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Acontecimento internacional do ano. Os talibãs estão de volta ao poder

Vinte anos após o início de uma guerra declarada para os derrubar, os talibãs são de novo Governo em Cabul. Como se EUA e NATO nunca lá tivessem estado

Símbolos do domínio talibã no Afeganistão: mulheres cobertas com burqa e a cavidade vazia onde existiu um dos budas gigantes dinamitados pelos extremistas, em Bamiyan. Esta foto foi tirada a 17 de junho de 2012 SGT. KEN SCAR / WIKIMEDIA COMMONS

O novo normal no Afeganistão é um cenário de terror de onde quem lá vive tenta fugir a todo o custo. A recente chegada a Portugal de um grupo de jovens músicas que integram a orquestra do Instituto Nacional de Música do Afeganistão é só um exemplo.

Desde que os talibãs recuperaram as rédeas do poder, a 15 de agosto, o quotidiano do país está envolto em atos de vingança e manifestações de intolerância tais que garantem ao Afeganistão um lugar de destaque nos relatórios internacionais relativos ao exercício de direitos e liberdades, pelas piores razões.

A música é proibida em locais públicos. Afegãos que trabalharam para forças militares estrangeiras recebem visitas de talibãs, com o intuito de os levar de casa, sem regresso garantido. Por todo o país, em especial em zonas recônditas, multiplicam-se relatos de detenções, tortura e execuções de cidadãos afetos ao antigo regime, de ataques contra ativistas, jornalistas, religiosos e personalidades da cultura. A lei dos talibãs voltou a punir ladrões com enforcamentos em praça pública e a autorizar agressões nas ruas a transeuntes que, de alguma forma, não se apresentem consoante os códigos defendidos pelos “estudantes de teologia”. Ainda que o novo poder prometa uma amnistia geral, no terreno, os militantes têm sede de desforra.

As mulheres estão, para já, proibidas de estudar e de trabalhar, exceção feita a médicas, essenciais para o atendimento de pacientes do sexo feminino nos hospitais. Os talibãs garantem que as restrições impostas às mulheres são temporárias. Ironicamente, é uma mulher que, atualmente, personaliza o principal obstáculo que o novo regime talibã enfrenta — o do reconhecimento internacional.

No final de julho, a menos de um mês de os talibãs entrarem em Cabul, Adela Raz, afegã de 35 anos, foi nomeada embaixadora do Afeganistão nos Estados Unidos. Sem o reconhecimento formal do novo regime por parte de Washington, os talibãs não conseguem substituí-la, ainda que, inversamente, a diplomata esteja cada vez mais de mãos atadas, sem autoridade nem fundos para assegurar o funcionamento da embaixada. Na semana passada, outro diplomata afegão, Ghulam Isaczai, cedeu às circunstâncias e demitiu-se da chefia da missão do Afeganistão na ONU.

Sem reconhecimento

Quando foram poder pela primeira vez (1996-2001), os talibãs viram três países reconhecerem o Emirado Islâmico do Afeganistão: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. Passados 20 anos, não há Estado que arrisque ser pioneiro a legitimar um sistema de governo igualmente retrógrado e medieval.

Quatro meses após voltarem ao poder, não se pode dizer que os talibãs vivam num isolamento diplomático absoluto. A China, por exemplo — que precisa do Afeganistão para que não aumente o problema na região de Xinjiang (onde os uigures, a minoria muçulmana chinesa, vivem em campos de concentração) —, já entregou aos talibãs milhões em ajuda de emergência. Mas as autoridades de Pequim não avançam sozinhas para o reconhecimento de um regime que prometeu moderação e inclusão e acabou a escolher um governo sem mulheres, com pouca diversidade étnica e até com um ministro procurado pela Interpol (o que não é novidade no Afeganistão). “As coisas serão diferentes quando a China, o Paquistão, a Rússia e o Irão chegarem a um consenso sobre o assunto”, assegurou o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi.

Só aparentemente os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas com negociações que tornaram o regresso ao poder inevitável

Paralelamente à vantagem política de serem aceites na cena internacional como iguais entre pares, o reconhecimento internacional é crucial para que o Governo talibã consiga aceder a empréstimos e financiamentos, em particular junto de instituições como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, e veja sanções serem levantadas, o que só acontecerá caso se comporte dentro de determinados limites. Sem apoio internacional, não haverá dinheiro para pagar salários e fica comprometida a administração — e estabilidade — de um país com cerca de 40 milhões de habitantes e índices de pobreza gritantes.

Décadas de guerras

Dono de uma geografia que tem tanto de estonteante como de agreste — sem litoral, com extensas regiões escassamente povoadas e pelo menos quatro montanhas com cumes acima dos 7000 metros —, o Afeganistão é também consequência de décadas de conflitos. Nos últimos 200 anos, por entre períodos de confrontos internos entre os diferentes grupos étnicos, o orgulhoso povo afegão enfrentou três potências estrangeiras: o Império Britânico (1838-42, 1878-80 e 1919-21), a União Soviética (1979-1989) e os Estados Unidos (2001-2021). Todas saíram do Afeganistão derrotadas e os afegãos consolidaram a fama de insubmissos.

O regresso dos talibãs ao poder resulta, pois, de mais uma guerra mal conduzida por quem se propôs erradicar as raízes do terrorismo internacional. Declarada para vingar o 11 de Setembro, derrubar o regime talibã — que permitiu que a Al-Qaeda usasse o Afeganistão para atacar Washington e Nova Iorque — e impedir que o país continuasse a ser porto seguro para terroristas, a invasão do Afeganistão revelou-se uma missão de contraterrorismo que não foi pensada para construir um novo país, em termos políticos e militares.

Essa ilusão ficou a descoberto quando os “estudantes” reassumiram o Governo de Cabul no momento em que as últimas tropas da NATO regressavam a casa. Contrariamente a 2001, quando a entrada em Cabul foi antecedida por dias de bombardeamentos sobre a capital, desta vez os talibãs marcharam de forma fulminante e sem enfrentarem a mínima resistência.

Só aparentemente é que os talibãs de 2021 são uma cópia dos de 2001. Desta vez, a avançada não se fez à bomba, mas beneficiando de negociações que tornaram o seu regresso ao poder inevitável, mal a NATO virasse costas.

Falta de liderança

A inércia quer das forças armadas quer de milícias afetas a senhores da guerra (alguns dos quais fugiram mesmo do país) indicia cumplicidade entre fações que noutros tempos se digladiavam até à morte. A exceção foi um grupo de combatentes tajiques, liderados por um filho do lendário comandante Massud, que, entrincheirado no vale do Panjshir, apenas conseguiu atrasar uns dias a vitória total dos talibãs.

A inação das tropas governamentais expõe problemas de liderança, simbolizados na fuga do Presidente Ashraf Ghani para o estrangeiro, mas também na facilidade com que muitos soldados afegãos passaram para as hostes talibãs. Entre as suas motivações está um sentimento de abandono decorrente, por exemplo, de salários em atraso. Outra vulnerabilidade das forças armadas afegãs — cuja constituição foi a grande prioridade da missão da NATO — é terem sido criadas em função de lealdades tribais, e não em obediência a uma cadeia de comando funcional.

Mas algo mais escancarou as portas do poder aos talibãs: o processo negocial que decorreu com os Estados Unidos em Doha, a capital do Catar, onde os “estudantes” abriram escritório por volta de 2010. Essas conversações diretas culminaram na assinatura de um acordo de paz, a 29 de fevereiro de 2020, entre a Administração Trump e a liderança talibã — à revelia e sob protesto do Governo de Cabul.

Através desse entendimento, Washington obteve a garantia de que os talibãs não manteriam relações com a Al-Qaeda nem permitiriam que o seu território se tornasse albergue de organizações terroristas. Por seu lado, a fatura apresentada pelos talibãs foi a retirada de todas as tropas estrangeiras do país.

Que mudou Joe Biden?

Com Joe Biden na Casa Branca, não só os Estados Unidos mantiveram a estratégia traçada pela equipa de Donald Trump — sem tentar sequer endurecer exigências — como anteciparam a data de saída do Afeganistão de 11 de setembro para 31 de agosto.

Esse adiantamento poupou os norte-americanos ao embaraço de verem coincidir o 20.º aniversário do 11 de Setembro com o regresso dos talibãs ao poder, mas não protegeu Washington de acusações de traição por parte de afegãos nem de uma imagem de humilhação, patente no caos em que decorreram os últimos dias da retirada, com 183 mortos num atentado do autodenominado Estado Islâmico (Daesh) no aeroporto de Cabul (entre os quais 12 norte-americanos) e milhares de afegãos a escalarem aviões em tentativas desesperadas para saírem do país.

Sair ou ficar pode ser a diferença entre viver ou morrer. É o que se depreende das palavras ao Expresso de um afegão que tem a cabeça a prémio, por ter colaborado com os Estados Unidos: “Os talibãs têm muito dinheiro proveniente dos serviços alfandegários, mas não percebem nada de governação. Estão unidos a matar e matar. Não têm nenhuma humanidade, nenhuma dignidade.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 23 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

À espera que a barba cresça para tentar fintar os talibãs

Perseguido pelo regime, um afegão revela o seu plano de fuga do país. Um relato dramático a partir de Cabul

Said estima que o pesadelo tenha durado uns 40 minutos. Uma eternidade para quem sentia a morte à distância de poucos metros. Por volta das 11 da noite, um grupo de homens identificados com os talibãs bateu à porta da casa dos seus pais em Cabul, capital do Afeganistão. Vinham buscá-lo.

“Eram dois carros. Um estava parado à nossa porta e o outro à entrada da rua. Junto à porta havia três homens e mais dois ao fundo da rua”, recorda ao Expresso este afegão, de 36 anos, descrevendo o que observou através da câmara de vigilância instalada junto à entrada da casa dos pais.

Nervoso, Said ligou a pedir ajuda a amigos, que o aconselharam a não abrir a porta. Por aqueles dias já se sabia o que podia significar uma visita noturna dos talibãs. “Aparecem à noite e levam pessoas de suas casas. Dois ou três dias depois, os cadáveres são despejados num lugar qualquer.”

Os talibãs precisam de integrar as suas forças numa forma de organização centralizada, o que se tem revelado difícil

Perante a insistência dos talibãs, foi a mãe quem levantou a voz para lhes responder de dentro de casa. Questionada acerca do paradeiro do filho, respondeu que não se encontrava ali e que nem sequer estava no país. Os homens não acreditaram, disseram ter informações de que Said estava naquela casa, mas acabaram por abandonar o local.

Foi na casa dos pais que Said se refugiou quando os talibãs assumiram o poder no Afeganistão, após entrarem em Cabul, a 15 de agosto, sem a mínima resistência. Sabia que tinha a cabeça a prémio por ter colaborado com as tropas estrangeiras, que, na perspetiva talibã, “ocuparam” o país durante 20 anos. “A minha família está em risco. Os meus irmãos dizem que tomam conta dos meus pais mas que eu tenho de me salvar sozinho.”

Dólares para subornar

Sem sair de casa desde a assustadora visita dos talibãs, há cerca de duas semanas, Said tem procurado gizar uma forma de se pôr a salvo. A fronteira com o Paquistão está a pouco mais de 200 quilómetros de distância, o que deverá levar umas quatro horas por estrada. Said quer chegar ao ponto de passagem de Torkham, mas para lá chegar precisa de passar despercebido…

Conta, para isso, com a ajuda e cumplicidade de um amigo. “Optei por falar a uma só pessoa. Muita gente envolvida dá sempre problemas. Este meu amigo é de confiança.” Motorista de camiões, Ajmal tem experiência em movimentar-se na zona de Torkham. Pediu a Said que pusesse de parte uns 500 dólares (€433) para dar a um facilitador, na fronteira. Enquanto esse dia não chega, Said deixa que a barba cresça para disfarçar a sua aparência. “Eles conhecem-me. Vou tentar modificar a minha expressão.”

O Expresso conheceu Said em 2011, em Cabul. Na altura, este afegão estudava na Faculdade de Medicina Curativa do Instituto de Ensino Superior Ariana, uma instituição privada em Jalalabade (Leste), perto da fronteira com o Paquistão. Foi ele o guia numa visita a uma escola daquela região conservadora — frequentada por rapazes e raparigas — que beneficiou de financiamento português. “Lembras-te que te pedi que fizéssemos uma visita rápida? Aquelas montanhas em frente à escola estavam cheias de talibãs. Haveria perigo se tivéssemos demorado muito.”

Dificuldade em centralizar

Desde que regressaram ao poder — o novo Governo do Emirado Islâmico do Afeganistão foi anunciado a 7 de setembro —, os responsáveis talibãs procuraram obter reconhecimento internacional adotando um discurso de moderação, oposto ao extremismo impiedoso que caracterizou a sua primeira passagem pelo poder, entre 1996 e 2001.

Entre outras garantias, prometeram uma amnistia para quem colaborou com as forças estrangeiras. Mas o quotidiano dos cidadãos revela-se muito diferente, com muitos talibãs empenhados em vingar essa traição pelas próprias mãos.

“Os talibãs funcionam mais como uma rede espalhada do que como uma estrutura hierárquica robusta”, explica ao Expresso Haroun Rahimi, professor de Direito na Universidade Americana de Cabul. “Agora no poder, precisam de integrar as suas forças, verticalmente, numa forma de organização centralizada. Isso tem-se revelado difícil.”

Said vai partilhando vídeos e fotos macabros, publicados pelos afegãos nas redes sociais, para exemplificar as atrocidades do dia a dia. Perseguições nas ruas, casas rebentadas à bomba, homens executados a tiro ou espancados em sessões de tortura intermináveis.

Num dos últimos vídeos enviados ao Expresso, os corpos de dois homens enforcados oscilam lentamente do ramo de uma árvore. “Uns dizem que eram membros do Daesh [o autodenominado Estado Islâmico, inimigo dos talibãs], outros dizem que eram inocentes”, diz Said. “Este massacre não vai terminar. Os talibãs são muito selvagens, não têm compaixão por ninguém.”

É a um destino cruel destes que Said quer escapar, ainda que tenha de deixar para trás a mulher e três filhos menores. Se conseguir chegar a Islamabade, capital do Paquistão, irá começar outra luta: bater à porta de embaixadas ocidentais (que no Afeganistão estão encerradas), contar a sua história, apresentar documentação e esperar que lhe abram a fronteira para recomeçar a vida em outro país. A salvo. “A vida no Afeganistão já não é possível. Apenas se contam os momentos de dor, tristeza e morte.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui e aqui

Os talibãs tomaram o poder no Afeganistão pela segunda vez em 25 anos. Como foi possível?

A geografia, os interesses geopolíticos e as características socioculturais fazem do Afeganistão um país único no mundo. O regresso dos talibãs ao poder deve ser interpretado à luz de todas essas especificidades. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

O regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão apanhou o mundo de surpresa. Perceber o que está na origem deste grupo e como chegou ao governo pela segunda vez em 25 anos, implica refletir sobre particularidades que fazem deste um país único.

Como a GEOGRAFIA.

Situado no coração da Ásia Central, o Afeganistão é um país sem litoral, com extensas zonas escassamente povoadas e montanhas de mais de 7000 metros.

Ao longo da fronteira com o Paquistão, a cordilheira do Hindu Kush simboliza a importância dos terrenos acidentados para os afegãos. Hindu Kush significa “assassina de hindus”. Este nome terá nascido depois de muitos escravos indianos terem morrido ao frio durante as invasões árabes.

A topografia agreste, onde muitas vezes o transporte de pessoas e bens só é possível no dorso de burros, produziu combatentes de excelência. Os afegãos ganharam fama de serem indomáveis e o país um cemitério de impérios.

A GEOPOLÍTICA explica.

Vários poderes tentaram dominar o Afeganistão com objetivos maiores em mente: chegar às planícies férteis da Índia, ao mar Arábico ou às jazidas energéticas da Ásia Central.

Pelos desfiladeiros deste país passaram comandantes como o grego Alexandre O Grande ou o mongol Gengis Khan. E ainda exércitos árabes, persas e turcos.

Os sucessivos conquistadores foram deixando genes pelo caminho, o que explica o mosaico étnico que é hoje a população afegã. Não raras vezes, os vários grupos guerreiam-se entre si. Mas em presença de um invasor estrangeiro, unem-se.

Nos últimos 200 anos, os afegãos derrotaram o Império Britânico três vezes. E durante a Guerra Fria, a União Soviética terminou a sua ocupação do Afeganistão vergada a pesadas derrotas. Já os Estados Unidos viram 20 anos de intervenção militar pós-11 de Setembro culminar no regresso pujante dos talibãs que proclamaram um Emirado Islâmico.

Isto leva-nos à RELIGIÃO.

Um dos legados dos invasores árabes foi a fé islâmica, que teve o condão de criar unidade num território dividido em tribos.

Quando se fez anunciar no Afeganistão, o movimento talibã tinha nas suas fileiras não só combatentes da guerra aos soviéticos mas também estudantes do Alcorão. Muitos eram órfãos desse conflito, criados em campos de refugiados e radicalizados em escolas religiosas do Paquistão.

Uma vez no poder, além de acolherem a Al-Qaeda de Osama bin Laden, os talibãs exerceram a autoridade com base numa interpretação extremista do Islão, misturada com preceitos culturais.

Hoje, um afegão de 40 anos viveu mais tempo em guerra do que em paz. E esse estado de conflito permanente condena o país à pobreza e a um subdesenvolvimento crónico, tornando-o um dos grandes emissores de refugiados do mundo.

Com pouca terra arável, o Afeganistão é o maior produtor mundial de ópio. Para muito afegãos, isso significa ter trabalho. Para os senhores da guerra, as papoilas são fonte de financiamento das suas milícias. Com ou sem talibãs, o certo é que o potencial do Afeganistão para o conflito é grande.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de outubro de 2021. Pode ser consultado aqui

Americanos estão de saída. Teme-se reinício da guerra

Crescem as áreas controladas pelos talibãs. Receando uma insurgência, há cada vez mais civis a pegar em armas

Uma criança afegã caminha junto a um militar norte-americano, na província de Helmand REECE LODDER, U.S. MARINE CORPS / RAWPIXEL

A guerra americana no Afeganistão tem tantos anos como o 11 de Setembro. Foi sobre este país da Ásia Central que os Estados Unidos retaliaram após o pior atentado sofrido em solo próprio. O Afeganistão era governado pelos talibãs, que abrigavam a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Quase 20 anos passados, os militares americanos estão de volta a casa. Para trás deixam um país cada vez mais nas mãos dos talibãs e, de novo, à beira da guerra.

“A verdade é que hoje a sobrevivência, segurança e unidade do Afeganistão estão em perigo”, alertou na quarta-feira Abdullah Abdullah, que lidera o Alto-Conselho para a Reconciliação Nacional no Afeganistão. “Com a retirada das tropas estrangeiras, a guerra escalou. Infelizmente, os talibãs tiraram partido disso. A saída das tropas naturalmente deixou um vácuo nalgumas áreas.”

A percentagem de território na posse dos talibãs não é unânime, mas é consensual a perceção de que os domínios islamitas estão a crescer para norte dos tradicionais bastiões de Helmand e Kandahar, a sul.

“Mesmo com as forças internacionais no terreno, os talibãs vinham há muitos anos aumentando a sua influência e controlo de vastas regiões de território”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força da NATO no Afeganistão entre 2007 e 2008. “Claro que do ponto de vista militar, a saída dos contingentes internacionais facilita-lhes a vida. Terão de fazer face a um inimigo mais reduzido e com menor capacidade militar.”

Esta semana, o comandante das forças dos EUA no Afeganistão expressou grande preocupação em relação ao futuro imediato do país. “A guerra civil é um caminho que podemos visualizar”, alertou o general Austin S. Miller. “A situação de segurança não é boa.”

Notícias dão conta da reorganização de grupos de antigos mujahedin (que combateram a ocupação soviética e, depois, o regime talibã). Igualmente, sobretudo em áreas habitadas por minorias étnicas, como os hazaras, estão a ser formadas milícias civis contra os talibãs. A perspetiva de grupos armados, organizados com base em lealdades tribais e em torno de “senhores da guerra”, voltarem a pegar em armas para repelir uma crescente insurgência talibã é um filme de terror que o Afeganistão já conhece.

Alemães já estão em casa

O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, estabeleceu o dia 11 de setembro como data final (e simbólica) para a saída das tropas do Afeganistão. A operação deverá ser concluída mais cedo, previsivelmente dentro de dias. Os alemães, que correspondiam ao segundo maior contingente estrangeiro, deixaram o Afeganistão terça-feira.

Quase duas décadas de guerra consagraram o Afeganistão como um atoleiro, onde chegaram a servir em simultâneo 150 mil norte-americanos e onde morreram cerca de 2500. “Falharam muitas coisas” na estratégia americana, analisa Carlos Branco. “Em primeiro, faltou interesse num processo de peace building [construção da paz] logo após a derrota dos talibãs. Os EUA estavam apenas interessados em capturar o Bin Laden e o seu envolvimento inseriu-se no âmbito do contraterrorismo. Isso deu tempo aos talibãs para sarar feridas e recomporem-se.”

“Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável”, diz o major-general Carlos Branco

“Quando a natureza do envolvimento internacional alterou-se e evoluiu para a contrassubversão, Washington assumiu que o conflito ia ser resolvido militarmente, nunca se empenhando a sério em encontrar uma solução política. Essa constatação ocorreu demasiado tarde e de forma errada, para resolver o seu problema com os talibãs, mas não o dos seus aliados afegãos, que terão de viver no Afeganistão lado a lado com os talibãs. O diálogo intra-afegão, que devia estar há anos no topo da agenda, é ainda hoje uma miragem.”

A 29 de fevereiro de 2020, o acordo de paz celebrado entre a Administração Trump e os talibãs abriu caminho ao diálogo intra-afegão que decorre em Doha, capital do Qatar, sem o mínimo progresso. Para o Governo de Cabul, a prioridade é obter um cessar-fogo, mas para os talibãs controlar mais territórios significa ganhos políticos.

“Os Estados Unidos vão retirar-se sem uma solução política para o país”, conclui o militar. “Não sabemos como vai ser o próximo governo e a fórmula política para acomodar a futura correlação de forças. Nunca se quis aceitar que os talibãs são uma força política incontornável e que há que contar com eles, seja qual for a solução política. Pensou-se ser possível um Afeganistão sem talibãs. Não só são uma força política importante como não vão desaparecer. É incompreensível que nunca tenha havido uma política orientada para os pashtuns, a etnia [maioritária no país] em que assenta o poder talibã. Foi tudo tratado com muita arrogância. Agora há que lidar com as consequências desses erros.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de julho de 2021. Pode ser consultado aqui

Recomeçaram as conversações de paz. Qualquer que seja a conclusão, os talibãs estão talhados para ganhar

As conversações de paz entre o governo do Afeganistão e os talibãs recomeçam esta terça-feira. Mas apesar de um país fustigado por tantos anos de guerra, o interesse pela trégua não é consensual. Ao Expresso, o major-general Carlos Branco, um antigo porta-voz das forças da NATO no Afeganistão, explica como o futuro do país depende muito “da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas e que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs”

“Invadimos o Afeganistão para encontrar Bin Laden. Encontrámo-lo no Paquistão, e ainda continuamos no Afeganistão. Precisamos de um GPS melhor.” A piada tem uns anos e foi dita pelo comediante norte-americano Andy Borowitz, que assina atualmente uma coluna satírica na publicação “The New Yorker”. Na altura, as tropas dos Estados Unidos levavam mais de dez anos no Afeganistão — hoje por lá continuam, a caminho dos 20.

Foi contra o regime dos talibãs — que dava guarida a Osama bin Laden e à sua Al-Qaeda — que os Estados Unidos retaliaram depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Washington e Nova Iorque. Hoje o conflito não tem o caráter de uma guerra aberta, mas o quotidiano dos afegãos continua a ser fustigado por muita violência.

Numa das últimas chacinas, a 3 de novembro passado, o alvo foi a Universidade de Cabul, a maior do país. Durante seis horas, três homens armados entraram no campus e foram detonando explosivos e disparando contra quem surgia pela frente.

O ataque — que foi reivindicado pelo autodenominado “Estado Islâmico” (rival dos talibãs, ainda que ambos sunitas) — fez 22 mortos e mais de 40 feridos. A maioria das vítimas eram alunos, jovens que investiam o seu tempo na educação, acreditando no futuro de um país que, por vezes, parece não ter futuro possível.

Futuro auspicioso é possível, mas…

“Se por futuro entendermos a instauração de uma democracia liberal, então seguramente que não teremos futuro no Afeganistão. Isso está longe de acontecer. Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz”, comenta ao Expresso o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz do comandante da força da NATO no Afeganistão, entre 2007 e 2008.

“É possível um futuro auspicioso para o Afeganistão, mas diferente daquele que as potências gostariam que fosse”, continua. “Tudo dependerá do modo como decorrerem as conversações intra-afegãs e da capacidade de reconciliação nacional. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

Será também importante perceber “como será reformulada a Constituição, até que ponto incorporará a sharia [lei islâmica], qual será o regime político e como será feita a partilha de poder”, acrescenta Carlos Branco. “A resposta a estas questões determinará o futuro do Afeganistão.”

Esta terça-feira, em Doha, a capital do Qatar, foram retomadas as conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs, um processo iniciado em setembro passado. Para as autoridades de Cabul, a prioridade do diálogo é a obtenção de um cessar-fogo.

“Existe potencial para um cessar-fogo, embora não seja fácil que ocorra. Um cessar-fogo não significa paz, é uma trégua apenas. O Governo afegão está interessado porque encontra-se numa situação militar difícil“, continua o militar, autor do livro “Do fim da Guerra Fria a Trump e à covid-19 — As promessas traídas da ordem liberal“ (Edições Colibri, 2020).

“Para Cabul, o cessar-fogo é importante para recuperar do esforço de guerra a que tem estado sujeito. As forças governamentais encontram-se muito desgastadas.” Inversamente, “os talibãs estão renitentes num cessar-fogo, porque sentem que lhes é desvantajoso”.

Combatentes vão à terra e não regressam

“Os talibãs fazem uma abordagem diferente ao cessar-fogo. Se o cessar-fogo não trouxer a paz, o que não acontecerá tão depressa, terá um impacto tremendo na sua capacidade militar: os seus combatentes voltam para as suas aldeias e será difícil voltar a convocá-los e manter uma capacidade militar capaz de pressionar o Governo.”

Para os “estudantes”, antes do cessar-fogo há que estabelecer um roteiro político que leve a um novo Governo. Com esse objetivo em mira, têm usado ataques contra forças de segurança e civis como demonstrações de poder e formas de alavancar influência na hora de negociar um governo sustentado na lei islâmica.

As conversações de paz que se reiniciam esta terça-feira têm na sua origem um acordo de paz alcançado a 29 de fevereiro de 2020 entre a Administração Trump e os talibãs.

As exigências de norte-americanos e talibãs são claras: os primeiros querem dos “estudantes” a garantia de que não manterão relações com a Al-Qaeda nem permitirão que o país se torne um porto seguro de organizações terroristas, como aconteceu em 2001. Já os talibãs exigem a retirada de todas as tropas estrangeiras do seu país.

“Há um calendário de retirada dos militares americanos que está condicionado pelo comportamento dos talibãs, e que se cumprirá na medida em que os talibãs cumprirem o acordado”, comenta Carlos Branco, que recorda que, nesta altura, o efetivo de membros de empresas de segurança americanas supera o dos militares.

À espera de Joe Biden

O Governo de Cabul não foi tido nem achado no acordo de paz entre os EUA e os talibãs, e essa poderá ser uma das razões pelas quais as conversações de Doha se têm arrastado sem progressos significativos. “Apenas se conseguiu acordar os termos em que as negociações irão decorrer”, comenta Carlos Branco.

“O Governo afegão não se conforma com o facto de ter sido excluído das conversações levadas a cabo pela Administração Trump com os talibãs. Faz resistência passiva, na esperança de que a nova Administração possa fazer algo diferente e reverta algumas das decisões já acordadas. O Partido Democrata já fez saber que não concorda com o atual ‘Estado da Arte’.”

O desinteresse das autoridades de Cabul pelo diálogo é tal que “dá-se a situação irónica de ser Zalmay Khalilzad, o representante especial dos EUA para a reconciliação afegã, nomeado por Mike Pompeo [secretário de Estado dos EUA], quem tenta desesperadamente manter vivo o processo negocial, exercendo pressão constante sobre o Governo para o manter envolvido nas negociações”.

“O Governo afegão não está entusiasmado nem interessado em prosseguir com as negociações porque sabe que qualquer que seja o resultado de um processo de reconciliação nacional, ele será sempre feito às suas custas. Se os talibãs passarem a integrar o Governo do país, este será dominado pelos talibãs, o que é inaceitável.”

Muitas vezes se ouve dizer que não há uma solução militar para o conflito afegão, e que o país tem mais a ganhar com uma resolução obtida à mesa das negociações do que no campo de batalha. Mas quase 20 anos depois de terem sido arredados do poder em Cabul, os talibãs parecem talhados a continuar a ganhar.

(ILUSTRAÇÃO CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui