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A escalada que (quase) todos tentam evitar

Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar

O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.

Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.

A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.

IRÃO 
Que motivação para atacar?

É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).

Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.

O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”

ISRAEL 
E agora, Estados Unidos?

O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”

Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”

“O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira

JORDÂNIA 
Porquê ajudar Israel?

O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.

Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”

Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.

ARÁBIA SAUDITA 
Equidistante?

Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.

“Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”

Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.

O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”

(MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)

RELACIONADO: As pistas deixadas por um ataque arriscado (mas contido) sobre a relação de forças no Médio Oriente

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui

Estes cinco países podem ganhar com o degelo entre Riade e Teerão

Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana

Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.

IÉMEN

Acordo é bom, mas falta ouvir os locais

Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.

“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”

No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.

“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”

Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.

Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.

Síria

Guerra não acabou, mas Assad manda

A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.

Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.

Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.

“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”

Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.

Líbano

Polarização e crise não são prioridades

O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.

Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.

Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.

A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.

“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”

Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.

Iraque

Arena de diálogo para amaciar

Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.

Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.

Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.

Bahrain

A curta distância dos dois gigantes

Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.

Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.

Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.

Quem fica a perder?

ISRAEL

O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”

TURQUIA

“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”

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Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Acordo de conveniência entre sauditas e iranianos

A normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão é uma derrota para os Estados Unidos e Israel

Não haverá muitas rivalidades no mundo tão amplas e antigas como a que opõe Arábia Saudita e Irão. Frente a frente estão um reino árabe que professa uma matriz sunita fundamentalista do islão e uma república islâmica, assente numa interpretação xiita radical, herdeira da civilização persa. A força destas identidades contamina países vizinhos, origina guerras por procuração e torna a estabilidade no Médio Oriente uma quimera.

Ora, dois territórios declaradamente inimigos há quase 1400 anos — quando se deu o cisma entre sunitas e xiitas — não se tornam amigos da noite para o dia. Anunciada a normalização da relação diplomática entre Riade e Teerão, dia 10, sobram interrogações acerca do que a motivou.

“Arábia Saudita e Irão estão a sair da esfera de influência ocidental e, no que toca à Arábia Saudita, da esfera dos Estados Unidos”, diz ao Expresso o investigador Tiago André Lopes, do Instituto do Oriente. “E estão a posicionar-se, por dependência energética, mais próximos da China”, mediadora deste diálogo.

Estes países tinham as relações congeladas desde 2016, na sequência da decapitação de um clérigo xiita saudita, crítico do regime de Riade. No Irão houve protestos, invasão da embaixada saudita e promessas de “vingança divina” por parte do líder supremo, ayatollah Ali Khamenei. Há algum tempo, contudo, que ambos queriam voltar a página das hostilidades, sufocados por problemas económicos e despesas extra decorrentes da guerra no Iémen — onde Teerão apoia os houthis (grupo xiita que tomou o poder pela força) e Riade lançou uma ofensiva com o intuito de os depor.

Dois anos a negociar

“As negociações começaram há dois anos, com mediação do Iraque. Enquanto isso, Omã acolheu conversações entre os houthis e uma delegação saudita. O diálogo começou porque as partes precisavam de chegar a acordo. O aumento da tensão não correspondia aos seus interesses”, diz ao Expresso Javad Heirannia, do Centro do Médio Oriente, de Teerão.

O acordo está muito longe de ser uma parceria estratégica ou tratado de amizade e cooperação. Tem um período de carência de dois meses e prevê apenas a reativação dos canais diplomáticos. “As grandes questões de fundo, as diferenças ideológicas, não vão ficar resolvidas. O que se resolve é a abertura das embaixadas”, explica Tiago André Lopes.

“Não interessa à Arábia Saudita nem ao Irão terem demasiadas frentes abertas. Interessa-lhes fechar esta frente, porque o que os separa continuará a separá-los”, continua o professor da Universidade Portucalense, para quem é claro que ambos buscam “um consenso no que toca aos teatros que estão abertos por causa desta confrontação: Iémen e Líbano”.

Irresolúvel do ponto de vista militar, a guerra no Iémen está num impasse há anos. Em abril de 2022, as partes comprometeram-se com um cessar-fogo, que expirou em outubro. Desde então, mesmo sem renovação formal, a trégua não colapsou, indiciando a vontade de pôr ponto final ao conflito.

Já o Líbano, sem viver em clima de guerra aberta, parece muitas vezes à beira desse precipício, com um sistema político retalhado por 18 grupos confessionais — entre os quais os xiitas do poderoso Hezbollah, apoiado pelo Irão —, uma economia falida e uma sociedade fragilizada pela corrupção. “As diferenças entre Irão e Arábia Saudita criaram um impasse político no Líbano, que não produziu resultados para os dois países e respetivas forças aliadas”, comenta Heirannia.

ARÁBIA SAUDITA E IRÃO BUSCAM CONSENSONOS TEATROS ABERTOS PELO CONFRONTO ENTRE AMBOS: IÉMEN E LÍBANO

O potencial estabilizador desta aproximação consagra a mediadora China. Para lá dessa demonstração de poder, duas circunstâncias precipitaram a convergência entre os dois gigantes geopolíticos do Médio Oriente: o programa nuclear iraniano e o aperto económico saudita.

Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atómica revelou que inspetores encontraram, na central iraniana de Fordow, “partículas” de urânio enriquecido a 83,7%, muito próximo dos 90% necessários para a produção da bomba atómica. De nada serviu mais de um ano de negociações em Viena com vista à reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão (JCPOA), de 2015, ferido com gravidade pela retirada dos EUA ordenada por Donald Trump. E as sanções com que Washington tentou vergar Teerão não impediram o desenvolvimento do acordo.

Estados Unidos são descartáveis

Separada do Irão pelo Golfo Pérsico, a Arábia Saudita percebeu que a melhor garantia de segurança perante o vizinho nuclear é minimizar os riscos de conflito. Por outro lado, Riade luta com dificuldade para concretizar o plano de reformas “Visão 2030”, que visa diversificar a economia do país e dotá-la de novas fontes de receitas. “A Arábia Saudita está a braços com uma grave crise económica, continua muito dependente de recursos petrolíferos e com muita dificuldade em adaptar-se às economias sustentáveis. Tirando o turismo religioso, não tem alternativas. Não pode continuar a ter orçamentos de defesa e a apoiar uma série de movimentos” fora do país, refere Tiago André Lopes.

Acresce a dimensão de segurança e ausências do amigo americano. “Mesmo durante a era Trump, a Arábia Saudita não conseguiu convencer Washington a lançar um ataque contra o Irão a seguir ao atentado dos houthis contra duas refinarias da Aramco”, diz Heirannia. Essa investida, em setembro de 2019, reduziu para metade a produção da empresa estatal saudita e provocou uma subida global dos preços do petróleo.

Por outro lado, continua o iraniano, “a pressão de Riade sobre Washington para incluir a política regional do Irão nas negociações com vista à reativação do JCPOA deu em nada. Os sauditas concluíram que, para evitarem mais gastos, deveriam resolver as diferenças com o Irão.” Acrescenta o português: “A Arábia Saudita percebeu que, no jogo das superpotências, os Estados Unidos são, hoje, descartáveis.”

A necessidade de fechar frentes de conflito é partilhada pelo Irão, castigado há anos por sanções que penalizam a exportação de petróleo e a braços com protestos antirregime que só conseguiu conter após começar a enforcar manifestantes. Para os EUA, a atuação de Teerão foi fácil de encaixar, já que os dois países não têm relações diplomáticas desde a Revolução Islâmica de 1979. Já o ímpeto saudita surpreendeu em toda a linha. “A Administração Biden está a colher os erros da Administração Obama”, e da sua estratégia relativa à primavera árabe, diz Tiago André Lopes. “Nos últimos dois anos, assistimos [na Tunísia] ao colapso do pouco que a primavera árabe trouxe.”

Doze anos depois, está à vista que “o grande vencedor da primavera árabe é a Rússia. Conseguiu entrar de novo no Médio Oriente, foi o único Estado que fez apostas — na Síria — e, grosso modo, venceu-as”, prossegue, frisando que “quem a Rússia apoiou não caiu”. Simbolicamente, Bashar al-Assad visitou Vladimir Putin, no Kremlin, quarta-feira, 12º aniversário do início da guerra na Síria.

