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Um recurso escasso numa região conflituosa

Opções políticas e alterações climáticas contribuíram para reduzir os caudais de quatro rios históricos. Para as populações ribeirinhas sobra um mar de preocupações

Crianças brincam no rio Nilo em Assuão, no sul do Egito KHALED DESOUKI / AFP / GETTY IMAGES

Na Antiguidade Clássica, o historiador grego Heródoto rotulou o Egito como “um presente do rio Nilo”. Para oriente, o rio Jordão foi protagonista no advento do judaísmo e do cristianismo. Ainda mais para leste, entre os rios Tigre e Eufrates, floresceu a Mesopotâmia, considerada um dos berços da civilização ocidental. Hoje, a grandeza histórica destes quatro rios esvai-se nos seus caudais, cada vez menos abundantes. Por opções políticas ou pelo efeito das alterações climáticas, há cada vez menos água disponível para as populações ribeirinhas. E tudo acontece na região mais conflituosa do mundo.

NILO Uma nova praga maligna em formação

“O Egito — nação de mais de 100 milhões de almas — enfrenta uma ameaça existencial. Uma grande estrutura de proporções gigantescas foi construída ao longo da artéria que leva vida ao povo do Egito.” O alerta foi dado há um mês, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, pelo ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio. A construção a que Sameh Shoukry se refere é a Grande Barragem Renascentista Etíope (GERD, na sigla inglesa), que a Etiópia começou a erguer em 2011, quando o Egito estava envolvido nas convulsões populares da Primavera Árabe. Fica no Nilo Azul, principal afluente do Nilo, que nasce na Etiópia e converge com o Nilo Branco no Sudão. Para a Etiópia, o projeto reduz a pressão energética e gera eletricidade suficiente para exportar. Para o Egito, é fonte de inquietação. Com 6650 quilómetros de comprimento, o Nilo garante 90% das necessidades hídricas do país.

A 19 de julho, a Etiópia anunciou a conclusão do segundo enchimento da barragem, o que levou as autoridades do Cairo a insurgirem-se contra as ações unilaterais de Adis Abeba. O Nilo corre de sul para norte, pelo que só chega ao Egito a água que o Sudão e a Etiópia deixarem passar. “Sempre dissemos aos nossos irmãos da Etiópia e do Sudão que os respeitamos e nos preocupamos com o seu direito à vida, tal como com o nosso. Eles têm direito a produzir eletricidade, na condição de isso não afetar a quantidade de água que nos chega”, disse, no final de julho, o Presidente Abdel Fattah al-Sisi, homem forte do Egito.

“Os danos que a GERD pode infligir afetarão todos os aspetos da vida do povo egípcio, qual praga maligna”, alerta Shoukry, recuperando a analogia bíblica das “10 pragas” para traduzir o drama atual. “O enchimento unilateral da barragem, sem um acordo que inclua os cuidados necessários para proteger as comunidades a jusante e prevenir danos significativos, aumentará as tensões e poderá provocar crises e conflitos que desestabilizem ainda mais uma região já de si conturbada.” Das Nações Unidas vêm apelos para que Egito, Sudão e Etiópia se entendam à mesa das negociações, mediadas pela União Africana. “A disputa relativamente à GERD não vai evoluir para uma guerra aberta entre os três países (ou entre dois deles). É um cenário altamente improvável”, diz ao Expresso Ana Elisa Cascão, investigadora independente e coautora de “The Grand Ethiopian Renaissance Dam and the Nile Basin” (“A Grande Barragem Renascentista Etíope e a Bacia do Nilo”). “Uma guerra ‘hídrica’ não beneficiaria absolutamente ninguém, e os custos reputacionais seriam imensos para todos. Nos últimos anos, a GERD, como ‘carta política’, tem basicamente sido usada para efeitos de política interna nos três países. Externalizar problemas internos é uma arte que todos eles dominam, mas que tem limites.”

TIGRE E EUFRATES Caudais a diminuir como nunca antes

Nascem na Turquia, desaguam no sul do Iraque e atravessam também a Síria. Espraiam-se por muitos quilómetros — o Eufrates tem 2800 quilómetros, o Tigre 1900 — em países que ora cooperam ora estão em guerra, entre si ou com terceiros. Mais do que as guerras, é o megaprojeto do Sudeste da Anatólia que tem suscitado mais preocupações relativamente ao potencial de irrigação dos dois rios.

Projetada para desenvolver 10% do território turco, esta iniciativa multissectorial prevê a construção de 22 barragens ao longo dos dois rios, a maior das quais a barragem Ataturk (nome do fundador da Turquia moderna), no curso do Eufrates.

Para o Iraque, que recolhe dos dois rios 90% da água doce que consome, o impacto das variações dos caudais é enorme. “Este ano vimos uma redução na precipitação anual de 50% em relação ao ano passado”, alertava no ano passado Mahdi Rashid Al-Hamdani, ministro dos Recursos Hídricos iraquiano, num momento de stresse hídrico. “Solicitámos ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros que envie uma mensagem urgente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Turquia a perguntar qual é o motivo para a quebra do nosso fluxo.”

Bagdade e Ancara têm acordos em vigor sobre a partilha da água, mas há que cumpri-los. Alguma da água em falta no Iraque ficou retida na Turquia, no reservatório da barragem de Ilisu (uma das 22 projetadas), que começou a funcionar no rio Tigre.

Paralelamente às opções políticas nacionais, as alterações climáticas justificam muitas das fragilidades ambientais. Nas últimas semanas, uma seca acentuada na região de Erbil, capital do Curdistão iraquiano (norte), originou grave escassez de água, que levou as autoridades locais a detalhar apelos: “Racionem o consumo e o uso de água e coloquem válvulas nos tanques de água para reduzir o desperdício.” A cidade depende em grande parte da água do rio Zab, afluente do Tigre.

No ano passado, um relatório da Organização Internacional para as Migrações (OIM) apurou que os caudais do Tigre e do Eufrates estão a diminuir “a uma taxa sem precedentes”, com impacto direto na deslocação de populações. “Em julho de 2019, a OIM no Iraque identificou 21.314 pessoas deslocadas internamente de províncias do centro e do sul devido à falta de água, a fontes de água com alto teor de salinidade ou a surtos de doenças transmitidas pela água.”

Em 2018, os grandes protestos populares que se realizaram no sul do Iraque também tiveram origem na escassez de água potável e nas falhas de eletricidade. Aconteceu o mesmo no Irão, no mês passado, na província de Khuzestan, na fronteira com o Iraque. Segundo o serviço meteorológico iraniano, entre outubro de 2020 e junho deste ano, o país viveu os meses mais secos dos últimos 53 anos.

JORDÃO Usar a água para fazer política

Há menos de um mês em funções, o novo Governo de Israel elevou a questão da água à categoria de prioridade política. No início de julho, o primeiro-ministro Naftali Bennett encontrou-se em Amã com o rei da Jordânia, Abdullah II. O governante israelita comunicou ao monarca que Israel estava disposto a vender à Jordânia mais água do que aquela a que está obrigado pelo acordo de paz de 1994, que dividiu entre ambos o acesso às águas dos rios Jordão e Yarmuk.

A Jordânia enfrenta uma grave escassez de água, que é explicada em parte pela matemática: se em 1950 o reino tinha menos de meio milhão de habitantes, hoje tem 10 milhões, embora só tenha recursos hídricos para sustentar 2 milhões.

Com este gesto de boa vontade, a Jordânia viu o seu problema temporariamente menorizado. Já Israel reabilitou uma relação que se degradara de forma substancial nos últimos anos, condenando à morte o acordo Red-Dead de 2015, que iria ligar o Mar Vermelho (Red) ao Mar Morto (Dead) através de canalização, complementada por centrais de tratamento de água nas duas margens.

Este projeto visava salvar o Mar Morto, que está em acelerado estado de degradação, originando sumidouros com dezenas de metros de diâmetro, num território que mais parece ter sido alvo de bombardeamentos. É neste ecossistema que desagua o rio Jordão, ainda que em quantidades cada vez menores, em virtude dos desvios de água realizados ao longo do seu curso, partilhado por Israel, Síria, Jordânia e território palestiniano da Cisjordânia, ocupado por Israel.

