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Com armas e com coração

Dez anos após o início da guerra, os afegãos preparam-se para receber da NATO a responsabilidade pela segurança nalgumas regiões. Em Cabul, os militares portugueses empenham-se em formar tropas competentes. Reportagem no Afeganistão

Para a maioria dos recrutas, analfabetos, a vida militar é a única forma de receberem salário MARGARIDA MOTA

No Aeroporto Internacional de Cabul, o dia de trabalho dos militares portugueses começa com uma espécie de ritual. No open space que funciona como escritório para os dez efetivos da Força Aérea, há também secretárias e computadores para três afegãos, com carreira militar feita durante a ocupação soviética. Chegam todos por volta das sete da manhã e perdem-se nos bons-dias. Um dos afegãos aproxima-se do tenente-coronel José Martins, que comanda a equipa portuguesa, e abraça-o demoradamente. O português fecha os olhos, num misto de satisfação e de… sufoco. À volta, todos sorriem. “É assim todos os dias”, explica o português. “Abraça-me com tanta força que quase me quebra os ossos.”

O abraço do veterano afegão ao comandante Martins é um espetáculo diário de que os militares portugueses não se privam. Prova o calor humano existente e é um fator de motivação para melhor cumprirem as tarefas, a 6800 quilómetros de casa.

Na parede por trás da secretária do tenente-coronel Martins, uma bandeira portuguesa e outra afegã, lado a lado, revelam a ausência de protagonismos dentro da sala. Todos ouvem e fazem-se ouvir com o mesmo objetivo. “Akimi, queres um cigarrinho?”, diz um militar em português. O jovem tradutor afegão sorri. Não fala português, mas percebeu o que lhe disseram. À semelhança do abraço ao comandante Martins, aquele cigarrinho já é uma rotina. “Nunca tinha visto um português”, diz Akimi. “Nunca esquecerei este trabalho, o melhor da minha vida. Muito obrigada pelo que fazem pelo meu povo!”

Nesta “ilha portuguesa” elaboram-se projetos de literacia visando a formação de sargentos afegãos. Mal comparado, explica o comandante Martins, “tem um bocadinho a ver com as nossas Novas Oportunidades”. Quase dez anos após o início da guerra no Afeganistão — a retaliação dos EUA ao 11 de setembro —, a prioridade da NATO passa por dotar o país de forças de segurança autossuficientes (240 mil soldados e 160 mil polícias, até 2014) que permitam aos afegãos serem donos do seu futuro e aos 130 mil soldados estrangeiros saírem do atoleiro afegão.

Respondendo ao apelo feito na Cimeira da NATO de Lisboa, em novembro de 2010, Portugal contribui com equipas de instrutores, oriundas dos três ramos das Forças Armadas e da GNR e circunscritas às províncias de Wardak (GNR) e Cabul. A capital integra a primeira fase do processo de transição — a transferência gradual da responsabilidade pela segurança da NATO para as autoridades afegãs —, com início previsto para julho.

“Preparamos estes homens para serem pequenos comandantes”, explica o capitão Fausto Campos, instrutor no Centro de Treino Militar de Cabul. Dentro de uma sala, uma turma com cerca de 200 recrutas — a maioria analfabetos — assiste a uma aula de primeiros socorros. O formador afegão pergunta quem sabe fazer ligaduras. Erguem-se dezenas de braços. Aleatoriamente, é escolhido um aluno para exemplificar.

O português observa o que se passa e escuta Maiwand, que traduz para inglês o que é dito na sala. Terminada a demonstração em língua pashtune, tudo se repete no idioma dari — uma pequena amostra das consequências do xadrez étnico que é o país. “Temos de ir ao ritmo deles”, comenta. “Não é possível mudar tudo de um momento para o outro.”

Pashtunes, tadjiques, hazaras, turcomenos… as novas forças afegãs refletem o xadrez étnico do país MARGARIDA MOTA

Yahya Momeni é um tenente-coronel afegão cujo mentor é o capitão português. Comanda duas companhias de 200 homens e tem de ser capaz de, em quatro semanas, garantir a formação de mais duas fornadas de homens. Na sombra, a intervenção do capitão Campos passa por coisas aparentemente tão insignificantes como sugerir a colocação de um estrado na sala para que os recrutas das últimas filas vejam melhor os formadores. O Afeganistão tem um passado guerreiro, mas nove anos de ocupação soviética e mais seis de governação talibã destruíram a instituição militar.

A escassos dias de terminar a sua missão, o capitão Campos circula pelo centro de treino acompanhado pelo tenente Vale e pelo primeiro-tenente Roldão, que fazem parte da equipa que o vai render. “Veja estas fotos”, diz Roldão, entusiasmado. “Estivemos a tomar o pequeno-almoço com os afegãos.” Nas fotos, os militares portugueses surgem sorridentes junto dos afegãos, tomando chá e mordiscando guloseimas. Sentem-se aceites por aqueles com quem vão trabalhar nos próximos seis meses. “Eles gostam de nós. Sentem que estamos aqui para os ajudar.”

Os portugueses sabem que, no Afeganistão, a comunicação é a chave. E comunicar pode passar, por exemplo… por deixar crescer a barba. Vale e Roldão têm a barba “de três dias” e assim tencionam continuar. Perceberam que há hábitos que ajudam a criar pontes. A maioria dos afegãos usa barba e não fica indiferente a um estrangeiro barbudo. Em circunstâncias normais, o capitão Artur Mesquita não é favorável a que os militares usem barba. “É mau para a disciplina, para a higiene…” Mas reconhece que num teatro de operações como este a barba pode ser uma arma. “É um tópico de conversa com os afegãos. É um bom pretexto para voltar e perguntar: ‘Então, está bem assim?’”

Aprender dari na Internet

Artur Mesquita trabalha nas operações psicológicas. Circula à civil entre a população — identificando-se como jornalista da rádio Bayan (Conversa) ou da revista “Sada-e-Azadi” (Voz da Liberdade), dois órgãos de informação da ISAF (a força da NATO no Afeganistão) —, tentando captar sensibilidades para melhor ajustar a mensagem das tropas internacionais sem ferir suscetibilidades.

Em três meses, compilou uma rede de 100 contactos, aos quais recorre para testar qualquer outdoor, anúncio de televisão ou de rádio — publicitando uma nova obra ou aconselhando a população a lavar as mãos com sabão —, antes de o produto ir para o ar. “No início, a população aceitava melhor a presença da ISAF. Queria ver-se livre dos talibãs. Com as baixas civis e a descredibilização do governo, essa aceitação está a diminuir.”

De forma autodidata, Mesquita procurou um curso de dari na Internet e aprendeu os níveis de conversação mínimos que facilitam a abordagem nas ruas. “É importante as pessoas confiarem em mim. A cultura afegã é muito voltada para o relacionamento”, diz. E essa confiança cria-se nos mais pequenos detalhes. Quando se cruza com um pedinte, o capitão Mesquita distribui afeganis generosamente. “Os afegãos dão sempre esmola”, justifica. Um bom muçulmano não faria melhor.

Homem de fé e participante no coro que anima a missa aos domingos à tarde na capela de Camp Warehouse — onde estão aquartelados os 230 efetivos do contingente português —, o sargento-chefe José Botelho aproxima-se. “Quer ouvir-me a rezar em dari?” Concentra-se e começa a debitar uma ladainha. Para ter a certeza de que não se enganou, repete-a. “Os afegãos ensinaram-me esta oração e apreciam quando a digo. Mas não gostam que ‘dê espetáculo’ para um grupo grande. Então, vou junto deles individualmente e mostro-lhes que já sei rezar em dari. Todos os dias querem ensinar-me palavras novas. Já lhes disse: ‘Tem de ser uma de cada vez!’”

Botelho deve ser bom aluno. Para além da oração, conta até dez sem gaguejar e não hesita nas saudações quotidianas. A maioria dos afegãos não fala inglês, pelo que o trabalho diário não se faz sem a intermediação de tradutores, por norma jovens com estudos universitários. Mas, sempre que podem, os portugueses expressam-se nas línguas locais: “salam” (olá), “tashakor” (obrigado), “khoda hafiz” (até logo) saem com naturalidade.

Antes de ir para o Afeganistão, o tenente-coronel João Godinho não era grande apreciador de chá. “Há tempos, esteve cá a SIC e apareci na televisão de copo na mão. A minha mãe telefonou-me: ‘Então tu agora bebes chá?’” Godinho recorda-se do episódio durante uma visita a um posto de vigia da guarnição de Pol-e-Charki, na área de Cabul, após Shukur oferecer-lhe uma caneca de chá. Os afegãos gostam de receber bem, e um chá predispõe para a conversa.

Três queques debaixo da cama

Neste posto — na realidade, um pequeno casebre isolado em cima de um monte — vivem três militares: Shukur, com 45 anos mas aparentando ter 60, é um antigo mujahedine de etnia tadjique que privou com o lendário comandante Massud; há ainda um pashtune da região de Kunar e um turcomeno de Mazar-e-Sharif. Não vão a casa há seis meses.

Sem que ninguém o solicite, o capitão Breda, que acompanha Godinho na ronda, acerca-se do turcomeno, às voltas com o colete antibala, e salva-o de dificuldades. À distância, dir-se-ia tratar-se de soldados de um exército só. As fardas são parecidas — há portugueses que optam por andar de camuflado intencionalmente para criar proximidade — e as cores das bandeiras quase coincidem.

Na guarnição de Pol-e-Charki, o capitão Breda ajuda um militar atrapalhado com o colete antibala. Os afegãos gostam dos portugueses: “Estão aqui para nos ajudar”, dizem MARGARIDA MOTA

Debaixo de uma cama há uma caixa de madeira com armas e munições. Em cima da caixa, três pequenos queques matarão a fome mal haja uma pausa na vigia. A seguir ao chá, Shukur oferece os bolos aos visitantes portugueses. “Os afegãos são generosos”, continua Godinho. “Foi uma grande surpresa para mim.” Não raras vezes, com um copo de chá na mão, portugueses e afegãos perdem-se à conversa sobre as famílias. “Falamos de trabalho, de questões pessoais, abrimos o coração”, comenta o tenente-coronel Paradelo. “Os americanos não percebem…”

A servir no Afeganistão pela segunda vez, Octávio Vieira tem experiência acumulada no relacionamento com os locais. “O afegão adora que o olhemos nos olhos, que o cumprimentemos, que confiemos nele, sem receio de tirarmos o colete ou a pistola. Adora que sejamos um amigo — e não um invasor.” Destacado no quartel-general da ISAF, em Cabul, este tenente-coronel trabalha rodeado por americanos. No dia em que Bin Laden foi morto, testemunhou, na primeira fila, a euforia dos colegas. “Parecia que tinham ganho um campeonato do Mundo. Não reagi, fiquei calado. Preocupa-me as reações hoje, amanhã, enfim, quando menos esperarmos…”

Artigo publicado na Revista Única do Expresso, a 18 de junho de 2011

Aprender a escrever numa aula sem teto

Quem disse que só se aprende em escolas de pedra e cal? Reportagem no Afeganistão

Em Pol-e-Charki, há aulas que decorrem no recreio MARGARIDA MOTA

Não são mais do que 25. Mas no Afeganistão, 25 famílias é o suficiente para se formar uma aldeia. Vivem protegidas por uma muralha quadrangular de adobe, perdidas num planalto de Kalakan, a norte de Cabul. A aldeia de Gagarachina é da etnia pashtune, logo permeável à influência talibã. Por determinação do comando da base militar afegã de Pol-e-Charki, este lugar foi escolhido para beneficiar da ajuda humanitária angariada em Portugal. No dia combinado, representantes de cada família — homens — reúnem-se a cerca de 500 metros da entrada da aldeia. As mulheres ficam em casa. De cócoras, os aldeãos escutam o tenente-coronel Rahmatullah referir-se à pobreza da aldeia. “É por isso que vos trouxemos esta ajuda!”, conclui.

De lista na mão, outro militar começa a chamar, um a um, os representantes das famílias. À vez, aproximam-se do camião de carga e recebem um caixote com roupa, calçado, material escolar, brinquedos e um cobertor. Há militares portugueses presentes, mas o protagonismo é dado aos soldados afegãos. Para a NATO, atividades como esta conquistam “os corações e as mentes” dos locais, tornando a presença das tropas internacionais mais aceitável; para o exército afegão é uma “operação de charme” para criar confiança e ganhar simpatizantes na aldeia.

Uma dúzia de crianças aproxima-se timidamente. Fixam os forasteiros como quem olha para extraterrestres. Algumas assustam-se quando alguém que não conhecem as aborda. Terminada a distribuição de bens, os homens da aldeia abraçam os militares em sinal de agradecimento. E fazem um pedido: “Precisamos de uma mesquita, de um poço e… de uma escola”.

No Afeganistão, os militares da NATO respiram de alívio sempre que há crianças a brincar nas bermas das estradas que têm de percorrer. (A experiência diz-lhes que os insurgentes não costumam atacar onde há crianças ou mulheres.) As ruas em terra, sujas e esburacadas, são o parque de diversão das crianças afegãs. Mesmo nas escolas, raramente, há espaços lúdicos.

Situada a leste de Cabul, a escola secundária de Pol-e-Charki é o exemplo perfeito de como, no Afeganistão, ter aulas numa sala com paredes pintadas, portas e janelas é um verdadeiro luxo. A escola tem cerca de 6300 alunos e alunas — a esmagadora maioria dos quais tem aulas… no recreio.

Dois edifícios recuperados com verbas disponibilizadas pelo contingente português (num custo total de 50 mil euros) dotaram a escola de 32 salas de aula. Na cerimónia de inauguração do segundo edifício, a 16 de abril, o diretor da escola desfez-se em elogios à generosidade portuguesa e fez um pedido: “Precisamos de mais 40 salas de aula. Se vos for possível, ajudem-nos! Os nossos alunos aprenderiam mais!”

Na sala, estão presentes militares portugueses e afegãos, alunos, professores, anciãos, um líder religioso e representantes do ministério da Educação e da empresa afegã que fez as obras na escola. Um aluno do 12º ano começa a discursar em língua dari e continua em inglês: “As escolas foram fechadas e os afegãos ficaram mais pobres. Os portugueses provaram que estão aqui para nos ajudar. Que Alá esteja com Portugal e o abençoe”.

Lá fora, no recreio, as aulas não param. Há um burburinho permanente em fundo que os professores procuram ignorar. Duas filas de mesas e cadeiras estão dispostas no meio do recreio. Um aluno sai do seu lugar e dirige-se para a frente dos colegas, como que se tivesse sido ‘chamado ao quadro’. Abre um livro e começa a ler a lição, sob o olhar atento do professor.

A escola de Pol-e-Charki serve uma região carente com uma grande densidade populacional. Atualmente, o contingente português estuda a possibilidade de efetuar outras intervenções, tais como a construção de um campo de voleibol e a realização de um rastreio sanitário. Na inauguração, o diretor pediu “um computador e uma impressora”.

Na região de Jalalabad, junto à fronteira com o Paquistão, outra escola beneficia de apoio português. A escola é privada, mas gerida como que se fosse uma escola pública, sem cobrar um afegani aos cerca de 500 alunos.

Já leva três anos de funcionamento e regista algumas conquistas: nos seis níveis de escolaridade, há mais raparigas do que rapazes e há professores do sexo masculino a dar aulas a turmas femininas, o que não é a regra no país. De seis em seis meses, a escola dá tecido aos alunos para que as mães lhes façam um uniforme novo. Assim, não rompem a roupa que usam em casa.

Aproveitando a visita do Expresso, Ajmal, o diretor da escola, fala da principal carência da escola, na esperança que a mensagem chegue à AMI — entidade que financia o projeto desde o início: “Precisamos de erguer ainda mais o muro à volta da escola. As meninas estão a crescer e a comunidade não gosta que sejam vistas da rua…”

Rodeada de planícies verdes e de montanhas inóspitas, a escola situa-se próximo de Tora Bora, a famosa cadeia de montanhas de cujas grutas Osama bin Laden fugiu, acossado pela tropa americana após o 11 de setembro de 2001.

Na região, há muita atividade insurgente pelo que, dos quadros da escola, fazem parte também dois seguranças armados. Para Mina Wali, a dona da escola, o futuro das crianças da zona não passa pelo jihadismo. “Nesta região, vão desabrochar lindas flores. Queremos formar enfermeiros, professores, donas de casa bonitas e bons maridos”. Na turma feminina do 4º ano, as alunas começam a dar corpo ao sonho de Mina. Said, o manager da escola, pergunta para a sala: “Que querem ser quando forem crescidas?” “Médica!” “Professora!” “Engenheira!”…

‘PROTEGER ESCOLAS’ NAS NAÇÕES UNIDAS

“As crianças são as primeiras vítimas dos conflitos armados. Necessitam e merecem ter a maior proteção possível, assim como os lugares que cuidam delas e lhes prestam assistência — as escolas e os hospitais.” Com estas palavras, a 11 de maio, Peter Wittig, representante permanente da Alemanha no Conselho de Segurança da ONU, lançou a campanha “Protect my school” (Proteja a minha escola). No segundo semestre de 2011, a Alemanha vai presidir ao Conselho de Segurança e, em julho, quer submeter uma proposta de resolução visando a proteção de escolas e hospitais durante os conflitos armados. A campanha apela ao envio de fotos, desenhos ou ficheiros áudios, que sublinhem motivos pelos quais as escolas merecem mais proteção. Mais informações em: www.protectmyschool.diplo.de

Artigo publicado no Expresso, a 28 de maio de 2011

Um olho nos talibãs, outro nos infiltrados

NATO acelera formação de tropas locais. Mas entre os recrutas pode haver rebeldes. Reportagem no Afeganistão

“Está a ver aquela montanha? Os talibãs costumam disparar lá de cima.” A meio caminho entre Cabul e Jalalabad, Said Muhammad aponta para o topo de um desfiladeiro, igual a tantos outros que ficaram para trás. “E está a ver aquela viatura?”, aponta para o que resta de uma carrinha queimada. “Passei aqui quando estava a ser atacada. Estive seis horas sob fogo”, diz este pashtune natural de Kunar, que gere uma escola na província de Nangarhar, junto ao Paquistão.

Com apenas uma via em cada sentido os 150 km de estrada entre Cabul e Jalalabad são o paraíso dos insurgentes. Diariamente, passam centenas de camiões de mercadorias que abastecem os 150 mil militares estrangeiros e são um alvo tentador para quem se opõe à reconstrução do Afeganistão na era pós-talibã.

“Havia de ver esta estrada há uns seis anos. Era só terra e buracos. Demorávamos 10 horas a fazer o mesmo percurso”, continua Said. Desde 2002, a coligação internacional já pavimentou 2900 km de estradas e melhorou outros 7000 km. O asfalto facilita a circulação, diminui distâncias e, acima de tudo, dificulta a colocação de explosivos artesanais sob montes de pedras. lixo ou animais mortos.

“As estradas do Afeganistão são pedregosas, acidentadas, poeirentas, difíceis de percorrer. Não podemos ter pressa. Até nisso se assemelham ao processo de crescimento das forças de segurança afegãs”, diz o general Joseph Blotz, porta-voz da Força Internacional de Assistência à Segurança (ISAF).

Até 2014, a NATO quer formar 400 mil militares e polícias afegãos. Os EUA gastam com o programa cerca de 12 mil milhões de dólares por ano [8,2 mil milhões de euros]; Portugal contribui com equipas de instrutores. Durante seis meses, o capitão Fausto Campos chefiou a equipa portuguesa de formação e mentoria no Centro de Treino Militar de Cabul. Sentiu na pele a pressão “das datas e dos números”. “Quando me reunia com os norte-americanos dizia-lhes: ‘Preciso de armas, de rádios…’ Eles respondiam: ‘Ok, ok. Então e quantos vais formar e até quando?”

Comandar em casa e no exército

Quase todos os dias há ações de recrutamento no país. Os homens entre os 16 e os 35 anos, oriundos das áreas rurais, são o público-alvo. Entre os critérios a cumprir pelos candidatos estão exames ao consumo de narcóticos e a apresentação de duas cartas de anciãos. atestando a identidade do recruta, a sua vontade em servir no exército e de honrar a sua aldeia e tribo.

Integrar as forças de segurança é motivador para a maioria dos afegãos. Em províncias como Helmand e Kunduz, os recrutas ganham 240 dólares (163 euros) por mês. Em Cabul e Herat, a tabela fixa-se nos 210 dólares (143 euros). Nas regiões mais pacíficas paga-se menos. Ainda assim, a taxa de deserção nas forças afegãs é preocupante: 27% no exército e 12% na polícia.

“Os afegãos trabalham para o exército mediante contratos”, explica o general Qadhamsha, comandante da Kabul Capital Division que, em julho, receberá da NATO a responsabilidade pela segurança na capital. “Talvez as famílias não queiram que eles continuem ou talvez eles queiram regressar às terras para casar. Outros desistem porque são mandados para zonas onde os combates são muito duros”, diz.

“Queremos que eles sejam soldados, mas eles querem ser oficiais. Comandam em casa e querem comandar no exército.” O general afegão não o referiu, mas, segundo a ISAF, os talibãs pagam mais por mês: entre 250 e 350 dólares (170 e 238 euros).

Paralelamente às deserções e à iliteracia — cerca de 80% dos recrutas não sabem ler nem escrever —, outro fenómeno tem revelado a vulnerabilidade das forças afegãs: os infiltrados. Na quarta-feira, oito militares e um civil, todos norte-americanos, foram mortos por um militar afegão durante uma discussão num centro de formação da Força Aérea, no aeroporto de Cabul.

Interessados em semear a dúvida entre as forças da coligação com o fantasma dos “agentes adormecidos” — militantes infiltrados que um dia podem atacar —, os talibãs reivindicaram o ataque. A ISAF investiga o que terá levado o afegão a alterar o comportamento.

O segredo é passar despercebido

Embora só esteja há três meses no Afeganistão, o capitão Artur Mesquita sabe o que pode despertar atitudes agressivas nos afegãos. À entrada de Camp Warehouse, onde está aquartelado o contingente português, observa a saída de uma coluna de humvies franceses. O veículo da frente atravessa-se na estrada para que os restantes passem e a coluna siga compacta. Com metade do corpo fora do veículo, o apontador direciona a metralhadora na direção dos automóveis civis imobilizados, alguns com famílias dentro. O português revolta-se com o que vê: “Não sabem conduzir. Cortam o trânsito, gritam, apontam armas às pessoas… A forma mais fácil de trabalhar aqui é passar despercebido.”

Parte do trabalho do capitão Mesquita passa por andar, à civil, entre a população para captar sensibilidades e ajustar a mensagem da NATO ao contexto sócio-cultural. “No início, os afegãos aceitavam melhor a presença da ISAF porque queriam ver-se livres dos talibãs. As mortes de civis levam a que a ISAF perca aceitação. Por exemplo o atropelamento de mulheres e crianças por um humvie é um caso muito difícil de gerir. Ninguém está a disparar sobre nós. Não há desculpa para que tal aconteça.”

PRESOS EM FUGA, GUARDAS NA PRISÃO

Quase 500 reclusos escaparam, no domingo, da prisão de Sarposa, em Kandahar — um dos bastiões talibãs —, no sul do país. A fuga realizou-se a coberto da noite, sem despertar a atenção dos guardas. Durante quatro horas e meia, os presos fugiram através de um túnel de 320 metros que passava por baixo da autoestrada Cabul-Kandahar. Zabiullah Mujahid, porta-voz dos talibãs, explicou que o túnel demorou cinco meses a ser construído. Na quinta-feira, o Governo de Cabul anunciou a detenção de dez funcionários da prisão. Em 2008, 1000 presos escaparam de Sarposa após a explosão de um camião-bomba no exterior do edifício. Tradicionalmente, mal chega o bom tempo da primavera, os talibãs desencadeiam uma ofensiva contra as forças da NATO. Joseph Blotz, porta-voz da ISAF, explica como, em Kandahar e Helmand, os talibãs recrutam jovens de forma coerciva. “Se eles resistirem, as famílias serão ameaçadas. Muitos jovens aderem aos talibãs em regime de part-time. De dia, têm um emprego normal; à noite, por 10 dólares, colocam engenhos explosivos ou realizam ataques.”

FORÇAS DE SEGURANÇA AFEGÃS

400 mil militares e polícias constituirão, em 2014, as forças de segurança afegãs: o exército terá 240 mil soldados e a polícia 160 mil agentes

27% é a taxa de deserção no exército afegão. Na polícia, desertam 12%

230 militares portugueses ensinam, treinam e assessoram nos cursos de formação. Com 15 formadores, a GNR chegou, pela primeira vez, ao teatro afegão a 17 de abril

(Foto: Pashtunes, tadjiques, hazaras… todos os grupos étnicos integram o novo exército afegão MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso, a 30 de abril de 2011

Aldeia afegã recebe ajuda portuguesa (vídeo)

O Expresso acompanhou os militares portugueses no Afeganistão numa ação de cariz humanitário. Bens recolhidos em Portugal foram entregues numa aldeia, a norte de Cabul. Reportagem no Afeganistão

Roupa, calçado, brinquedos, material escolar e cobertores, recolhidos em Portugal, beneficiaram uma aldeia pashtune, a norte de Cabul.

Os bens foram angariados pela Capelania da Base do Alfeite, Cáritas de Riachos, Casa do Pessoal da RTP/RDP, Escola Básica Galopim de Carvalho de Queluz e por familiares e amigos dos militares portugueses em missão no Afeganistão.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui

“Dizem que vamos de férias para o Afeganistão…”

Na hora do regresso a casa, soldado português que serviu pela primeira vez no teatro afegão partilha memórias e a sua frustração perante as dúvidas que existem em Portugal sobre a missão no Afeganistão. Reportagem no Afeganistão

A bordo do A310 operado pela HiFly, estacionado no aeroporto internacional de Cabul, a azáfama é grande entre os militares portugueses que terminam missão no Afeganistão. “Olhem, diz ali para apertarmos os cintos”, comenta um soldado de forma descontraída. “Deve ser por causa da crise em Portugal!” A gargalhada contagia a parte traseira do avião, onde se acomodam os praças do contingente nacional.

Apesar dos cerca de 7000 quilómetros de distância, os militares em missão no teatro afegão estão informados acerca das dificuldades que o país atravessa. Através da RTP Internacional e dos contactos diários com as famílias, facilitados pelas novas tecnologias, sabem que “o país está mal”, comenta um jovem soldado, ansioso pelo regresso a casa, após a sua primeira missão no Afeganistão. “Sabe que nos cortaram nos vencimentos quando estávamos aqui?”

Grécia e Irlanda pouparam militares

Após os cortes salariais que atingiram os salários da Função Pública em finais do ano passado, e que abrangeram também os militares, estes foram surpreendidos em fevereiro com a notícia de um novo corte em 10% (com retroativos a janeiro) no Suplemento de Missão — uma ajuda de custo que beneficia os militares destacados em missões humanitárias e de paz.

Igualmente em crise, Grécia e Irlanda, por exemplo, não adotaram igual medida. “Eu sei que o país está em crise e que todos temos de ajudar”, continua o soldado. “Mas gostava de saber o que vão fazer com o dinheiro que nos cortaram. Olhe, mais valia darem-no ao povo afegão, que vive com tantas dificuldades…”

No Exército, este militar recebe 583 euros por mês — um luxo, comparado com os 150 euros que lhe ofereceram na última proposta de trabalho recebida antes de decidir ingressar no Exército. “Tenho sorte em trabalhar e morar na região de Lisboa. Agora imagine os meus colegas do Norte. Com o que ganham não conseguem ir a casa…”

Perigos quotidianos

Filho de mãe desempregada e com irmãos mais novos dependentes, este soldado com 21 anos feitos no Afeganistão diz ser “o pilar da casa”. Não esconde que se voluntariou para servir no Afeganistão seduzido pelos 2500 euros do Suplemento de Missão. “Há muita gente no nosso país que diz que vimos para aqui só para ganhar dinheiro e passar férias. Claro que o dinheiro é importante! Mas não fazem a mínima ideia dos perigos que corremos todos os dias!”

Ao longo de seis meses, este militar desempenhou as funções de “apontador”. Durante as saídas dos veículos Hummer — em missões de proteção aos mentores portugueses que dão assistência na formação de soldados afegãos, por exemplo, ou de proteção ao Expresso em situações de reportagem —, o “apontador” é o militar que segue todo o percurso com metade do corpo fora da viatura, agarrado à metralhadora e com concentração absoluta em relação a tudo o que possa constituir uma ameaça ao veículo.

“Sinto que vim bem preparado para o Afeganistão. Mas no terreno é sempre diferente.” O perigo é real e, na berma da estrada, debaixo de um monte de pedras, de pedaços de lixo ou de um animal morto pode estar um explosivo de fabrico artesanal fatal, já para não falar dos bombistas suicidas, uma ameaça diária.

Regressar com a roupa do corpo

Na hora de fazer a mala para regressar a casa, o jovem ofereceu toda a sua roupa civil a trabalhadores afegãos de Camp Warehouse. “Dei tudo o que tinha: roupa de desporto, o pijama e até cuecas. Não fui só eu, outros militares fizeram o mesmo. Vou embora outra pessoa. Vi coisas que me marcaram muito. No inverno nevou bastante e vi crianças descalças com os pés na neve, sem terem o que calçar…”

Durante a longa viagem de regresso a Portugal — interrompida por uma escala em Bucareste para reabastecimento —, o jovem descreve as situações que mais o marcaram e mostra fotografias de momentos de convívio e de ações de formação com as tropas norte-americanas. “Gostei muito desta experiência!”

E partilha os seus planos para o futuro: “Com o dinheiro que ganhei no Afeganistão quero ir aos Estados Unidos e à Suíça tentar arranjar trabalho na área que mais gosto. Se não conseguir, regresso a Portugal e volto a voluntariar-me para o Afeganistão”.

(Militares portugueses, no aeroporto internacional de Cabul, a minutos do regressarem a casa MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de abril de 2011. Pode ser consultado aqui