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Desastres retiram comida da mesa

Os agricultores saíram à rua em vários países europeus, mas nem por isso priorizam o combate às alterações climáticas, de que são os principais prejudicados. Os números da destruição e uma conversa com um especialista

“Ercolina” está habituada a ser o centro das atenções. Foi-o, no início de fevereiro, no festival de música de Sanremo (Itália) e, dias depois, na Praça de São Pedro, no Vaticano, com o Papa Francisco à janela. “Ercolina” é a vaca mascote dos agricultores italianos em protesto por preços mais justos para os seus produtos e contra o que consideram ser um excesso de regulamentação ambiental na União Europeia (UE).

De Portugal à Roménia, os agricultores transferem os tratores dos campos agrícolas para o asfalto das grandes cidades e fazem exigências. Em Itália, protesta-se também contra Bruxelas, por forçar ao consumo de carne produzida em laboratório e farinha de insetos. Na Alemanha, o foco da contestação é o imposto do combustível dos tratores. Nos Países Baixos, o desagrado visa a tributação do nitrogénio, com consequências para a produção industrial de porcos e frangos. Na Polónia, há oposição à importação de cereais da vizinha Ucrânia, que os polacos defendem com unhas e dentes na guerra contra a Rússia. Em Portugal, a contestação começou após cortes nas ajudas.

Em nenhum país a principal bandeira dos agricultores tem sido o combate às alterações climáticas, apesar de serem eles os primeiros a pagar a fatura da degradação ambiental (ver entrevista). “As calamidades estão a originar níveis inéditos de danos e perdas na agricultura em todo o mundo”, alerta o relatório “O Impacto dos Desastres na Agricultura e na Segurança Alimentar”, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

“A agricultura — e os sistemas de produção agroalimentar que sustenta — desempenha um papel vital na garantia da disponibilidade de alimentos para dietas saudáveis e é um importante motor de emprego, segurança alimentar e redução da pobreza”, diz ao Expresso Piero Conforti, vice-diretor da Divisão de Estatísticas da FAO. “A potencial vulnerabilidade deste sector a catástrofes é alarmante, em especial no contexto de uma população global que aumenta e de uma procura crescente de alimentos.”

Com o planeta a registar temperaturas cada vez mais altas e fenómenos extremos cada vez mais recorrentes, a FAO aponta o caminho: prevenção e resiliência.

DESTRUIÇÃO

400 calamidades ocorreram, em média, todos os anos neste século, com impacto no sistema agroalimentar. Segundo o International Disaster Database da Universidade Católica de Louvain (Bélgica), nos anos 70 havia cerca de 100 catástrofes por ano. Os desastres cumprem um de quatro critérios, pelo menos: 10 mortos, 100 pessoas afetadas, declaração de estado de emergência e pedido de ajuda internacional


5% do Produto Interno Bruto agrícola global foi destruído, entre 1991 e 2021, devido a catástrofes. Neste período, os prejuízos acumulados ao nível da produção agrícola e da pecuária ascenderam a 3,8 biliões de dólares (€3,5 biliões). O montante total de perdas nesses 30 anos é equivalente ao PIB do Brasil em 2022


2023 foi o ano mais quente desde 1850, quando começou a haver registos. Segundo dados recolhidos pelos satélites do Copernicus, o Programa Europeu de Observação da Terra da União Europeia, a temperatura média no ano passado foi 1,48°C acima da média do período pré-industrial

Mulheres são mais vulneráveis às catástrofes

Em contexto de calamidade, as mulheres são, na maioria das vezes, mais afetadas do que os homens. “Dados sobre mortalidade, educação interrompida, problemas de saúde, experiências de violência, perda de meios de subsistência e subnutrição demonstram que as mulheres são desproporcionalmente afetadas durante e após as catástrofes”, diz ao Expresso Priti Rajagopalan, analista de estatísticas da FAO. No Paquistão, por exemplo, as mulheres representam mais de 70% dos trabalhadores agrícolas. Esse peso tem-se mantido estável desde a década de 90 muito por força de normas socioculturais que lhes barram o acesso a outros sectores profissionais. Essa situação penaliza-as em especial após períodos de inundações, frequentes no país, em que, por falta de alternativas laborais, as mulheres que perdem o emprego na agricultura com grande probabilidade ficam em casa, sem remuneração. “Na agricultura, as mulheres são mais vulneráveis a catástrofes do que os homens, em grande parte devido a restrições relativas à propriedade da terra, à dificuldade de acesso à informação e aos recursos necessários para se prepararem, responderem e recuperarem de uma catástrofe”, diz o técnico da FAO. É exemplo a dificuldade de acesso a seguros de colheita e a fundos de compensação.

FENÓMENOS EXTREMOS

INCÊNDIOS

Todos os anos, entre 340 e 370 milhões de hectares da superfície da Terra são devorados por fogos. Dos 51 mil milhões de hectares da área do planeta, menos de 12 mil milhões são produtivos.

SECAS/CHEIAS

Sindh, no Sul do Paquistão, que produz 42% do arroz, 23% do algodão e 31% da cana-de-açúcar do país, foi fustigada por uma seca (2021-22), seguida de inundações (2022), que submergiram 18% do país.

TUFÕES

Em 2021, as Filipinas foram atingidas por 15 tufões, o último dos quais, e também o mais forte (tufão “Rai”), afetou o sustento de 113.479 agricultores e pescadores.

ALGAS

A proliferação de algas com substâncias tóxicas é sintoma do impacto das alterações climáticas nos ecossistemas aquáticos. Em março de 2021 a costa ocidental da África do Sul foi invadida por 500 toneladas de lagosta-do-cabo.

Boas práticas

1. UGANDA Para reduzir o impacto do aumento dos períodos de seca combinou-se o cultivo de variedades de banana de alto rendimento e tolerantes à seca com técnicas de conservação do solo e da água, como trincheiras, cobertura morta e o uso de composto orgânico.

2. BOLÍVIA Nas terras altas, para reduzir a mortalidade dos lamas devido à geada, neve, chuvas e granizo, foram construídos corralónes (abrigos semicobertos) e criadas farmácias veterinárias. Os lamas são parte da cultura local há séculos, para transporte e produção de têxteis.

3. FILIPINAS Na região de Bicol, o cultivo de superarroz verde foi testado em três épocas sucessivas com benefícios económicos evidentes. Esta variedade revelou-se mais tolerante a múltiplos stresses quando comparada com as locais.


CINCO PERGUNTAS A

Renaud Foucart

Professor no Departamento de Economia da Escola de Gestão da Universidade de Lancaster, Reino Unido

O combate às alterações climáticas é bandeira dos agricultores europeus?

É verdade que as manifestações dos agricultores conduzem a resultados muito maus na luta contra as alterações climáticas: a União Europeia (UE) está a diluir os seus objetivos climáticos e os países adiam ou atenuam regras sobre a tributação do gasóleo utilizado na agricultura. Isto é muito mau, porque a agricultura, e em particular a produção industrial de carne, dá um contributo importante para as alterações climáticas.

Os agricultores deveriam revelar mais preocupação com o problema?

Penso que seria injusto culpar os agricultores por não estarem preocupados. Em todo o mundo, eles são os primeiros a testemunhar o efeito direto das alterações climáticas. Como qualquer outra pessoa, não querem suportar o fardo de as combater. Afinal de contas, a população em geral diz preocupar-se muito com as alterações climáticas, mas em todo o lado os impostos sobre o carbono originam manifestações. França tentou impor um, levou com os ‘coletes amarelos’ e cancelou.

O que está a falhar na Europa?

Os países europeus ainda não encontraram as fórmulas corretas para tornar os impostos sobre o carbono socialmente aceitáveis e compensar aqueles que perderão com isso. Esta é a verdadeira emergência, porque cada vez que adiamos a tomada de medidas significativas sobre todas as fontes de emissões (incluindo os transportes e a agricultura) isso significa que estamos a pedir todo o esforço ao pequeno número de indústrias pesadas já sujeitas a quotas de carbono através dos mercados de emissões. Dado o mau estado da indústria europeia, isto não é sustentável.

A UE vai sentir-se forçada a alterar o Pacto Ecológico Europeu?

A maior parte da componente agroalimentar do Pacto Ecológico Europeu [que visa a neutralidade carbónica em 2050] é a chamada estratégia ‘Do prado ao prato’, iniciada há quatro anos. Como sempre, a Comissão Europeia anuncia planos e depois segue um caminho lento dentro das instituições, votação no Parlamento, aprovação no Conselho, etc. Nesse sentido, muito poucos elementos foram definitivamente aprovados. Julgo que só foi concluída a diretiva relativa ao pequeno-almoço, que estabelece normas para cereais, compotas e mel em termos de rotulagem e país de origem. Muitas outras iniciativas foram abandonadas e parecem politicamente demasiado controversas para serem levadas ao Parlamento atual. É o caso da redução dos pesticidas e da redução das emissões provenientes da agricultura.

Em junho haverá eleições europeias…

É provável que o próximo Parlamento seja menos verde na sua composição, por isso creio que muitos dos pontos da sustentabilidade alimentar serão abandonados a médio prazo. No entanto, à medida que as secas e outros problemas relacionados com o clima continuarem a piorar, é difícil imaginar que as políticas do Pacto Ecológico não regressarão, mais cedo ou mais tarde. As instituições europeias estão apenas a dar o pontapé ini­cial, sem qualquer plano alternativo.

(FOTO Após a seca fustigar a região etíope de Oromia, foram delimitadas zonas para providenciar alimento às vacas ERIC LAFFORGUE / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de março de 2024 e no “Expresso”, a 15 de março de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Cheias no Paquistão, uma tragédia a céu aberto à atenção da COP27

Se não existissem alertas de sobra em relação à crescente agressividade do clima, as históricas cheias do Paquistão ilustram como a vida pode tornar-se impossível. Depois de um terço do país ter ficado submerso, e enquanto a água não recua na totalidade, os números da calamidade não param de agravar-se — dos mortos ao surto de doenças

A cerca de 4000 quilómetros da estância egípcia de Sharm El Sheikh, onde decorre a 27ª sessão da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), o Paquistão é uma tragédia a céu aberto, reveladora da vulnerabilidade do planeta face à crescente agressividade do clima.

“Durante 40 dias e 40 noites, caiu-nos em cima um dilúvio bíblico, destruindo séculos de registos climáticos, desafiando tudo o que sabíamos sobre desastres e como geri-los”, disse em setembro passado o primeiro-ministro paquistanês, num emotivo discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas.

Shehbaz Sharif referia-se às cheias inéditas que submergiram um terço do país desde meados de junho. A calamidade resultou da combinação entre chuvas da tradicional época das monções, particularmente fortes em 2022, e o efeito das alterações climáticas, que originaram um rápido degelo dos glaciares das montanhas do norte. A água que daí resultou engordou os caudais dos rios.

Com mais de 220 milhões de habitantes, o Paquistão contribui menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.

OS CINCO MAIORES POLUENTES
(% das emissões globais)

  1. CHINA: 29,18%
  2. ESTADOS UNIDOS: 14,02%
  3. ÍNDIA: 7,09%
  4. RÚSSIA: 4,65%
  5. JAPÃO: 3,47%

O Paquistão surge na 31ª posição, com 0,50% das emissões globais (e Portugal em 60º, com 0,14%). O Paquistão é, porém, dos países que pagam um preço mais pela desregulação climática. Cinco meses após o início das chuvas torrenciais, os números da tragédia não param de aumentar. Cinco exemplos.

1739

É o número de mortos contabilizados, desde 14 de junho, pela Autoridade Nacional de Gestão de Desastres, do Paquistão. Há ainda 12.867 feridos registados, decorrentes de incidentes relativos à queda das chuvas das monções ou a inundações provocadas pelo transbordo de rios.

A última atualização, tornada pública a 4 de novembro, detalha que, entre os mortos, há 353 mulheres e 647 crianças. Ou seja, mais de um terço das vítimas mortais são crianças.

A província de Sindh, no sul, é a mais atingida, com um total de 799 mortos. Esta região é atravessada de norte a sul pelo rio Indo — o mais comprido e mais largo do Paquistão —, cujo extravase afetou quase 15 milhões de pessoas.

https://twitter.com/NASAEarth/status/1581020523764404224

33.046.329

É a quantidade de pessoas diretamente afetadas pelas cheias. Perto de metade (14.563.770) vivem na província de Sindh e quase um quarto (9.182.616) no vizinho Baloquistão.

Para se ter noção da área alagada atente-se na dimensão do Paquistão (796.095 km²) e de Portugal (92.212 km²). Se ficou alagado um terço do território paquistanês, isso corresponde sensivelmente ao triplo do mapa português.

Dos 193 Estados-membros das Nações Unidas, 119 têm uma área terrestre inferior à extensão das terras paquistanesas inundadas.

A concentração de água parada expõe populações inteiras a ameaças acrescidas à saúde. Num relatório de 28 de outubro, o Gabinete das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) alertou para o aumento de casos de malária “por causa da água parada, enquanto a incidência de diarreia é pelo menos cinco vezes maior do que o normal”.

Já se detetou um surto de dengue crescente, “com 74% dos casos maioritariamente reportados em áreas afetadas pelas cheias”. A destruição de casas e infraestruturas fez aumentar o velho hábito de defecar a céu aberto, com todas as consequências que isso traz ao nível de higiene, saúde pública e mesmo segurança.

2.288.481

É a quantidade de casas destruídas pelas inundações. As autoridades nacionais detetaram ainda 439 pontes danificadas, bem como 13.115 quilómetros de estrada intransitáveis.

As casas, em particular, colocaram milhões de paquistaneses de mão estendida na fila da assistência humanitária. Localidades inteiras passaram a viver em tendas, muitas delas doadas ao abrigo de mecanismos de ajuda internacional. Em Bholari, por exemplo, nasceu “a cidade de tendas Recep Tayyip Erdogan”, disponibilizada pela Turquia e batizada com o nome do Presidente do país.

9.400.000

São os acres de área de cultivo que ficaram encharcados (1 acre = 0,40 hectares).

Neste país que é o quinto produtor mundial de algodão, as cheias danificaram ou destruíram 40% da colheita anual dessa fibra, segundo uma estimativa da Iniciativa Better Cotton.

Esta organização, que promove boas práticas ao nível do cultivo de algodão em 21 países, não prevê “escassez de oferta este ano, embora os impactos provavelmente perdurem no próximo ano”.

No impacto económico desta calamidade, há ainda o registo de 1.164.270 cabeças de gado perdidas nas enxurradas de água e lama, privando milhões de pessoas desse meio de subsistência.

27.000

É a quantidade de escolas destruídas ou danificadas, que privam mais de dois milhões de crianças de irem à escola. Nas zonas mais atingidas pela intempérie, alguns estabelecimentos de ensino ficaram apenas com o telhado à tona, esperando-se que sejam precisos meses até que as águas recuem totalmente.

Para ajudar as crianças deslocadas a lidarem com os traumas provocados pela experiência, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) instalou 500 Centros de Aprendizagem Temporários, em colaboração com os departamentos educativos provinciais.

Estes centros “oferecem às crianças uma oportunidade de se encontrarem com outras crianças num ambiente seguro e protegido, onde podem brincar, aprender e ser crianças novamente”, descreve a UNICEF. Além de constituírem mais de um terço das vítimas mortais, estima-se que 16 milhões de crianças paquistanesas tenham a vida voltada do avesso por causa das inundações.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2022. Pode ser consultado aqui

As imagens da “carnificina climática” no Paquistão

Chuvas abundantes combinadas com o rápido degelo dos glaciares colocou quase um terço do Paquistão debaixo de água. Cerca de 33 milhões de pessoas ficaram com a vida virada do avesso e mais de 1400 morreram. Após visitar o país, o secretário-geral das Nações Unidas alertou para o contributo das alterações climáticas nos fenómenos extremos que devastam o Paquistão desde meados de junho. “Hoje no Paquistão, amanhã no seu país”, avisou António Guterres

Antes de ser nomeado secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres liderou o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Nessa qualidade, visitou locais tomados por grandes tragédias humanas — do Sudão do Sul à ilha de Lesbos, na Grécia.

Nada do que viu então é, porém, comparável ao que testemunhou há dias no Paquistão. “Já vi muitos desastres por todo o mundo, mas nunca vi uma carnificina climática a esta escala”, afirmou Guterres ao fim de dois dias no país.

Desde meados de junho que o Paquistão sofre chuvas de monção quase ininterruptas, seguidas de inundações repentinas e deslizamentos de terra. Estima-se que quase um terço do país tenha ficado submerso e que cerca de 33 milhões de pessoas andem ao deus-dará.

Uma razia na agricultura e na pecuária

Nos meses de julho e agosto, caiu no Paquistão 190% de chuva a mais do que a média dos últimos 30 anos. Na província de Sindh, no sul do país, choveu 466% a mais do que a média.

O dilúvio levou à frente casas, ruas e autoestradas, vias férreas, gado e campos de cultivo. Os prejuízos estão calculados em 30 mil milhões de euros.

“Hoje é no Paquistão, amanhã pode ser no seu país onde quer que viva. Esta é uma crise global”, apelou Guterres, “requer uma resposta global.”

Já morreram pelo menos 1400 pessoas, incluindo mais de 450 crianças. Estima-se que ter-se-ão perdido à volta de 700 mil cabeças de gado, o que coloca sobre o país a nuvem negra da insuficiência alimentar.

Lago de 100 km no meio do Paquistão

Às chuvas torrenciais junta-se o efeito do rápido degelo dos glaciares das montanhas a norte. Quer o governo do Paquistão, quer o secretário-geral da ONU insistiram no contributo das alterações climáticas e dos fenómenos extremos para esta tragédia.

Ironicamente, o Paquistão — com mais de 220 milhões de habitantes — contribuiu menos de 1% para as emissões globais de dióxido de carbono.

Numa conferência de imprensa ao lado de Guterres, em Islamabade, o ministro paquistanês dos Negócios Estrangeiros, Bilawal Bhutto-Zardari, foi a voz da impotência em relação ao desafio que o país tem pela frente.

Disse o filho da ex-primeira-ministra Benazir Bhutto: “Quando temos um lago de 100 quilómetros que se desenvolveu no meio do Paquistão, qual o tamanho do dreno que temos de construir para gerir a situação? Não há estrutura feita pelo homem que possa esvaziar esta água.”

FOTOGALERIA

Chuvas de monção mais intensas do que o habitual inundaram quase um terço do Paquistão, uma área correspondente ao Reino Unido FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Uma cama e roupa a secar, é tudo o que resta a este homem, na localidade de Nowshera FAYAZ AZIZ / REUTERS
Duas meninas socorrem-se de uma jangada improvisada para seguir pelas ruas por onde costumam correr RIZWAN TABASSUM / AFP / GETTY IMAGES
As chuvas intensas provocaram deslizamentos de terras que levaram tudo atrás HUSSAIN ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Água por todo o lado, no solo e nos potes e jerricãs à cabeça das mulheres AMER HUSSAIN / REUTERS
A ameaça da fome, após as cheias devastarem o sector agrícola, destruindo colheitas de arroz, milho e trigo PAULA BRONSTEIN / GETTY IMAGES
Duas pessoas recolhem bambus intactos, junto a uma casa totalmente destruída, em Dera Allah Yar AMER HUSSAIN / REUTERS
As canas de bambu são preciosas para ajudar a improvisar pontes, esta em Shikarpur ASIF HASSAN / AFP / GETTY IMAGES
Na cidade de Khaipur Nathan Shah, as ruas transformaram-se em rios GIDEON MENDEL / CORBIS / GETTY IMAGES
Militares da Marinha paquistanesa asseguram ações de resgate de populações, nas áreas mais afetadas AAMIR QURESHI / AFP / GETTY IMAGES
As inundações destruíram casas e pontes e encobriram estradas e pastagens para o gado ADEEL AHMED / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
As cheias já afetaram 33 milhões de pessoas, muitas das quais passaram a viver em tendas, montadas em campos improvisados AHMED ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Em Sohbatpur, nas escassas extensões de terra que ficaram à superfície, tendas acolhem quem tudo perdeu FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Com a casa inabitável, esta família salvou a louça que pode e espera por abrigo, em Khairpur AHMED ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Perante a ameaça de novas cheias, militares erguem uma barreira de proteção, junto a uma importante central elétrica, em Dadu SALMAN RAO / REUTERS
Ficaram sem casa, vivem na berma de uma estrada, em Sukkur, e não veem a hora da chuva parar de cair ASIF HASSAN / AFP / GETTY IMAGES
As consequências da intempérie já provocaram pelo menos 1400 mortos HUSSAIN ALI / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Tristeza nos rostos de quem, por estes dias, está proibido de correr e saltar em total liberdade FIDA HUSSAIN / AFP / GETTY IMAGES
Distribuição de ajuda alimentar doada pela Turquia, em Mirpur Khan FARHAN KHAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Uma manada de búfalos desbrava as águas, onde normalmente passa uma autoestrada, em Sehwan AKHTAR SOOMRO / REUTERS
Água pelo pescoço, numa zona da província de Sindh, no sul do Paquistão FARHAN KHAN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Dificuldades acrescidas nas ruas de Karachi, a maior cidade do Paquistão, com mais de 16 milhões de habitantes RIZWAN TABASSUM / AFP / GETTY IMAGES
Crianças deslocadas pelas inundações e a viver num campo improvisado aguardam pela distribuição de comida, em Sehwan HUSNAIN ALI / AFP / GETTY IMAGES
Uma corrida contra o tempo para salvar fardos de pasto, antes que a água suba mais um pouco ADEEL AHMED / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES
Um novo ano letivo começou e, em Dera Ghazi Khan, o caminho para a escola só é mesmo possível de barco SHAHID MIRZA / AFP / GETTY IMAGES
Um rasto de lama numa casa engolida pela água, em Nowshera FAYAZ AZIZ / REUTERS
Junto a um posto de combustíveis alagado, em Mehar, populares fazem muros com sacos para impedir o transbordo das águas AAMIR QURESHI / AFP / GETTY IMAGES
O caos citadino acentuou-se em Karachi AKRAM SHAHID / AFP / GETTY IMAGES
Uma família segue na direção de um porto seguro, transportando tudo aquilo que consegue, em Jamshoro. As cheias no Paquistão, este verão, afetaram milhões de pessoas YASIR RAJPUT / REUTERS
Água a perder de vista, na região de Dadu, província de Sindh (sul), uma das zonas mais gravemente atingidas SUSANNAH GEORGE / GETTY IMAGE

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de setembro de 2022. Pode ser consultado aqui

COP26, nono dia. Obama fez ‘mea culpa’, um ministro discursou de calções e uma ONG apurou que a maior delegação é a dos lobistas dos fósseis

A quatro dias do fim da COP26, o ex-Presidente norte-americano Barack Obama monopolizou as atenções, com uma intervenção centrada nos dramas que enfrentam os pequenos Estados insulares, vulneráveis à subida dos oceanos. Um deles, o Tuvalu, recorreu à criatividade para mostrar que está em vias… de desaparecer

Simon Kofe, ministro dos Negócios Estrangeiros do Tuvalu, gravou a sua mensagem para a COP26 com os pés dentro da água do Oceano Pacífico REUTERS

A situação tem a sua graça, ao ponto de o próprio protagonista rasgar o sorriso, como está patente na foto que ilustra este texto. Mas o problema é realmente grave e só essa circunstância levou Simon Kofe, ministro dos Negócios Estrangeiros do Tuvalu, a substituir as calças do seu fato formal por uns calções para gravar um discurso com as águas do oceano Pacífico pelos joelhos.

A pose e o cenário criaram ambiente para a transmissão de uma mensagem que acontecerá esta terça-feira na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP26), em Glasgow: o Tuvalu está na linha da frente dos países mais expostos às alterações climáticas e a sua sobrevivência está ameaçada pela subida dos mares.

“A declaração sobrepõe o cenário da COP26 com situações da vida real que enfrentamos no Tuvalu devido aos impactos das mudanças climáticas e à subida do nível do mar”, disse o ministro, num comentário ao vídeo. “E destaca a ação ousada do Tuvalu para resolver questões muito prementes relativas à mobilidade humana em contexto de alterações climáticas.”

‘Uma montanha’ de cinco metros

A iniciativa do governante do Tuvalu não foi tão extrema quanto um histórico conselho de ministros do Governo das Maldivas que se realizou debaixo de água. Mas o drama do Tuvalu — um Estado insular na região da Polinésia, onde o ponto mais alto não chega aos cinco metros — está à vista de todos.

O país foi, aliás, um dos arquipélagos visitados pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, em junho de 2019, num périplo que levou o português à capa da revista “Time”, com uma expressão grave e preocupada junto ao título “O nosso planeta está a afundar-se”.

Em Glasgow, esta segunda-feira — dia dedicado ao tema “Adaptação, perdas e danos” —, coube a Barack Obama sair em defesa dos pequenos Estados insulares. O ex-Presidente dos Estados Unidos recordou as suas origens havaianas e fez um mea culpa em nome do mundo desenvolvido: “Como era verdade há cinco anos, não fizemos o suficiente e as nossas ilhas estão mais ameaçadas do que nunca”, disse.

“Todos nós temos uma parte a desempenhar, todos temos trabalho a fazer, todos nós temos sacrifícios a fazer. Aqueles de nós que vivem em grandes nações ricas têm um fardo adicional a fazer, trabalhando, ajudando e auxiliando aqueles que são menos responsáveis ​​e menos capazes mas mais vulneráveis ​​a esta crise que se aproxima.”

Era Obama quem estava na Casa Branca quando foi assinado o Acordo de Paris (2015), que comprometeu 196 Estados e a União Europeia a manterem o aquecimento global abaixo dos 2°C – e se possível abaixo dos 1,5°C.

Na sequência do Acordo, os países desenvolvidos foram instados a aumentar o seu envolvimento no combate climático, nomeadamente ajudando a mobilizar 100 mil milhões de dólares por ano (86 mil milhões de euros) para serem gastos nos países em desenvolvimento em ações conducentes à redução de emissões de gases com efeito de estufa e em projetos de adaptação às mudanças climáticas.

Esse objetivo continua por cumprir, ouviu-se em Glasgow. “Entre outros, os EUA estão lamentavelmente longe de pagar a sua parte justa do financiamento climático”, acusou o primeiro-ministro das Ilhas Fiji, Frank Bainimarama, que discursou a seguir a Obama. “Agora nós, os mais vulneráveis, somos instruídos a engolir e esperar.”

O governante recordou que, desde o Acordo de Paris, as Fiji já foram atingidas por 13 ciclones e acrescentou: “As nações desenvolvidas estão a falhar-nos”.

“É como se eu atirasse lixo para o seu quintal e dissesse para você pagar para limpá-lo, mesmo que isso signifique que você não pode pagar a hipoteca, nem comprar comida. Você não pode fazer nada porque tem de gastar todo o seu dinheiro com o lixo que eu atirei para o seu quintal”

Mia Mottley
 primeira-ministra de Barbados, país afetado pelas alterações climáticas, discursando na COP26

Segundo o diário britânico “The Guardian”, as nações africanas estão particularmente impacientes e pressionam no sentido de, ainda esta semana, se iniciarem as discussões relativas a um megapacote anual de 700 mil milhões de dólares (605 mil milhões de euros) a partir de 2025 para ajudar as nações em desenvolvimento a adaptarem-se à crise climática, designadamente na ajuda à necessária rápida descarbonização para manter o aquecimento global em 1,5°C.

“Este trabalho precisa de começar agora”, apelou Tanguy Gahouma-Bekale, o presidente do Grupo Africano de Negociadores sobre Mudanças Climáticas. “As conversações sobre finanças demoram tempo, por isso precisamos de ter um roteiro agora com etapas claras sobre como atingir as metas após 2025 que garanta o fluxo de dinheiro todos os anos.”

Lixo na rua. Um mau prenúncio?

Com a cidade escocesa tomada pela cimeira, um assunto em particular parece ter transbordado as mesas dos debates e contaminou as ruas de Glasgow — o problema do lixo. Aproveitando a importância da cimeira e todo o mediatismo que gerou, os trabalhadores da limpeza da autarquia de Glasgow iniciaram uma greve por melhores condições.

Esta segunda-feira, contabilizando já oito dias de luta, os grevistas receberam a visita, e a solidariedade, do antigo líder do Partido Trabalhista do Reino Unido Jeremy Corbyn.

Segundo a publicação “The Glasgow Times”, os trabalhadores estão a analisar uma nova proposta do município, na sequência de “conversações construtivas” no final da semana passada, que poderá levar ao fim do protesto já esta terça-feira.

A confirmar-se, será a garantia de ruas mais verdes e asseadas na reta final da COP26, que termina na sexta-feira. Já dos corredores da cimeira não há garantias de que saiam compromissos fortes e consensuais a quase 200 países que refreiem a degradação do planeta e mantenham viva a meta máxima de 1,5ºC para o aquecimento da Terra.

Uma análise da Global Witness, tornada pública esta segunda-feira, escancarou as portas de um resultado desapontante. “Se o lóbi dos combustíveis fósseis fosse uma delegação de um país na COP, seria a maior com 503 delegados”, apurou a organização internacional que se dedica a estabelecer vínculos entre a exploração de recursos naturais e conflitos, pobreza, corrupção e abusos de direitos humanos.

“O lóbi dos combustíveis fósseis na COP é maior do que o total combinado das oito delegações dos países mais afetados pelas alterações climáticas nas últimas duas décadas: Porto Rico, Myanmar, Haiti, Filipinas, Moçambique, Bahamas, Bangladesh e Paquistão”, detalha a Global Witness. E “27 delegações oficiais de países registaram lobistas de combustíveis fósseis, incluindo Canadá, Rússia e Brasil”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui

“Nós, humanos, somos a causa. Mas estamos a recusar tornarmo-nos a solução.” A palavra aos países na linha da frente da crise ambiental

Os mesmos países que estão reunidos na 26.ª Cimeira do Clima (COP26), em Glasgow, discursaram há cerca de um mês na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. Então, chefes de Estado e membros de Governo de 191 países membros — só faltaram Afeganistão e Myanmar —, União Europeia, Palestina e Santa Sé enumeraram o que mais os preocupa no mundo. À cabeça, a falta de vacinas para acabar com a pandemia de covid-19 e as alterações climáticas. O Expresso releu as intervenções e identificou o que vai mal no combate às alterações climáticas

“Chego a esta Assembleia diretamente da ilha [de La Palma, na Canárias], impressionado pela forma como a natureza nos recorda, uma vez mais, a dimensão da nossa fragilidade. Mas também da nossa força. Graças à ciência, pudemos antecipar a resposta.” Na tribuna da Assembleia-Geral das Nações Unidas, a 22 de setembro, Pedro Sánchez, primeiro-ministro de ESPANHA, somava-se ao rol de governantes que, um pouco por todo o mundo, têm sido desafiados pela fúria da natureza.

Nas Canárias, a contínua erupção do Cumbre Vieja, que começou a 19 de setembro, tornou a ilha refém do vulcão e condenou os cerca de 85 mil habitantes a um futuro incerto. “Sem dúvida, a emergência climática é a grande crise da nossa era”, acrescentou o governante espanhol. “Já não há espaço para o negacionismo.

Nos últimos doze meses, fenómenos climáticos extremos ocorreram em latitudes tão distantes quanto Alemanha e Sudão do Sul (inundados após chuvas torrenciais), Austrália e Grécia (devastadas por grandes incêndios), Itália e Islândia (surpreendidas por explosões vulcânicas), Honduras e Japão (varridos por tufões destruidores), Haiti e Paquistão (sacudidos por sismos mortíferos).

Nenhum país ou região do mundo está a salvo neste “novo normal”, nem pode argumentar que não sabe que o problema existe. “A nossa tarefa comum é salvar o nosso planeta”, recordou a Presidente da ESLOVÁQUIA, Zuzana Čaputová. “Anteriormente, a Terra sussurrava, mas agora grita que não pode mais aguentar connosco, que a Humanidade é um fardo muito pesado para carregar.”

Já não há água nesta antiga marina perto de Syracuse, no estado norte-americano do Utah JUSTIN SULLIVAN / GETTY IMAGES

Há décadas que a comunidade científica alerta para a contínua degradação do planeta. Em agosto, o relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) fez um aviso inequívoco: o tempo está a esgotar-se e a manter-se a intensidade de exploração dos ecossistemas, a temperatura do planeta poderá aumentar 4,4ºC até ao fim do século.

“Trata-se de um alerta vermelho para a Humanidade”

António Guterres, secretário-geral da ONU, sobre o relatório do IPCC

“Nenhuma pessoa séria que examine objetivamente os dados científicos pode deixar de concluir que as alterações climáticas são uma ameaça existencial para a Humanidade, e sobretudo para os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS) e para países, como na África Ocidental e na região do Sahel, que estão a ser empurrados para desastres naturais aparentemente intermináveis, como consequência da desertificação e da degradação extrema da terra”, resumiu Ralph Gonsalves, primeiro-ministro do arquipélago de SÃO VICENTE E GRANADINAS, um país nas Caraíbas.

“A ciência, o mundo real e o Acordo de Paris apontaram caminhos alternativos para a Humanidade, mas a vontade política e os recursos necessários dos principais emissores para enfrentar o grave desafio das mudanças climáticas não foram muito além de palavras piedosas e remendos marginais.”

A região da Ásia Central é talvez das que melhor confirmam o alerta do IPCC. “Como resultado das alterações climáticas e do aquecimento sem precedentes, mais de 1000 dos 13 mil glaciares das montanhas do TAJIQUISTÃO já derreteram por completo”, testemunhou o Presidente Emomali Rahmon. Nas calotas tajiques têm origem mais de 60% dos recursos hídricos que abastecem a Ásia Central.

Há 25 anos, o gelo cobria este lago, perto de Olden, na Noruega. Desde então, o glaciar Briksdal derreteu de forma acelerada SEAN GALLUP / GETTY IMAGES

Desde o passado domingo e até 12 de novembro, está reunida pela 26.ª vez a Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (adotada na Cimeira da Terra de 1992). A COP26 é considerada a última esperança na obtenção de um compromisso sério que limite o aquecimento global e reverta danos infligidos ao planeta — que já põem em risco a sobrevivência de alguns países.

“As mudanças climáticas não estão de quarentena”, alertou o Presidente do CHILE, Sebastian Piñera. “O seu avanço continua implacável, mais rápido e com efeitos mais graves do que o esperado. E, o mais sério, algumas das suas consequências já são irreversíveis.”

Na primeira linha da crise climática, estão os pequenos Estados insulares. Longe de serem dos maiores contribuintes para a degradação do planeta, são dos que mais sofrem. Em junho de 2019, António Guterres deu visibilidade a este drama com uma visita que chegou à capa da revista “Time”.

“Para uma pequena ilha e um Estado costeiro de baixa altitude como o BELIZE, o mundo hoje é hostil e precário”, confessou John Briceño, primeiro-ministro deste pequeno país da América Central, virado para o mar das Caraíbas. No mesmo (frágil) barco, segue o Tuvalu, na Oceania, onde o ponto mais alto não chega aos cinco metros.

Sentença de morte para as Maldivas

No coração do Oceano Índico, o arquipélago das MALDIVAS é dos países mais ameaçados pela subida do nível do mar. “‘Ameaça existencial’, ‘deixar de existir’, ‘vulnerável ao clima’, ‘risco de desaparecimento’, ‘perda de identidade’, ‘refugiados ecológicos’ são expressões vulgarmente usadas para descrever as dificuldades que os maldivianos e outros Estados insulares enfrentarão se as tendências atuais continuarem inabaláveis. A diferença entre 1,5 graus e 2 graus é uma sentença de morte para as Maldivas”, afirmou o seu Presidente, Ibrahim Mohamed Solih.