Se na margem esquerda do Jordão a situação é de escassez, na direita é agravada pela ocupação israelita da Palestina, que garante a Israel controlo sobre toda a água entre o rio e o Mar Mediterrâneo. Ao Expresso, Marta Silva, estudiosa das relações entre Israel e a Palestina, identifica o momento-chave em que os palestinianos perderam o acesso aos recursos hídricos: “Em 1967, quando Israel conquistou os territórios palestinianos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental.” A especialista explica que “o objetivo era garantir a colonização da região do vale do Jordão, a mais rica a nível de recursos aquíferos, logo com mais terras aráveis e férteis” — o celeiro da Palestina. Hoje, diz a organização EWASH, no vale do Jordão, um colono israelita gasta 81 vezes mais água do que um residente palestiniano.

Artigo publicado no “Expresso”, a 6 de agosto de 2021. Pode ser consultado aqui

Maleitas da Terra

Amanhã, comemora-se mais um Dia da Terra, ocasião em que se faz, tradicionalmente, a radiografia dos males do Planeta e se propõem algumas terapias. Este ano, o lema da campanha a favor da saúde do globo é «Energia limpa, já»

Amanhã, sábado, comemora-se o 30º Dia da Terra e mais uma vez ecoarão as vozes de ambientalistas de todo o mundo alertando para as maleitas do Planeta Azul. De facto, a Terra está doente e há pelo menos 40 anos que dá sinais disso. Com o passar do tempo, os sintomas agravaram-se, o declínio dos ecossistemas tornou-se mais visível. À beira do século XXI, a Terra corre o risco de deixar de poder alimentar a vasta diversidade de vida que suporta e a economia mundial.

O lema deste Dia da Terra é «Energia limpa já» e apela à substituição dos recursos energéticos que provocam o efeito de estufa por recursos naturais, como a energia solar e eólica. Mas os ecologistas sabem que é difícil convencer os Governos a pôr em prática protocolos e tratados e levar as grandes indústrias que produzem petróleo, carvão ou carros e que desbastam árvores a mudar de ramo.

Se o declínio continuar, «as implicações serão desastrosas para o desenvolvimento humano e a saúde de todas as espécies», alerta um relatório que será publicado em Setembro pela ONU, Banco Mundial e Instituto de Recursos Mundiais. Mais de 175 cientistas contribuíram para este estudo, intitulado «População e Ecossistemas: A Desgastante Rede da Vida».

Existem cinco ecossistemas principais no planeta que dão sinais de desgaste devido ao impacto da acção humana: florestas, redes de água doce, habitats marítimos e costeiros e terras de pastagem e de agricultura. São eles que temperam o clima, purificam e restauram águas, reciclam desperdícios e produzem alimentos.

Ao interferir nos mais básicos mecanismos do planeta, o Homem altera os principais ciclos do seu sistema. Ao bombear grandes quantidades de dióxido de carbono para a atmosfera, o Homem não repara que a terra e o mar não têm capacidade de o reabsorver e que acumulam gases, originando o efeito de estufa (cerca de 20 quilómetros acima das nossas cabeças), aquecendo e desafiando o clima.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, o tráfego automóvel é o mais rápido produtor de poluição do ar na Europa e mata mais pessoas prematuramente (doenças respiratórias e cardíacas) do que os acidentes de automóvel.

À beira do colapso

Nos últimos 20 anos, a economia global triplicou e a população mundial cresceu 30%, concentrando-se nos meios urbanos e no litoral e alterando as regiões costeiras. A pressão populacional em certas zonas, sobretudo nos países em vias de desenvolvimento, é responsável por catástrofes naturais, como a que devastou a América Latina em 1999. Ao longo do último século, perdeu-se metade das terras húmidas do planeta, sendo a desflorestação tropical de 130 mil quilómetros quadrados por ano. Com a desflorestação e as alterações climáticas aumentou o número de ciclones e de inundações, como os que atingiram 14 milhões de pessoas na China em 1998.

A alteração do clima faz os glaciares derreter e o nível das águas dos oceanos subir, levando ao desaparecimento futuro de pequenas ilhas ou mesmo de cidades costeiras. O Homem continua a pescar acima do sustentável, colocando à beira do colapso uma série de espécies piscícolas, como é o caso do bacalhau do Atlântico Norte, que atirou para o desemprego 300 mil canadianos e arruinou a economia de 700 comunidades.

Actualmente, 58% dos recifes de coral estão em perigo, 80% das terras de pasto sofrem de degradação dos solos, 20% das terras secas correm o risco de se transformar em desertos, os lençóis freáticos estão a ficar esgotados. Os seres humanos já utilizam metade da água doce disponível no planeta e constatam que dois terços das terras agrícolas estão de algum modo afectadas. Isto levanta uma questão: como é que se vai alimentar uma população com perto de oito mil milhões de pessoas em 2020? (Texto de Carla Tomás)

POPULAÇÃO. A população mundial ultrapassou, com o nascimento do pequeno Adnan, a 12 de Outubro de 1999, em Sarajevo — celebrado, em todo o mundo, como o «bebé 6 mil milhões» —, mais uma fasquia do seu imparável crescimento. Mas se Adnan simboliza a vida — e portanto a «população» como um recurso —, a distribuição desequilibrada das pessoas pelo planeta transforma a «população» num factor de degradação ambiental. Cerca de 20% da população mundial habita as regiões mais desenvolvidas da Terra, enquanto 80% concentra-se nas menos desenvolvidas — mais de metade das quais no continente asiático. A Ásia é, aliás, uma região verdadeiramente explosiva, em termos demográficos. Cinco das dez «bombas humanas» — os países que têm mais de 100 milhões de habitantes — são asiáticas e, de entre elas, China e Índia protagonizam uma disputa pelo título de país mais populoso do mundo: se hoje é a China, com mais de 1200 milhões de habitantes, em 2050, segundo a ONU, será a Índia, com mais de 1500 milhões de pessoas. A cidade mais populosa do mundo é igualmente asiática — Tóquio, com mais de 27 milhões de pessoas. Aliás, nove das dezasseis megacidades — metrópoles com mais de 10 milhões de habitantes — situam-se na Ásia. Mas se é o continente asiático que detém os índices mais preocupantes no que respeita à distribuição demográfica, é África que protagoniza o crescimento mais espectacular. Segundo a ONU, de 1995 a 2000, a taxa de fecundidade total em África é superior a 5,31 filhos por mulher (em idade de procriar). (Texto de Margarida Mota)

CATÁSTROFES NATURAIS. As catástrofes naturais não existem, já dizia Jean-Jacques Rousseau no século XVIII a propósito das tragédias provocadas na época por sismos em zonas sobrepopuladas. Esta constatação foi sendo confirmada com a crescente interferência da acção humana junto das vulnerabilidades naturais. Calcula-se que tais catástrofes tenham triplicado nos últimos 30 anos e que o risco seja cada vez maior, devido às alterações climáticas (aquecimento do planeta) e à combinação da demografia e da pobreza, sobretudo nos países em desenvolvimento. O aumento da concentração das populações nas grandes zonas urbanas (sobretudo no litoral e em zonas de falhas sísmicas), a par com o desordenamento urbano, a fragilidade das construções e a falta de mecanismos de prevenção e socorro, são factores que potenciam os efeitos devastadores de qualquer terramoto, inundação ou ciclone. Com base num relatório sobre as catástrofes ocorridas em 1998, a Cruz Vermelha Internacional alertava para o facto de o mundo estar a entrar «numa nova era de superdesastres», devido à degradação ambiental (saturação dos solos), ao aquecimento global (subida do nível dos mares e da temperatura) e ao crescimento populacional. O «pior ano de que há memória» (1998) registou um conjunto de desastres naturais — ciclone «Mitch», na América Central, inundações na China, Vietname, Coreia e Filipinas, dois terramotos no Afeganistão e o maremoto na Papua-Nova Guiné — que provocaram cerca de 35 mil mortos e mais refugiados do que os conflitos bélicos juntos. Presente na memória estão também os desastres de 1999 e início de 2000: as piores inundações dos últimos 50 anos em Moçambique (500 mortos), ou as enxurradas que assolaram o Sul da Ásia (oito mil mortos na Índia); os terramotos que devastaram a Turquia (15 mil mortos), a Grécia (70) ou Taiwan (2 mil); ou o calor excessivo e as chuvas torrenciais na Europa. A multiplicação confirma a tendência. O Painel intergovernamental da ONU para a Mudança Climática prevê que, no próximo século, a temperatura aumente entre dois a seis graus. (Texto de Carla Tomás)

DESERTIFICAÇÃO. A desertificação dos solos é a catástrofe natural que mais pessoas afecta em todo o mundo. Em números redondos, 1000 milhões de pessoas vivem ameaçadas pelo fenómeno, 250 milhões são directamente afectadas e 25 milhões já fogem dele — originando uma nova condição de migrantes, os «refugiados ambientais». Cerca de 40% da superfície terrestre corresponde a solos secos, os quais, sendo responsáveis pela produção da maior parte dos alimentos que consumimos, são também os mais susceptíveis à erosão. Logo, se a produtividade das terras é condicionada, a segurança alimentar é directamente posta em causa. Além das alterações climáticas — um longo período de seca severa originou, em África, o Sahel —, as causas da desertificação derivam, cada vez mais, da intervenção humana: práticas agrícolas desadequadas às características dos ecossistemas, a desflorestação e a sobrexploração das terras (quer para pastagens quer para cultivo). A desertificação — que afecta cerca de 120 países — assemelha-se a uma onda que, ao avançar, vai empurrando toda e qualquer forma de vida para ecossistemas em equilíbrio que, naturalmente, entram em regressão. Além das consequências ambientais — alterações climáticas, fraca produtividade e perda da biodiversidade —, a pressão social resultante dessa concentração populacional potencia a ocorrência de relações conflituosas. (Texto de Margarida Mota)

ÁGUA. A água dos oceanos e mares cobre 71% da superfície da terra, constituindo o maior ecossistema do planeta, com uma variedade de «habitats» e uma riqueza de biodiversidade maior do que a terrestre. Os oceanos funcionam como reguladores da composição atmosférica, ciclo de nutrientes e controlo biológico dos sistemas naturais. Contudo, os ecossistemas marítimos estão sob grande pressão, devido ao crescimento populacional, concentrado nas zonas costeiras, às substâncias poluentes derivadas da actividade humana em terra (77% da poluição marítima) e à excessiva e massiva intervenção das frotas pesqueiras (que fazem capturas 40% superiores ao nível de sustentabilidade). Os pesticidas utilizados na agricultura ou os isótopos radioactivos (provenientes das descargas de centrais nucleares ou de ensaios balísticos) desaguam nos mares, provocando um impacto ambiental e interferindo na cadeia alimentar. Por seu lado, as barragens e diques — que permitem vida humana em zonas outrora inabitáveis, irrigando a agricultura — são também vistas como uma ameaça ao meio ambiente, impedindo os rios de chegarem ao mar, alterando os seus ecossistemas e dizimando espécies. A alteração climática e consequente aquecimento global fez subir os mares entre 10 e 25 centímetros em cem anos. Por cada centímetro de aumento, um metro de praia entra em erosão; por cada 10 centímetros, a água salgada penetra nos estuários e fá-los recuar um quilómetro; por qualquer aumento do nível do mar, cresce a salinidade das aquíferas de água doce. Um terço da população do Planeta Azul vive presentemente em condições de «stress hídrico» — ou seja, o consumo de água é 10% superior à reserva global de água doce. Mas este recurso vital está também desigualmente distribuído. E enquanto uns esbanjam o que podem vir a deixar de ter, outros economizam o que já escasseia. (Texto de Carla Tomás)

DESFLORESTAÇÃO. A desflorestação do que ainda resta dos 6 mil milhões de hectares que, em tempos, cobriram o planeta é semelhante à marcha de um «bulldozer» gigante que, anualmente, derruba, pelo menos, 16 milhões de hectares de árvores. Hoje, somente um quinto da cobertura vegetal original do planeta permanece intacta — 70% estendem-se ao longo de apenas três países (Brasil, Canadá e Rússia). Mas as exigências da vida moderna, designadamente o crescente consumo de papel e de madeira, deixa antever que, mais uma vez, é a intervenção humana que causa os maiores estragos. Paralelamente ao desbaste de árvores, a procura de terras para cultivo bem como a prática de queimadas completam o leque das principais ameaças. Segundo a agência das Nações Unidas para a agricultura e alimentação (FAO), na Amazónia, cerca de um terço dos fogos são ateados para desbastar zonas de floresta virgem. As grandes florestas são autênticos armazéns da biodiversidade — 50 milhões de indígenas habitam nas florestas tropicais —, além de funcionarem como mecanismos reguladores do ciclo da água, pelo que a sua destruição pode condicionar a sobrevivência do planeta. «Parar com a destruição destas florestas é, possivelmente, o sinal mais visível do desenvolvimento sustentado», afirmou, recentemente, Thilo Bode, director-executivo internacional da Greenpeace. (Texto de Margarida Mota)

EXTINÇÃO. A maior extinção massiva de espécies desde o desaparecimento dos dinossauros, há 65 milhões de anos, está a acontecer agora… por culpa do homem. E, se continuar a este ritmo, num futuro próximo, entre um e dois terços das espécies (de todas as ordens e classes) correm o risco de extinguir-se… e em cem anos pode desaparecer metade. As zonas do Globo mais atingidas ocupam só um quarto da superfície terrestre, mas é aí que vivem mais de um terço das espécies florestais e de vertebrados. Muitas delas estão ameaçadas devido à destruição do seu «habitat» natural, entretanto arrancado, queimado, sobrepovoado, excessivamente poluído, explorado ou vítima das alterações climáticas. Outras extinguem-se devido à pesca excessiva e à caça furtiva. para atender à procura de peles, amuletos, «souvenirs», medicina tradicional ou alimento. Entre as espécies animais mais ameaçadas estão o tigre de Bengala, o panda gigante, a tartaruga do mar, o rinoceronte de Sumatra, o antílope tibetano, o tubarão-baleia, a baleia azul, o gorila da montanha, o golfinho chinês e o elefante africano e asiático. Devido ao abusivo abate de elefantes e tigres, continua a ser travada uma «guerra de forças» entre os países que querem continuar a comercializar marfim, peles e ossos, e os que querem impor a total interdição do seu comércio. Nos mares, cerca de 70% das reservas de peixe estão no seu limite biológico e, nos rios, 20% dos peixes de água doce estão ameaçados de extinção. Cada vez que se perde uma espécie animal ou vegetal, o complexo equilíbrio da vida na Terra é abalado. Os nossos descendentes correm o risco de herdar um planeta homogéneo e de grande pobreza biológica. (Texto de Carla Tomás)

DO ACTIVISMO AO ECOTERRORISMO

Crescentemente, têm-se registado actos violentos perpetrados por organizações ambientalistas radicais, dando origem a um novo tipo de fundamentalismo — o ecoterrorismo —, defensor de todo e qualquer método para proteger a natureza.

Não usando métodos terroristas, a maior organização ambientalista mundial — a Greenpeace —, nascida há 25 anos, tem contudo vindo a «aterrorizar» muitos Governos e indústrias mundiais. Depois de uma fase inicial de luta contra o nuclear e a caça às baleias, a Greenpeace tem estendido a sua acção para a área dos resíduos, transgénicos, florestas e alterações climáticas. Sempre com irreverência, imaginação e polémica e sustentada em pareceres científicos de investigadores de nomeada.

Em Portugal, a associação que mais se aproxima destes métodos é a Quercus. Aliás, quando a Greenpeace decide intervir em Portugal — o que já aconteceu por três vezes nos últimos anos — recorre ao apoio desta associação portuguesa. Num dos casos, ocorrido em 1998, em que se tentou «sabotar» o descarregamento dum navio com soja transgénica, houve mesmo tiros de intimidação da polícia marítima. Para Francisco Ferreira, presidente da Quercus, «estas acções mediáticas são importantes para fazer passar a mensagem», mas «tudo o que possa pôr em risco a segurança de bens e de pessoas é excluído» da intervenção do grupo.

Quanto ao chamado ecoterrorismo, ganhou maior visibilidade após ser conhecida a admiração de Theodore Kaczynski — o famoso «Unabomber», que durante 16 anos se especializou no envio de cartas armadilhadas nos EUA — pela Terra Primeiro! (Earth First!), uma das mais destacadas organizações ao serviço do «terror verde». Em Outubro de 1997, esta organização publicou uma lista de nomes de executivos e de empresas cujas actividades constituiriam uma ameaça «à existência do mundo natural». Entre estes «alvos a abater» encontravam-se a Microsoft, a McDonald´s, a Nike e a Boeing.

A Terra Primeiro! (de que se conhece muito pouco) parece funcionar, aliás, como fonte inspiradora de outros grupos que partilham a sua linguagem radical, como a Frente de Libertação da Terra (FLT) e a Frente de Libertação dos Animais (FLA), que às vezes agem em conjunto. Do currículo da FLT consta um dos atentados mais espectaculares ao serviço da «causa verde»: o fogo posto, a 18 de Outubro de 1998, na mais frequentada instância de esqui dos EUA (Vail Mountain, Colorado), destruída para impedir a expansão do complexo em direcção à floresta, habitat do lince canadiano. «Eles não querem que isto seja visto como um acto de terrorismo, mas que seja encarado como um acto de amor pelo ambiente», afirmou Craig Rosebraugh, um activista que diz ser um simples transmissor da informação que anonimamente a FLT lhe envia. (Margarida Mota e Pedro Almeida Vieira) 

Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de abril de 2000

Um mundo cada vez mais seco

Ao aproximar-se mais um Dia Mundial da Água, multiplicam-se os alertas sobre a escassez do «ouro azul». A sobreexploração dos recursos e o aumento de 40% do consumo até 2025 levam os especialistas a falar em crise — quando um quinto da humanidade não tem acesso a água potável

A escassez de água será um problema cada vez mais grave a nível mundial, que se agudizará com o crescimento demográfico e a urbanização. O facto de os recursos hídricos já serem sobreexplorados e de se prever um aumento de 40% do consumo de água até 2025 leva alguns especialistas a alertar, já, para uma crise mundial do «ouro azul».

Segundo o relatório «Visão 21» — elaborado pela Comissão Mundial da Água e que está a ser discutido no II Fórum Mundial da Água, que decorre, desde ontem e até quarta-feira, em Haia —, um quinto dos habitantes do planeta não dispõe de água potável para consumo, enquanto metade não tem acesso às condições mínimas de higiene e saneamento (ver infografia).

Segundo o documento, o combate a esta miséria passa pela implementação de projectos locais, que impliquem e responsabilizem directamente as comunidades e cada cidadão.

Mulheres são essenciais

A este nível local, o papel da mulher é incontornável, pois a gestão da água doméstica passa pelas suas mãos.

Paralelamente, é rejeitada a habitual política de os Estados responderem aos desafios da água construindo megaprojectos hidráulicos, economicamente dispendiosos e ecologicamente polémicos.

Um dos projectos locais em marcha envolve os 44 milhões de habitantes do estado indiano de Gujarat. Quando foi solicitado às autoridades locais que elaborassem um plano prático no sentido de melhorar os padrões higiénicos da população, a prioridade foi dada à educação: noções de higiene e saneamento nos planos curriculares e a construção de lavabos em todas as escolas.

Os países do Sul da Ásia — a Índia, o Paquistão, o Bangladesh e o Nepal — registam os piores índices mundiais ao nível dos serviços sanitários, só sendo ultrapassados pela África subsariana. Nessas latitudes, a falta de infra-estruturas «instituiu» a regra da defecação a céu aberto, pelo que doenças como a cólera, a difteria, o tifo e a hepatite proliferam a grande velocidade.

Em 1998, segundo a Organização Mundial de Saúde, morreram 3,4 milhões de pessoas — 2 milhões das quais eram crianças —, na sequência de doenças associadas a água contaminada, a maior parte das quais de diarreias e de malária. Em média, terão, pois, morrido quase 10 mil pessoas por dia, o equivalente à lotação de 24 aviões Boeing 747.

Até 2025, segundo as contas da Comissão Mundial da Água, o investimento global com a água — actualmente calculado em cerca de 80 mil milhões de dólares por ano (16 mil milhões de contos) — deverá ascender até aos 180 mil milhões (36 mil milhões de contos: 17% para a agricultura, 41% para a indústria, ambiente e energia e 42% para o fornecimento de água e saneamento básico.

É que, paralelamente às previsões segundo as quais o consumo de água aumentará cerca de 40%, é um dado adquirido que a população continuará a aumentar e, o mais preocupante, a concentrar-se junto às grandes bacias hídricas.

Nas vésperas de se celebrar mais um Dia Mundial da Água, na próxima quarta-feira, Brian Appleton, um perito da ONU em questões da água, não se mostra muito optimista: «Estamos a perder a batalha».

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de março de 2000. Pode ser consultado aqui