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Um ano depois dos grandes incêndios, a Austrália renasce das cinzas

Mais de 15 mil fogos florestais, num ano anormalmente quente e seco, estão na origem de um dos piores desastres naturais que a Austrália já viveu. Passado um ano, o país tem em mãos a tarefa da regeneração de milhões de hectares de terra queimada. “A natureza precisa de nós, agora mais do que nunca”, diz ao Expresso um responsável do World Wildlife Fund-Austrália. A partir de Portugal há pessoas a apoiar a recuperação de coalas apanhados pelo fogo

Poster enviado pela empresa baixa62

Se para qualquer pessoa em qualquer parte do mundo o ano de 2020 foi tragicamente inesquecível, para muitos australianos foi-o duplamente. Ainda o novo coronavírus não tinha surpreendido fora da China e partes do país eram engolidas por gigantescos incêndios florestais.

A época dos fogos é, por natureza, impactante num país que é o sexto maior do mundo em superfície e o sétimo em termos de área florestal. Mas entre junho de 2019 e fevereiro de 2020, a estação dos fogos assumiu proporções inéditas — mais prolongada, extensa e grave.

15.000
incêndios deflagraram por todo o país

33
pessoas morreram nos fogos

19
milhões de hectares de matas e florestas foram reduzidos a cinza

Só no estado de Nova Gales do Sul, arderam 6.897.000 hectares — o território de Portugal mede 8,7 milhões de hectares.

“Estes incêndios florestais foram dos piores desastres naturais que a Austrália já viveu”, diz ao Expresso Darren Grover, coordenador de Paisagens Terrestres e Marinhas Saudáveis da organização ambientalista World Wildlife Fund — Austrália.

“Estima-se que 3000 milhões de animais tenham sido mortos ou deslocados e até 7000 milhões de árvores tenham sido destruídas ou danificadas. Embora a natureza já tenha começado a regenerar-se, muitas florestas levarão décadas a recuperar. Algumas podem até nunca voltar ao seu estado anterior.”

Um ano depois, a Austrália está a braços com a tarefa da reconstrução de mais de 3100 casas queimadas e da recuperação de milhões de hectares de área ardida. “Os incêndios florestais causaram uma perda impressionante para a natureza, que requer uma ação em larga escala, e o reconhecimento de que não podemos continuar com o business as usual”, defende Darren Grover.

Em outubro, a WWF-Austrália lançou um programa para cinco anos, orçado em 300 milhões de dólares (247 milhões de euros). “É um plano de ação arrojado para ajudar a resolver os problemas criados pelos incêndios e para garantir que o ambiente, as pessoas e a vida selvagem prosperem. O ‘Regenerar a Austrália’ será o maior e o mais inovador programa de recuperação da vida selvagem e de regeneração da paisagem, na história da Austrália. O programa ajudará a repovoar, reabilitar e restaurar a vida selvagem e habitats, impulsionar a agricultura sustentável e preparar o futuro da Austrália contra desastres climáticos.”

Uma batalha em quatro frentes

O programa ‘Regenerar a Austrália’ assenta em quatro eixos:

Plantar 2000 milhões de árvores, para estancar as perdas ao nível da biodiversidade e, ao mesmo tempo, proteger e restaurar os habitats nativos.

Apostar nas energias renováveis, para que se reduza o consumo de carbono no país e para que a Austrália se torne uma potência exportadora de energias renováveis.

Recorrer à inovação, mobilizando mentes que possam contribuir com soluções brilhantes para a regeneração do país.

Proteger os coalas. A meta deste eixo é a duplicação do número de coalas na costa leste até 2050.

Uma das imagens de marca da Austrália, os coalas foram uma das espécies mais atingidas pelos fogos. “O tamanho da população de coalas na Austrália é desconhecido. Eles são animais bastante tímidos e esquivos, o que torna difícil determinar o seu número com precisão”, explica Darren Grover.

“Antes dos incêndios florestais, prevíamos que os coalas no leste da Austrália se iriam extinguir até 2050, devido ao corte excessivo de árvores para o desenvolvimento agrícola e urbano. Agora a situação piorou.”

Um estudo encomendado pela WWF-Austrália apurou que mais de 60 mil coalas foram afetados pelos incêndios, incluindo mais de 41 mil na Ilha dos Cangurus, a sul do território continental, mais de 11 mil no estado de Victoria, quase 8000 em Nova Gales do Sul e quase 900 em Queensland.

Carros e cães são ameaças

“Infelizmente, os sortudos que sobreviveram aos incêndios ainda enfrentam ameaças de destruição de habitat e das mudanças climáticas”, alerta o responsável da WWF-Austrália.

“A destruição dos habitats para o desenvolvimento agrícola e urbano significa, para os coalas, passarem mais tempo no solo em busca de novo abrigo. Isso torna-os mais vulneráveis a serem atropelados por carros e atacados por cães, aumentando os seus níveis de stresse, o que pode levar a doenças como a clamídia.”

A WWF-Austrália dedica aos coalas uma atenção particular. Através do programa “Adote um coala”, é possível ajudar à recuperação de espécimes feridos: uma mensalidade de 15 dólares (€12) ajuda ao fornecimento de curativos e remédios e de 30 dólares (€24) contribui para a plantação de um corredor de árvores para proteger habitats ameaçados.

4
pessoas apoiam, a partir de Portugal, o programa “Adote um Coala”

A diminuição da população de coalas é um drama que tem vindo a avolumar-se por circunstâncias paralelas aos incêndios sazonais. “As alterações climáticas reduziram os níveis de nutrientes nas folhas dos eucaliptos, a principal fonte de alimento dos coalas. Também há fortes evidências do impacto das secas e das temperaturas extremamente altas sobre os coalas”, diz Darren Grover.

“No rescaldo dos incêndios florestais, é mais importante do que nunca proteger as colónias de coalas sobreviventes e as florestas que não arderam, especialmente contra a extração de madeira e a sua destruição.”

Na Austrália esta enorme catástrofe natural levou a discussão para o campo das alterações climáticas. Os fogos começaram no ano mais quente e mais seco de que há registo. E as previsões apontam para um aumento em 25% do risco de fogos extremos em 2050 e em mais 20% em 2100.

A WWF-Austrália está no terreno, mas subitamente todo o trabalho de campo ficou fortemente condicionado pelos confinamentos a que a pandemia de covid-19 obriga. “A WWF-Austrália vai testar drones dispersores de sementes para plantar árvores e criar novos corredores de habitat para coalas”, refere Darren Grover.

“Estamos também a defender leis ambientais mais fortes, que sejam devidamente aplicadas e financiadas para proteger as nossas florestas e bosques. Responder aos impactos dos incêndios florestais durante uma pandemia global tem sido um desafio, mas o nosso trabalho não pára. A natureza precisa de nós, agora mais do que nunca.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Coronavírus e gafanhotos: a tempestade
perfeita no Corno de África

O coronavírus está a galgar o continente africano, onde alguns
países andam há meses a combater nuvens gigantescas de
gafanhotos. Dois especialistas identificam ao Expresso o principal
perigo que resulta desta coincidência

No Corno de África, há neste momento duas crises em rota de colisão: a pandemia do coronavírus e uma praga de gafanhotos do deserto de proporções bíblicas. Se a primeira é uma ameaça direta à vida humana, a última é-o indiretamente, já que os insetos devoram colheitas e pastagens à sua passagem, destruindo os meios de subsistência primários de muitos milhões de pessoas.

Para as populações sobretudo do Quénia, Etiópia e Somália, que se debatem há meses com gigantescas nuvens de gafanhotos — no início de janeiro, um enxame no nordeste do Quénia tinha 60 quilómetros de comprimento por 40 de largura —, a chegada do coronavírus coloca obstáculos à batalha em curso contra os insetos.

“As equipas de voo [envolvidas nas operações aéreas de pulverização das áreas afetadas] chegaram à Etiópia e ao Quénia antes do confinamento [decretado por causa do coronavírus]. Até agora, a covid-19 não afetou a capacidade de pulverização”, diz ao Expresso Keith Cressman, especialista sénior na Previsão de Gafanhotos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

“Mas os fornecedores de pulverizadores motorizados e de pesticidas estão a enfrentar grandes desafios, com opções limitadas de frete aéreo para realizar as entregas. Já ocorreram alguns atrasos no fornecimento de pesticidas devido à redução de mão de obra em alguns países de origem.”

Gafanhotos do deserto alimentam-se de vegetação, na aldeia queniana de Larisoro FOTO TONY KARUMBA / AFP / GETTY IMAGES

África é a última fronteira do coronavírus. Comparativamente aos restantes continentes, o número de casos positivos é ainda baixo — cerca de 4300, segundo o balanço de domingo da Organização Mundial de Saúde (OMS). Entre os três países mais assolados pela praga de gafanhotos, apenas o Quénia registou uma morte.