AQUECIMENTO

1,5ºC

Segundo artigo 2 do Acordo de Paris sobre as Alterações Climáticas (2015), os Estados devem “fazer esforços para limitar o aumento da temperatura a 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais”

O drama das Maldivas é partilhado por muitos outros Estados insulares, como as ILHAS MARSHALL, um arquipélago do Oceano Pacífico. “Os direitos humanos aplicam-se no oceano — sem exceção — tanto quanto se aplicam em terra”, defendeu o Presidente David Kabua.

“Saudamos o recente progresso no sentido da realização da Cimeira dos Oceanos da ONU, planeada para o próximo ano e coorganizada pelo Quénia e por Portugal.” O encontro está agendado para Lisboa.

As dramáticas consequências de chuvas torrenciais que fizeram inundar o lago Poyang, na cidade chinesa de Shangrao AFP / GETTY IMAGES

O compromisso assumido no Acordo de Paris — assinado por 196 Estados e a União Europeia — lançou os países numa corrida pela redução das emissões de dióxido de carbono até à desejada meta da neutralidade carbónica.

“Está estabelecido que a atividade humana é a principal causa das mudanças climáticas. Durante um ano, consumimos mais do que aquilo que a natureza nos pode oferecer, em função dos nossos interesses cada vez mais divergentes”, alertou Faustin Archange Touadera, o Presidente da REPÚBLICA CENTRO-AFRICANA. “Temos a responsabilidade histórica de proteger as gerações futuras mudando de comportamentos.”

Ponto de não-retorno

Os registos revelam que a temperatura média do planeta tem aumentado ao longo de décadas, numa perigosa aproximação ao ponto de não-retorno, atingido o qual a Terra aquecerá para além do limite crítico. A mensagem parece estar interiorizada, mas a comunidade internacional tarda em passar à ação.

“As alterações climáticas não são mais uma questão de alertas por parte da comunidade científica. É uma situação de crise que já nos atinge. Encontrar respostas para as mudanças climáticas é um processo caro. E custará ainda mais se não levarmos a sério a necessidade de acelerar as atividades de mitigação das alterações climáticas”, alertou o Presidente da BÓSNIA-HERZEGOVINA, Željko Komšić.

RESILIÊNCIA

100.000.000.000

Na sequência do Acordo de Paris, os países desenvolvidos foram instados a aumentar o seu envolvimento no combate climático ajudando a mobilizar 100 mil milhões de dólares por ano (86 mil milhões de euros), até 2020, para gastar em ações climáticas nos países em desenvolvimento e tornar essas economias mais resilientes às mudanças climáticas

“Relativamente à crise climática, o ponto de partida são três palavras: Cumpram a vossa promessa”, desafiou o Presidente do MALAWI, Lazarus McCarthy Chakwera. “Já se passaram mais de dez anos desde que as nações desenvolvidas que mais poluíram o nosso planeta prometeram 100 mil milhões de dólares para [ações de] mitigação e adaptação ao clima. Estas são nações que nos dizem para seguirmos o seu exemplo, nações que nos dizem para considerá-las amigas, nações que nos chamam corruptos e indignos de confiança quando dizemos uma coisa e fazemos outra, nações que nos dizem que são os líderes nesta aldeia global.”

As críticas do Malawi fazem eco na América Latina. “É francamente penoso que em 10 anos não se tenha podido concretizar o compromisso de proporcionar 100 mil milhões de dólares aos países em desenvolvimento para implantar ações contra as alterações climáticas”, lamentou o Presidente da ARGENTINA, Alberto Fernández. “A justiça climática será uma quimera sem justiça financeira e tributária global que contribuam para a justiça social real.

A aflição de uma residente da ilha grega de Evia, devastada por grandes incêndios, em agosto passado KONSTANTINOS TSAKALIDIS / GETTY IMAGES

Para quem todos os tostões contam, ter de desembolsar milhões para fazer frente às adversidades provocadas pelas alterações climáticas, num contexto de pandemia, é um desafio impossível de suportar. “Contrair dívidas para pagar a recuperação dos efeitos das mudanças climáticas e construir resiliência não é a resposta para os problemas dos pequenos Estados que já estão sobrecarregados com dívida e que são os mais afetados”, recordou Gaston A. Browne, primeiro-ministro da ANTÍGUA E BARBUDA.

“Os pacotes de financiamento para os pequenos Estados insulares em desenvolvimento devem incluir uma quantia significativa de ajuda oficial ao desenvolvimento — noutras palavras, doações e não empréstimos.”

No uso da palavra, Ivan Duque, Presidente da COLÔMBIA, contribuiu com uma solução dentro do sistema: “Proponho à comunidade mundial que, durante um período de tempo e com o apoio do Fundo Monetário Internacional, se estabeleça uma regra a partir da qual todos os gastos e investimentos em ação climática estrutural fiquem de fora da linha tradicional que mede o défice fiscal.”

Já Luis Alberto Arce Catacora, Presidente da BOLÍVIA, propôs um regresso a práticas tradicionais. “Desde a cosmovisão dos povos indígenas que existe uma interdependência entre os seres humanos e a natureza”, recordou. “É fundamental recuperar os conhecimentos, práticas e experiências das nações e povos indígenas na construção de sociedades e ecossistemas resilientes às mudanças climáticas.”

Parece o cenário de um atentado, mas é na realidade a destruição provocada pela passagem de um furacão, no estado norte-americano da Louisiana JOE RAEDLE / GETTY IMAGES

O desejado financiamento visa apoiar a transição energética em países como o CAZAQUISTÃO, por exemplo, onde a produção de eletricidade depende em 70% do carvão. “O acesso a financiamento verde e a tecnologias verdes será crucial para esta transição”, defendeu o Presidente Kassym-Jomart Tokayev. “Esperamos um compromisso claro relativamente a essas questões na COP26, em Glasgow.”

Outro país a braços com uma revolução energética é a ESLOVÁQUIA. “Em termos per capita, a Eslováquia é o maior produtor de automóveis do mundo. Mobilidade limpa, baterias mais ecológicas desenvolvidas e produzidas localmente irão descarbonizar o transporte na Eslováquia e noutros lugares. Estamos prontos para partilhar as nossas soluções — e aprender com os melhores”, defendeu a Presidente Zuzana Čaputová. “Temos que desvincular o crescimento económico da degradação que temos causado ao planeta.

“Temos as ferramentas para uma revolução industrial verde, mas o tempo é desesperadamente curto”, garantiu o primeiro-ministro do REINO UNIDO, Boris Johnson, um dos anfitriões da COP26. “Não estamos a falar em deter o aumento das temperaturas — infelizmente, é tarde de mais para isso —, mas em conter esse crescimento nos 1,5 graus.”

Erupção do vulcão Etna, em fevereiro passado, na ilha italiana da Sicília FABRIZIO VILLA / GETTY IMAGES

Em todo o mundo, há apenas três países com carbono negativo, isto é, que absorvem mais gases com efeito estufa do que os que emitem. São eles o Suriname, o Panamá e o Butão. Ironicamente, são também dos que pagam a fatura mais cara das alterações climáticas.

A maior injustiça é que aqueles que mais sofrem são os menos responsáveis por esta crise existencial”, afirmou o Presidente das FILIPINAS, Rodrigo Duterte. “Emiti uma moratória sobre a construção de novas centrais a carvão e uma diretiva para explorar a opção de energia nuclear. Mas este contributo será inútil se os maiores poluidores — do passado e do presente — decidirem fazer business as usual. Apelamos a uma ação climática urgente, especialmente por parte daqueles que podem realmente fazer pender a balança.”

Responsabilidades comuns, mas diferenciadas

As razões de queixa em relação à falta de compromisso por parte do mundo desenvolvido são transversais a vários continentes. “Ironicamente, são os países que menos carbono geram, como os Estados insulares ou a minha própria região, a América Central, que se veem mais afetados pela emergência climática”, denunciou Carlos Alvarado Quesada, o Presidente da COSTA RICA, país a quem se atribui mais de 5% de toda a biodiversidade mundial.

Não muito longe, as HONDURAS orgulham-se de ser “uma das nações que mais contribuem para a conservação do ambiente”, com 50% do território coberto por floresta e 30% com o estatuto de reserva natural protegida. Na ONU, o Presidente Juan Orlando Hernández afirmou que o país é dos “mais afetados em todo o mundo por secas e chuvas destrutivas”.

Para a vizinha NICARÁGUA, situada na rota de tufões cada vez mais potentes e destruidores, impõe-se que da COP26 saiam resultados concretos baseados no princípio “Responsabilidades comuns mas diferenciadas”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Denis Moncada Colindres. “Se deixamos passar o tempo sem que os países desenvolvidos cumpram os seus compromissos, o dano à madre Terra provocado pelo aquecimento global será irreversível, sendo eles os responsáveis históricos da dita catástrofe.”

Poluição junto à costa de Ortakoy, na cidade turca de Istambul. Segundo a ONU, se os níveis de poluição marítima se mantiverem, em 2050 haverá mais plástico do que peixe nos oceanos SEBNEM COSKUN / ANADOLU AGENCY / GETTY IMAGES

Líder de um país pressionado pelo acolhimento de milhões de refugiados oriundos de vários conflitos do Médio Oriente, o Presidente da TURQUIA alertou para “novas e massivas vagas de migrantes” em fuga, por exemplo, à subida da água do mar ou ao avanço da desertificação sobre comunidades agrícolas e pastoris, com consequências devastadoras ao nível da segurança alimentar e da conflitualidade em torno da disputa pelos recursos.

“Pode ser possível prevenir a pandemia de coronavírus com as vacinas que desenvolvemos. No entanto, está fora de questão encontrar uma solução laboratorial dessas para as mudanças climáticas”, lamentou Recep Tayyip Erdoğan. “Por isso, também para as alterações climáticas, repetimos o nosso apelo de que ‘o Mundo é Maior do que Cinco’”, referindo-se aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido), que têm direito de veto.

“Quem quer que tenha causado mais danos à natureza, à nossa atmosfera, à nossa água, ao nosso solo e à terra, e quem tenha explorado os recursos naturais de forma selvagem, deve também dar o maior contributo para a luta contra as alterações climáticas.”

AGENDA

2022

Terá lugar, em Lisboa, a II Conferência dos Oceanos, coorganizada por Portugal e pelo Quénia, entre 27 de junho e 1 de julho

Na SOMÁLIA, por exemplo, um país fustigado por um conflito secessionista e permeável às atividades de grupos terroristas como a Al-Qaeda e o Al-Shabaab, há também um êxodo forçado de populações castigadas por períodos alternados de seca e inundações.

“Há um provérbio somali que diz: ‘A cidade vive das provisões do campo’. Mas, infelizmente hoje, parece que o campo foi deslocado para as grandes cidades. Isto não é sustentável”, alertou o Presidente Mohamed Abdullahi Mohamed Farmajo.

Famílias em fuga às chamas, durante os grandes incêndios que devastaram o estado da Vitória, na Austrália JUSTIN MCMANUS / GETTY IMAGES

Não muito distante da Somália, um grande país insular está em vias de se tornar o primeiro a passar por uma situação de fome provocada pelas alterações climáticas, avisou as Nações Unidas em agosto. “As vagas de seca no sul são recorrentes, as fontes de água estão a secar e todas as atividades de subsistência tornaram-se quase impossíveis”, testemunhou o Presidente de MADAGÁSCAR, Sem Andry Rajoelina. “Os meus compatriotas do Sul estão a arcar com o pesado fardo da crise climática para o qual não participam.”

À partida para Glasgow, foram muitos os apelos para que os países não poupem na ambição. Mas há também quem não tenha ilusões, em virtude das falsas promessas do passado. Como sintetizou Mohamed Irfaan Ali, Presidente da GUIANA: “Os maiores poluentes simplesmente não mantiveram a sua palavra e a desconfiança agora paira no ar.

Resumiu Josaia Voreqe Bainimarama, primeiro-ministro das ILHAS FIJI: “Nós, humanos, somos a causa. Mas estamos a recusar tornarmo-nos a solução.

(FOTO PRINCIPAL Os veículos de duas e quatro rodas foram substituídos por embarcações, nas ruas da cidade chinesa de Xinxiang, completamente alagada AFP / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de novembro de 2021. Pode ser consultado aqui