O derrotado na aproximação entre sauditas e iranianos, além dos EUA, é Israel, para quem o Irão é uma ameaça existencial e a Arábia Saudita era um possível futuro signatário dos Acordos de Abraão. Este compromisso, com o qual o Estado judeu vinha abrindo brechas no seu isolamento regional, em nada se diferenciava de uma coligação anti-Irão. Resta saber que réplicas se farão sentir após o abalo que foi o acordo Riade-Teerão.

(IMAGEM Mapa do Médio Oriente, publicado em 1950 BIBLIOTECA DO CONGRESSO DOS EUA / PICRYL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 17 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Cristiano Ronaldo, o novo avançado da ambição internacional da Arábia Saudita

A Arábia Saudita quer enterrar de vez a imagem negativa que a persegue fora de portas e conta com o prestígio de Cristiano Ronaldo para consegui-lo. Esta parceria pode atravessar-se na corrida de Portugal ao Mundial de 2030

A transferência de Cristiano Ronaldo (CR7) para o clube Al-Nassr, da Arábia Saudita, aos 38 anos, pode soar a princípio do fim da carreira de um futebolista extraordinário que recebeu por cinco vezes a Bola de Ouro, troféu que consagra o melhor jogador do mundo. Para o país que o acolheu, contudo, Ronaldo é a esperança de uma grande transformação.

Entre a visibilidade que veio dar ao campeonato saudita e a animação que gera no seio de uma população de 35 milhões, em que 70% têm menos de 35 anos, Ronaldo contribui, pela positiva, para a afirmação internacional de um país agastado por uma imagem ultraconservadora e desrespeitadora dos direitos humanos e por um estatuto que depende, em exclusivo, da abundância de petróleo.

“Julgo que a ida de Ronaldo para a Arábia Saudita é uma mistura de soft power e exercício de marketing, dois conceitos que estão ligados entre si”, comenta ao Expresso David Roberts, professor no King’s College de Londres. “Diz respeito a um reposicionamento mais vasto da Arábia Saudita e à tentativa de criar uma narrativa fundamentalmente diferente, que a afaste de questões negativas e de imagens do passado” e conduza o país “em direção a um sentimento popular inequívoco mais positivo”. Para este perito em assuntos do Médio Oriente, “Ronaldo é muito importante nesse novo pensamento”.

A arma da imagem

Nos manuais de Ciência Política, soft power (poder brando) é um conceito que remete para a capacidade de influência de um país por via do exemplo, dos valores e da aposta em áreas como a cultura e o desporto. Por contraponto, o hard power (poder duro) é o recurso a meios coercivos, sejam militares ou económicos, como as sanções.

“Acredito que a Arábia Saudita esteja a investir no desporto porque reconhece que um país não pode confiar apenas no hard power. Também precisa de soft power para manter boas relações com outros países”, diz ao Expresso Danyel Reiche, professor na Universidade de Georgetown no Qatar. “Por isso, reconhece que os poderes militar e económico não bastam e que também precisa de investir na sua imagem.”

Pelo respeito que conquistou dentro e fora dos relvados, CR7 é uma extraordinária ferramenta de soft power para um país desesperado por reabilitar a sua imagem, degradada nos últimos anos pela campanha de bombardeamentos no Iémen e, sobretudo, pelo caso de Jamal Khashoggi, jornalista saudita crítico do regime que foi assassinado e desmembrado no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia.

A investigação ao crime implicou diretamente o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman (MbS), homem forte do reino e principal mentor de um amplo programa de reformas com que o país se quer abrir ao mundo e no qual CR7 pode ser um peão importante.

Do Newcastle à Fórmula 1

“Ronaldo reflete a mudança na política de poder, que conta não apenas com o hard power, mas passa a visar também o soft power”, diz Reiche. Na área do desporto, “os investimentos começaram antes de Ronaldo, com os jogos [de futebol] referentes às Supertaças de Espanha e de Itália a realizarem-se na Arábia Saudita” e a compra do Newcastle United F.C., clube tradicional inglês, por um fundo de investimentos pertencente à família real saudita.

O país investiu também nos desportos motorizados, passando a acolher o mítico rali Dacar em 2020 e, no ano seguinte, inscrevendo uma corrida no calendário de Fórmula 1, o Grande Prémio de Jeddah, que este ano se realiza a 19 de março. Em 2022, a Arábia Saudita criou o torneio LIV Series, uma espécie de superliga do golfe.

Desde que foi lançada em 2016, a estratégia “Visão 2030” — o tal plano de reformas — tem por objetivo primordial diversificar a economia saudita e reduzir a dependência do reino relativamente à indústria do petróleo, impulsionando, por exemplo, o sector do turismo.

Em paralelo, o programa tem implícito o objetivo de aliviar o controlo wahabita — doutrina religiosa ultraconservadora, austera e puritana, que é religião oficial do Estado — sobre a sociedade. O fim da proibição de as mulheres conduzirem, em 2018, foi uma das medidas mais simbólicas e mediáticas, bem como a autorização da entrada das cidadãs sauditas nos estádios de futebol.

Concubinato é ilegal, mas…

Neste capítulo, a presença de Ronaldo e família na Arábia Saudita é desafiante. Tanto quanto se sabe, o futebolista não é casado com a companheira e o concubinato é prática interdita no reino. Os analistas ouvidos pelo Expresso desvalorizam essa condição, realçando o percurso que a Arábia Saudita vem trilhando em matéria social.

“Se é verdade que Cristiano e a sua companheira não são casados, não vejo que isso seja problema. O atual Governo saudita indicou de várias formas que está a tentar romper com o passado e não se importa com essas abordagens conservadoras da velha guarda”, diz Roberts, autor do livro “Qatar: Securing the Global Ambitions of a City State”.

“O Governo muda as políticas e retira poderes e influência às crenças religiosas e afins. Nesse sentido, mesmo que a lei não seja consentânea com a realidade, não me parece que isso seja uma preocupação” para as autoridades sauditas, acrescenta o docente.

A tolerância de que Ronaldo beneficia no que respeita à sua condição matrimonial vem em linha com uma lei adotada em 2019, que passou a permitir que turistas estrangeiros solteiros partilhem um quarto de hotel, e que levou as autoridades a fecharem os olhos a algumas dinâmicas dos habitantes estrangeiros.

“O relaxamento das normas sociais não começa com o facto de Ronaldo morar com a sua companheira sem serem casados”, diz Reiche, investigador nas áreas do desporto, política e sociedade. “Há muitas mudanças sociais em curso na Arábia Saudita e o desmantelamento da polícia religiosa em 2016 foi, na minha opinião, a maior de todas.”

Abaya niqab já não são obrigatórios

Formada na década de 1940, a chamada Comissão para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício destruía instrumentos musicais, invadia salões de beleza, rapava cabeças, chicoteava pessoas e queimava livros. Difícil é imaginar como atuaria perante um casal com um estilo de vida e exposição mediática que vão além do que é aceite na Arábia Saudita, ainda que o uso da abaya (túnica comprida) e do niqab (véu quase integral) já não seja obrigatório em público para as mulheres.

Roberts não acredita no potencial de contestação social que a falta de sincronia entre o quotidiano de Ronaldo e a realidade saudita possa originar. “Não acho que o Governo saudita sinta pressão de movimentos sociais dentro do país. É muito controlado e controlador, está aos comandos da narrativa.”

A nova estrela do Al-Nassr F.C. (“A Vitória”, em árabe), um dos principais clubes de Riade, é campeão dentro e fora dos relvados. Ronaldo tem mais de 550 milhões de seguidores na rede social Instagram, mais de 160 milhões no Facebook e quase 108 milhões no Twitter.

A sua companheira, a influencer argentina Georgina Rodriguez, é seguida por cerca de 47 milhões de pessoas no Instagram. Se, em público, “Gio” procura primar pela discrição, nas redes sociais posa para as selfies com a ousadia de sempre.

Através das redes sociais, o casal funciona como vitrina para sinais de mudança no país que é o guardião dos dois principais lugares santos do Islão — as mesquitas de Meca e de Medina.

Acusações de sportswashing

A 3 de janeiro, quando foi apresentado em Riade, o próprio CR7 reclamou um papel nesse processo. “Tive muitas oportunidades… Muitos clubes tentaram contratar-me, mas dei a minha palavra a este clube para desenvolver não só o futebol, mas outras áreas deste país fantástico”, disse na conferência de imprensa.

“Quero dar uma visão diferente deste clube e deste país. É por isso que aproveitei esta oportunidade.”