Mas, enquanto nos boletins da OMS (sobre o coronavírus) o Corno de África surge como das áreas mais poupadas à pandemia, nos da FAO (sobre a praga de gafanhotos) a situação no Quénia, Somália e Etiópia “permanece extremamente alarmante”, lê-se na última atualização. “A procriação generalizada está a progredir e estão a começar a formar-se novos enxames, o que representa uma ameaça sem precedentes à segurança alimentar e aos meios de subsistência no início da próxima safra”, alerta a FAO.

Para esta agência da ONU, três outros países assediados pelos gafanhotos merecem especial preocupação: o Sudão do Sul (ainda sem casos de covid-19), o Iémen (com uma guerra em curso) e o Irão, um dos mais atingidos pelo coronavírus. Em sete outros países, a ameaça dos gafanhotos “está sob controlo”: Arábia Saudita e Omã, na Península Arábica, Iraque, Índia e Paquistão e ainda Sudão e Eritreia, na margem africana do Mar Vermelho.

“O atual surto de gafanhotos do deserto teve origem principalmente ao longo do Mar Vermelho — uma área-chave para a procriação desta espécie, no inverno —, devido a chuvas favoráveis durante a época de reprodução de 2018-2019”, explica ao Expresso Rick Overson, investigador da Iniciativa Global para os Gafanhotos, um projeto da Universidade do Estado do Arizona (EUA).

“Mesmo antes do coronavírus aparecer, uma combinação de chuvas
favoráveis aos gafanhotos em regiões-chave e uma diminuição dos recursos de monitorização levou à tempestade perfeita. A guerra civil no Iémen, por exemplo, é citada como tendo desempenhado um papel no surto atual.”

No telhado de um edifício em Sana, a capital do Iémen, um homem tenta afugentar um enxame de gafanhotos FOTO MOHAMMED HUWAIS / AFP / GETTY IMAGES

As chuvas favoráveis de que fala o entomologista norte-americano resultaram de dois ciclones que se formaram no oceano Índico, em maio e outubro de 2018, que criaram condições favoráveis à reprodução dos gafanhotos: vegetação em regiões desérticas e também solos húmidos e arenosos. Entre junho de 2018 e março de 2019, nasceram três gerações de gafanhotos — o número destes insetos aumentou 8.000 vezes.

No terreno, os gafanhotos combatem-se de múltiplas formas. No Quénia, há pequenos aviões em ação, voando a baixa altitude para borrifar com químicos áreas fustigadas pelos insetos. Noutras zonas, essas operações são asseguradas por homens a pé, de mochila pulverizadora às costas — no Uganda foram mobilizados militares para o efeito. Na Índia, aldeãos percorrem os campos tentando afugentar os insetos batendo em panelas.

No início do surto de coronavírus, quando a China era ainda o epicentro do problema, um artigo publicado num jornal local correu mundo: Pequim ia enviar para o Paquistão um exército de 100 mil patos para impedir que os gafanhotos atravessassem a fronteira.

“Os patos têm sido usados como uma solução criativa na China, e até certo ponto bem sucedida, mas não seriam uma solução viável dada a imensa escala geográfica do surto de gafanhotos”, diz Rick Overson. Além disso, “seriam necessários muitos patos e teriam de ser levados para o lugar certo, o que não seria tarefa fácil”.

Na aldeia indiana de Miyal, habitantes tentam assustar os gafanhotos fazendo barulho com utensílios de cozinha FOTO SAM PANTHAKY / AFP / GETTY IMAGES

Atualmente, no sistema de alerta da FAO, a praga de gafanhotos está na fase da “ameaça”, “mas as coisas podem e provavelmente irão piorar”, diz Rick Overson. Prever até onde podem chegar os gafanhotos não é um exercício impossível. “Os surtos de gafanhotos do deserto passam por fases de recessão e pragas. Ambas podem ocorrer ao longo de escalas de anos e décadas”, explica o investigador.

“Durante anos de recessão [períodos calmos], é possível encontrar gafanhotos do deserto numa área de 16 milhões de km2 cobrindo 30 países”, uma faixa que se estende do deserto do Sara ao noroeste da Índia.

“Mas durante os anos da praga a área afetada pode expandir-se por 29 milhões de km2 afetando 60 países. Porém, em qualquer surto (como o atual), o diabo está nos detalhes que levam a que conjuntos de países acabem por ser afetados. O Corno de África, que é atualmente o destino dos principais enxames, viu surtos de magnitude ainda maior em meados da década de 1950, embora este surto vá continuar a piorar”, conclui Rick Overson.

“Qualquer aumento da desestabilização da infraestrutura [montada no terreno] provocada pelo coronavírus tornará o desafio assustador da luta contra os gafanhotos ainda mais assustador.”

(FOTO PRINCIPAL: Envolto numa nuvem de gafanhotos, este queniano tenta abrir caminho com um pau, numa herdade perto da cidade de Nanyuki FOTO Baz Ratner / Reuters)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de março de 2020. Pode ser consultado aqui

Uma nuvem de gafanhotos 24 vezes maior do que Lisboa? Não é ficção, aconteceu no Quénia

Gigantescos enxames de ‘gafanhotos do deserto’ invadiram o Corno de África e estão a devorar áreas de cultivo e pastagens, colocando em risco a subsistência de milhões de pessoas. Na origem desta praga estão… alterações climáticas

Diz a Bíblia que a oitava de dez pragas com que Deus castigou o Egito para pressionar o Faraó a libertar o povo hebraico da escravidão era composta por gafanhotos. “Eles cobrirão a superfície visível da terra, e não se poderá mais ver a terra”, lê-se no Livro do Êxodo. “Eles comerão o resto do que escapou e o que ficou para vós depois do granizo [a sétima praga]; comerão todas as árvores que crescem para vós no campo.”

Por estes dias, nuvens de gafanhotos de proporções bíblicas fustigam três grandes zonas na Ásia e em África. Destroem áreas de cultivo e pastagens à sua passagem e condenam comunidades que vivem da natureza — e para quem a segurança alimentar não é um direito adquirido — a um futuro muito incerto. Um foco devasta a fronteira indo-paquistanesa, outro está ativo nas margens do Mar Vermelho e um terceiro assola o Corno de África e países limítrofes.

“No início de janeiro, houve um enxame enorme no nordeste do Quénia que tinha 60 quilómetros de comprimento por 40 de largura!”, diz ao Expresso Keith Cressman, especialista na Previsão de Gafanhotos da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Cálculos feitos, a dimensão desta nuvem de saltões cobriria 24 vezes a cidade de Lisboa — o enxame media 2400 km2 e a capital portuguesa 100 km2.

O Quénia está a viver a pior infestação de gafanhotos dos últimos 70 anos NJERI MWANGI / REUTERS

Na origem desta calamidade estão… alterações climáticas, como o aumento da temperatura dos mares que alimenta furacões cada vez mais fortes. Este surto de ‘gafanhotos do deserto’ ganhou volume após dois ciclones — o Mekunu (em maio de 2018) e o Luban (em outubro seguinte) — varrerem o Oceano Índico.

Então, chuvas abundantes caíram sobre uma das regiões mais áridas do mundo — o chamado “Empty Quarter”, no sudeste da Península Arábica —, originando o florescimento de vegetação e criando condições ideais para “a procriação de três gerações de gafanhotos, entre junho de 2018 e março de 2019”, explica Keith Cressman. “O número de gafanhotos aumentou 8000 vezes.” Um enxame pode conter até 150 milhões de gafanhotos por quilómetro quadrado.

Com um ciclo de vida entre três e cinco meses, os ‘gafanhotos do deserto’ aguentam-se no ar durante longas distâncias. Presentes nas zonas desérticas entre a África Ocidental e a Índia, encontram na vegetação verde e nos solos húmidos e arenosos condições favoráveis à sua reprodução.

Invadidos por gafanhotos, Somália e Paquistão já declararam “emergência nacional” SVEN TORFINN / EPA

Cada fêmea põe dezenas de ovos (por vezes mais de 100) e pode procriar pelos menos três vezes. O período de incubação depende da temperatura do solo, oscilando entre 10 dias e um mês.

Cronologia da invasão

Os primeiros enxames saíram do “Empty Quarter” em janeiro de 2019 na direção do Iémen (um país em guerra) e da Arábia Saudita. Depois, “chuvas anormalmente fortes no Irão e no Iémen originaram novas germinações”, acrescenta Keith Cressman.

Entre junho e dezembro, grupos partiram do Irão e invadiram o Paquistão e a Índia, beneficiando de monções mais longas do que o habitual. E outros levantaram voo do Iémen rumo ao Corno de África (e daí para o Quénia). Aí usufruíram de condições provocadas pelo ciclone Pawan, ao largo da Somália, no início de dezembro de 2019.

Os ‘gafanhotos do deserto’ não atacam seres humanos ou animais DAI KUROKAWA / EPA

“Felizmente, a atual geração de enxames formou-se após a última colheita das safras, mas houve danos consideráveis nas pastagens, que são um meio de subsistência primário no Corno de África”, diz o perito da FAO. Esta organização calcula em 76 milhões de dólares (70 milhões de euros) a verba necessária para “melhorar a operação de controle” da praga “e proteger, apoiar e recuperar os meios de subsistência”, explica Cressman. “É absolutamente crítico que esses fundos cheguem o mais rapidamente possível para evitar um problema e um sofrimento maiores.”

No terreno, o combate à praga passa por borrifar as áreas fustigadas com produtos químicos, lançados de aeronaves e veículos equipados com pulverizadores e, em menor grau, disparados por homens de mochila pulverizadora às costas. No seu último boletim sobre esta crise, na segunda-feira, a FAO diz que “a reprodução [de gafanhotos] continua no Corno de África” e que “está prevista a formação de novos enxames para março e abril”.

(FOTO PRINCIPAL Três homens tentam, em vão, enxotar um enxame de gafanhotos de uma pastagem, na aldeia queniana de Lemasulani NJERI MWANGI / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

O pior pode estar para vir

Bombeiros recusam aperto de mão ao primeiro-ministro. Scott Morrison não acredita em alterações climáticas

Na Austrália, o pior pode estar para vir. As previsões climatéricas para este fim de semana apontam para um tempo ainda mais quente, seco e ventoso do que o dos últimos dias, que originou cenas verdadeiramente apocalípticas no país. Ontem, as autoridades ordenaram a evacuação de partes dos estados de Victoria e Nova Gales do Sul, na costa sudeste, como medida preventiva ao previsível descontrolo das chamas. “Se valorizam a segurança têm de partir”, alertou Michael Grainger, da polícia de Victoria. “Nestas circunstâncias, os bens pessoais têm muito, muito pouco valor. São circunstâncias terríveis, que não haja dúvidas.”

Com o país a viver níveis de seca recordes, os desgastados bombeiros dizem que apenas a chuva pode extinguir as chamas que se propagam desde setembro. Nalgumas zonas, os dias tornaram-se noites, com o céu coberto de fumo por vezes em tom avermelhado, como que preparando os locais para o apocalipse. Em Mallacoota (Victoria), mil turistas e residentes que estavam numa praia, encurralados pelo fogo, foram ontem resgatados pela marinha. “É uma versão em tempo de paz de algo que vimos durante a guerra”, afirmou Anthony Albanese, líder do Partido Trabalhista, na oposição.

Até ao momento, já morreram pelo menos 18 pessoas, 28 estão desaparecidos e arderam mais de cinco milhões de hectares de mata. Em brasa está também a credibilidade do primeiro-ministro, o conservador Scott Morrison, recebido esta semana com grande contestação nas zonas mais afetadas. “Não é bem vindo aqui, seu cretino!”, gritava um habitante de Cobargo (Nova Gales do Sul).

Sydney não abdicou da festa

“Sempre que há cheias ou incêndios nesta zona não recebemos nada”, acusava outra moradora, recordando que muitas casas tinham ardido. “Se estivéssemos em Sydney ou na costa norte, não nos faltariam donativos e ajuda de emergência.” Enxovalhado pelos locais, o primeiro-ministro enfrentou ainda o embaraço de ficar de mão estendida diante de bombeiros e habitantes que se recusaram a cumprimentá-lo.

Scott Morrison — que lidera o Governo desde agosto de 2018 — colocou-se na linha de fogo pela forma displicente e insensível com que tem reagido ao drama. Antes do Natal, tardou em regressar de umas férias no Hawai com a família. Confrontado com as críticas, colocou-se na posição de um canalizador que enfrenta um dilema… “É sexta-feira à tarde e você tem de decidir se aceita aquele serviço extra de canalização ou se vai buscar as crianças. Este é o tipo de malabarismos que temos de fazer enquanto pais”, justificou.

O mal-estar em relação às autoridades agravou-se após múltiplos apelos ao cancelamento do emblemático fogo de artifício da passagem de ano em Sydney — a capital de Nova Gales do Sul — terem sido ignorados. Nos dias que antecederam o réveillon, uma petição sugerindo que os milhões gastos no evento fossem doados a bombeiros e agricultores recolheu 270 mil assinaturas.

Cinzas têm impacto nos glaciares

Na linha dos Presidentes norte-americano Donald Trump e do brasileiro Jair Bolsonaro, Morrison é um líder que tem desvalorizado o impacto das alterações climáticas. Segundo o “Índice de Desempenho Relativo às Mudanças Climáticas 2020” — elaborado de forma independente por think tanks —, a Austrália está em 56º lugar numa lista de 61 países (Portugal é 25º e os EUA último). “O novo Governo é cada vez mais uma força regressiva nas negociações e tem sido criticado pela sua falta de ambição por parte de várias nações insulares do Pacífico”, lê-se no relatório.

A época dos incêndios é um clássico na Austrália, mas este ano o fenómeno tem sido mais extremo. O fumo e as cinzas provocados pelos fogos percorreram milhares de quilómetros e já chegaram à Nova Zelândia, colorindo os glaciares com um castanho caramelizado amea­çador. “Como a tragédia de um país tem efeitos colaterais”, desabafou no Twitter a ex-primeira-ministra neozelandesa Helen Clark. “Os incêndios florestais australianos criaram neblina na Nova Zelândia (…). O impacto das cinzas nos glaciares vai provavelmente acelerar o degelo.”

FOTO Incêndio florestal na região de Captain Creek, no estado de Queensland, nordeste da Austrália WIKIMDIA COMMONS

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de janeiro de 2020. Pode ser consultado aqui

50 países, 50 imagens de um planeta (gravemente) doente e cada vez mais zangado

A Terra é um sítio cada vez menos amigável para a espécie humana e 2019 foi fértil em provas. Num ano em que muito se falou de Ambiente e em que uma menina sueca despertou consciências e motivou milhões de pessoas a protestar contra a inação dos governos face à emergência climática, multiplicaram-se sintomas de que o planeta está gravemente doente. Nestes 50 países — podiam ser muitos mais —, a degradação ambiental está à vista de todos e fenómenos climáticos extremos tiveram consequências devastadoras. Fica o alerta para 2020

PAQUISTÃO. Por detrás de uma “tela” de poluição, um barbeiro atende um cliente, numa rua de Lahore ARIF ALI / AFP / GETTY IMAGES
HOLANDA. Em julho, o termómetro superou os 40°C em várias cidades holandesas. Para refrescar os clientes, esta esplanada de Eindhoven montou um apetrecho extra NICOLAS ECONOMOU / GETTY IMAGES
AUSTRÁLIA. Onde se vê lama seca havia antes um canal de drenagem de um lago. Este canguru não escapou a tempo e morreu preso no solo, sem pingo de água que facilitasse a travessia NICK MOIR / GETTY IMAGES
PANAMÁ. Contrastes na Cidade do Panamá: uma margem que mais parece uma lixeira em frente à Costa del Este, um grande projeto de desenvolvimento imobiliário LUIS ACOSTA / AFP / GETTY IMAGES
GRÉCIA. Junto à aldeia de Stratoni, um mergulhador infla um saco de elevação para retirar das águas uma rede de pesca, durante uma operação de limpeza subaquática REUTERS
MALÁSIA. Esta família aproveitou o dia 11 de setembro para ver as vistas desde a Torre de Kuala Lumpur, uma das mais altas do mundo. Mas a visibilidade é reduzida SAMSUL SAID / GETTY IMAGES
ESTADOS UNIDOS. No estado do Iowa, em março, cheias provocadas por chuvas fortes esventraram silos de milho e destruíram grandes quantidades de colheitas DANIEL ACKER / GETTY IMAGES
ESPANHA. A ansiedade de dois moradores da aldeia de Valleseco, a 17 de agosto, perante o avanço das chamas, nas Ilhas Canárias BORJA SUAREZ / REUTERS
FILIPINAS. Não se vê pinga de água, mas por debaixo desta camada de lixo há um canal que atravessa uma zona residencial, em Manila NOEL CELIS / AFP / GETTY IMAGES
COREIA DO SUL. Máscaras cirúrgicas para ajudar a respirar em Seul nos dias em que o ar está mais contaminado CHUNG SUNG-JUN / GETTY IMAGES
MOÇAMBIQUE. A vida continua na Ilha de Ibo, devastada pelo ciclone Idai que atingiu o país no início de março ZINYANGE AUNTONY / AFP / GETTY IMAGES
GANA. Estes homens preparam-se para desmantelar uma pilha de lixo eletrónico, em Agbogbloshie. Esta zona de Acra é destino de toneladas deste tipo de resíduos produzidas no Ocidente CHRISTIAN THOMPSON / GETTY IMAGES
FRANÇA. Em julho, os Jardins do Trocadero transformaram-se numa verdadeira piscina pública quando Paris foi atingida por uma vaga de calor BERTRAND GUAY / AFP / GETTY IMAGES
DINAMARCA. Um pequeno bloco de gelo flutua solitário a sudeste da Gronelândia. O degelo dos glaciares é um dos sintomas mais visíveis do aquecimento global LUCAS JACKSON / REUTERS
ALBÂNIA. A 26 de novembro, um sismo de magnitude 6.4 abanou o país durante 30 segundos, matando 52 pessoas. A aldeia de Thumane foi das mais danificadas FLORION GOGA / REUTERS
TANZÂNIA. Com o seu ateliê inundado pelo rio Msimbazi, que transbordou, esta mulher não interrompeu o trabalho, na área de Mwenge, em Dar es Salaam ERICKY BONIPHACE / AFP / GETTY IMAGES
BRASIL. Estas toras foram cortadas ilegalmente perto de Humaita, na Amazónia. Era agosto e uma grande mancha da maior floresta tropical do mundo estava em chamas UESLEI MARCELINO / REUTERS
CHINA. O consumo excessivo é uma tendência comportamental que contribui para desequilibrar o planeta. A foto mostra um mercado grossista de carne de porco, nos arredores de Shanghai QILAI SHEN / GETTY IMAGES
INDONÉSIA. Um soldado patrulha uma praia suja por um derramamento de óleo, em Karawang, na províncoa de Java Ocidental WILLY KURNIAWAN / REUTERS
ALEMANHA. Estes alemães não precisaram de ir até ao sul da Europa para usufruírem de boas temperaturas. Bastou estender toalha junto ao lago Bad Saulgau, em julho, durante a vaga de calor THOMAS WARNACK / AFP / GETTY IMAGES
TUVALU. A subida do nível dos oceanos, provocada pelo degelo dos glaciares, ameaça muitos Estados insulares, como Tuvalu MARIO TAMA / GETTY IMAGES
CHILE. No dia de Natal, um grande incêndio florestal irrompeu pela cidade de Valparaiso. A estrada foi preciosa para travar o avanço das chamas PABLO ROJAS MARIADAGA / AFP / GETTY IMAGES
PORTUGAL. Uma casa quase imersa pelo rio Mondego, em Montemor-o-Velho. As depressões Elsa e Fabien cobriram de água vastas áreas do norte e centro de Portugal MIGUEL PEREIRA / REUTERS
IRÃO. Grandes cheias, em março e abril, provocadas por chuvas abundantes, isolaram aldeias, provocaram dezenas de mortos e milhares de desalojados, como esta mulher REUTERS
ITÁLIA. Inundações em Veneza são fenómenos recorrentes que cunham a identidade da cidade. Mas em novembro, a “acqua alta” foi mais intensa do que o habitual MANUEL SILVESTRI / REUTERS
RÚSSIA. Na linha da frente do combate às alterações climáticas está a redução das emissões de gases tóxicos para a atmosfera. Nesse capítulo, há trabalho a fazer nesta fábrica de Moscovo WALDO SWIEGERS / GETTY IMAGES
ÍNDIA. Em cidades muito poluídas como Nova Deli, só os forasteiros estranham a existência de “bares de oxigénio”, onde se vende oxigénio para fins recreativos ANUSHREE FADNAVIS / REUTERS
NOVA ZELÂNDIA. Dois socorristas parecem formigas na imensidão da lava cuspida pelo vulcão Whakaari. A erupção, a 9 de dezembro, surpreendeu fatalmente turistas que visitavam a ilha GETTY IMAGES
SUÍÇA. A 1 de outubro, dois caminheiros seguiam por um trilho próximo do glaciar Aletsch, nos Alpes, onde havia mais vegetação do que neve FABRICE COFFRINI / AFP / GETTY IMAGES
QUÉNIA. O rio Njoro, que neste troço mais se assemelha a um “rio de lixo”, desagua no lago Nakuru, inserido num parque natural que é património da UNESCO JAMES WAKIBIA / GETTY IMAGES
ÁFRICA DO SUL. Peixes mortos, recolhidos de uma barragem que secou, em Graaff-Reinet MIKE HUTCHINGS / REUTERS
COLÔMBIA. Contentores de apoio à construção de uma barragem, na cidade de Ituango. Interferir nos cursos de água é uma opção muitas vezes desastrosa em termos ambientais NICOLO FILIPPO ROSSO / GETTY IMAGES
TURQUIA. A construção de barragens implica, por vezes, a deslocalização de populações inteiras. Foi o caso de Hasankeyf, que obrigou também à transferência de uma mesquita do século XV SERTAC KAYAR / REUTERS
BANGLADESH. Há mais poluição do que água neste troço do rio Buriganga, na capital do país, Daca MOHAMMAD PONIR HOSSAIN / REUTERS
ISRAEL. A degradação dos ecossistemas desorienta os animais. A 5 de dezembro, este grupo de javalis selvagens parecia meio perdido, numa zona residencial da cidade de Haifa MENAHEM KAHANA / AFP / GETTY IMAGES
KOSOVO. Em Pristina, a estátua de Madre Teresa de Calcutá surge de máscara posta. Um gesto simbólico para alertar para o ar irrespirável da cidade ARMEND NIMANI / AFP / GETTY IMAGES
MÈXICO. Com mais de 20 milhões de habitantes na área metropolitana, a Cidade do México é problemática em termos ambientais. A 16 de maio, por causa da poluição do ar, as escolas fecharam HENRY ROMERO / REUTERS
BOTSUANA. Hipopótamo morto no solo inóspito perto do Delta do Okavango, um dos últimos santuários de vida selvagem em África. A falta de chuva levou o governo a declarar “ano de seca” MONIRUL BHUIYAN / AFP / GETTY IMAGES
TAILÂNDIA. Em Banguecoque, este casal compra o almoço num negócio de rua, mas tarda em retirar do rosto a máscara que lhes protege as vias respiratórias ROMEO GACAD / AFP / GETTY IMAGES
HONDURAS. Ainda há água neste reservatório de Concepcion, nos arredores de Tegucigalpa, mas a encosta gretada revela que o seu nível tem-se mantido baixo JORGE CABRERA / REUTERS
REINO UNIDO. Em Londres, os dias chuvosos e cinzentos deram lugar a jornadas ensolaradas e calorentas. Muitos locais refrescaram-se nos oportunos jatos de água de Granary Square NICOLAS ECONOMOU / GETTY IMAGES
ARGENTINA. Para os amantes de trekking nos glaciares, o Perito Moreno, no sul da Patagónia, é um destino obrigatório… e urgente já que o gelo está a derreter a grande velocidade DAVID SILVERMAN / GETTY IMAGES
VENEZUELA. Habitantes de Caracas fazem fila para recolher água que brota de um cano partido. A vida sem estabilidade política é difícil, mas sem água é impossivel JUAN BARRETO / AFP / GETTY IMAGES
BOLÍVIA. Chuvas fortes seguidas de deslizamentos de terras originaram o colapso de casas ao estilo de um castelo de cartas. Foi em abril, na região de La Paz DAVID MERCADO / REUTERS
URUGUAI. Separação de lixo eletrónico num armazém de Montevideu. O seu destino final origina, muitas vezes, problemas ambientais ANDRES STAPFF / REUTERS
SUDÃO DO SUL. Rodeada por água, acumulada após chuvas intensas, esta sudanesa vai à procura de água potável, na cidade de Pibor ANDREEA CAMPEANU / REUTERS
JAPÃO. Um rasto de petróleo derramado de uma fábrica contamina parte de Omachi, após chuvas torrenciais terem inundado a cidade GETTY IMAGES
NIGÉRIA. Um bombeiro carrega uma mangueira junto a um oleoduto em chamas, vandalizado por ladrões de petróleo. É um desastre ambiental frequente no país PIUS UTOMI EKPEL / AFP / GETTY IMAGES
HAITI. Jovens passeiam-se pelo trilho de um esgoto perto das casas onde vivem, em Port-au-Prince CHANDAN KHANNA / AFP / GETTY IMAGES
BAAMAS. Originária do Haiti, Aliana Alexis viveu a tragédia nas Baamas. Em setembro, o furacão Dorian varreu o arquipélago e reduziu a sua casa a um monte de destroços AL DIAZ / GETTY IMAGES

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui