Teerão desferiu o primeiro ataque assumido contra o território do Estado judaico. Telavive já decidiu que vai retaliar
O aparatoso ataque da República Islâmica do Irão contra o Estado de Israel, na noite de sábado, fez lembrar os dias da Guerra do Golfo de 1991, a primeira a ser transmitido em direto pela televisão. Fundada 10 anos antes, a emissora americana CNN apostou numa cobertura inédita dessa guerra.
Sábado passado, após ter sido noticiado que o Irão lançara um enxame de 330 drones e mísseis balísticos e de cruzeiro na direção de Israel, o mundo colou-se à televisão ‘à espera de os ver chegar’. “Assistimos a isso na Guerra do Golfo, quando os mísseis caíam em Bagdade. Agora estávamos à espera que chegassem. Quase que havia notícias sobre os países que atravessavam…”, ilustra, em conversa com o Expresso, José Palmeira, professor de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho.
A investida do Irão — que Teerão afirma ter sido “limitada”, visando apenas alvos militares e realizada em retaliação pelo ataque de 1 de abril contra o seu consulado em Damasco, atribuído a Israel — abriu porta a novo conflito. O gabinete de guerra israelita já decidiu retaliar, não havendo pistas sobre em que moldes. Teerão promete reagir de imediato. Estados Unidos e União Europeia tentam dissuadir Israel, para que a situação não se agrave ainda mais. Em paralelo, procuram isolar a República Islâmica, adotando novas sanções.
IRÃO Que motivação para atacar?
É percetível uma componente interna. “O Governo dos ayatollahs está muito desacreditado, há uma crise económica, a população vive mal e a polícia dos costumes tem tido atitudes radicais”, explica Palmeira. “Uma das formas de o regime se credibilizar e ter união interna é criar inimigos externos.” Em paralelo, há objetivos regionais. O gigante xiita do Médio Oriente quer ser uma potência hegemónica e “ser temido por todos os outros”. Isso justifica o apoio ao “eixo da resistência”, que passa por aliados regionais xiitas (como o libanês Hezbollah e os iemenitas hutis) e sunitas (como o palestiniano Hamas).
Teerão quis demonstrar poder. “O Irão mostra força quando vende drones à Federação Russa, os quais têm tido papel relevante na guerra na Ucrânia. Revela capacidade tecnológica e ganha dinheiro de que precisa, porque os vende a bom preço.” Até à guerra na Ucrânia, o Irão era o país mais sancionado do mundo.
O ataque foi de grande espetacularidade, mas não provocou grandes danos em Israel, que diz ter intercetado 99% dos projéteis. “O Irão não atacou com mais força porque temia uma retaliação. Quer ter capacidade nuclear, se é que já não tem. Sabe-se onde o urânio está a ser enriquecido e essas localizações seriam o primeiro alvo de Israel, tal como as fábricas de drones”, acrescenta o docente da Universidade do Minho. “O Irão não quis provocar ao ponto de Israel — se tivesse sofrido mortos e feridos — ter de responder obrigatoriamente para não ficar numa situação de fraqueza.”
ISRAEL E agora, Estados Unidos?
O ataque aconteceu numa altura em que a aliança histórica entre Israel e os Estados Unidos revelava desgaste por causa da operação militar na Faixa de Gaza. Mas cedo ficou claro que as forças americanas estacionadas no Médio Oriente estariam ao lado do Estado judaico. “Israel é a única democracia da zona, o que é, para os Estados Unidos e o Ocidente, um elemento relevante a preservar”, comenta Palmeira, “assim como a sobrevivência do Estado de Israel depende, em grande medida, do apoio ocidental e dos Estados Unidos.”
Por outro lado, um conflito entre Israel e o Irão arrisca-se a ter consequências económicas globais, como revela a reunião dos líderes do G7, no próprio dia, de onde saiu um alerta de uma “escalada regional incontrolável”. Mas, realça o académico, “uma coisa é o interesse de Israel, outra é o de Benjamin Netanyahu, acossado internamente”, por causa do 7 de outubro e dos reféns, “e externamente, porque a intervenção em Gaza provocou uma catástrofe humanitária”, diz. “Está a lutar pela sua sobrevivência política e acha que quanto mais duro for, mais isso o favorece.”
“O Irão não atacou Israel com mais força porque temia uma retaliação, pois quer ter capacidade nuclear”, diz o perito José Palmeira
JORDÂNIA Porquê ajudar Israel?
O reino hachemita está exposto à conflitualidade no Médio Oriente, desde logo pela grande quantidade de palestinianos que vive no país. Amã tem sido palco de manifestações contra a guerra em Gaza e, já no pós-7 de outubro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Ayman Safadi, afirmou que “o acordo de paz entre Israel e a Jordânia [de 1994] está na prateleira e a acumular poeira”.
Durante o ataque do Irão a Israel, o reino não hesitou. Caças da Força Aérea jordana abateram drones iranianos em apoio de Israel. Segundo o Presidente francês, Emmanuel Macron, França — que tem tropas na Jordânia — neutralizou projéteis iranianos a pedido de Amã. “A Jordânia tem tido uma atitude construtiva, que começa a mudar a partir do momento em que o Irão surge como ameaça e apoia o Hezbollah no Líbano e grupos jiadistas que estão na Síria e no Iraque. Isto também ameaça a Jordânia. Há receio de um Irão hegemónico, sobretudo a partir do momento em que tenha armas nucleares.”
Recentemente, o comandante do grupo Kataib Hezbollah, uma das maiores milícias pró-iranianas no Iraque, afirmou-se pronto para armar e treinar 12 mil jordanos para se juntarem à frente de resistência anti-Israel.
ARÁBIA SAUDITA Equidistante?
Ataques como o do Irão a Israel têm o potencial de deixar o Médio Oriente “à beira do abismo”, como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres. Isso é um grande revés nos planos de modernização da Arábia Saudita e de outras monarquias do Golfo que se aproximavam de Israel. “O Irão tende a ficar isolado, porque os vizinhos querem paz. Vivem em grande medida do turismo, da atração de figuras como Cristiano Ronaldo. Procuram estabilidade e querem ser vistos do exterior como países onde há qualidade de vida”, comenta Palmeira.
“Ao contrário de outros países, como o Irão, que têm capacidade militar, a Arábia Saudita quer ser forte no plano económico.” Vários países do Golfo “estão a fazer a transição de uma economia assente no petróleo para energias limpas e têm consciência de que esse é o futuro. Não lhes interessa crises económicas nem a desestabilização da zona. Daí um conjunto de países sunitas ter boas relações com Israel, o que isola o Irão, que consideram um perturbador regional.”
Após o ataque do Irão, o Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita emitiu um comunicado lacónico, expressando preocupação perante a “escalada militar” e pedindo a “todas as partes que exerçam a máxima contenção”. Se é verdade que Riade desbravava um caminho de aproximação a Israel, a 10 de março de 2023 fez as pazes com o Irão, após sete anos de relações congeladas.
O contexto força Riade a jogar “um papel quase dúbio”, conclui Palmeira. “Interessa-lhe que a relação com o Irão seja pacificada, mas também, caso o Irão revele apetência para maior escalada, alargar o âmbito das suas alianças, incluindo com Israel. A Arábia Saudita procura não alienar a relação com o Irão e equilibrar a ascensão do Irão com alianças com outros países da região.”
(MAPA MIDDLE EAST POLICY COUNCIL)
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Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de abril de 2024. Pode ser consultado aqui e aqui







