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Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

O empreendedorismo das mulheres é uma arma para o futuro do Sudão FOTO PEDRO MATOS / PAM

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA — Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO — Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mundial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

IÉMEN — Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

AFEGANISTÃO — Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A 5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem violência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020

Sinais de esperança em conflitos sem fim

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso descrevem confiança e resiliência em territórios onde parece só haver problemas

A cidade iraquiana de Mosul é possivelmente um dos locais em todo o mundo onde hoje o sentimento de esperança está mais em alta. Vai para sete anos ali foi autoproclamado o infame Estado Islâmico. Libertada do jugo jiadista, a cidade reergue-se agora das cinzas através de uma parceria entre o Governo de Bagdade e a UNESCO, que tem em curso a reconstrução de monumentos e infraestruturas.

Em inícios de março, Mosul estará nas bocas do mundo quando receber o Papa Francisco, naquela que será a primeira viagem apostólica ao estrangeiro em 15 meses. Com esta visita ao Iraque, o Papa levará alento à minoria cristã do Médio Oriente, a região onde nasceu o cristianismo e que tem sido martirizada por sucessivas disputas.

Quatro testemunhos recolhidos pelo Expresso revelam como noutras latitudes turbulentas a confiança num futuro melhor germina, apesar de um presente de grandes dificuldades. Desde o campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh, o rohingya Faruque conta como um projeto de realização de vídeos sobre o património cultural rohingya, partilhado nos telemóveis, se tornou um promotor de esperança entre o seu povo.

No Sudão, Pedro Matos, funcionário do Programa Alimentar Mundial da ONU, descreve o que o faz sentir-se confiante em relação ao futuro do país. Marta Abrantes Mendes recorda os anseios de paz de iemenitas com quem trabalha, num projeto de reconciliação nacional. E, com a experiência de quem já serviu no Afeganistão, o major-general Carlos Branco acredita que a paz é possível no país dos talibãs.

ROHINGYA
Gravar memórias e acreditar

Vídeos sobre saúde, cultura e educação feitos por refugiados são formas de resiliência

Faruque tem 32 anos e vive há 28 no maior campo de refugiados do mundo. Tinha quatro quando os pais se fizeram à estrada para salvar a família de uma morte certa. Em Myanmar, fugir para o vizinho Bangladesh é, há décadas, a única escapatória para a minoria rohingya (muçulmana), perseguida naquele país de maioria budista.

Hoje, os horizontes de Faruque estão confinados aos limites do campo de Kutupalong, onde vivem mais de 600 mil rohingyas. “Como em Myanmar, não somos autorizados a circular livremente, não temos direito à educação formal nem podemos trabalhar. Numa prisão pode sair-se em liberdade cumprida a sentença, aqui vivemos assim indefinidamente. Mas tenho esperança de que as coisas mudem…”

Com a mesma lucidez com que descreve as limitações de um povo que não é plenamente reconhecido nem mesmo pelo país que o acolhe, Faruque fala de um projeto que o move diariamente: a Rohingya Film School. Criada no início do ano pelo irmão mais novo, Omar, que colaborava com órgãos de informação como a BBC e que morreu em maio, aos 21 anos, de ataque cardíaco, esta escola nasceu com um duplo objetivo: dar formação a jovens na área da fotografia e do vídeo e registar em som e imagem a herança cultural dos rohingyas.

Com a covid-19, o projeto (rebatizado de Omar’s Film School) tornou-se também um agente de saúde pública. “Com a pandemia, o acesso ao campo dos trabalhadores humanitários ficou limitado. Os refugiados ficaram numa situação ainda mais trágica. Começaram a circular rumores de que quem apanhasse covid-19 seria morto ou levado para uma ilha remota. Muitas pessoas não queriam ser testadas.”

Os voluntários começaram então a fazer vídeos sobre práticas higiénicas e cuidados a ter face ao vírus e a partilhá-los através do telefone. Hoje, fazem filmes sobre saúde, património, cultura, educação, para além de promoverem atividades da ONU e de ONG.

Para Faruque, trabalhar no projeto é uma forma de homenagear o irmão e de lutar pelo futuro da filha, de três anos. “Tenho esperança de que chegue o tempo em que eu viva num lugar a que possa chamar lar, a minha filha seja matriculada numa escola e as nossas capacidades sejam reconhecidas.”

SUDÃO
Resiliência a muitas guerras

Pais poupam para os filhos irem à escola. Os sudaneses acreditam no futuro

Os 12 anos que Pedro Matos leva de experiência humanitária apuraram-lhe a perceção na hora de identificar sinais de esperança em países devastados pela guerra. É o caso do Sudão, onde trabalha como coordenador para a digitalização do Programa Alimentar Mun­dial (PAM), a agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz 2020. “O povo sudanês é incrivelmente resiliente. Vemos sinais disso por todo o lado, desde pais que poupam o que têm para manter os filhos na escola, onde eles nunca puderam ir, até à esperança dessas crianças, que vão para escolas remotas do Darfur com t-shirts esfarrapadas e sonham ser médicos ou advogados.”

O português realça também “a quantidade de mulheres em cargos de gestão por todo o país em associações locais e nos Ministérios da Educação ou da Saúde”. E simboliza esse ativismo no feminino na figura de Hawa Salih, que lidera uma rede de organizações de base comunitária em El Fasher, na região do Darfur. “É uma força da natureza, trabalha incansavelmente para montar projetos de emprego para milhares de mulheres em coisas tão diversas como o fabrico de tijolos até plantações de árvores para combater o avanço do deserto.”

Arrasado por várias guerras desde a independência, inundações históricas este ano e um aumento dos preços dos alimentos de 700% nos últimos cinco anos, o Sudão tem no PAM um parceiro crucial: presta assistência alimentar a 6,5 milhões de pessoas, promove projetos de ‘comida por trabalho’, apoia agricultores, fornece refeições escolares e investe na prevenção e tratamento da desnutrição.

AFEGANISTÃO
Talibãs fazem parte da solução

Em 2021, passam 20 anos sobre o início da guerra. Governo e talibãs estão em diálogo

A5 de janeiro, o reinício das conversações de paz entre o Governo afegão e os talibãs devolve esperança ao futuro do país. “Se por futuro entendermos instauração de uma democracia liberal, então seguramente não teremos futuro”, alerta o major-general Carlos Branco, que foi porta-voz da força internacional no Afeganistão em 2007 e 2008. “Mas há outros futuros possíveis, sem vio­lência e com paz. Tudo dependerá da solução política e da fórmula governativa que forem negociadas, que terão inevitavelmente de contar com a participação dos talibãs.”

“Quanto menor for a ingerência internacional neste processo, melhor, em particular das potências regionais.” Porém, “quaisquer que sejam as soluções adotadas, terão de ter em conta os interesses das grandes potências, em particular dos EUA. O que significa para os talibãs respeitar o compromisso de não manterem relações com a Al-Qaeda e não permitirem que o território seja utilizado por organizações terroristas”.

IÉMEN
Vozes que anseiam por paz

Os estereótipos reduzem-no a um país sem solução. Mas é importante ouvir os iemenitas

Marta Abrantes Mendes trabalha a partir do Líbano num projeto sobre reconciliação nacional e justiça transicional no Iémen, país do qual se diz ser a pior crise humanitária do mundo. Desenvolve, pois, grande parte do seu trabalho ao telefone, a falar com iemenitas.

“Ouvi representantes da sociedade civil sobre memória, necessidade de reconciliação e justiça social e vias de responsabilização pelas violações registadas durante o conflito. Algumas conversas duravam mais de duas horas e o quadro que se desenhou foi de um país com um grande ensejo de encontrar paz e encerrar os ciclos contínuos de violência de grande parte da sua história contemporânea.”

Marta incomoda-se com as representações externas em relação ao Iémen. “São sempre muito contundentes, como se não houvesse volta a dar. Tudo seria mais fácil se o palco fosse ocupado por iemenitas.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de dezembro de 2020. Pode ser consultado aqui

O primeiro teste ao acordo de paz de Trump com “terroristas” de um país em guerra com dois Presidentes

Esta semana, em Cabul, houve um acontecimento inédito, no Afeganistão e no mundo. No palácio presidencial, em espaços diferentes e com diferença de minutos, tomaram posse dois Presidentes. Um é Ashraf Ghani, atual chefe de Estado e vencedor oficial das eleições presidenciais. O outro é Abdullah Abdullah, que não aceita os resultados. Um antigo diplomata português partilha com o Expresso as suas impressões sobre o homem que está a desafiar o poder de Cabul, com quem conviveu em Nova Iorque e em Lisboa

O Presidente do Afeganistão emitiu um decreto de amnistia que beneficia 5000 prisioneiros talibãs. Mas estes… não o aceitam, pelo menos nos termos em que Cabul o propõe. Segundo o perdão assinado por Ashraf Ghani, 1500 detidos começarão a sair em liberdade este sábado — ao ritmo de 100 por dia — da prisão de Parwan. Assim que começarem as conversações de paz entre o governo e os talibãs, previstas para breve, outros 3500 atravessarão os portões do principal centro de detenção militar do país — em grupos de 500, a cada duas semanas.

O roteiro não agrada aos talibãs, que recusam sentar-se à mesa das conversações sem que a totalidade de 5000 combatentes saiam em liberdade. Esta amnistia foi-lhes prometida pelo acordo de paz de 29 de fevereiro que assinaram com os Estados Unidos, em Doha (Qatar) e que prevê também a retirada das tropas norte-americanas do país. O documento indispôs as autoridades afegãs, que não foram tidas nem achadas e que já expressaram duas grandes objeções: a libertação de talibãs como pré-condição para o diálogo e a falta de um cessar-fogo em todo o país. Nas 24 horas que antecederam a amnistia, assinada na terça-feira, 32 ataques talibãs em 15 províncias provocaram sete mortos.

Operacionais no terreno, os talibãs beneficiam também da ausência de um poder forte em Cabul, palco na segunda-feira de algo inédito no país e no mundo. No interior do palácio presidencial, realizaram-se duas tomadas de posse, em espaços diferentes e espaçadas por minutos. Ashraf Ghani, de 70 anos, e Abdullah Abdullah, de 59, clamaram ambos vitória nas presidenciais de 28 de setembro — os resultados só foram divulgados a 18 de fevereiro, em virtude das queixas apresentadas à Comissão Eleitoral e das acusações de fraude.

À cerimónia de Ghani, transmitida pela televisão estatal, assistiram o enviado especial dos EUA Zalmay Khalilzad e hierarquias militares norte-americanas. Já a posse de Abdullah foi mostrada na televisão privada Tolo News e testemunhada por vários senhores da guerra, antigos aliados dos EUA na luta contra os talibãs. Na quarta-feira, Abdullah tirou quaisquer dúvidas que restassem: “Mohammad Ashraf Ghani, antigo presidente do Governo de unidade nacional, já não é Presidente, e os seus decretos e ordens são inválidos.” No dia seguinte, Ghani foi ao encontro da proposta do adversário: “O capítulo da solidariedade e unidade chegou. O próximo governo irá refletir a vontade de todo o povo do país.”

Este insólito assemelha-se a uma sequela de um filme de má qualidade que os afegãos andam a ver há anos. Nas presidenciais de 2014, a segunda volta foi disputada exatamente pelos mesmos candidatos, com a mesma conclusão: Ghani foi o mais votado e Abdullah não reconheceu. O impasse só se desbloqueou após intervenção dos EUA: através de um acordo de partilha do poder, Ghani ficou Presidente e Abdullah chefe do Executivo. Muitos afegãos simplificam esta liderança bicéfala dizendo: “Um governa de manhã, o outro à tarde.”

Nas últimas eleições, Ghani obteve 50,64% dos votos, concentrados nas regiões sul e leste, habitadas sobretudo por pashtunes, a etnia minoritária que é também a de Ghani e a dos talibãs.

Abdullah, que foi creditado com 39,52% dos votos, considerou os resultados uma “traição nacional”, disse que seria ele o vencedor se apenas tivessem sido contabilizados os “votos limpos e biométricos” e predispõs-se a liderar “um governo inclusivo”. Filho de um pashtune e uma tadjique (as duas etnias maioritárias), foi o mais votado nas regiões norte e centro, dominadas por tadjiques, hazaras e uzebeques.

Na memória de muitos perduram ainda os anos em que Abdullah sobressaiu nas fileiras da Aliança do Norte — criada em 1996 para combater o regime dos talibãs —, onde foi braço direito do comandante Ahmad Shah Massud, o lendário “leão de Panjshir”.

Na época, este oftalmologista de formação respondia apenas por um nome, “Abdullah”. No livro “Guerra Sem Fim”, o premiado jornalista Dexter Filkins (“The New York Times”) explica como, a dada altura, o seu nome duplicou: “Abdullah ficara famoso junto dos repórteres como sendo o dirigente afegão que só tinha um nome, e isso enlouquecia os editores. Precisamos de um apelido, pediam eles. Então, em muitos jornais, ele torna-se Abdullah Abdullah”.

A sós com um português, no estúdio da Fox News

Após os talibãs serem expulsos de Cabul — a seguir ao 11 de Setembro e à retaliação militar dos EUA sobre o Afeganistão (que abrigava a Al-Qaeda) —, Abdullah assumiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Corria o ano de 2002 e a televisão americana Fox News quis juntar em estúdio os ministros dos Negócios Estrangeiros do Afeganistão e de um país da NATO, e convidou-me a mim”, recorda ao Expresso António Martins da Cruz, chefe da diplomacia portuguesa entre abril de 2002 e outubro de 2003.

António Martins da Cruz e Abdullah Abdullah, em setembro de 2002, nos estúdios da televisão Fox News, em Nova Iorque CORTESIA ANTÓNIO MARTINS DA CRUZ

“Estivemos juntos três quartos de hora, numa entrevista que passou em horário nobre. Ficámos muito impressionados com o estúdio, uma sala mínima, onde não havia ninguém para além de nós. À nossa volta três ou quatro câmaras mexiam-se sozinhas. O estúdio estava cheio de ecrãs, onde víamos o jornalista que nos entrevistou e que estava na Jordânia. Achámos a situação curiosa e, no final, ficámos a rir-nos e a conversar. Nenhum de nós tinha tido a experiência de ser entrevistado por máquinas, nem por alguém que estava a milhares de quilómetros.”

Os dois voltariam a encontrar-se no ano seguinte, em Lisboa, onde o afegão se deslocou a convite do português para intervir numa reunião sobre prevenção e combate ao terrorismo. “Abdullah é uma pessoa culta. Conhecia perfeitamente as questões da União Europeia. E achava que Portugal, sendo um país europeu e membro da NATO, era um interlocutor importante para o Afeganistão, já que conhecia aquela parte do mundo. Falou-me muito do facto de os portugueses terem sido os primeiros europeus a chegar à Ásia e à Índia.”

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 13 de março de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui

Os “coletes azuis” que tornaram possível umas eleições “tranquilas”

A Comissão Eleitoral Independente afegã contratou 100 mil funcionários para prestarem assistência aos eleitores nas assembleias de voto das presidenciais deste sábado. Num país com uma alta taxa de analfabetismo como o Afeganistão, o simples gesto de inserir o boletim de voto na urna pode ser complicado

A violência não esteve totalmente ausente das eleições presidenciais no Afeganistão, este sábado, mas foi esporádica, ao contrário de jornadas passadas onde ofuscou por completo as notícias sobre a jornada cívica. No incidente mais grave, 15 pessoas ficaram feridas após a explosão de uma bomba no exterior de um centro de votação, na cidade de Kandahar (sul).

Nas assembleias de voto por todo o país, foi crucial o papel desempenhado por cerca de 100 mil pessoas contratadas pela Comissão Eleitoral Independente para apoiar os eleitores. A fotogaleria que acompanha este texto é uma montra desse trabalho.

Identificados com coletes azuis, foram especialmente importantes na utilização das máquinas de identificação biométrica, usadas nestas eleições para tentar minimizar as situações de fraude. Só os votos de eleitores que foram controlados por esse dispositivo serão válidos.

Segundo a Al-Jazeera, os resultados preliminares destas eleições não deverão ser conhecidos antes de 17 de outubro e os finais não antes de 7 de novembro. Se nenhum candidato obtiver pelo menos 51% dos votos, haverá uma segunda volta.

FOTOGALERIA

Uma funcionária eleitoral faz o registo biométrico de uma eleitora, numa assembleia de voto em Cabul MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
Coberta com uma burqa, esta eleitora afegã revela dificuldades na hora de introduzir o voto na urna HOSHANG HASHIMI / AFP / GETTY IMAGES
Só os votos dos eleitores que passaram pelo registo biométrico serão considerados válidos PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Nem Ashraf Ghani, atual Presidente e um dos candidatos favoritos à vitória, escapou ao procedimento MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
Um funcionário recorre a uma lanterna ultravioleta para confirmar a validade da documentação que tem em mãos OMAR SOBHANI / REUTERS
Grande tranquilidade nesta assembleia de voto em Cabul PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Um desafio que esta eleitora encara com um sorriso PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Muita afluência neste centro da capital PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
“Coletes azuis” em todos os cantos, disponíveis para ajudar PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Recolha da impressão digital de uma eleitora, num centro de voto de Cabul OMAR SOBHANI / REUTERS
O dedo pintado denuncia que este eleitor já exerceu o seu dever cívico OMAR SOBHANI / REUTERS
A estranheza no rosto desta anciã perante novidades que talve não consiga entender OMAR SOBHANI / REUTERS
Novidades tecnológicas numa sociedade com uma forte componente tradicional PARWIZ PARWIZ / REUTERS
Centro de votação instalado numa escola, em Cabul MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
Documentos, boletins, máquina biométrica, tinteiros. E competência OMAR SOBHANI / REUTERS
Registaram-se para participar nestas eleições presidenciais 9,6 milhões de afegãos OMAR SOBHANI / REUTERS
Encerradas as urnas, o trabalho dos funcionários eleitorais não termina MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
Um boletim de voto com 18 nomes, mas três entretanto desistiram da corrida MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS

Muitas mulheres envolvidas nos procedimentos eleitorais MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS

Finalizadas as burocracias nas assembleias de voto, os resultados finais deverão demorar mais de um mês a serem divulgados MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Afegãos escolhem o próximo Presidente, apoiados por tecnologia… e burros

As quartas eleições presidenciais após a queda do regime talibã, em finais de 2001, realizam-se numa altura em que os fundamentalistas islâmicos controlam mais território do que nunca desde então. Nas urnas, a disputa-se trava-se entre os dois homens que, nos últimos cinco anos, protagonizaram uma liderança bicéfala no Afeganistão: o Presidente Ashraf Ghani e o seu chefe executivo Abdullah Abdullah

“Não vou votar nas eleições. Não voto porque os boletins vão ser preenchidos [de forma fraudulenta]”, diz ao Expresso o afegão Habib, a partir de Cabul. Este é um sentimento comum a muitos outros afegãos que se habituaram a ver cada ato eleitoral envolto em polémica e acusações de corrupção.

Para as eleições deste sábado — as quartas presidenciais desde a deposição dos talibãs, em finais de 2001 —, estão mobilizados, segundo o Ministério do Interior, quase 72 mil agentes das forças de segurança para garantir a segurança do ato eleitoral.

À volta de 9,6 milhões de afegãos registaram-se para votar, em assembleias de voto montadas em escolas, mesquitas, instalações hospitalares e edifícios públicos, e equipadas com dispositivos de identificação biométrica.

Cerca de 100 mil pessoas contratadas pela Comissão Eleitoral Independente prestam apoio à boca das urnas. “Não aceitaremos os votos sem leitura biométrica”, alertou a presidente do organismo Hawa Alam Nuristani.

Liderança bicéfala

Esta aposta na tecnologia visa minimizar os casos de corrupção, num país que ocupa o 172º lugar (em 180 países) no último Índice de Corrupção da organização Transparência Internacional.

Em virtude da geografia agreste do país, o transporte do material eleitoral faz-se, em muitos sítios, às costas de homens e de burros, por entre caminhos sinuosos em direção a aldeias perdidas entre montanhas.

Dos 18 candidatos registados inicialmente, cinco abandonaram a corrida. Este sábado, como há cinco anos, a disputa trava-se principalmente entre os mesmos dois homens: o economista pashtune Ashraf Ghani, de 70 anos, e o médico Abdullah Abdullah, de 59, filho de pai pashtune e de mãe tadjique. Num país tribal como o Afeganistão, a origem étnica não é um pormenor.

Ambos cantaram vitória nas eleições de 2014 e, após meses de impasse político, tornaram-se protagonistas num governo de unidade: Ashraf como Presidente e Abdullah como “chefe executivo”, um posto criado propositadamente para ele. Esta liderança bicéfala viria a paralisar o país várias vezes em virtude de divergências inultrapassáveis no interior do executivo.

Talibãs em alta

Quem quer que vença as presidenciais deste sábado terá pela frente o desafio da paz com os talibãs. Os “estudantes”, que pugnam por um Estado fundamentalista islâmico, controlam hoje mais território do que alguma vez dominaram desde que foram derrubados do poder, em finais de 2001.

Há cerca de três semanas, o Presidente norte-americano, Donald Trump, pôs um ponto final às conversações diretas entre EUA e talibãs que decorriam desde outubro, no Qatar. A rutura seguiu-se a um ataque suicida talibã que provocou 12 mortos, em Cabul, entre os quais um romeno que trabalhava para o exército americano.

Numa entrevista divulgada na terça-feira passada, Hamid Karzai, Presidente afegão entre 2001 e 2014, pôs o dedo na ferida que vem sangrando o país há décadas e defendeu que estas eleições podem provocar (ainda mais) violência no país. “Primeiro devíamos alcançar a paz no Afeganistão e depois realizar eleições“, disse. “Não é possível haver eleições num país que atravessa um conflito imposto a partir do estrangeiro. Nós estamos numa guerra que tem objetivos e interesses estrangeiros. Este conflito não era nosso. Nós apenas morremos nele.”

FOTOGALERIA

Comício eleitoral em Bamiyan. O buda gigante, detonado pelos talibãs durante a sua governação, continua por reconstruir PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Segurança reforçada junto a um poster de Ashraf Ghani, o atual Presidente, em Cabul MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
Abdullah Abdullah é o principal adversário do chefe de Estado, nas urnas de voto JALIL AHMAD / REUTERS
Uma ação de campanha a céu aberto, em Bamiyan PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Outra em Herat, a terceira cidade mais populosa do Afeganistão JALIL AHMAD / REUTERS
PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Um comício em Cabul, com direito a interpelação popular OMAR SOBHANI / REUTERS
Um debate na Tolo TV entre Abdullah Abdullah e o antigo senhor da guerra Gulbuddin Hekmatyar. Ao centro, o lugar reservado a Ashraf Ghani ficou vazio OMAR SOBHANI / REUTERS
Os indispensáveis cartazes de propaganda com as fotos dos candidatos… HOSHANG HASHIMI / AFP / GETTY IMAGES
… para encher as avenidas das cidades, como esta em Cabul… SAYED KHODABERDI SADAT / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
… ou para distribuir pelo povo. HOSHANG HASHIMI / AFP / GETTY IMAGES
A Comissão Eleitoral Independente contratou mais de 100 mil pessoas para distribuir pelos centros de votação e apoiar, em especial, a utilização dos dispositivos biométricos WAKIL KOHSAR / AFP / GETTY IMAGES
Neste armazém em Cabul, dezenas de tomadas são utilizadas para carregar as máquinas de leitura biométrica WAKIL KOHSAR / AFP / GETTY IMAGES
Segurança apertada junto aos caixotes com material eleitoral prestes a serem despachados para os quatro cantos do país… HOSHANG HASHIMI / AFP / GETTY IMAGES
… transportados em camiões… FARID ZAHIR / AFP / GETTY IMAGES
… carregados por burros… MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
… e por homens. MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
À frente do cortejo, homens armados garantem que o material eleitoral chega intacto ao seu destino, sem cair em mãos corruptas MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS
… por vezes, aldeias perdidas entre montanhas inóspitas do Afeganistão MOHAMMAD ISMAIL / REUTERS

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui