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Marco Rubio, o latino que vai liderar a diplomacia dos Estados Unidos e tratar do “quintal da América”

Esta quarta-feira, Marco Rubio tem presença marcada no Comité de Relações Externas do Senado dos Estados Unidos para ser confirmado secretário de Estado. Pela primeira vez, a pasta será entregue a um latino, filho de imigrantes cubanos e casado com uma filha de colombianos. “A América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração”, defende um estudioso da política norte-americana para a região

Pela primeira vez na história dos Estados Unidos, o secretário de Estado será um latino. Marco Rubio, o escolhido por Donald Trump para chefiar a diplomacia do país, nasceu em Miami, no seio de um casal de imigrantes cubanos.

Mario e Oriales abandonaram a ilha em 1956, três anos antes da revolução que colocou Fidel Castro no poder em Havana. El Comandante ficou no cargo 47 anos, seguidos de mais 12 com o seu irmão Raul ao leme do país.

Os Rubio continuaram pelos EUA e obtiveram a cidadania norte-americana em 1975. Mario trabalhou sobretudo como barman e Oriales como empregada de hotel. Tiveram quatro filhos — Marco foi o terceiro a nascer, a 28 de maio de 1971.

O ódio ao comunismo

Marco cresceu no seio de uma comunidade de centenas de milhares de migrantes, exilados e dissidentes políticos, obcecada com a ideia de usar todo o poder dos EUA para punir o regime castrista, nomeadamente através do voto. Nesse contexto, também ele desenvolveu um ódio ao comunismo.

Formou-se em Direito, casou com Jeanette Dousdebes, filha de imigrantes colombianos, e teve quatro filhos. Coroou o sonho americano ao entrar para o Congresso como senador, pela primeira vez em 2010, pelo estado da Florida. O seu livro de memórias tem como título “An American Son” (Um Filho Americano).

Desde a primeira eleição para o Congresso, Rubio tem merecido a confiança ininterrupta dos eleitores, em especial da comunidade cubana de Miami. Esta quarta-feira, comparecerá diante do Comité de Relações Externas do Senado para responder a perguntas dos seus pares visando a sua confirmação como secretário de Estado.

“Sob a liderança do Presidente Trump, conseguiremos a paz através da força e colocaremos sempre os interesses dos americanos e da América acima de tudo”, afirmou Rubio, a 13 de novembro, numa reação à notícia da sua nomeação em tudo consentânea com a forma egocêntrica como Trump posiciona a América no mundo.

As principais prioridades de Trump ao nível da política externa não serão muito diferentes das de Joe Biden — as guerras na Ucrânia e Gaza, e a ascensão da China — porque são questões centrais para os interesses dos EUA”, diz ao Expresso William LeoGrande, professor na Universidade Americana, em Washington DC.

“E se Rubio quiser ser candidato a Presidente em 2028, não pode ser visto como o secretário de Estado para a América Latina”, acrescentou este especialista em política externa norte-americana para a região. “Porém, a América Latina será certamente uma prioridade maior do que foi para Biden devido à obsessão de Trump com a imigração.”

“Vamos ter a maior deportação. Não temos escolha”

Donald Trump, a 18 de junho de 2024, num comício em Racine, no estado de Wisconsin

Estima-se que, atualmente, vivam nos EUA mais de 11 milhões de migrantes em situação irregular — 3% da população total. A maioria é oriunda do México e do chamado Triângulo Norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras). Uma larga fatia vive no país há pelo menos uma década.

Para concretizar o plano de expulsão de milhões de latino-americanos, a futura Administração Trump precisa da colaboração dos países de destino, numa região politicamente fragmentada onde muitos líderes encaram com reservas o lema America First (a América primeiro) do 48.º Presidente.

Os migrantes mexicanos “enviam 65 mil milhões de dólares [63,2 mil milhões de euros] para as suas famílias no México, mas contribuem mais para os Estados Unidos porque esse valor é apenas 20% do que ali deixam, em consumo, poupança e impostos”, alertou Claudia Sheinbaum, a Presidente do México, num discurso comemorativo dos seus 100 dias no poder, assinalados a 9 de janeiro.

“Estaremos sempre de cabeça erguida. O México é um país livre, independente e soberano. Coordenámos, colaborámos, mas nunca nos subordinámos”, acrescentou a governante, que é judia e pertence ao Movimento Regeneração Nacional, de esquerda.

Se o primeiro governo de Trump, no que ao México diz respeito, ficou marcado pela questão do muro na fronteira entre os dois países, agora, além da deportação massiva de imigrantes, Washington ameaça castigar com a aplicação de tarifas alfandegárias e ações em nome do combate aos cartéis do crime.

“Enquanto os EUA continuam a enfrentar uma crise sem precedentes de fentanil e de migração ilegal, espero que a Presidente eleita [Claudia] Sheinbaum enfrente estes desafios à segurança e democracia”, reagiu Marco Rubio à vitória eleitoral da mexicana, em junho de 2024.

Há uma semana, Trump agitou as águas entre os dois países ao dizer: “Vamos mudar o nome do Golfo do México para Golfo da América. É um anel lindo e cobre muito território. Golfo da América, que lindo nome, é apropriado”.

A chefe de Estado mexicana respondeu no mesmo tom e, numa das suas conferências de imprensa diárias, diante de um mapa-mundo, sugeriu que o continente americano passasse a designar-se “América Mexicana”, citando um termo que consta de um documento de 1814, anterior à Constituição mexicana.

Entre os líderes latino-americanos com quem será mais fácil Marco Rubio estabelecer comunicação está o Presidente da Argentina, Javier Milei, que o norte-americano descreveu como “uma lufada de ar fresco” quando o visitou em Buenos Aires, em fevereiro passado.

Autodenominado “anarcocapitalista”, Milei é dono de um estilo muitas vezes comparado a Donald Trump: são antigas figuras da televisão, chegaram à política com estatuto de outsider, têm uma retórica populista e um estilo não convencional e provocador.

Mal entrou na Casa Rosada, uma das primeiras medidas de Milei foi retirar o seu país da rota de adesão aos BRICS, onde está o vizinho Brasil. A Argentina tinha entrada prevista no grupo a 1 de janeiro de 2024.

Outro líder latino-americano que já mereceu elogios de Rubio é Nayib Bukele, o Presidente de El Salvador que professa o “Bukelismo”, uma combinação de populismo, pragmatismo económico, autoritarismo e centralização de poder.

Na sua primeira visita oficial ao país, em março de 2023, Rubio destacou o combate de Bukele contra a violência dos gangues e do crime organizado, um problema na origem do êxodo de milhares de salvadorenhos para os EUA.

“Sob a presidência de Nayib Bukele, um dos países mais perigosos do mundo tornou-se um dos mais seguros e promissores da região, tudo numa questão de meses”, disse Rubio. Bukele, de 43 anos, está no poder desde 1 de junho de 2019.

Em contraponto aos países apreciados por Rubio está a “troika da tirania”, como os designou o ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton, durante o primeiro governo Trump, referindo-se a Cuba, Venezuela e Nicarágua.

Na primeira Administração Trump, Washington inverteu a aproximação a Cuba que vinha sendo desbravada por iniciativa do Presidente antecessor, Barack Obama, que fez uma visita histórica à ilha dos antepassados de Marco Rubio. Este nunca se deixou levar pelas emoções, sempre pugnou pela aplicação de sanções à ilha e considerou qualquer tentativa de aproximação diplomática a Cuba um ato de ingenuidade.

“A decisão [de Obama] recompensar o regime de Castro e iniciar o caminho na direção da normalização das relações com Cuba é inexplicável”, acusou. “Cuba, tal como Síria, Irão e Sudão, continua a ser um Estado que patrocina o terrorismo.”

Igualmente, na primeira passagem de Trump pela Casa Branca, Washington reconheceu (sem sucesso) Juan Guaidó, autoproclamado Presidente da Venezuela, como líder legítimo do país. Na terminologia de Rubio, a Venezuela é a “narco-ditadura de Maduro” à qual a única resposta possível é a “pressão máxima” das sanções.

Assim que foi anunciada a escolha de Rubio para secretário de Estado, a opositora venezuelana María Corina Machado saudou a nomeação: “São excelentes notícias para toda a América Latina”, escreveu na rede social X. “O senador tem uma profunda compreensão das ameaças que regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela representam para todo o hemisfério.”

A 23 de abril de 2024, num artigo na revista conservadora “The National Interest”, Marco Rubio defendeu: “A nossa região atravessa atualmente pelo menos seis grandes crises. Vão de uma migração em massa sem precedentes na fronteira sul dos EUA, ao colapso completo da ordem social no Haiti e à aceleração da opressão estatal em Cuba, na Nicarágua e na Venezuela”.

Um terceiro grupo de países protagonizou, nos últimos anos, uma “onda vermelha” no continente. Foi o caso do Chile, onde Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, é Presidente desde 2022. Rubio, fortemente pró-Israel, defendeu que “sob a presidência de Boric, o Chile tem sido uma das principais vozes anti-Israel na América Latina, mesmo antes do 7 de Outubro” e também um porto seguro para financiadores do grupo xiita libanês Hezbollah.

Outro líder incómodo em Washington é Gustavo Petro, um antigo guerrilheiro do grupo M-19, eleito Presidente da Colômbia em 2022. Rubio considerou tratar-se de uma escolha “muito perigosa” para um país que os EUA veem como um aliado no combate ao narcotráfico.

A 1 de março próximo, o Uruguai consumará outra viragem à esquerda na América Latina, com a tomada de posse de Yamandú Orsi, que venceu as presidenciais de 24 de novembro. Esse escrutínio registou uma taxa de afluência às urnas de 89,36%.

Ao longo de 2025, quatro países realizarão eleições presidenciais: Equador (9 de fevereiro), Bolívia (17 de agosto), Chile (16 de novembro) e Honduras (30 de novembro).

No passado, as políticas intervencionistas dos Estados Unidos na região levaram a que os países latino-americanos fossem genericamente designados — de forma depreciativa — “o quintal da América”.

À primeira passagem pela Casa Branca, entre 2017 e 2021 — quando os EUA tiveram como secretários de Estado Rex Tillerson, um ex-CEO da petrolífera ExxonMobil, e Mike Pompeo, ex-diretor da CIA —, Trump não realizou uma única visita oficial à América Latina, nem mesmo quando o Peru acolheu a oitava Cimeira das Américas, em 2018.

Agora, antes mesmo de assumir formalmente a presidência, já revelou interesse pela América Latina ainda que não de forma cordial. Além de prometer uma mega deportação de migrantes e de propor a mudança de nome do Golfo do México, partilhou a cobiça pelo Canal do Panamá, a via marítima artificial de 82 quilómetros que liga o Atlântico e o Pacífico.

“O Canal do Panamá é vital para o nosso país. Está a ser operado pela China. China! E nós demos o Canal do Panamá ao Panamá, não o demos à China. E eles abusaram disso. Abusaram deste presente”

Donald Trump, numa conferência de imprensa em Mar-a-Lago, a 7 de janeiro

“Trump parece ter uma visão do Hemisfério Ocidental de final do século XIX”, conclui William LeoGrande, “em que a diplomacia do canhão e a coerção económica são utilizadas para assegurar o domínio dos Estados Unidos, a fim de garantir rotas marítimas (Panamá) e minerais estratégicos (Gronelândia)”.

Para o Panamá, o Canal é o seu principal ativo económico. José Raúl Mulino, na presidência desde 1 de julho de 2024, não comentou as palavras de Trump.“Não lhe responderei até que seja Presidente”, disse.

Para concretizar o que defende, Donald Trump terá de se dedicar à América Latina como não o fez da primeira vez. Terá a seu lado Marco Rubio, atento àquilo que de positivo existe na região. Defendeu ele em abril passado: “Mesmo reconhecendo os horrores que ocorrem não muito longe das nossas costas — e fazendo o nosso melhor para os combater — devemos inspirar-nos na nova geração de líderes potencialmente pró-América no Hemisfério Ocidental”.

(IMAGEM Marco Rubio, secretário de Estado dos EUA EXECUTIVEGOV)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de janeiro de 2025. Pode ser consultado aqui

Norte pressiona, mas Sul não isola a Rússia

INFOGRAFIA DE JAIME FIGUEIREDO

Sem sinais de trégua, a guerra da Ucrânia e a nova ordem mundial que está a originar têm levado a realinhamentos geopolíticos, qual movimento de placas tectónicas em contexto sísmico. A 10 de março, o anúncio de um acordo de normalização diplomática entre o Irão e a Arábia Saudita, mediado pela China, revelou quão dispensáveis são hoje os Estados Unidos no Médio Oriente. Na semana passada, a cimeira de Moscovo entre Xi Jinping e Vladimir Putin confirmou que, à parte os rótulos aplicados a essa relação, a China é cada vez menos neutra no conflito e a Rússia está longe do isolamento.

Um fórum onde é visível a resistência de grande parte do mundo à pressão ocidental é o grupo das 20 economias mais desenvolvidas do mundo. Há um mês, uma reunião do G20 em Bangalore (Índia) terminou sem acordo quanto a condenar a Rússia: os países ocidentais defendiam uma posição clara e grande parte dos restantes defendeu que o G20 não é um fórum político, mas de discussão de problemas económicos.

Sem serem antiocidentais, muitos países de África, Ásia e América Latina — o chamado Sul Global — têm posição híbrida relativamente ao conflito: criticam a invasão, mas mantêm o diálogo com Moscovo, nem que seja por razões práticas, como descontos na energia que importam.

A 23 de fevereiro, 52 Estados-membros da ONU não alinharam com a maioria de 141 que aprovou uma resolução na Assembleia-Geral a exigir a “retirada” russa da Ucrânia e o “fim das hostilidades”. A Namíbia absteve-se. “O nosso foco está na resolução do problema, não em atribuir culpas”, justificaria a primeira-ministra Saara Kuugongelwa-Amadhila, para quem os gastos com armamento “poderiam ser mais bem usados a promover o desenvolvimento na Ucrânia, em África, na Ásia, na própria Europa, onde muitas pessoas passam por dificuldades”.

Está marcada para 26 a 29 de julho, em São Petersburgo, a segunda cimeira Rússia-África. A primeira realizou-se em 2019, em Sochi, com a participação dos 54 Estados africanos, 43 ao nível de chefes de Estado. Então, em declarações ao jornal “The Moscow Times”, Albert Kofi Owusu, diretor da agência noticiosa do Gana, partilhou a sua experiência de colaboração com a Rússia e o Ocidente. “Com a ajuda ocidental, há todo um conjunto de condições. Dizem: se querem este dinheiro, têm de fazer determinada coisa em relação aos LGBTQ, por exemplo, mesmo que vá contra os valores do país. China e Rússia dizem: ‘Aqui está o dinheiro’.”

AS RAZÕES DE ÁFRICA

1 Memória e sentimento de gratidão relativamente ao apoio dado pela União Soviética, ao longo de décadas, aos movimentos de libertação nacional. São exemplos o ANC (África do Sul) e o MPLA (Angola).

2 Dependência africana relativamente à Rússia no que respeita à importação de cereais e, cada vez mais, a recursos energéticos.​

3 A Rússia é o maior fornecedor de armas a África. Há também presença crescente de organizações privadas de segurança, como o Grupo Wagner (de origem russa), em apoio de “guardas pretorianas” presidenciais.

4 Ausência de África nos lugares permanentes do Conselho de Segurança da ONU. A Rússia defende a reforma do órgão para acomodar países de África, Ásia e América Latina.

AMÉRICA LATINA NÃO QUER SER ‘O QUINTAL’ DOS ESTADOS UNIDOS

IDEOLOGIA
Bolivarianos Cuba, Nicarágua e Venezuela estão ao lado do Kremlin desde a primeira hora. Identificam-se com o modelo autoritário de Putin e reproduzem a narrativa de que a Rússia foi provocada pelo Ocidente/NATO.

ECONOMIA
Negociantes Brasil, México e Argentina, as maiores economias regionais, não percecionam a Rússia como ameaça. No Brasil, o comércio bilateral é significativo — a Rússia é o maior fornecedor de fertilizantes. No Palácio do Planalto, a política relativa à Rússia não mudou após Lula suceder a Bolsonaro.

GEOPOLÍTICA
Aliados Muitos países têm relações diplomáticas históricas com a Rússia, ao ponto de a verem como parceiro geopolítico crucial. Exemplo: na pandemia, a vacina russa Sputnik V foi a primeira a ser usada na Argentina, Bolívia, Venezuela, Paraguai e Nicarágua.

VIZINHANÇA
Anti-imperialismo 
Coloquialmente conhecida como “pátio traseiro dos Estados Unidos”, a América Latina olha para norte com histórico receio em relação ao que dali possa vir. Neste contexto, Moscovo é vista como velha antagonista de Washington.

ORIENTE CONTA COM A RÚSSIA

Organização do Tratado de Segurança Coletiva
Aliança militar criada em 2002, é composta por seis ex-repúblicas soviéticas: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão, além da Rússia. Procura replicar o modelo da NATO.

Organização de Cooperação de Xangai
Fundada em 2001, tem carácter político, económico e militar. Engloba oito países da Eurásia: China, Índia, Rússia, Paquistão, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão. Irão já iniciou o processo de adesão.

União Económica Eurasiática
Organização de integração económica regional, prevê livre circulação de “bens, serviços, capitais e trabalho”. Os membros são: Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia. Entrou em vigor em 2015.

Comunidade de Estados Independentes
Organização de cooperação, resultou do desmembramento da União Soviética. Das 15 antigas repúblicas soviéticas, só quatro não são membros: os bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia) e a Geórgia.

ALERTAS

“Temos de reequilibrar a nossa ordem global, torná-la mais inclusiva. Estou muito impressionado com o quanto estamos a perder a confiança do Sul Global”
Emmanuel Macron, Presidente de França

“Acho que a Rússia cometeu um erro crasso ao invadir o território de outro país. Mas quando um não quer, dois não brigam. Precisamos encontrar a paz”
Lula da Silva, Presidente do Brasil

“A situação no mundo muda de forma dinâmica. Estão a formar-se os contornos de um mundo multipolar”
Vladimir Putin, Presidente da Federação Russa

EDUCAÇÃO

27 mil
estudantes africanos frequentam universidades e instituições científicas na Rússia, segundo estatísticas de Moscovo de 2021. Em 2008 eram 9 mil. A formação de elites africanas foi um dos pilares da cooperação entre África e a União Soviética: estima-se que cerca de 60 mil africanos tenham estudado na URSS entre 1949 e 1991

HÁ MAIS DE UMA DÚZIA DE PAÍSES QUE QUEREM ADERIR AO GRUPO DOS BRICS

Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (conhecidos pelo acrónimo BRICS) representam um quarto da superfície terrestre e 40% da população mundial. Estas economias emergentes começaram a realizar cimeiras anuais em 2009 (a África do Sul só a partir de 2010), vivia o mundo uma crise financeira. Os BRICS são considerados o principal bloco rival do G7, que agrupa as economias mais avançadas. “O interesse nesta associação global é bastante alto e continua a crescer. Não só Argélia, Argentina e Irão, na verdade, são mais de uma dúzia de países”, disse recentemente o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov. A cimeira deste ano, de 22 a 24 de agosto, em Durban, terá interesse acrescido: a África do Sul é membro do Tribunal Penal Internacional, que emitiu um mandado de detenção para Vladimir Putin.

TRÊS PERGUNTAS A

Pedro Ponte e Sousa
Professor na Universidade Portucalense

Qual a estratégia da Rússia?
A Rússia tem procurado expandir as suas relações económicas, políticas e militares com o conjunto do mundo não Ocidental ou do Sul Global. Já vinha a fazê-lo antes da invasão, mas intensificou essa estratégia para contrariar os custos da guerra, bem como as sanções económicas do Ocidente.

Como reagiu o Sul Global?
Não adotou nem deverá adotar sanções económicas à Rússia. Nem é certo que aqueles do Sul Global que são membros do Tribunal Penal Internacional se comprometam a deter Vladimir Putin. O fundamento assenta numa separação entre a condenação política, que é evidente, e o uso de ferramentas económicas para transformar o comportamento político do outro ou, como parece pretender o Ocidente, para ‘punir’ a Rússia. O Sul Global salienta que as sanções económicas — mesmo as das últimas décadas (smart sanctions), dirigidas aos atores responsáveis pela guerra — continuam a ter impacto desproporcional sobre os mais pobres e dão um free pass aos líderes políticos.

As sanções funcionam?
Sim e não. Os impactos macroeconómicos são inegáveis. Contudo, o objetivo das sanções económicas não deveria ser ‘punir’ o outro, mas ajudar a transformar o seu comportamento político. E não só as sanções não estão a funcionar com a Rússia como a investigação científica demonstra que raramente funcionam. São uma ótima forma de quem as impõe mostrar que faz alguma coisa, e dar uma imagem de força, mas não há especiais indícios de eficácia. A solução tem sido aumentar a escala e âmbito das sanções e apontar para o longo prazo. Mas tem servido para cortar mais as relações com a Rússia, atirá-la para os braços da China e diversificar as suas relações, bem como aprofundar a mentalidade de Guerra Fria II (Ocidente versus Rússia e China) entre os decisores políticos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 31 de março de 2023. Pode ser consultado aqui

Com todos os presidentes dos últimos 30 anos acusados de corrupção, o Peru quer fazer ‘reset’ ao sistema político

A Constituição peruana estipula que o mandato presidencial é de cinco anos, mas nos últimos seis, o país teve outros tantos chefes de Estado. A esta demonstração de instabilidade política soma-se a constatação de que, desde 1990, todos os presidentes eleitos enfrentaram processos por corrupção. “Não é uma especificidade peruana”, alerta um politólogo. “É uma característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”

Nos últimos 30 anos, o exercício da democracia no Peru tem tido consequências difíceis de digerir. Em funções ou a posteriori, todos os presidentes do país eleitos por sufrágio universal acabaram a contas com a justiça. Todos sem exceção.

O último caso tem no centro Pedro Castillo, de 53 anos, eleito chefe de Estado a 6 de junho de 2021 e deposto a 7 de dezembro de 2022, quando se preparava para ascender à categoria de ditador. Enquanto enfrentava, no Congresso, um processo de impugnação (impeachment), anunciou na televisão a intenção de dissolver aquele órgão legislativo e instalar um Governo de emergência, em que passaria a ter poderes reforçados.

Sem apoio da polícia e do exército, a tentativa de golpe falhou. Desde então, o país andino vive em ebulição, com protestos de rua que já provocaram 50 mortos. Esta semana, o estado de emergência foi prolongado mais um mês, em Lima (a capital) e noutras duas regiões do sul do país (Puno e Cusco).

Os manifestantes exigem um reset ao sistema político: a demissão de Dina Boluarte — vice-presidente de Castillo, que lhe sucedeu no cargo, e a quem chamam “assassina” em virtude das pessoas mortas nos protestos —, a dissolução do Congresso (“um ninho de ratos”, acusam) e a elaboração de uma nova Constituição.

Os protestos são apoiados pela CGTP Peru (a maior federação sindical nacional), pela maior associação de povos indígenas da Amazónia peruana e por organizações representativas de agricultores pobres. Os manifestantes pedem a libertação de Castillo, condenado a 18 meses de prisão preventiva por rebelião. “É um dos nossos”, “Ninguém me representa agora”, são frases ouvidas nas ruas do Peru, citadas em reportagens publicadas na imprensa.

A vítima tornada verdugo

Antigo professor, sindicalista e agricultor, sem experiência política prévia, Castillo venceu as eleições após apresentar-se ao eleitorado como vítima da elite económica peruana. Acabaria, porém, por deixar-se levar por alguns dos seus vícios.

Na América Latina, os problemas de sucessivos Presidentes com a justiça “não são especificidade peruana, antes característica que o Peru partilha com os restantes países latinoamericanos”, explica ao Expresso o politólogo argentino Ignacio Labaqui.

“No Brasil, Lula da Silva e os antigos presidentes Michel Temer e Collor de Melo foram acusados ou investigados por corrupção. Rafael Correa, ex-Presidente do Equador, também enfrenta acusações por corrupção. Na Argentina, Cristina Fernández de Kirchner foi recentemente condenada, em primeira instância, a seis anos de prisão num caso relacionado com obras públicas. O falecido ex-Presidente Carlos Menem também foi investigado. Nas Honduras, Juan Orlando Hernández foi extraditado para os Estados Unidos por acusações de narcotráfico. E Miguel Ángel Rodríguez, ex-Presidente da Costa Rica, também enfrentou acusações de corrupção. Lamentavelmente, é um fenómeno rompante na América Latina.”

A diferença em relação ao Peru — antiga colónia espanhola conhecida em todo o mundo pelas ruínas da cidadela inca de Machu Picchu — “é que a corrupção como método de exercer a política tem raízes mais profundas nesse país por razões históricas”, acrescenta ao Expresso Aníbal Nicolás Saldías, analista na Economist Intelligence Unit. “E, por, isso vemos que todos os presidentes eleitos desde 1990 estão na prisão ou enfrentam processos judiciais por corrupção.”

  • Alberto Fujimori (1990-2000): Preso em 2005, no Chile, e extraditado para o Peru, cumpre sentença de 25 anos de cadeia por violações dos direitos humanos e corrupção.
  • Alejandro Toledo (2001-06): Acusado de ter recebido subornos do conglomerado empresarial brasileiro Odebrecht, foi preso em 2019, nos EUA, que se recusaram a extraditá-lo.
  • Alan García (2006-11): Suicidou-se em 2019, quando estava prestes a ser preso, implicado num esquema de subornos da Odebrecht.
  • Ollanta Humala (2011-16): Foi preso em 2017, no âmbito da investigação ao escândalo Odebrecht. O Ministério Público pede 20 anos de prisão.
  • Pedro Pablo Kuczynski (2016-18): Enquanto ministro de Alejandro Toledo, favoreceu contratos celebrados com a Odebrecht. Demitiu-se em 2018, após o segundo impeachment.
  • Martin Vizcarra (2018-20): Foi declarado “moralmente incapaz” de governar após dois processos de impugnação. Enquanto governador de Moquegua, recebeu subornos de duas empresas a troco da concessão de obras públicas.

Na galeria dos presidentes dos últimos 30 anos, escaparam à razia três interinos, escolhidos pelo Congresso após o afastamento dos titulares eleitos democraticamente:

  • Valentín Paniagua (2000-01), após a renúncia de Alberto Fujimori.
  • Manuel Merino (2020), após o impeachment de Martín Vizcarra. Renunciou ao fim de seis dias, depois de duas pessoas terem morrido nos protestos.
  • Francisco Sagasti (2020-21), que sucedeu a Merino para um mandato que duraria pouco mais de oito meses.

Segundo a Constituição peruana, o mandato do Presidente é de cinco anos, sem possibilidade de reeleição. Mas nos últimos seis anos, o Peru teve… seis Presidentes.

“É notável que no Peru a justiça tenha independência suficiente para fazer as suas investigações e tenha colocado até o ex-ditador Alberto Fujimori na prisão”, acrescenta Saldías. “Sabendo isso, é surpreendente que ainda haja tanta corrupção, como vimos com o caso de Castillo.”

Castillo candidatou-se à presidência na lista do partido Peru Livre, de esquerda. Beneficiou de amplo apoio nas zonas rurais, com promessas de reformar a Constituição, redistribuir a riqueza oriunda da exploração de cobre — o Peru é o segundo produtor mundial deste minério, a seguir ao Chile — e acabar com a marginalização dos grupos indígenas (quatro milhões de pessoas, segundo os censos de 2007).

Vitória à tangente contra Keiko Fujimori

Na primeira volta, foi o mais votado de 18 candidatos, com 19% dos sufrágios. No tira-teimas final, ganhou à tangente (50,13%) contra Keiko Fujimori (49,87%), filha do ex-Presidente Alberto Fujimori, ela própria alvo de acusações de corrupção enquanto congressista. Castillo tomou posse a 28 de julho de 2021, dia do 200º aniversário da independência do Peru.

Em funções, traiu a sua causa e não escapou a acusações de corrupção. O seu Governo foi comparado a uma porta giratória de entrada e saída de ministros — mais de 80 em 17 meses. Quando foi destituído, ia já no terceiro impeachment. Os primeiros dois, por tráfico de influência e corrupção, não obtiveram os votos necessários para o depor.

Esta sucessão de líderes corruptos — num país de 34 milhões de habitantes onde, pela Constituição, o Presidente é simultaneamente chefe de Estado e de Governo — revela, ao mesmo tempo, uma grande capacidade de resiliência da democracia peruana.

“Uma séria ameaça à democracia peruana vem das lutas entre o [poder] executivo e o [aparelho] judiciário, para evitar que o Presidente vá para a cadeia. Essa luta pode explicar um dos motivos do fracasso do golpe de Castillo, que enfrentava pelo menos seis processos judiciais por corrupção e outros delitos”, recorda Nicolás Saldías.

Inversamente, noutros países, casos como os que envolveram Lula, Correa e Kirchner, que “reclamam haver uma conspiração contra eles”, geram instabilidade política nos seus países, uma vez que estão a duvidar da independência da justiça. Por exemplo, vemos na Argentina a forma como o Executivo de Alberto Fernández está a atacar o Supremo Tribunal de Justiça para enfraquecer o seu poder e autonomia, em defesa de Cristina Kirchner.” Esta realidade foi recentemente denunciada pela organização Human Rights Watch.

O “não” das Forças Armadas ao golpe

Voltando ao Peru, a não adesão da polícia e das forças armadas ao golpe de Castillo revela resiliência constitucional, alguma solidez democrática e o desejo de estabilidade. “Uma coisa que Castillo tentou fazer como ditador foi uma reforma do sistema judicial, que obviamente visava acabar com os processos contra si”, defende Saldías.

“Desta vez, o sistema democrático rejeitou a tentativa de golpe de estado, em parte porque Castillo era um Presidente altamente impopular e com pouca experiência política. Mas da próxima vez, se houver um Presidente popular e tiver o apoio dos militares e da polícia (como Nayib Bukele em El Salvador ou Andrés Manuel López Obrador no México), a democracia peruana enfrentará uma crise abrangente.”

Neste cenário de corrupção generalizada ao mais alto nível político, Ignacio Labaqui identifica dois países sul-americanos que parecem ser exceção. “Embora seja impossível medir a corrupção, Chile e Uruguai apresentam níveis de transparência mais elevados do que o resto da região. Isso não significa que não haja atos de corrupção nesses dois países — no Uruguai, o ex-vice-presidente Raúl Sendic teve de renunciar por esse motivo. Mas não parece ser um fenómeno tão generalizado como noutros países da região.”

“A corrupção é um fenómeno que mina a legitimidade dos regimes democráticos. Quando afeta os níveis mais altos da política, geralmente gera desconfiança e deceção entre os cidadãos, sobretudo se, como no Peru, o Estado não presta serviços públicos básicos de forma eficiente. Isso leva o eleitorado a sentir-se atraído pelo discurso antipolítico e a ver os líderes populistas como uma espécie de novos messias”, conclui Labaqui.

Em muitos aspetos, o Peru é um microcosmos dos problemas que afetam muitas democracias mundo fora. Altos índices de corrupção e acentuadas desigualdades sociais geram desconfiança em relação às instituições políticas e preparam o terreno para o surgimento de teorias da conspiração, divisões sociais e a emergência de perfis com tendências autoritárias, que se aproveitam do caos.

“A crítica à ‘partidocracia corrupta’ costuma ser peça fundamental no discurso dos líderes populistas. E a eleição de um deles tende a agravar os problemas da democracia. A corrupção pode não ter levado à falência da democracia através de um golpe de estado — como aconteceu no passado —, mas contribui para uma espécie de morte lenta da democracia, uma erosão gradual que leva ao êxito, nas eleições, de líderes defensores de soluções autoritárias”.

(IMAGEM Bandeira do Peru FLICKR NICOLAS RAYMOND)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

A pandemia foi global, mas fustigou em particular a região mais desigual do mundo. Sabe qual é?

A pandemia de covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo, a América Latina. A falta de oxigénio no Brasil, o agravamento da violência de género no México ou a falta de caixões no Equador são sintomas de um subcontinente doente a vários níveis. Saiba tudo sobre o impacto da covid-19 na América Latina. 2:59 JORNALISMO DE DADOS PARA EXPLICAR O PAÍS

Não há canto no mundo onde a pandemia de covid-19 não tenha chegado. E se, nos últimos dias, temos falado muito da Índia, não há latitude onde o impacto tenha sido tão grande como na América Latina.

Com uma população que não chega a 10% do total mundial, as regiões da América Latina e Caraíbas contribuem com mais de um quarto das mortes por covid-19 em todo o mundo. Algumas das imagens mais fortes que ajudarão a contar a história desta pandemia vivem-se nestes países…

Cadáveres ao abandono por falta de urnas em Guayaquil, no Equador… Hospitais em Manaus, no Brasil, com falta de oxigénio… Cemitérios e crematórios saturados em Tijuana, no México… Milhares de venezuelanos ao deus-dará, fugidos das dificuldades no país natal e sem sustento nos países vizinhos.

A pandemia revelou ainda mais sintomas em países que já vinham evidenciando pouca saúde. Lembra-se como estava a América Latina antes da chegada do coronavírus?

No Chile, considerado um caso de sucesso económico na região, havia gigantescos protestos contra o custo de vida.

Na Colômbia, que passou 52 dos últimos 60 anos em guerra civil, havia manifestações contra as concessões feitas à guerrilha das FARC durante as negociações de paz.

No Equador, o alvo da contestação popular era a austeridade decretada pelo Governo.

Já na Bolívia, gritava-se que as eleições presidenciais que viabilizaram o quarto mandato de Evo Morales tinham sido fraudulentas.

A América Latina era um subcontinente em polvorosa quando a covid-19 expôs ainda mais as fragilidades daquela que é a região mais desigual do mundo.

O Peru chegou a ter a maior taxa de mortalidade global, graças a um sistema de saúde deficiente, uma economia assente no sector informal onde o teletrabalho não existe e as dificuldades de distanciamento social são evidentes.

No México, o confinamento agravou o problema da violência de género.

E como se não bastasse, a crise económica decorrente do problema de saúde pública atingiu em cheio a região.

Estima-se que a covid-19 seja responsável pela pior recessão em 100 anos na América Latina, pelo aumento da pobreza extrema.

A nível político, vários países tornaram-se montras do declínio das democracias.
Foi o caso da Bolívia. Quando a pandemia chegou, o país estava polarizado entre apoiantes e críticos do ex-Presidente Morales, que renunciara ao cargo por pressão popular, após 13 anos no poder. Essa luta não cedeu ao vírus e as eleições que deviam trazer a normalidade foram sendo adiadas uma e outra vez, por interesses políticos.
Numa demonstração do descontrolo geral do país, a Presidente interina Jeanine Añez foi infetada com covid-19.

Tal como aconteceu com Jair Bolsonaro, no Brasil. O Presidente minimizou o vírus, assumiu-se como um dos membros da Aliança da Avestruz, politizou a produção das vacinas e promoveu uma narrativa populista de confinamento versus economia. Com tudo isto enfraqueceu a estratégia de combate à pandemia do Brasil e tornou o país um exemplo… pelas piores razões.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 14 de maio de 2021. Pode ser consultado aqui

Panos brancos às janelas para sinalizar o drama da fome

A falta de comida tem levado populações a violar o confinamento. A América do Sul é agora o epicentro da pandemia

Parece uma rendição mas é, na realidade, um desesperado pedido de ajuda. Em bairros pobres da Guatemala, panos brancos pendurados fora das casas alertam para a falta de comida. O SOS dirige-se às autoridades, mas, em especial, a vizinhos desafogados que possam dispensar alimentos.

O recolher obrigatório e as restrições à circulação deixaram muitos guatemaltecos sem sustento, sobretudo quem trabalhava no sector informal. Além do branco da fome, panos vermelhos alertam para a falta de medicamentos, azuis para a urgência de alguém ser visto por um médico, pretos para alguém morto dentro de casa e púrpura para situações de violência doméstica.

Este código de cores nasceu no país após a imposição do primeiro cordão sanitário, a 5 de abril, no município de Patzún, onde houve um caso de transmissão comunitária do novo coronavírus. As bandeiras galgaram fronteiras e hoje, no vizinho El Salvador, há cidadãos que não cederam à vergonha da pobreza e estão na berma da estrada a abanar panos brancos, na esperança de que alguém pare o carro e lhes dê comida.

No ano passado, Guatemala e El Salvador foram dos países que mais alimentaram as caravanas de migrantes que partiram da América Central a pé rumo aos Estados Unidos. A miséria torna-os dos mais vulneráveis à pandemia de covid-19, cujo epicentro, diz a Organização Mundial da Saúde, foi da Europa para a América do Sul.

Com o Brasil destacado a nível mundial pelas piores razões, o Peru surge como segundo país mais afetado. A situação descontrolou-se após o confinamento ter sido violado por populações desesperadas pela falta de trabalho.

‘Piñeravírus’ no Chile

No Chile, que tem o maior PIB per capita da região, as carên­cias alimentares originaram protestos violentos. “O Piñeravírus [referência ao Presidente Sebastián Piñera] é mais mortal do que o coronavírus”, ouviu-se nas ruas. Para tentar conter uma explosão social, o Governo anunciou a distribuição de 2,5 milhões de cabazes de alimentos e outros bens essenciais.

Há menos de um ano, muitos países latino-americanos estavam tomados por manifestações por melhores condições de vida. Ao Expresso, Rossana Castiglioni, da Universidade Diego Portales, de Santiago do Chile, aponta dois fatores que podem levar ao recrudescimento dos protestos: “A capacidade de os sistemas de saúde absorverem uma procura crescente por cuidados especializados, camas de cuidados intensivos e ventiladores. E a capacidade de os países adotarem medidas que permitam mitigar os efeitos da crise económica, que ocorrerá de qualquer maneira, sobretudo junto dos mais vulneráveis. Sem políticas que resolvam a perda de rendimentos e o acesso a bens e serviços básicos, os conflitos podem escalar.”

Como em 2019, a fachada da Torre Telefónica, em Santiago, voltou recentemente a iluminar-se com um slogan projetado por um estúdio de arte local. Dizia apenas: “Fome.”

(FOTO Um trapo branco sinaliza um pedido de comida neste casebre em San Salvador JOSE CABEZAS / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui