («dia sem carro», numa tradução livre), e que consistem na delimitação de algumas zonas urbanas, cujo acesso é fortemente condicionado, senão mesmo proibido, aos veículos motorizados.

Muitas medidas, pouca publicidade

O caso mais recente data do passado dia 16, quando a cidade italiana de Milão encerrou o centro histórico ao trânsito. As autoridades justificaram a medida com o recente recorde dos níveis de poluição do ar registado na cidade, a segunda maior de Itália.

Além de simbólicas, acções como esta têm uma forte componente pedagógica, constituindo ao mesmo tempo ocasiões excelentes para as autarquias promoverem formas de mobilidade menos poluentes (circuitos pedestres e vias para ciclistas, por exemplo) e experimentarem novos transportes públicos.

Medidas deste género têm proliferado um pouco por toda a Europa, mas o seu carácter pontual e isolado não proporciona a esta «causa» uma grande repercussão mediática e, consequentemente, uma sensibilização eficaz junto dos cidadãos.

O MODELO FRANCÊS

No velho continente, a França — além da campanha «En ville, sans ma voiture» (Na cidade, sem o meu carro) — tem-se destacado ao nível da luta pela melhoria da qualidade do ar. Governo e autarquias cooperam na execução de um programa global de combate à poluição atmosférica, sobretudo nos espaços urbanos.

Essa intervenção assume contornos curiosos nos dias em que os índices de poluição atingem o «pico», ou seja, o correspondente ao nível 3 do procedimento de alerta.

Nesses dias, as autoridades locais delimitam uma «área de intervenção» dentro da qual os transportes públicos são gratuitos e a circulação automóvel é fortemente condicionada. Neste perímetro, só podem circular…

♦ os automóveis particulares autorizados pelo mecanismo de circulação alternada: nos dias pares, somente podem circular os veículos cujo último número antes das letras da matrícula sejam pares; nos dias ímpares, só os carros cujos mesmos números sejam ímpares. Ou seja, se, esta semana, as cidades francesas vivessem em estado de alerta, ao automóvel com a matrícula 749 HDA 81 poderia circular hoje (dia 29), enquanto o carro com a matrícula 750 HDA 81 só o poderia fazer amanhã (dia 30);

♦ os automóveis com a «pastilha verde», um dispositivo gratuito, colado no canto inferior direito do pára-brisas, que identifica as viaturas particulares menos poluentes — a gasolina ou a diesel, equipados com um catalizador ou outro sistema equivalente, a gás ou eléctricos — e lhe conferem facilidades de circulação e de estacionamento;

♦ as viaturas que transportam, pelo menos, duas pessoas além do condutor (o chamado sistema de «co-voiturage», algo como «partilha do carro»);

♦ os transportes públicos, que, nesses dias, são gratuitos;

♦ os veículos de duas rodas;

♦ os camiões, embora sujeitos a algumas restrições, nomeadamente a observância de percursos alternativos;

♦ os veículos de deficientes, de urgência e pertencentes a certas categorias profissionais;

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de janeiro de 2000

Predadores dos mares

OPEN CLIP ART LIBRARY

A pirataria marítima é um fenómeno em expansão, sobretudo no sueste asiático, sulcado diariamente por milhares de embarcações — e onde os novos Barba Negra se deslocam em lanchas rápidas e atacam de Kalashnikov e granada

Herdeiros dos ideais de Barba Negra — o mais carismático e temido dos corsários —, os piratas do terceiro milénio já pouco têm em comum com os seus “antepassados”: substituíram os floretes por Kalashnikov e M-16, ganharam em agressividade aquilo que perderam em romantismo e não “pedem licença” para matar.

No século XVIII — a Idade de Ouro da pirataria marítima —, os bandidos, regra geral, observavam um código de conduta, assente em regras democráticas no que respeita quer à eleição do capitão do navio quer à decisão de atacar ou não determinada embarcação. Em muitos casos, o produto do assalto era mesmo dividido em partes iguais.

Hoje, tudo isto é ficção. O pirata não vive necessariamente numa ilha, isolada de tudo e de todos. Pode ser um discreto funcionário de um porto, um militar com acesso privilegiado a armamento ou, simplesmente, gente desesperada sem possibilidade de recorrer a meios legítimos de subsistência. A corrupção e a pobreza são, hoje, aliás, os dois motores de crescimento da pirataria moderna.

Intersetados pela Marinha dos Estados Unidos, no Golfo de Aden, estes homens são suspeitos de pirataria JASON R. ZALASKY / MARINHA DOS EUA

“Crocodilos marítimos”

Os piratas modernos obedecem a tácticas e estratégias como no caso dos fuzileiros. Estabelecem objectivos concretos, definem racionalmente os meios e, tal qual Neptuno, conhecem os mares como a palma das mãos. Deslocam-se em lanchas rápidas, atacam em bando e, como em qualquer actividade económica, vão-se especializando em formas precisas de ataque.

Uma das principais é o “ataque-relâmpago”, quer em portos — aproveitando o desmazelo em muitos deles ao nível da segurança — quer no mar. Munidos de facas ou armas de fogo de baixa potência, aproximando-se dos alvos com grande discrição e desferem ataques com grande rapidez e agilidade, sendo, por isso, vulgarmente conhecidos como “crocodilos marítimos”. Buscam, essencialmente, dinheiro e objectos pessoais de grande valor.

EXEMPLO: Em Maio de 1997, piratas albaneses atacaram um iate alugado por um casal de turistas ingleses quando navegava ao largo da ilha grega de Corfu. Os quatro assaltantes estavam munidos de espingardas e granadas e roubaram todos os bens que o casal levava a bordo, bem como os equipamentos de navegação.

Pilhagens em alto-mar

O ataque em alto-mar é o tipo de pirataria mais frequente e aquele que, quando levado a cabo em estreitos de mar, mais perturbações causa à navegação, sobretudo nos casos em que os piratas aprisionam a população, assumem o leme do navio e abandonam-no, posteriormente, deixando-o à deriva. Trata-se de ataques violentos, perpetrados por grupos bem organizados e, normalmente, muito bem armados e que funcionam como extensões de um navio-mãe. Frequentemente, registam-se mortos e feridos.

EXEMPLO: Em Fevereiro de 1996, ao sul das Filipinas, um bando a bordo de duas lanchas rápidas e munido de armas automáticas abordou a traineira MN-3 Normina e disparou sobre a tripulação, desarmada. Por umas poucas toneladas de peixe, nove pescadores foram mortos e um único — que resistiu aos ferimentos na nuca e conseguiu nadar para terra — sobreviveu.

Navios-fantasmas

Outro tipo de actuação dos piratas modernos é tomarem o controlo de navios em alto-mar e descarregarem as mercadorias para pequenos barcos, quer para benefício próprio quer para as venderem, posteriormente, a licitadores privados, a baixo preço. Depois, os navios são, fraudulentamente, registados de novo, rebaptizados e reingressam no circuito comercial.

Os ataques são feitos por grandes grupos de operacionais, fortemente armados e altamente treinados. A margem de erro de cada operação é pequena pois, previamente, os piratas são informados sobre a natureza das cargas, a sua propriedade bem como a bandeira do navio. Têm os seus informadores nos portos que mais lhes interessam, normalmente funcionários de companhias de navegação corruptos.

EXEMPLO: Em Setembro de 1998, o cargueiro japonês Tenyu desapareceu, no Estreito de Malaca, após deixar a Indonésia rumo à Coreia do Sul, com cerca de 3000 toneladas de lingotes de alumínio (com um valor comercial superior a 3 milhões de dólares) e uma tripulação de treze chineses e dois sul-coreanos. Três meses depois, foi encontrado num porto no leste da China, com um outro nome — Sanei-I — e dezasseis tripulantes indonésios.

Perdas de 36 milhões de contos por ano 

Segundo o Gabinete Marítimo Internacional (GMI), este tipo de pirataria provocará, num futuro próximo, problemas económicos de dimensão equiparável aos causados pela Mafia italiana. O GMI estima que o valor dos carregamentos roubados desta forma atinja já um montante anual superior aos 200 milhões de dólares.

Duas embarcações sobrelotadas: uma com elementos da Marinha norte-americana, outra com suspeitos da prática de pirataria, no Golfo de Aden MARINHA DOS EUA

O PIRATA ACTUAL

ASPECTO: barba por fazer, lenço na cabeça ou fita na testa, pode usar uma farda

MEIOS: Desloca-se em lanchas rápidas: está armado de facas (os menos perigosos), de espingardas e granadas (os intermédios) e de metralhadoras, ligeiras ou pesadas (os mais perigosos)

PERFIL: actua em grupo; o mais perigoso é sangrento e impiedoso, recorrendo a uma força desproporcional ao fim que pretende, não é necessariamente um homem que vive isolado numa ilha e pode ser um militar ou um funcionário de um porto

ALVOS: iates, traineiras, cargueiros, petroleiros e até pequenos navios de cruzeiro; rouba de tudo, de dinheiro e bens pessoais (os menos perigosos) a peixe e matérias-primas

1989, ANO DE VIRAGEM

O ano de 1989 constitui o marco histórico da pirataria moderna, essencialmente por duas razões: a redução da presença de forças navais norte-americanas no sueste asiático (ver texto sobre a Indonésia) e a intensificação do tráfego comercial marítimo, que colocou na mira dos piratas um maior número de alvos potenciais.

Os números do Centro Regional de Pirataria do Gabinete Marítimo Internacional (GMI), sediado em Kuala Lumpur, na Malásia, não desmentem os factos: se, em 1988, apenas 3 ataques foram denunciados, no ano seguinte o número cresceu até aos 60. E, em 1991, aumentou para 102.

Contudo, e apesar do aumento exponencial de ataques de pirataria na década de 90, há fortes indícios que apontam para que apenas uma ínfima parte dos casos verdadeiramente ocorridos, nomeadamente no mar alto, sejam denunciados pelas vítimas. De facto, não faz grande sentido que, em 1992, o número de denúncias tenha descido, drasticamente, até aos 69. Os argumentos em defesa desse receio em fazer queixa são, aliás, inatacáveis:

1. A morosidade das investigações implica a paralisação dos navios durante bastante tempo, o que traz custos avultados para os armadores.

2. Há o medo declarado de que a denúncia deste tipo de incidentes apenas sirva para aumentar os seguros sobre os navios.

3. A fama da vulnerabilidade da navegação a actos de pirataria traz graves consequências ao nível das trocas comerciais para os agentes e países envolvidos.

Por exemplo, Hong Kong teve, de 1992 a 1995, a reputação de ser um porto de perigo extremo. Tanto o NUMAST (um sindicato inglês que representa 20 mil mestres, oficiais e cadetes) como a Associação de Armadores do Japão ameaçaram reduzir ou redireccionar os fluxos comerciais, até que a segurança e vigilância marítimas fossem garantidas.

Paralelamente ao aumento do número de casos de pirataria, regista-se, igualmente, um agravamento qualitativo na forma como esses ataques são efectuados.

Os actos de violência radicalizaram-se e mesmo aqueles — como a tortura — que são, normalmente, associados a situações de conflito específicas, já foram adoptados pelos piratas.

Um exemplo disso foi o que aconteceu em Novembro de 1998 com um pesqueiro chinês: ao içar as redes, viu emergir seis cadáveres amordaçados e com contrapesos atados. Mais tarde, foram identificados como sendo marinheiros do cargueiro Cheung Son, que tinha sido assaltado, quando seguia da China para a Malásia, carregado de minério de ferro, e os seus 23 tripulantes chacinados e lançados ao mar.

Nas palavras de Eric Ellen, o director executivo do GMI, “a pirataria moderna é violenta, sangrenta e impiedosa. Tornou-se mais assustadora porque as suas vítimas sabem que estão sós e desarmadas”.

PARAÍSO E SANTUÁRIO

Apesar de a pirataria ser uma realidade galopante na costa da Somália e nos portos brasileiros, é no sueste asiático — região onde o corso, desde há centenas de anos, é um fenómeno endémico — que ela assume os contornos mais preocupantes. Por lá passam as principais rotas de navegação comercial, sendo as inúmeras ilhas que salpicam os mares asiáticos serpenteadas, diariamente, por milhares de embarcações.

As estatísticas dizem que, de ano para ano — sobretudo após a crise económica ter atingido a Ásia —, os ataques se fazem com menor discrição e redobrada intensidade. Na Indonésia, os actos de pirataria tornaram-se mesmo uma praga. Em 1997, foram reportados 47 casos, no ano seguinte 59 e, só nos primeiros meses de 1999, já foram denunciados 36 ataques (ver mapa).

A experiência do capitão Newton…

Desde que se tornou, internamente, um turbilhão de instabilidade e insegurança, a Indonésia tem vindo a perder influência sobre as vitais e estratégicas rotas marítimas que atravessam a região. A continuar a convulsão, a Indonésia poderá, em breve, tornar-se um verdadeiro paraíso para qualquer pirata que se preze. É a Câmara Internacional do Comércio — o organismo que superintende quer o GMI, em Londres, quer o Centro de Pirataria, em Kuala Lumpur — a primeira a alertar para esta eventualidade.

“Os piratas da Indonésia mostraram, ao longo de muitos anos, capacidade para atacar navios, particularmente nas águas junto à costa. Eles sabem como fazê-lo e têm o armamento necessário. Pessoas desesperadas fazem coisas desesperadas e, dada a instabilidade social no país, será muito fácil começar com ataques piratas”.

Oficiais da marinha mercante testemunham que muitos dos raides piratas na zona são protagonizados por membros de uma unidade militar desertora do Exército indonésio, treinada pelos ingleses, ironicamente… para combater os crimes de pirataria. A experiência do capitão Peter Newton — feito refém por um bando de piratas cujo líder, segundo ele, falava um inglês perfeito — é disso uma evidência: “Era, obviamente, um oficial militar”.

… e o apito de McDwall

Igual certeza, mas denotando a mesma dificuldade em apresentar provas, tem Allan McDwall, um comandante inglês que, em 1992, ao largo de Sumatra, conseguiu afugentar um bando de piratas, recorrendo a um sistema de bloqueamento das portas do seu petroleiro e a um ensurdecedor apito de vapor que “abanava o cérebro e não deixava falar”.

McDwall viria a testemunhar que os assaltantes estavam armados, chegaram em barcos insufláveis e usavam uniformes escuros e camuflados como os dos fuzileiros indonésios. “Sabia que havia um navio de guerra daquele país na zona, porque os podíamos ouvir através do rádio”, disse. Mas a verdade é que nunca conseguiu provar nada. Ainda assim McDwall admite ter tido sorte: “Nos velhos tempos, eles tinham mosquetes, mas nós também. Agora, estamos proibidos de trazer armas a bordo”.

O CÚMPLICE ‘DESCARADO’

Jayant Abhyankar, um alto responsável do Gabinete Marítimo Internacional (GMI), não tem papas na língua: A China é o único país que deixa os piratas irem embora. Constatamos isso em quase todos os casos que envolvem a China.

Segundo o GMI, um dos factores que têm contribuído para a massificação do problema da pirataria marítima — sobretudo nas águas entre o Mar do Sul da China e o Mar de Java —, é, de facto, a cumplicidade implícita na forma de Pequim (não) actuar.

As suspeitas partem do pressuposto de que as autoridades chinesas sofrerão ainda de um trauma provocado por um certo vazio de poder e autoridade, resultante da menor presença, na região, de vasos de guerra americanos e soviéticos, comparativamente ao que se passava antes de 1989.

Exemplos: em 1997, a China mandou para casa, sem julgamento, os catorze piratas que, em Setembro de 1995, tinham tomado o “Anna Sierra” — um cargueiro cipriota que transportava 5 milhões de dólares de açúcar, para as Filipinas —, alegando não ter legitimidade para julgar um caso que ocorrera na jurisdição da Tailândia. Contudo, ficou provado que as autoridades chinesas venderam a carga do navio — aprisionado em Beihai, um porto no sul do país cujas autoridades já ganharam fama de cumplicidade descarada — e multaram o armador em 400 mil dólares para cobrir os custos dos “inquéritos”.

Outro caso ocorreu em Abril de 1998. O petroleiro malaio “Petro Ranger”, tomado de assalto quando seguia de Singapura para o Vietname, foi encontrado posteriormente num porto chinês, com a sua carga de diesel e querosene intacta. Os piratas, indonésios, foram repatriados sem qualquer punição.

Artigo publicado no Expresso, a 11 de dezembro de 1999

Um mundo mais árido

Menos mediática que um sismo ou um furacão, a desertificação causa centenas de milhares de refugiados. Para debater o problema, uma das ameaças do próximo milénio, 159 países estão reunidos no Brasil

A desertificação dos solos é um fenómeno natural não tão mediático como um terramoto ou uma inundação, não tão espectacular quanto a erupção de um vulcão, não tão devastador como a passagem de um ciclone, mas é, seguramente, aquele que maior número de pessoas afecta. Discretamente hectares de terra vão sendo consumidos pela erosão resultante quer das alterações climáticas quer da intervenção humana, tornando insuportável — senão mesmo impossível — a vida em algumas partes do planeta.

Como uma verdadeira guerra, a desertificação tem já os seus «refugiados». Os números dizem que cerca de 250 milhões de pessoas são directamente afectadas por este fenómeno e que 1000 milhões estão em risco, sofrendo já de má nutrição (ver mapa e quadro).

Para fazer o ponto da situação do avanço da «onda amarela», os 159 países signatários da Convenção de Combate à Desertificação estão reunidos desde segunda-feira no Recife (Brasil), até à próxima sexta-feira.

Refugiados ambientais

Em muitos países, o problema dos «refugiados ambientais» será um dos maiores desafios do próximo milénio.

No México — onde a desertificação atinge 85% do território — as estatísticas revelam que, anualmente, entre 700 mil e 900 mil pessoas continuam a emigrar para os Estados Unidos. No Haiti, a situação é, por natureza, ainda mais desesperante, Centenas de haitianos «empilham-se», mensalmente, nos mediáticos «boat people», com a costa da Florida no horizonte, deixando para trás um país em total desertificação. Segundo o Ministério da Agricultura haitiano, a floresta Pic Macaya — um «pulmão verde», no Sul do país — tinha, há 30 anos, 6250 hectares de floresta virgem; em 1985, já só eram 225. Hoje, a cobertura vegetal não deverá ultrapassar os 100 hectares.

Em qualquer cenário de pobreza, fome e/ou guerra, as dificuldades económicas já não justificam, por si só, o êxodo demográfico. Cada vez mais, os fluxos migratórios devem-se, também, a motivações ambientais resultantes da pressão que a improdutividade dos solos gera sobre as populações.

«Se não produzirmos carvão, não comemos…»

Os escritos experientes do comandante Cousteau testemunham bem a frágil fronteira entre a necessidade de preservar os recursos naturais e a urgência em sobreviver: «Sem petróleo disponível e sem electricidade suficiente, muitos haitianos têm apenas madeira como combustível, apesar de estarem conscientes de que os seus fogões a carvão estão, gradualmente, a dizimar as últimas árvores da ilha. ‘Nós estamos a lutar contra a fome. Se não produzirmos carvão, não comemos´, explica o carvoeiro. O resultado é um pesadelo ecológico…»

A desflorestação — paralelamente à sobreexploração dos solos, à sobrepastagem, à degradação química das terras e à utilização incorrecta de métodos de cultivo — é uma das causas de desertificação provocadas pelo homem.

Em África — onde a terra assumum carácter verdadeiramente «sagrado» no quotidiano das populações —, o abate das florestas, combinado com longos períodos de seca, é mesmo a causa primária de desertificação. Mais do que em qualquer outro lugar, é em África que é mais imperioso envolver as comunidades locais no combate à desertificação dos solos.

Mulheres de Popenguine

A este nível, o Senegal — no coração da árida região do Sahel — foi palco de uma curiosa iniciativa de sucesso. Em Janeiro de 1989, um grupo de 119 mulheres — na sua maioria mães e donas-de-casa —, naturais de Popenguine (45km a Sul de Dacar), instituiu o «Grupo das Mulheres de Popenguine para a Protecção da Natureza». Tinham como objectivo a recuperação e protecção de uma área em adiantado estado de degradação e, para tal, ergueram, ao longo de 12km, uma cerca com seis metros de largura para proteger dos incêndios toda a fauna e flora aí existente.

Passados dez anos, as consequências não podiam ser mais animadoras: Popenguine é o destino de férias favorito dos senegaleses mais endinheirados; o Presidente da República construiu aí a sua residência de fim-de-semana e, devido ao santuário mariano existente, a região tornou-se um importante centro do catolicismo em África Ocidental, atraindo, anualmente, milhares de peregrinos.

A experiência de Mossi

Mas nem sempre o envolvimento dos locais é, só por si, garantia de sucesso. Em Burkina Faso, por exemplo, a população do planalto Mossi «descobriu» o desenvolvimento quando começou a desbastar florestas para produzir lenha, para abastecimento próprio e para as zonas urbanas. Depois, transformou as clareiras em campos de cultivo, submetendo os solos a uma forte pressão, no sentido de alimentar os locais e gerar algum rendimento para os agricultores. Sem pousio, as terras ficaram exaustas e entraram em regressão.

Terceiro problema mais preocupante

Não é pois de estranhar que, num recente inquérito sobre as preocupações ambientais, a desertificação tenha sido o terceiro problema mais preocupante para os inquiridos (depois das alterações climáticas e da escassez de água doce): afinal, cerca de 40% da superfície terrestre corresponde a terras áridas, semiáridas e sub-húmidas, as mais susceptíveis à erosão e as responsáveis pela produção da maior parte dos recursos alimentares do mundo.

♦ A desertificação afecta 120 países, entre os quais Portugal, causando um prejuízo global anual de 42 mil milhões de dólares

♦ Dos 14.900 milhões de hectares da superfície terrestre
— 6.100 milhões são terras secas
— 3.600 milhões são terras secas desertificadas
— 1.000 milhões são deserto hiperárido natural

♦ Dos 6000 milhões de habitantes do mundo
— 250 milhões são directamente afectados pela desertificação
— 1000 milhões estão em risco
— 25 milhões são ‘refugiados’

♦ Em África, o continente mais afectado
— 2/3 das terras são áridas ou semiáridas
— 1/3 está ameaçado pela desertificação
— O Programa das Nações Unidas para o Ambiente estima que, desde 1950, cerca de 500 milhões de hectares têm vindo a sofrer desertificação, incluindo 65% dos terrenos agrícolas. As áreas mais afectadas são a costa mediterrânica, a região sudano-saheliana e o Sul

PORTUGAL NÃO ESCAPA

Portugal é um dos 120 países afectados pela desertificação dos solos. Quase metade do território — Leste de Trás-os-Montes, Beiras, Alentejo e Algarve — é altamente susceptível ao problema.

Trás-os-Montes e Beiras têm vindo a pagar a factura da interioridade — por isso a desertificação é, sobretudo, humana. Já no Alentejo, o problema é, essencialmente, físico, fruto da adopção, no passado, de políticas que aceleraram a degradação das terras, nomeadamente a campanha do trigo, nos anos 30 e 40.

No Algarve — onde doze dos dezasseis concelhos registam taxas de susceptibilidade à desertificação entre os 90 e os 100% —, a erosão é, essencialmente, hídrica, à qual não será alheio o volume de água gasto na manutenção dos campos de golfe. A rega de um campo de 18 buracos, por exemplo, consome, num ano, tanta água quanto um agregado de 15 mil pessoas. A tendência de degradação dos solos é ainda agravada pelo facto de, em Portugal, só 8% das terras serem de boa qualidade (contra 14% nos restantes países do Sul da Europa) e 25% terem uma qualidade moderada (contra 52%).

Em Julho, o Ministério da Agricultura anunciou uma forte aposta no regadio como estratégia proncipal de fomento da produção agrícola nacional: o investimento de cerca de 135 milhões de contos na criação de 72.500 ha de regadios, através da construçãod e poços, furos, charcas, pequenas barragens e açudes e da aquisição de «pivots» e outros sistemas de rega.

Artigo publicado no “Expresso”, a 20 de novembro de 1999

Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.