A opção do futebolista português pela Arábia Saudita, Estado não muito cotado nos rankings de respeito pelos direitos humanos, motivou a Amnistia Internacional a emitir um comunicado ao estilo de apelo.

“Cristiano Ronaldo não devia permitir que a sua fama e estatuto de celebridade se tornem uma ferramenta saudita de sportswashing [uso do desporto para melhorar a reputação e mascarar ações merecedoras de condenação]. Devia usar o seu tempo no Al-Nassr para falar sobre a miríade de problemas com os direitos humanos no país.”

Circunscrevendo o impacto do português ao sector desportivo, Ronaldo pode contribuir fortemente para o desenvolvimento da modalidade no reino e noutros países árabes, à semelhança da importância de Pelé no aumento da popularidade do soccer nos Estados Unidos. O “rei” jogou no Cosmos de Nova Iorque entre 1975 e 1977 — os Estados Unidos organizam o Mundial em 1994.

A Arábia Saudita não parece disposta a esperar tanto pelo seu momento. Depois de o futebol ao mais alto nível ter chegado ao Golfo Pérsico com o Mundial no Qatar, em 2022, a Arábia Saudita parece ansiosa por também acolher esse torneio.

Notícias recentes dão conta de que o reino terá sondado o Egito e a Grécia no sentido de uma candidatura conjunta ao Mundial de 2030. Com o anúncio do(s) país(es) organizador(es) previsto para o próximo ano, uma candidatura saudita poderia robustecer-se com o apoio de Ronaldo.

Ronaldo contra Portugal?

“Não tenho a certeza de que 2030 seja hipótese realista para a Arábia Saudita, já que acaba de realizar-se um Campeonato do Mundo no Qatar”, diz Reiche. “Mas é certo que a Arábia Saudita quer ter o seu Mundial um dia, mesmo que não seja em 2030.”

A eventualidade de Ronaldo se tornar uma espécie de embaixador do projeto colocá-lo-ia em rota de colisão com as pretensões de Portugal, que já está na corrida em conjunto com Espanha e Ucrânia.

“É provável que, se a Arábia Saudita lançar uma candidatura ao Mundial de 2030, vá querer que Cristiano desempenhe um papel fundamental nisso, obviamente”, diz Roberts. Em relação à possibilidade de ir contra o seu país, “acontece o mesmo com Messi, suspeito que fosse um momento estranho para ambos”.

Lionel Messi entra em campo porque também a Argentina está na corrida pelo Mundial de 2030, num projeto conjunto com Uruguai, Chile e Paraguai. O astro argentino é ainda embaixador da campanha Visit Saudi, do Turismo da Arábia Saudita. Se esta concorrer ao Mundial de 2030, é bem possível que Ronaldo e Messi passem, por fim, a fazer parte da mesma equipa… saudita.

(FOTO A 22 de fevereiro de 2023, Cristiano Ronaldo associou-se às comemorações do Dia da Fundação do reino TWITTER DO AL-NASSR)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de março de 2023, e na Tribuna Expresso, a 12 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Joe Biden foi ao Médio Oriente: sobressaíram 10 momentos

A ano e meio de mandato, o 46.º Presidente dos Estados Unidos viajou até ao Médio Oriente para uma estadia de quatro dias que o levou a Israel, à Cisjordânia ocupada e à Arábia Saudita. Dois objetivos predominaram: a necessidade de conter o Irão e de integrar Israel na região

Meses após usar a palavra “pária” para se referir à Arábia Saudita, Joe Biden foi ao reino promover uma aliança regional MANDEL NGAN / AFP / GETTY IMAGES

1. O ELEFANTE NA SALA

OIrão e a sua ambição nuclear foram uma sombra que seguiu Joe Biden do primeiro ao último minuto da deslocação ao Médio Oriente este mês. Em Israel, que olha para a República Islâmica como uma ameaça existencial, o Presidente dos Estados Unidos não conseguiu disfarçar uma discordância em relação ao seu mais sólido aliado na região.

Numa entrevista pré-gravada ao Channel 12 de Israel, divulgada no dia em que chegou ao país, Biden defendeu a reativação do acordo internacional sobre o programa nuclear iraniano (a que Telavive se opõe), aceitando manter a opção militar sobre a mesa, “como último recurso”, se Teerão estiver na iminência de obter uma ogiva nuclear.

A apologia das negociações colide de frente com a posição de Israel em relação ao gigante persa. “A única coisa que poderá conter o Irão é saber que, se continuar a desenvolver o seu programa nuclear, o mundo livre usará a força”, disse o primeiro-ministro israelita, Yair Lapid, na conferência de imprensa conjunta com Biden. “A única maneira de detê-los é colocar uma ameaça militar credível sobre a mesa.”

“Continuo a acreditar que a diplomacia é o melhor caminho”, contrapôs Biden. Não ter ouvido da boca do amigo americano palavras mais intransigentes para com Teerão terá sido grande frustração para as autoridades de Israel.

2. NETANYAHU ATIVO NOS BASTIDORES

Um dos israelitas mais vocais na defesa de uma solução militar para o problema iraniano foi o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que governou entre 1996 e 1999 e, depois, entre 2009 e 2021.

O atual líder da oposição assistiu na pista do aeroporto Ben Gurion à aterragem do Air Force One e, logo ali, não enjeitou em comentar o assunto com a imprensa. “Para travar regimes como o Irão, não bastam as sanções económicas e políticas”, disse. “Não há como parar o Irão sem uma opção militar, sem uma ameaça militar credível, na esperança de o deter. Mas se não impedir, não há outra escolha a não ser ativá-la.”

Netanyahu teve direito a um encontro com Joe Biden — “caloroso e excelente”, como qualificou —, onde insistiu na abordagem bélica ao Irão. “Somos amigos há 40 anos, mas, para assegurarmos os próximos 40, temos de lidar com a ameaça iraniana”, afirmou, defendendo que não bastam sanções nem uma aliança defensiva entre Israel e países árabes amigos. “Tem de haver uma opção militar ofensiva credível.” Como “falcão” da política, prometeu: “É o que farei se ou quando regressar ao gabinete de primeiro-ministro.”

Netanyahu, que é o israelita que mais tempo foi primeiro-ministro, aposta todas as fichas nas eleições legislativas de 1 de novembro próximo para regressar à cadeira do poder. As sondagens dizem que é o político mais popular do país.

3. A PRESSÃO DAS ELEIÇÕES

O encontro entre Biden e o primeiro-ministro Lapid, quinta-feira de manhã, no Hotel Waldorf Astoria, em Jerusalém, foi protagonizado por dois líderes pressionados pelo calendário eleitoral.

O Presidente dos Estados Unidos pode ver esfumar-se a curta maioria democrata de que dispõe no Congresso, nas eleições agendadas para 8 de novembro. Já o primeiro-ministro israelita, líder do partido centrista Yesh Atid, tem na mira as legislativas de 1 de outubro, que serão as quintas no país em menos de quatro anos. Lapid está no cargo há menos de um mês, na sequência da mais recente crise na política israelita.

4. O SIONISTA QUE QUER UMA PALESTINA INDEPENDENTE

À chegada a Israel, naquela que foi a sua primeira visita enquanto 46.º Presidente dos Estados Unidos, Biden recordou a primeira visita ao país, em 1973, era ele senador pelo Delaware.

Desde então, Biden já foi oficialmente a Israel dez vezes, o que lhe possibilitou o “privilégio” de conhecer pessoalmente todos os primeiros-ministros desde Golda Meir (1969-1974). “Repito-o: não é preciso ser-se judeu para se ser sionista”, disse agora.

A confissão agradou aos israelitas e lançou desconfiança entre os palestinianos, expectantes em relação ao que ia dizer-lhes. “Israel deve permanecer um Estado judeu, democrático e independente. A melhor forma de o conseguir continua a ser uma solução de dois Estados para dois povos, ambos com raízes profundas e antigas nesta terra.”

Muitos israelitas não terão apreciado que um sionista de coração fizesse a apologia da solução de dois Estados. “Continua a ser, na minha opinião, a melhor maneira de garantir o futuro de igual liberdade, prosperidade e democracia para israelitas e palestinianos”, disse Biden, “ainda que não seja [viável] no curto prazo.”

O roteiro de Joe Biden contemplou umas horas na cidade palestiniana de Belém, na Cisjordânia ocupada. Visitou a Igreja da Natividade, que abriga o local onde nasceu Jesus Cristo — Biden é cristão e católico — e reuniu-se com o Presidente da Autoridade Palestiniana, mas não se comprometeu com um calendário para a retoma das negociações de paz.

