Arquivo de etiquetas: Afeganistão

Paz à mesa do diálogo, violência nas ruas do país

Oficialmente, os talibãs não falam nem com o Governo de Cabul nem com os Estados Unidos. Na prática, estão todos em Doha, no Qatar, a esboçar conversações, a menos de três meses das presidenciais no Afeganistão

No Afeganistão, o caminho da paz é longo e sinuoso. Esta segunda-feira, terminam no Qatar dois dias de conversações entre quase 50 delegados do Governo de Cabul e 17 representantes talibãs. “Não é uma negociação, é um diálogo”, alerta Abdul Matin Bek, chefe da Diretoria Independente para a Governação Local, um órgão de comunicação entre os governos central e regionais no Afeganistão.

Se correr bem, este diálogo poderá, numa primeira fase, levar a conversações bilaterais diretas e, posteriormente, a negociações oficiais. “O facto de estarmos todos aqui sentados é significativo, num momento em que os afegãos sentem que não há esperança”, afirmou Sayed Hamid Gailani, líder da Frente Islâmica Nacional do Afeganistão, à televisão Al-Jazeera.

Os talibãs têm-se recusado a negociar com o Governo liderado pelo Presidente Ashraf Ghani, que consideram ser “um fantoche” do Ocidente. Anuíram a estar presentes em Doha numa base pessoal.

Igualmente, têm-se negado ao diálogo direto com os Estados Unidos enquanto subsistirem tropas norte-americanas no país. Mas na terça-feira, também na capital do Qatar, serão retomadas conversações entre representantes dos dois lados que, segundo o enviado dos EUA, Zalmay Khalilzad, têm registado “progressos substanciais”.

A esta agitação diplomática não será alheio o facto de o Afeganistão ter eleições presidenciais agendadas para 28 de setembro.

“Compreendemos que fazer a paz não é fácil”, disse Markus Potzel, enviado especial da Alemanha, país que, juntamente com o Qatar, co-patrocina esta iniciativa. “O vosso país está na encruzilhada de interesses regionais e internacionais que conflituam entre si. Mas fatores externos só resultarão em conflito se os afegãos estiverem divididos.”

Na prática é tudo, porém, bastante mais complexo. No domingo, na cidade de Ghazni (leste do Afeganistão), um atentado reivindicado pelos “estudantes” provocou 12 mortos e 150 feridos. “Os talibãs deviam perceber que não é possível conseguir mais privilégios nas conversações atacando civis, especialmente crianças”, reagiu em comunicado o Presidente Ghani.

A última carnificina da autoria dos talibãs visou um edifício das forças de segurança, atingindo também uma escola privada.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de julho de 2019. Pode ser consultado aqui

Ataque contra centro de formação de parteiras

O último ataque no martirizado Afeganistão visou um centro de formação médica, em Jalalabad, onde 48 mulheres frequentam um curso na área da obstetrícia

Homens armados irromperam, este sábado, num centro de formação de parteiras, em Jalalabad (leste do Afeganistão), encurralando no seu interior dezenas de pessoas.

Segundo a televisão afegã Tolo News, as forças de segurança isolaram de imediato a área e garantiram o controlo da situação cerca de cinco horas depois. O ataque iniciou-se cerca de 11h30 locais (8h em Portugal Continental).

O mesmo órgão de informação diz que morreram pelo menos duas pessoas e cinco ficaram feridas.

Segundo a Al-Jazeera, foram resgatadas 69 pessoas do interior do edifício, onde 48 mulheres de áreas remotas da província de Nangarhar — de que Jalalabad é capital — frequentam um curso de dois anos na área de obstetrícia.

Numa mensagem enviada por WhatsApp aos jornalistas, os talibãs negaram qualquer envolvimento neste atentado, que não foi de imediato reivindicado. Tanto os talibãs como o Daesh (autodenominado “Estado Islâmico”) estão ativos nesta região afegã, fronteira ao Paquistão.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de julho de 2018. Pode ser consultado aqui

Afeganistão, uma sepultura a céu aberto

Mais um domingo sangrento no Afeganistão revela uma ‘competição pelo terror’ entre grupos talibãs e os jiadistas do Daesh

Poucas horas após um atentado suicida ter devastado a capital do Afeganistão — esta segunda-feira de manhã as vítimas mortais subiram para 57 —, pelo menos 16 agentes das forças de segurança foram mortos no domingo à noite, em dois ataques talibãs, numa das províncias mais calmas do país, Badghis, no noroeste.

Nove soldados morreram na sequência de uma investida dos “estudantes” contra um posto de controlo, na cidade de Qala-e-Naw. Num outro ataque semelhante, sete polícias foram mortos na região de Qads.

Os mais recentes ataques visaram símbolos do poder de Cabul — um centro de recenseamento eleitoral (atacado pelo Daesh) e “checkpoints” das forças de segurança (alvejadas pelos talibãs). Revelam também uma “competição” pelo terror entre os dois grupos, num país massacrado por décadas de guerra.

Segundo a agência noticiosa afegã Khaama Press, no domingo à noite as forças armadas afegãs bombardearam túneis e esconderijos do Daesh, na província de Nangarhar (leste) — o principal bastião dos jiadistas no Afeganistão —, na fronteira com o Paquistão.

Derrotado na Síria e no Iraque, o Daesh parece ter encontrado no Afeganistão um porto seguro para realizar as suas atrocidades. Esta segunda-feira, vários órgãos de informação afegãos e internacionais dão conta da decapitação de três irmãos, este fim de semana, às mãos de militantes extremistas.

Viviam na área de Chaparhar, precisamente na província de Nangarhar, e todos estavam ligados à área da medicina: o mais velho, Nisar Tareliwal, de 27 anos, era médico numa clínica privada, o do meio, Nayeem, de 24, trabalhava para uma campanha de vacinação e o mais novo, Abdul Wahab, de 19, estudava medicina.

O pai dos três jovens tinha sido executado pelo Daesh, no ano passado. Os jiadistas acusaram-no — como aos três filhos — de ligações ao Governo e às instituições de segurança.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 23 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

A estratégia de Trump e os alertas de Eça

Os EUA vão enviar mais tropas para o Afeganistão. Os talibãs já prometeram fazer do país um cemitério para os norte-americanos

“Salvem-me dos meus amigos!”, lê-se neste cartoon de 1878 sobre “O Grande Jogo” no Afeganistão: O emir afegão Sher Ali Khan ladeado pelo urso russo e pelo leão britânico WIKIMEDIA COMMONS

Em finais do século XIX, Eça de Queirós era um observador atento da guerra no Afeganistão. Em 1880, numa das “Cartas de Inglaterra” publicadas no “Diário de Notícias” escrevia o seguinte sobre a campanha militar dos ingleses no país: “No nosso tempo, precisamente como em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o ‘homem vermelho’, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a estrada da Índia… E quando por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o. Foi assim em 1847, é assim em 1880.”

Senhores da Índia e temerosos do avanço da Rússia pela Ásia Central, os ingleses tentaram, por duas vezes, ocupar o Afeganistão — sem sucesso. No século seguinte, foi a vez de os soviéticos ocuparem o país durante 10 anos (1979-1989), de onde saíram sem honra nem glória. Hoje, são os norte-americanos que ali vivem dificuldades, não conseguindo colocar um ponto final àquela que já é a guerra mais duradoura em que se envolveram e onde chegaram a ter 100 mil efetivos.

O espírito indomável dos afegãos tem levado escritores e historiadores a referirem-se ao país como um “cemitério de impérios”. Esta semana, os talibãs recuperaram o termo para reagirem à nova estratégia dos EUA para o Afeganistão, anunciada, na terça-feira, por Donald Trump. “Se a América não retirar as suas tropas, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou Zabiullah Mujahid, porta-voz dos “estudantes”.

Sem adiantar números nem se comprometer com prazos, o Presidente anunciou apenas que o contingente norte-americano vai ser reforçado. “Em termos gerais, é positivo que os EUA renovem o seu compromisso no Afeganistão”, comenta ao Expresso Mirco Günther, diretor para o Afeganistão da Fundação Friedrich Ebert (FES). Retirar as tropas, como Trump defendeu na campanha eleitoral, “teria sido uma decisão irresponsável”.

Fatura do 11 de Setembro

Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão — país que pagou a fatura do 11 de Setembro —, seguem ali destacados 8400 norte-americanos. “The Wall Street Journal” diz que outros 3500 estão em missão temporária. E estima-se que o Pentágono tenha recomendado um reforço em 4000.

“A estratégia anunciada, que nada tem de novo, parece um pouco míope”, diz o analista da FES. “Este conflito não pode ser resolvido apenas através de meios militares. Dizer ‘nós não vamos construir o Estado, vamos matar terroristas’” — palavras de Trump — “falha no reconhecimento de uma situação que é complexa e das realidades no terreno. Para evitar um novo aumento do extremismo violento e para combater efetivamente o terrorismo, o Afeganistão necessita de instituições fortes, de um governo nacional que demonstre ter os mesmos objetivos, órgãos de segurança menos corruptos e tribunais independentes.”

Quase 16 anos após o início da guerra no Afeganistão, que pagou a fatura do 11 de Setembro, seguem ali 8400 americanos

No discurso sobre o Afeganistão, Trump identificou o Paquistão e o seu jogo duplo — ora assumindo-se como parceiro do Ocidente no combate ao terrorismo ora fechando os olhos às movimentações dos talibãs e da rede Haqqani no seu território — como uma razão para a instabilidade no Afeganistão. “O Paquistão dá refúgio a agentes do caos, da violência e do terror”, disse Trump. “Ele é o primeiro Presidente dos EUA a criticar o Paquistão e a convidar a Índia a aumentar o seu envolvimento do Afeganistão”, diz Mirco Günther. “Dada a relação tensa entre esses dois países e as dinâmicas regionais, preocupam-me as repercussões do que pode ser uma mudança da política dos EUA para a Ásia do Sul. Pôr os países uns contra os outros não ajuda.”

Artigo publicado no Expresso, a 26 de agosto de 2017, e republicado no “Expresso Online”, no mesmo dia. Pode ser consultado aqui

Talibãs reagem a Trump e prometem tornar o Afeganistão “um cemitério” para os EUA

Uma semana após escreverem uma “carta aberta” a Donald Trump pedindo-lhe que retirasse as tropas do Afeganistão, os talibãs ouviram o Presidente dos EUA decidir exatamente o oposto — um reforço do contingente. “Enquanto houver um soldado norte-americano no nosso país, continuaremos a nossa jihad”, reagiu um porta-voz talibã

Donald Trump foi contido em pormenores no seu discurso sobre a nova estratégia dos Estados Unidos para o Afeganistão. Mas para os talibãs bastaram as linhas gerais. “Se a América não retirar as suas tropas do Afeganistão, em breve o Afeganistão tornar-se-á mais um cemitério para esta superpotência do século XXI”, ameaçou esta terça-feira Zabiullah Mujahid, porta-voz dos talibãs.

Os Estados Unidos estão militarmente envolvidos no Afeganistão desde outubro de 2001. Esta é, para os norte-americanos, a guerra mais duradoura de sempre. Presentemente, estão ali destacados cerca de 8400 militares norte-americanos. Sem adiantar números, Donald Trump anunciou que esse contingente irá ser reforçado — a imprensa fala em 3900 novos efetivos. “Um desperdício de vidas”, disse Zabiullah Mujahid. “Enquanto houver um soldado norte-americano no nosso país, continuaremos com a nossa jihad.”

Na semana passada, os talibãs tinham endereçado uma “carta aberta” ao Presidente dos Estados Unidos, denunciando que, ao fim de 16 anos de guerra — onde os EUA chegaram a ter destacados 100 mil militares —, “o Afeganistão tornou-se mais instável, mais corrupto e economicamente mais pobre”.

“A razão por detrás de tudo isto prende-se com a invasão estrangeira que está a ser usada para subjugar a vontade da nossa orgulhosa nação afegã. A nossa integridade nacional está a ser despojada e as chaves do poder estão a ser entregues a indivíduos cujos rostos estão entre aqueles que causam mais repulsa, os mais miseráveis e odiados na sociedade afegã dada a sua subserviência aos estrangeiros.”

Por tudo isto, na carta, os talibãs aconselhavam Trump a “adotar a estratégia de uma retirada completa do Afeganistão em vez de um aumento de tropas”.

Antes de ser eleito Presidente, Donald Trump sempre defendeu a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão. Chegado à Casa Branca, mudou de ideias, justificando que tal criaria um vácuo que seria imediatamente ocupado por grupos como a Al-Qaeda e o autodenominado Estado Islâmico (Daesh).

Quase 16 anos após o 11 de Setembro, a guerra desencadeada pelos EUA no Afeganistão — em legítima defesa contra o regime talibã que dava guarida à Al-Qaeda de Osama bin Laden — está, pois, longe do fim. A 13 de junho passado, o secretário norte-americano da Defesa, James N. Mattis, afirmava no Senado: Os EUA “não estão a ganhar no Afeganistão”. E acrescentava: “Vamos corrigir esta situação assim que possível”.

Segundo o último relatório trimestral do Inspetor Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR), divulgado em inícios de agosto, dos 407 distritos afegãos, o Governo de Cabul controla apenas 59.7%. O restante território é controlado ou disputado por forças rebeldes, sobretudo pelos talibãs.

À AFP, um comandante talibã não identificado acusou Donald Trump de perpetuar o “comportamento arrogante” de alguns antecessores, como George W. Bush. “Ele está apenas a desperdiçar soldados americanos. Nós sabemos como defender o nosso país. Nada vai mudar. Temos travado esta guerra ao longo de gerações, não temos medo, estamos frescos e vamos continuar com esta guerra até ao nosso último suspiro.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 22 de agosto de 2017. Pode ser consultado aqui