O secretário-geral das Nações Unidas foi, pela primeira vez, ao Pacífico, a linha da frente do combate às alterações climáticas. Visitou três países insulares que correm o risco de ficarem submersos. Em discursos e no Twitter, antónio Guterres expressou preocupações e apelou ao envolvimento global num drama que, mais cedo ou mais tarde, baterá à porta de todos
A viagem de António Guterres ao Pacífico Sul que levou a revista “Time” a dar-lhe honras de capa resulta de uma grande ironia. Ilhas Fiji, Tuvalu e Vanuatu — os pequenos Estados insulares visitados pelo secretário-geral das Nações Unidas entre 14 e 18 de maio — são paraísos à face da Terra que lutam para se manter à tona. Perdidos na imensidão do mar, testemunham diariamente a subida das águas, numa ameaça à sua sobrevivência visível aos olhos.
“Estou de partida para Tuvalu, uma nação insular do Pacífico onde o ponto mais alto tem menos de cinco metros [de altura]. Enfrenta uma ameaça existencial face à subida do nível do mar”, escreveu Guterres no Twitter, a 16 de maio. “Temos de impedir que Tuvalu se afunde e que o mundo se afunde juntamente com Tuvalu.”
I am travelling to Tuvalu, a Pacific island nation where the highest point is less than 5 metres. It faces an existential threat from sea-level rise.
— António Guterres (@antonioguterres) May 16, 2019
A fotografia que ilustra a capa da “Time” foi tirada precisamente em Tuvalu. Com a água do Pacífico pelos joelhos, e uma expressão séria, Guterres surge na posição de um vulgar cidadão daquele país que vê, diariamente, o mar cada vez mais perto de lhe entrar casa adentro.
“Em nenhum outro lugar vi tão claramente impactos tão devastadores da situação crítica climática global como em Tuvalu, onde conheci famílias cujas casas estão ameaçadas pela contínua subida dos mares”, twitou a 17 de maio.
Nowhere have I seen the heartbreaking impacts of the global climate emergency more starkly than in Tuvalu, where I met families whose homes are threatened by relentless rising seas.
— António Guterres (@antonioguterres) May 17, 2019
Tuvalu foi a segunda etapa do périplo de Guterres pelas pequenas ilhas — a viagem à região teve uma primeira paragem na Nova Zelândia. Antes de Tuvalu, esteve nas Ilhas Fiji.
Num discurso no Fórum das Ilhas do Pacífico, realizado em Suva (capital das Fiji), o secretário-geral da ONU fez um alerta para todo o mundo: “Em 2016, mais de 24 milhões de pessoas em 118 países e territórios foram deslocadas por causa de desastres naturais — três vezes mais do que o número de deslocados por conflitos.”
Guterres procurou também dar visibilidade a projetos locais verdes, como a embarcação “Uto ni Yalo”, uma embarcação tradicional polinésia que trabalha a vento e energia solar.
With ingenuity, innovation and traditional knowledge, Fiji’s Uto ni Yalo — “Heart of the Spirit” — uses wind and sun to pioneer sustainable solutions and inspire #ClimateAction. pic.twitter.com/JQwusPrrVz
— António Guterres (@antonioguterres) May 20, 2019
A visita ao Pacífico terminou na ilha de Vanuatu, “um dos países mais propensos a desastres, o que é agravado pelas alterações climáticas”, enfatizou Guterres.
A 18 de maio, em jeito de alerta final, divulgou um comunicado chamando a atenção para o facto destes Estados contribuírem muito pouco para o drama global das alterações climáticas e serem aqueles que mais afetados são, correndo mesmo riscos de sobrevivência.
“O que é notável acerca destes países é que perante este desafio enorme, eles decidiram não desistir. Estão determinados a encontrar soluções e a desenvolveram formas de aumentar a sua resiliência e adaptação. Estão a liderar o caminho da redução de emissões [de dióxido de carbono para a atmosfera] e são um exemplo que o resto do mundo devia seguir.”
FOTOGALERIA
António Guterres sobrevoa Tuvalu. A parte de trás do avião abre-se para ser mais percetível o avanço do mar sobre as pequenas ilhas UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENEm território de Tuvalu, observando uma costa que parece morta UN PHOTO / MARK GARTENÀ conversa com uma habitante de Tuvalu UN PHOTO / MARK GARTENDurante a maré alta, esta calçada fica completamente submersa UN PHOTO / MARK GARTENNa companhia do primeiro-ministro das Ilhas Fiji, Frank Bainimarama UN PHOTO / MARK GARTENO secretário-geral da ONU percorreu os locais por via aérea, terrestre e marítima também UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNas Ilhas Fiji, experimentou viajar numa embarcação especial, que combina sabedoria tradicional e moderna tecnologia… UN PHOTO / MARK GARTEN… o “Uto ni Yalo” funciona a energia eólica e solar UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNas Ilhas Fiji, crianças mostram cartazes com mensagens apelando à preservação do ambiente UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNum mercado de Vanuatu, interessado em conhecer no impacto económico local das alterações climáticas UN PHOTO / MARK GARTENNa pele de um residente de Vanuatu UN PHOTO / MARK GARTENPlantando uma árvore, nas Ilhas Fiji… UN PHOTO / MARK GARTEN… outra em Tuvalu UN PHOTO / MARK GARTENPequenos paraísos perdidos na imensidão do Pacífico em risco de ficarem submersos UN PHOTO / MARK GARTENCinco dias de visita a populações em risco de sobrevivência que têm em António Guterres um grande aliado UN PHOTO / MARK GARTEN
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de junho de 2019. Pode ser consultado aqui
As pequenas ilhas do Pacífico estão na linha da frente do combate às alterações climáticas. O secretário-geral da ONU quis ver o drama de perto e visitou as Ilhas Fiji, Tuvalu e Vanuatu
António Guterres sobrevoa Tuvalu. A parte de trás do avião abre-se para ser mais percetível o avanço do mar sobre as pequenas ilhas UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENEm território de Tuvalu, observando uma costa que parece morta UN PHOTO / MARK GARTENÀ conversa com uma habitante de Tuvalu UN PHOTO / MARK GARTENDurante a maré alta, esta calçada fica completamente submersa UN PHOTO / MARK GARTENNa companhia do primeiro-ministro das Ilhas Fiji, Frank Bainimarama UN PHOTO / MARK GARTENO secretário-geral da ONU percorreu os locais por via aérea, terrestre e marítima também UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNas Ilhas Fiji, experimentou viajar numa embarcação especial, que combina sabedoria tradicional e moderna tecnologia… UN PHOTO / MARK GARTEN… o “Uto ni Yalo” funciona a energia eólica e solar UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNas Ilhas Fiji, crianças mostram cartazes com mensagens apelando à preservação do ambiente UN PHOTO / MARK GARTENUN PHOTO / MARK GARTENNum mercado de Vanuatu, interessado em conhecer no impacto económico local das alterações climáticas UN PHOTO / MARK GARTENNa pele de um residente de Vanuatu UN PHOTO / MARK GARTENPlantando uma árvore, nas Ilhas Fiji… UN PHOTO / MARK GARTEN… outra em Tuvalu UN PHOTO / MARK GARTENPequenos paraísos perdidos na imensidão do Pacífico em risco de ficarem submersos UN PHOTO / MARK GARTENCinco dias de visita a populações em risco de sobrevivência que têm em António Guterres um grande aliado UN PHOTO / MARK GARTEN
A revista “Time” acompanhou o secretário-geral da ONU num périplo pelo Pacífico onde há países que, face às alterações climática, lutam para não serem engolidos pelo mar. Na capa, António Guterres surge em pose dramática, com a água do Pacífico já pelos joelhos. Mas a mensagem é de esperança: “Os países mais atingidos pelas alterações climáticas estão a lutar — e a obter resultados”, diz a “Time”. E Guterres tem sido um grande aliado
As alterações climáticas não se compadecem com as hesitações políticas dos governantes do mundo e vão desbravando o planeta com violência. Aos poucos, há países que estão, literalmente, a desaparecer do mapa. É a eles que a revista “Time” dedica o tema principal da sua mais recente edição.
Na capa, António Guterres surge na pele de um cidadão de Tuvalu, um dos territórios mais ameaçados pela subida dos oceanos. Com a água do mar pelos joelhos e o rosto carregado, o secretário-geral das Nações Unidas coloca-se na posição dramática que, mais cedo ou mais tarde, afetará qualquer habitante à face da Terra.
“O que tentamos dizer ao mundo é que quando nós nos afundarmos, todas as cidades se afundarão também”, alerta Tuilaepa Malielegaol, primeiro-ministro da Samoa, outro país vulnerável à subida do nível da água do mar.
No artigo da “Time”, Guterres poderia ser também um habitante da aldeia de Vunidogoloa, nas Ilhas Fiji. Outrora uma comunidade com mais de 100 pessoas, a aldeia de Vunidogoloa foi tomada pelo avanço da floresta tropical e das águas salgadas do Pacífico. A vida tornou-se impossível e, há cinco anos, o Governo das Fiji construiu uma cidade nova mais acima na colina. Foi a primeira comunidade nas Fiji a ser relocalizada por causa das alterações climáticas, mas outras 40 já estão sinalizadas e deverão mudar de sítio nos próximos anos. “Penso nas alterações climáticas todos os dias”, diz à reportagem da “Time” o primeiro-ministro Frank Bainimarama.
Em maio passado, António Guterres testemunhou pessoalmente o drama de quatro países do Pacífico Sul durante um périplo que o levou à Nova Zelândia, Ilhas Fiji, Vanuatu e Tuvalu, onde foi feita a fotografia da capa da “Time”. Não foi uma simples visita.
O português tem em mãos a organização de uma Cimeira pela Ação Climática, prevista para setembro, em Nova Iorque, que reunirá chefes de Estado, homens de negócios e líderes da sociedade civil. Com ela, Guterres pretende dar palco às nações mais vulneráveis e levar os países desenvolvidos a comprometerem-se com metas mais ambiciosas, nomeadamente ao nível da redução das emissões de dióxido de carbono.
“Guterres está a trabalhar no sentido de posicionar as pequenas nações insulares não só como o centro político do debate, mas também como o centro moral”, diz a “Time”.
Os pequenos países têm-se mexido com sucesso no sentido de pôr este assunto no mapa político. Articulados, contribuíram para dar forma ao Acordo de Paris de 2015 e para a elaboração de um importante relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, que enfatiza a urgência em limitar o aquecimento do planeta a 1.5º C até 2100.
Podemos ficar sentados a observar, questiona a “Time”
“O relatório chamou mais a atenção do que até a aprovação do próprio Acordo de Paris”, escreve a “Time”, “e inspirou o empurrão para um Green New Deal (Novo Acordo Verde) nos Estados Unidos bem como novos e mais agressivos planos climáticos num punhado de outros países”.
“O sucesso destes países resulta numa grande lição: nenhuma nação pode resolver sozinha um problema tão complexo como as alterações climáticas, mas juntas as nações podem fazer a diferença”, conclui a “Time”. “Podemos ficar sentados a observar as pequenas ilhas do Pacífico a desaparecerem — mas quem acham que será atingido a seguir?”
António Guterres — um entusiasta confesso do multilateralismo — está ativamente empenhado em contrariar essa letargia. É esse o reconhecimento que a “Time” lhe faz.
O secretário-geral das Nações Unidas visitou Israel e a Palestina. Disse o que pensa e partilhou um sonho…
“Perdão”, entre um árabe e um judeu CARLOS LATUFF
António Guterres demorou mais de oito meses a dar visibilidade a um dos conflitos mais duradouros e complexos do mundo. A falta de iniciativa por parte dos principais líderes mundiais em relação à questão israelo-palestiniana e a particular sensibilidade do secretário-geral das Nações Unidas para as crises humanitárias — foi alto-comissário da ONU para os Refugiados entre 2005 e 2015 — levaram-no, prioritariamente, a paragens tão ou mais dramáticas como Somália, Iraque, Afeganistão, Uganda ou Ucrânia. Esta semana, Guterres pôs Israel e a Palestina no mapa. No término de uma visita de três dias, as partes continuam distantes. Ficam os alertas do secretário-geral.
ANTISSEMITISMO
“O horror do Holocausto deveria ser tal que o antissemitismo deveria estar morto para sempre mas, infelizmente, vemo-lo vivo e de boa saúde”
De visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto, em Jerusalém, Guterres condenou o antissemitismo “em todas as suas formas de expressão”. “Fiquei chocado há pouco tempo ao ouvir um grupo neonazi num país desenvolvido a cantar ‘sangue e solo’, um slogan dos nazis”, disse na segunda-feira, aludindo aos protestos supremacistas de Charlottesville, nos Estados Unidos. No mesmo dia, ao lado de Reuven Rivlin, Presidente israelita, considerou a negação do direito à existência do Estado de Israel “uma forma moderna de antissemitismo”.
ONU E ISRAEL
“Os Estados-membros são soberanos. Definem as suas posições com base nos seus interesses, valores e convicções. Enquanto secretário-geral da ONU, é meu dever ser simultaneamente um intermediário honesto e mensageiro da paz. Ser um intermediário honesto significa ser imparcial”
Sucessivas resoluções condenatórias de Israel — na Assembleia Geral, em agências especializadas ou órgãos subsidiários da ONU, como a UNESCO ou o Conselho de Direitos Humanos — têm levado Telavive a acusar a organização de ser “tendenciosa”. As razões de queixa não se aplicam, porém, ao Conselho de Segurança onde Israel tem beneficiado do poder de veto dos EUA. Em Jerusalém, ao lado de Benjamin Netanyahu, Guterres afirmou o seu dever de equidistância — ainda que, às vezes, grandes polémicas o obriguem a tomar parte: em março, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental, da ONU, publicou um relatório em que qualificava de apartheid a forma como Israel trata os palestinianos. Guterres mandou retirar o documento do site.
AMEAÇA DO HEZBOLLAH
“Farei tudo o que estiver ao meu alcance para assegurar que a UNIFIL cumpra o seu mandato. Compreendo as preocupações em relação à segurança de Israel”
A guerra na Síria, e o papel que nela desempenha a milícia xiita libanesa Hezbollah, em apoio do Presidente Bashar al-Assad, acentuaram os alertas de perigo nas fronteiras norte e nordeste de Israel, junto ao Líbano e à Síria, respetivamente. Atentas às movimentações do Hezbollah, e temendo que armamento sofisticado dirigido ao teatro sírio caia “em mãos erradas”, as forças de defesa de Israel já visaram, por diversas vezes, posições dentro de território sírio. Há décadas que a ONU tem na área duas missões de paz: a UNIFIL, desde 1978, na fronteira com o Líbano; e a UNDOF, junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. Estas missões em nada tranquilizam Israel que acusa a ONU de “fechar os olhos” ao trânsito de armamento. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU renovou, por mais um ano, o mandato da UNIFIL (cerca de 11 mil capacetes azuis), solicitando a Guterres que tome medidas para tornar a presença da missão mais visível, através de patrulhas e inspeções.
ESTADO DA PALESTINA
“Não há plano B à solução de dois Estados’’
Na internet, o site do secretário-geral da ONU não deixa margem para equívocos: esta semana, António Guterres visitou o Kuwait, Israel e “o Estado da Palestina”. Aos olhos da organização universal, a Palestina é um “Estado Observador Não-Membro” desde 29 de novembro de 2012, dia em que a Assembleia Geral aprovou aquele estatuto de forma esmagadora. Em todo o mundo, são mais os países que reconhecem a independência da Palestina do que aqueles que ainda não o fizeram, mas estes são politicamente mais relevantes. Na terça-feira, em Ramallah, após visitar o túmulo de Yasser Arafat e inspirado em Martin Luther King, Guterres fez uma confissão: “Eu tenho um sonho, um sonho de ver na Terra Santa dois Estados.” Oficialmente, a fórmula de “dois Estados para dois povos” continua a ser defendida em Telavive e em Ramallah, ainda que a contínua construção de colonatos judaicos na Cisjordânia ocupada a inviabilize por completo.
COLONATOS
“A construção de colonatos, que é ilegal face ao direito internacional, é um obstáculo que necessita de ser removido”
No dia seguinte a terem-se reunido em Jerusalém, António Guterres e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, rumaram à Cisjordânia, separadamente. Em Ramallah, o secretário-geral da ONU condenou a política israelita de construção de colonatos. “Claro que há mais dificuldades e obstáculos. É importante criar as condições para que os líderes de ambos os lados apelem à calma, evitem o incitamento, para que a violência acabe”, disse, na terça-feira, ao lado de Rami Hamdallah, primeiro-ministro palestiniano. “Mas a construção de colonatos representa um grande obstáculo à solução de dois Estados.” Horas depois, Netanyahu discursava diante dos colonos de Barkan, no âmbito de uma cerimónia comemorativa do 50º aniversário da colonização da Judeia e Samaria (como em Israel se chama à Cisjordânia): “Estamos aqui para sempre. Não haverá mais evacuação de colonatos na terra de Israel.”
BLOQUEIO A GAZA
“Estou profundamente emocionado por estar em Gaza, infelizmente para testemunhar uma das crises humanitárias mais dramáticas que já vi em muitos anos de trabalho na área humanitária na ONU”
Guterres escolheu uma escola de Gaza, administrada pela UNRWA (a agência da ONU criada em 1949 para lidar com o problema dos refugiados palestinianos), para apelar à “abertura de fronteiras”. O território vive, desde 2007, um bloqueio por terra, mar e ar, imposto por Israel e pelo Egito, que condena a maioria da população a viver da ajuda da ONU. Em Gaza, Guterres ordenou o desbloqueio imediato de quatro milhões de dólares (€3,4 milhões) para as atividades da ONU e pediu à comunidade internacional para que participe na assistência humanitária ao território.
UNIDADE PALESTINIANA
“A divisão apenas mina a causa do povo palestiniano”
Ainda em Gaza, Guterres abordou o grande problema político que fragiliza os palestinianos: a divisão entre a Fatah e o Hamas. A primeira controla a Autoridade Palestiniana, que governa as áreas A e B da Cisjordânia (a área C está ocupada por Israel); o segundo, um movimento islamita, controla a Faixa de Gaza desde 2007, quando tomou o poder pela força, após ter ganho as legislativas e a vitória não ter sido reconhecida nem pela Fatah, nem por Israel, nem pela comunidade internacional. “Ontem estive em Ramallah [na Cisjordânia], hoje estou em Gaza. Ambas fazem parte da mesma Palestina”, disse Guterres.
“NO MEU PRÓPRIO PAÍS…”
Durante a visita, Guterres recordou momentos em que, em Portugal, se cruzou com o conflito israelo-palestiniano. Enquanto primeiro-ministro (1995-2002) e presidente da Internacional Socialista (1999-2005), “segui o processo de paz de muito perto, nas suas esperanças e frustrações”, disse no Museu Yasser Arafat. “Lembro-me de um encontro secreto, durante o Governo de Ariel Sharon, entre o vice-primeiro-ministro Shimon Peres e Yasser Arafat no meu gabinete de primeiroministro”, confidenciou junto a Netanyahu. Durante quatro horas, “testemunhei o compromisso deles com a paz e, ao mesmo tempo, as dificuldades desse compromisso”. Após condenar o antissemitismo, no Memorial do Holocausto, disse: “O meu próprio país também o viveu. Recordo o momento mais trágico de todos: a expulsão dos judeus no início do século XVI”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 2 de setembro de 2017
O secretário-geral das Nações Unidas iniciou esta segunda-feira uma visita a Israel, de onde seguirá para o “Estado da Palestina”, conforme foi anunciado pela ONU. A visita serve para criar laços de confiança entre a organização e Telavive e Ramallah, já que de Washington ninguém sabe bem o que esperar
Desde que assumiu o mais alto cargo das Nações Unidas, António Guterres demorou mais de oito meses a visitar Israel e a Palestina, protagonistas de um conflito que se arrasta há décadas e que é tantas vezes identificado como o epicentro de tantas outras contendas na região do Médio Oriente. Até o seu avião aterrar no Aeroporto Ben Gurion, em Telavive, no domingo à noite, muitas outras latitudes em agonia tinham sido merecedoras de visitas prioritárias por parte do líder da ONU: Ucrânia, Somália, Afeganistão, Iraque, Turquia, Qatar, Uganda…
“Existe um grande número de crises regionais que requerem atenção, tempo, e meios financeiros, e o conflito israelo-palestiniano não tem sido uma prioridade dos maiores líderes mundiais”, comenta ao “Expresso” Bruno Oliveira Martins, investigador do Departamento de Estudos Políticos Globais, da Universidade de Malmö, na Suécia. “Até pelo seu perfil e pelo seu passado político, António Guterres tem levado a ONU a concentrar-se em questões relacionadas com refugiados e com outros conflitos regionais que, neste momento, grassam pelo Médio Oriente e África, e que requerem uma intervenção mais urgente.”
Guterres foi Alto Comissário da ONU para os Refugiados (ACNUR) entre 2005 e 2015, mas, nesse cargo, a questão dos refugiados palestinianos “passou-lhe ao lado”. Dada a dimensão e antiguidade do problema palestiniano, a ONU tem uma agência específica para lidar com ele, a UNRWA, criada em 1949, que apoia cerca de cinco milhões de refugiados palestinianos — mais de 800 mil residentes na Cisjordânia e 1,3 milhões na Faixa de Gaza, territórios que Guterres visitará amanhã e quarta-feira.
Guterres chega à região sem soluções milagrosas para o conflito. “É praticamente impossível a António Guterres conseguir um sucesso diplomático tangível nesta primeira visita à região”, continua o investigador português, que trabalhou como analista político da delegação da União Europeia em Israel, em 2008. “Poucas vezes na história recente, israelitas e palestinianos estiveram tão afastados entre si e as suas lideranças tão pouco comprometidas com a paz. A fasquia está tão baixa que qualquer eventual resultado positivo em relação ao ‘status quo’ será sempre altamente insuficiente.”
Rejeição inequívoca do antissemitismo
O périplo do líder da ONU começou, esta segunda-feira, em Jerusalém, com uma visita ao Yad Vashem, o Memorial do Holocausto. Guterres tem sido uma voz de denúncia do antissemitismo no mundo — fê-lo, inclusive, no seu manifesto de candidatura —, qualificando a negação do direito à existência do Estado de Israel como uma forma moderna do fenómeno.
“É interessante que Guterres aproveite a presença em Israel para sublinhar uma rejeição inequívoca e incondicional do antissemitismo, na sequência das manifestações de neonazis ocorridas nos EUA”, recorda Oliveira Martins. “Muitos israelitas, e judeus na diáspora, sentem uma grande inquietação em relação a esses desenvolvimentos nos EUA, sobretudo perante a falta de condenação por parte do Presidente Donald Trump.”
Disse Guterres: “O Yad Vashem é uma lembrança para todos nós de que nos devemos posicionar como pontas de lança no combate ao antissemitismo e contra todas as formas de racismo, quaisquer que elas sejam”.
(Conferência de imprensa de António Guterres
e do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, em Jerusalém)
No seu encontro com o primeiro-ministro israelita, Guterres ouviu Benjamin Netanyahu identificar as principais ameaças que, hoje, Israel enfrenta enquanto Estado: o movimento xiita libanês Hezbollah e a Síria, instrumentalizados por um perigo maior: o Irão. “O Irão está muito ocupado a transformar a Síria numa base de fortificação militar, e quer usar a Síria e o Líbano como frentes de guerra ao serviço do seu objetivo declarado de erradicar Israel”, disse Netanyahu.
As Nações Unidas têm missões de paz junto aos dois países desde há décadas: a UNIFIL, na fronteira com o Líbano, desde 1978, e junto à Síria, nos Montes Golã, desde 1948. A 30 de agosto, o Conselho de Segurança votará a renovação do mandato da UNIFIL — atualmente com cerca de 10.500 capacetes azuis no terreno — por mais um ano.
Recentemente, a embaixadora dos Estados Unidos, Nikki Haley, acusou o comandante da missão, o general irlandês Michael Beary, de “cegueira” perante o que, disse, todos os outros conseguem ver no sul do Líbano: o tráfico de armas por parte do Hezbollah. “A guerra civil na Síria trouxe o caos para as fronteiras de Israel e as ramificações regionais são óbvias”, recorda Bruno Oliveira Martins. “Qualquer avanço nestas frentes será importante.”
A parcialidade da ONU
Nos próximos dias, a passagem de António Guterres pela Cisjordânia e por Gaza deverá mudar a agulha noticiosa desta visita para o conflito israelo-palestiniano. O processo de paz está totalmente paralisado e, à revelia de sucessivas condenações nas Nações Unidas, Israel prossegue com a sua política de construção de colonatos, designadamente expandindo colonatos já existentes.
“Aos olhos das fações mais radicais dentro do Governo de Netanyahu, a ONU sofre de um problema de credibilidade, uma vez que lhe é atribuída parcialidade na questão israelo-palestiniana e, mais importante, em tudo o que diz respeito a Israel”, diz Bruno Oliveira Martins. Poucas semanas após ter assumido o cargo, Guterres não escapou a uma grande polémica surgida após uma agência da ONU, a Comissão Económica e Social para a Ásia Ocidental (ESCWA), ter publicado um relatório em que qualificava de “apartheid” a política de Israel em relação aos palestinianos. Guterres ordenou que o documento fosse retirado do “site” da agência, o que lhe valeu muitas críticas e a demissão da chefe da ESCWA, a diplomata jordana Rima Khalaf.
“Este episódio ajuda a explicar por que é que a ONU não tem sido um ator central nos avanços diplomáticos mais importantes observados ao longo das últimas décadas. Ainda que o comportamento errático da Casa Branca abra, em teoria, uma janela de oportunidade para um maior papel da ONU, tal é praticamente impossível de acontecer — até porque a representante dos EUA junto da ONU [Nikki Haley] tem demonstrado um posicionamento ainda mais próximo de Israel que os seus antecessores.”
(Anúncio da viagem de António Guterres ao Kuwait, a Israel
e ao Estado da Palestina, lê-se no sítio do secretário-geral da ONU)
Quando amanhã pisar solo palestiniano, António Guterres leva consigo um legado político importante. A 29 de novembro de 2012, a Assembleia Geral da ONU aprovou, de forma esmagadora, a atribuição do estatuto de “Estado Observador Não-Membro” à Palestina.
Quase cinco anos depois, a forma como foi divulgada a viagem de Guterres pela comunicação das Nações Unidas e nas palavras do porta-voz de Guterres, Stephane Dujarric — “ao Kuwait, a Israel e ao Estado da Palestina” — não é equívoca quanto ao assunto, ainda que na prática seja pouco consequente.
“Esta visita é importante para estabelecer laços de confiança bilaterais entre a equipa de Guterres e os corpos diplomáticos israelitas e palestinianos”, conclui o investigador da Universidade de Malmö. “Os sinais vindos de Washington são altamente contraditórios, ninguém sabe bem o que esperar, pelo que algum tipo de liderança por parte da ONU ou mesmo da UE seria extremamente importante — ainda que improvável.”
(Imagem de abertura: “Paz”, em árabe e hebraico, entre as bandeiras de Israel e da Palestina MAKARISTOS / WIKIMEDIA COMMONS)
Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 28 de agosto de 2017 e no “Expresso Online” no dia seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.