Biden e Mahmud Abbas tentaram, em vão, que o encontro fosse selado com uma declaração conjunta, inviabilizada pela complexidade semântica do problema. Os norte-americanos queriam que constasse que o futuro Estado palestiniano teria a sua capital “em” Jerusalém Oriental, enquanto os palestinianos exigiam escrever que “a” capital fosse Jerusalém Oriental.

5. UMA VISITA QUE IRRITOU OS ISRAELITAS

Sexta-feira de manhã, antes de seguir para a Cisjordânia, Biden fez uma visita a Jerusalém Oriental (a parte árabe da cidade santa, ocupada por Israel e que os palestinianos querem para sua capital) que muito indispôs as autoridades israelitas.

O Presidente dos Estados Unidos visitou o Hospital Augusta Victoria, no Monte das Oliveiras (fora da Cidade Velha), recusando a presença de qualquer representante oficial israelita na sua comitiva.

“Estou muito feliz por Biden visitar tanto o ocidente como o oriente da cidade. Tem todo o direito de realizar uma visita privada, mas tenho de dizer que gostava de o acompanhar”, lamentou o autarca de Jerusalém, Moshe Lion.

A iniciativa de Biden é difícil de “encaixar” por parte de alguns sectores israelitas, já que, em 2017, Donald Trump reconheceu formalmente Jerusalém “a capital de Israel” e ordenou a transferência da embaixada dos Estados Unidos para a cidade santa.

Outra circunstância contribuiu para afastar israelitas desta visita. O Hospital Augusta Victoria foi cofundado a seguir à primeira guerra israelo-árabe (1948) por luteranos alemães e pela agência da ONU que ainda hoje assiste os refugiados palestinianos (UNRWA), precisamente para acudir aos palestinianos expulsos de Israel após a criação do Estado.

Desde então, vigora neste hospital uma política de independência que lhe garante boa cooperação com israelitas e palestinianos, mas que, na prática, lhe permite barrar a entrada a representantes israelitas que ali vão em missão de acompanhamento de convidados.

6. ARMAMENTO DE HOJE E DE AMANHÃ

Acabado de chegar a Israel, quarta-feira, foi no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, que Biden cumpriu o primeiro ponto do seu programa de visita. Na pista, uma exposição de equipamento bélico de última geração funcionava como prova da aplicação dos milhões desembolsados por Washington para financiar a indústria israelita de armamento. São exemplos o sistema de defesa antiaéreo Iron Dome (Cúpula de Ferro) e o novo sistema de interceção a laser Iron Beam (Viga de Ferro), em desenvolvimento, com a chancela da empresa israelita Rafael Advanced Defense Systems.

7. UM VOO PARA A HISTÓRIA

De Israel, Biden viajou diretamente para a Arábia Saudita. O voo entre Telavive, na costa do Mar Mediterrâneo, e Jeddah, na costa do Mar Vermelho, fez história, já que os dois países não têm relações diplomáticas. Só muito recentemente, após a normalização das relações diplomáticas entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, em 2020, é que Riade passou a autorizar que aviões israelitas atravessassem o seu espaço aéreo.

Biden descreveu o voo como “um pequeno símbolo das relações emergentes e dos passos na direção da normalização [diplomática] entre Israel e o mundo árabe, em que o meu Governo trabalha para aprofundar e expandir”. O voo foi bom prenúncio já que, no mesmo dia, Riade anunciou a abertura dos céus nacionais aos aviões civis israelitas. Companhias aéreas como a El Al vão passar a encurtar horas nos seus voos para oriente e a equacionar abrir novas rotas.

Nos últimos dois anos, através dos Acordos de Abraão, os Estados Unidos têm pressionado no sentido da integração de Israel na região do Golfo Pérsico. Se foi a Administração Trump que apadrinhou os primeiros Acordos, Biden não os enjeita e colocou-os no capítulo prioritário da sua agenda externa, com o ambicioso objetivo de envolver a Arábia Saudita, o gigante árabe do Médio Oriente.

A deslocação de Biden à Arábia Saudita teve também essa componente, ainda que o próprio tenha admitido, em entrevista à televisão israelita, que a normalização total entre Telavive e Riade vai “demorar muito tempo”.

“Precisamos de ter um processo, e esse processo precisa de incluir a aplicação da Iniciativa de Paz Árabe [de 2002, também conhecida como Iniciativa Saudita]”, explicou o ministro dos Negócios Estrangeiros saudita, Adel al-Jubeir. “Uma vez que nos comprometemos com um acordo de dois Estados com um Estado palestiniano nos territórios ocupados, com Jerusalém Oriental como capital, esses são os nossos requisitos para a paz.”

8. A NOVA ARQUITETURA DO MÉDIO ORIENTE

Joe Biden chegou ao Médio Oriente numa altura em que o mundo se debate com altos preços da energia e grave insegurança alimentar, decorrentes da invasão russa da Ucrânia.

Restaurar a relação entre Estados Unidos e Arábia Saudita — deteriorada pelo assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, no consulado saudita em Istambul, em 2018 — tem, por isso, tripla importância: minimizar a crise económica levando o gigante saudita a abrir as torneiras do petróleo, promover a segurança pugnando pela integração regional de Israel e criar uma frente de defesa regional de contenção do Irão e dos seus próximos.

No mesmo dia em que Biden chegou à Arábia Saudita, o Irão mostrou as garras e apresentou a sua primeira divisão de drones, estacionada no Oceano Índico. Também a Rússia aproveitou a presença de Biden na região para responder às movimentações de Washington e anunciou a realização de uma cimeira entre o Presidente Vladimir Putin e os homólogos iraniano e turco, Ebrahim Raisi e Recep Tayyip Erdogan. O encontro acontecerá esta terça-feira, em Teerão.

A etapa saudita do périplo valeu duras críticas a Biden. A seguir ao assassínio de Khashoggi, em 2018, não hesitara em rotular o reino de “pária”, nem de referir-se com desprezo ao todo-poderoso príncipe herdeiro, Mohammed bin Salman (MbS). Mas quando os interesses económicos falaram mais alto, Biden pôs de parte a agenda dos direitos humanos. Sexta-feira, foi MbS quem o recebeu à entrada do Palácio Al Salman, em Jeddah.

9. I2U2, UMA NOVA FÓRMULA DE INTEGRAÇÃO

Além dos Acordos de Abraão, que constituem uma autoestrada entre Israel e o mundo árabe, esta viagem de Biden inaugurou os trabalhos de um novo fórum de integração regional. A partir de Jerusalém, Biden e o primeiro-ministro Lapid participaram numa cimeira por videoconferência com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e o Presidente dos Emirados Árabes Unidos, Mohamed bin Zayed (MbZ).

Estados Unidos, Israel, Índia e Emirados batizaram o quarteto socorrendo-se da primeira letra dos seus nomes em inglês, o que resultou num impronunciável “I2U2” (ai-tu-iú-tu). A parceria visa aprofundar a cooperação económica entre as regiões do Médio Oriente e do Indo-Pacífico, à semelhança do que acontece, no Pacífico, com o Quad, que junta Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos e procura funcionar como contrapeso à influência da China na região.

Um dos projetos anunciados pelo I2U2 passa pela construção de parques agrícolas na Índia, no valor de 2000 milhões de dólares, que usarão tecnologia israelita e que Abu Dabi (um dos sete Emirados) ajudará a financiar.

10. JOGOS SÓ PARA JUDEUS

Num momento mais descontraído, mas pleno de significado político, Biden marcou presença na cerimónia de abertura dos 21.º Jogos da Macabíada, no Estádio Teddy, em Jerusalém.

Também chamados “Jogos Olímpicos Judeus”, contam com a participação de milhares de atletas judeus oriundos de cerca de 60 países e também israelitas não-judeus (20% da população de Israel é árabe). A competição é sancionada pelo Comité Olímpico Internacional e realiza-se de quatro em quatro anos, no ano seguinte aos Jogos Olímpicos de Verão.

No discurso inaugural, o Presidente de Israel, Isaac Herzog, realçou um “dia de festa para o Estado de Israel e para todo o povo judeu, um momento especial de união. Um momento que incorpora os valores compartilhados nos quais acreditamos: sionismo e excelência, fé e esperança, solidariedade e aproximação”. Com Biden a seu lado.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 18 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui