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Raif Badawi já saiu da prisão, mas ainda não é um homem livre

Foi notícia em todo o mundo após ser condenado a 1000 vergastadas em público pela justiça saudita. Cumpridos dez anos de prisão, o bloguista Raif Badawi foi libertado, mas enfrenta a proibição de viajar durante mais dez anos. Iss impede-o de se juntar à família, exilada no Canadá. “Se Portugal puder ajudar…”, apela um membro da equipa de defesa do intelectual saudita

Há sete anos por esta altura, Raif Badawi era o saudita mais famoso do mundo. Um vídeo filmado às escondidas no momento em que sofria 50 vergastadas, numa praça junto a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, foi descarregado na Internet e correu mundo. A exposição de práticas medievais no reino saudita, em pleno no século XXI, gerou indignação mundial.

Badawi, nascido em 1984, pagara caro o ‘atrevimento’ de escrever sobre liberdade religiosa, democracia e direitos humanos no seu blogue “Liberais Sauditas Livres”. Detido e acusado de “insulto ao Islão”, em 2012, foi condenado a 10 anos de prisão, 1000 chicotadas em público, 10 anos de inibição de viajar (após ser libertado) e uma multa no valor de um milhão de riais sauditas (hoje sensivelmente 266 mil euros).

O intelectual acabaria por sofrer apenas essa primeira leva de 50 açoites — a segunda foi adiada oito vezes e nunca concretizada. O próprio castigo por flagelação acabaria por ser abolido no reino, no âmbito das reformas promovidas pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, em 2020.

Apesar dos pedidos de clemência feitos pela família e dos inúmeros apelos à libertação que partiram de organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, de governos e até das Nações Unidas, Raif cumpriu a pena de prisão na sua totalidade.

Dois obstáculos pela frente

O ativista foi libertado a 11 de março passado, onze dias além do tempo previsto (devia ter saído a 28 de fevereiro). Saiu da cadeia, mas ainda não é um homem livre. O seu caso está transformado numa prova de obstáculos e, apesar da pena de prisão cumprida ele não se safa do pagamento da multa nem da inibição de viajar durante mais dez anos, o que o impede de se juntar à família, exilada no Canadá.

A notícia da libertação de Raif chegou à família pela voz do próprio. “Foi o meu pai quem telefonou à minha mãe após sair em liberdade. Não há palavras para descrever quão felizes estamos”, disse ao Expresso um dos três filhos do casal, Terad Badawi, de 17 anos.

Terad, que gere a conta oficial do pai na rede social Twitter, vive com a mãe e duas irmãs (Najwa, de 18 anos, e Miryam, de 14) na cidade de Sherbrooke, no Quebeque. Foi no Canadá que obtiveram asilo político, em 2013, já com Raif a contas com a justiça saudita. E é desse país que lideram uma campanha internacional para que o caso não caia no esquecimento nem saia da agenda política.

“Há discussões em curso para se tentar fazer cair a parte da pena referente ao dinheiro e à proibição de viajar, dado que, segundo a lei saudita, ele já cumpriu o dobro da pena que deveria cumprir”, explica ao Expresso Évelyne Abitbol, membro da equipa de defesa e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade.

Numa carta enviada ao príncipe herdeiro saudita, a 8 de março passado, a que o Expresso teve acesso, um representante legal de Badawi, Irwin Cotler, antigo ministro da Justiça e procurador-geral do Canadá, contesta a situação do agora ex-prisioneiro, argumentando que foi condenado ao abrigo da Lei contra o Cibercrime, que prevê penas máximas de cinco anos (enquanto ele cumpriu 10). Alega também que, ao abrigo do direito internacional, a flagelação é um tipo de punição equivalente à tortura.

Angariação de fundos

“O senhor Badawi foi condenado por fundar um site que visa o diálogo pacífico e aberto. Não representa qualquer preocupação ao nível da segurança. O seu único desejo é reunir-se com a sua família a mais de 10 mil quilómetros de distância, em Sherbrooke, Quebeque, Canadá, para que possa viver os seus dias como marido e pai dedicado”, escreve o jurista.

Paralelamente a esta diligência, decorre na plataforma “GoFundMe” uma campanha de angariação de fundos, lançada pela Fundação Giordano Bruno (Alemanha), com o intuito de arrecadar a pequena fortuna exigida pela justiça saudita.

Desde o início, este caso mobilizou os corredores diplomáticos de países e organizações. Em 2012, conhecida a detenção do bloguista, as Nações Unidas apelaram à sua imediata libertação. Em 2015, a mesma ONU emitiu posição considerando a detenção do saudita ilegal e uma violação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nesse ano, a União Europeia, através do Parlamento Europeu, atribuiu a Raif Badawi o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento. Com o saudita detido em Dhahban Central, prisão de alta segurança em Jeddah, foi a mulher, Ensaf, quem o representou na cerimónia, em Estrasburgo.

O anfitrião Trudeau

Desde a concessão de exílio à família Badawi que este caso tem estado na linha da frente da política canadiana. A 27 de janeiro de 2021, a câmara baixa do Parlamento aprovou, por unanimidade, uma moção (não vinculativa) exigindo a atribuição da cidadania canadiana a Raif Badawi.

O primeiro-ministro Justin Trudeau, que várias vezes se encontrou com a família de Raif, não falhou o momento da libertação do intelectual saudita. “Estou aliviado por Raif Badawi ter sido libertado por fim. Os meus pensamentos estão com a sua família e amigos, que o defendem incansavelmente há quase uma década. Os nossos funcionários estão a trabalhar para esclarecer as condições da sua libertação”, congratulou-se, no Twitter, a 12 de março passado.

Também sobre Trudeau que recai a maior pressão, seja para que o Canadá conceda cidadania a Raif, seja para que interceda junto de Riade para viabilizar a reunião familiar. “O primeiro-ministro do Canadá sempre disse que quando Raif saísse da prisão, iria ajudar”, diz Évelyne Abitbol. “Raif já saiu…”

Mais do que nunca, a defesa deposita na arte da diplomacia a esperança de reversão de partes da sentença. “Americanos, União Europeia, canadianos pediram ao rei Salman que conceda um perdão”, conclui. “Qualquer governo ocidental que possa negociar [com a Arábia Saudita] e consiga dar um salvo-conduto é bem-vindo. Se a Espanha puder… ou Portugal…”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 31 de março de 2022. Pode ser consultado aqui

Netanyahu-Mohammad bin Salman. Uma cimeira para Joe Biden ver

O primeiro-ministro de Israel e o príncipe herdeiro da Arábia Saudita ter-se-ão reunido em segredo numa cidade futurista à beira do Mar Vermelho. Esta inédita cimeira, sem confirmação nem desmentido oficial, acontece menos de dois meses de Joe Biden entrar na Casa Branca, decidido a corrigir decisões de Trump. Dois importantes aliados dos EUA no Médio Oriente recordam a Washington que o Irão é seu inimigo comum

Apesar da transferência de poderes já ter começado nos Estados Unidos, Donald Trump parece continuar em negação, fechado na Casa Branca a alimentar no Twitter teorias da conspiração para a sua derrota. Já o seu secretário de Estado não cessa de circular pelo mundo, empenhado em viagens de agenda cheia ao estilo de um governante em início de mandato.

Prestes a sair de cena, Mike Pompeo regressou há dias à Península Arábica para encontros que prometem (continuar a) mudar o Médio Oriente. O chefe da diplomacia americana visitou os Emirados Árabes Unidos, o Qatar — onde se reuniu com os talibãs afegãos — e a Arábia Saudita, onde se encontrou com o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman (M.B.S.) em Neom, cidade futurista saudita nas margens do Mar Vermelho.

Nesse mesmo dia, o voo de um jato privado entre Telavive, em Israel, e Neom captou a atenção dos curiosos da aviação. O aparelho esteve cinco horas em terra, regressando depois a Israel.

https://twitter.com/IntelliTimes/status/1330737295629168643

Por não haver voos diretos entre os dois países — que não têm relações diplomáticas oficiais —, aquele rasto aéreo nos radares desencadeou palpites e análises geopolíticas.

O ministro saudita dos Negócios Estrangeiros negou-o, mas quer imprensa norte-americana quer israelita noticiaram um frente a frente inédito entre o príncipe herdeiro da Arábia Saudita e seu líder de facto, Mohammed bin Salman (M.B.S.) e o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.

Pompeo esteve presente — embora no Twitter só tenha noticiado o seu encontro bilateral com M.B.S. — nesta reunião não assumida a nível oficial, que revela que Israel e Arábia Saudita já estiveram mais de costas voltadas do que hoje.

“Não penso que a Arábia Saudita vá normalizar as relações com Israel agora”, diz ao Expresso o investigador Ely Karmon, do Instituto de Política e Estratégia de Herzliya (Israel). “Vão deixar o assunto como opção para a Administração Biden.”

Um inimigo comum chamado Irão

O fim do isolamento de Israel perante o mundo sunita foi uma prioridade da agenda externa da Administração Trump, e já deu frutos. Nos últimos meses, três países árabes corresponderam aos esforços diplomáticos norte-americanos e normalizaram a sua relação diplomática com Israel: os Emirados Árabes Unidos e o Bahrain, que a 15 de setembro assinaram com Israel os Acordos de Abraão, na Casa Branca – e o Sudão, numa decisão que não colheu o consenso nos corredores políticos nacionais.

A aproximação entre Israel e a Arábia Saudita pode ser entendida como um novo capítulo dessa estratégia, mas há outro assunto incontornável que empurra Riade e Telavive na direção uma da outra: um inimigo comum chamado Irão.

Neste aspeto, a cimeira em Neom – onde, segundo a imprensa israelita, Netanyahu teve a companhia do chefe da Mossad, Yossi Cohen – pode funcionar como recado para o novo Governo norte-americano, que irá, previsivelmente, reavaliar a sua política em relação ao Irão.

Irá Omã reconhecer Israel?

Outro alvo árabe da diplomacia de Washington tem sido o sultanato de Omã, país discreto que adota uma política de coexistência pacífica com todos os estados da região, incluindo Israel e o Irão. “É possível” que Omã também reconheça Israel, diz Ely Karmon. “Mas por ver a era de Trump chegar ao fim, e com possíveis eleições em Israel, Omã pode decidir esperar para ver.”

O investigador israelita chama a atenção para outros países que poderão, em breve, assinar acordos de normalização da relação com Israel. “Muito provavelmente, alguns países muçulmanos africanos, como o Níger, poderiam vir a seguir.”

O Níger é dos Estados africanos que mais tem estado na mira da diplomacia israelita. Os dois países tinham relações diplomáticas desde a independência do Níger (1960), que as rompeu em 1973 por causa da guerra israelo-árabe do Yom Kippur. Foram retomadas em 1996 e de novo suspensas em 2002, durante a segunda Intifada (revolta) palestiniana.

Ely Karmon afirma também que “será interessante olhar para a Indonésia”. O gigante muçulmano, com cerca de 230 milhões de habitantes, nunca reconheceu o Estado de Israel, mas mantém relações discretas com o Estado judeu a nível de comércio, turismo e segurança – ao contrário, por exemplo, da não longínqua Malásia, em cujos passaportes pode ler-se: “Este passaporte é válido para todos os países exceto Israel”.

(ILUSTRAÇÃO O saudita Mohammed bin Salman, o norte-americano Joe Biden e o israelita Benjamin Netanyahu THE WASHINGTON INSTITUTE FOR NEAR EAST POLICY)    

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Um novo Golfo, mais jovem e agitado

Outrora estável, conservadora e adepta da continuidade, a região vive hoje uma mudança acelerada

O Kuwait tornou-se, esta semana, o mais recente reino nas margens do Golfo Pérsico a instalar no poder uma nova liderança. Quinta-feira, um novo príncipe herdeiro prestou juramento diante do Parlamento, sensivelmente uma semana depois de Nawaf Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah ter sido designado emir. Meios-irmãos entre si, são ambos octogenários, o que destoa de uma tendência crescente na região: a ascensão a cargos de poder de personalidades mais jovens.

“No caso do Kuwait, houve claramente uma aposta na estabilidade, no que toca à sucessão do xeque Al-Sabah [falecido a 29 de setembro], com o poder a permanecer nas mãos da velha guarda”, diz ao Expresso Manuel Castro e Almeida, doutorado em Relações Internacio­nais pela London School of Economics and Political Science, do Reino Unido.

O académico explica que, da mesma forma, “o novo sultão de Omã é da velha geração, embora nos primeiros meses de reinado tenha dado indicações positivas em matéria de reformas urgentes nas áreas da diversificação económica e da governação”. À semelhança do Kuwait, Omã tem novo chefe de Estado desde 10 de janeiro. Haitham bin Tariq Al Said, de 64 anos, sucedeu ao primo, o sultão Qabus, que morreu aos 80 anos a escassos meses de completar 50 anos no trono.

Estes monarcas chegam ao poder numa altura em que a dinâmica regional é muito marcada pela atuação individual de dois príncipes herdeiros, líderes de facto da Arábia Saudita — Mohammed bin Salman (M.B.S.), de 35 anos — e dos Emirados Árabes Unidos — Mohammed bin Zayed al Nahyan (M.B.Z.), de 59.

M.B.S. versus M.B.Z.

“É difícil dizer qual é o mais poderoso, mas a influência low profile dos Emirados, o seu soft power, é enorme e vai muito além da região. Os Emirados têm sido líderes da modernização no mundo árabe, como reconhecem em sondagens os jovens árabes por toda a região. M.B.S. quer posicionar a Arábia Saudita da mesma forma”, diz Manuel Castro e Almeida, diretor de pesquisa do Group ARK, empresa especializada na aplicação de projetos no Médio Oriente na área da prevenção do extremismo violento. Criou, por exemplo, os ‘Capacetes Brancos’ na Síria.

Num artigo publicado a 2 de junho de 2019, o influente “The New York Times” titulava: “O governante árabe mais poderoso não é M.B.S.. É M.B.Z.”. O analista português diz que “há uma relação de grande proximidade entre ambos” e que “M.B.Z. teve um papel como mentor de M.B.S.”.

Reformas substanciais

Pela sua dimensão territorial, pela liderança do mundo islâmico que reclama na qualidade de guardiã dos principais lugares santos do Islão (Meca e Medina), bem como pela rivalidade histórica com o vizinho persa (Irão), tudo o que acontece na Arábia Saudita tem impacto na região e na forma como, do estrangeiro, se olha para ela.

Neste capítulo, a governação de M.B.S. tem capitalizado. Entre as reformas mais sonantes promovidas pelo príncipe saudita estão a diminuição de poderes da polícia religiosa, a autorização para as mulheres conduzirem, o enfraquecimento do sistema de tutela masculino (que submete as sauditas à autoridade de um homem da família) e a abertura do país aos turistas.

“Tanto M.B.S. como M.B.Z. são reformadores”, diz Castro e Almeida. “Ambos apostam forte no conceito de boa governação e modernização dos seus países. Mas é preciso colocar esse carácter reformador no contexto local, nomeadamente em termos dos sistemas políticos, do contrato social vigente desde que estes países existem, da volatilidade da região na última década e do conservadorismo de segmentos substanciais das populações.”

No coração da região, há uma crise que dura há mais de três anos e que não dá mostras de sanar: o bloqueio ao Qatar — que é governado por um emir de 40 anos, Tamim bin Hamad Al Thani —, imposto por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrain (e também Egito). “É uma crise que acrescenta fragilidade e instabilidade não só ao Golfo como ao Médio Oriente como um todo.”

Emirados têm sido os líderes da modernização no mundo árabe. Arábia Saudita quer colocar-se de igual forma

“Mas o bloqueio é mais sintoma do que causa”, continua o analista. “Existem profundas diferenças estratégicas e ideo­lógicas dentro do Conselho de Cooperação do Golfo”, a organização regional composta pelas seis monarquias árabes, todas com a fonte de receita dominante no petróleo e no gás e todas tementes em relação ao vizinho da frente, o Irão.

“O apoio do Qatar aos grupos islamitas da região e a sua aliança com a Turquia fazem dele, para os líderes sauditas e dos Emirados, na melhor das hipóteses um vizinho incómodo e na pior uma ameaça”, prossegue Castro e Almeida.

O amigo israelita

Há menos de um mês, Emirados e Bahrain frustraram grande parte do mundo árabe ao assinarem um tratado de normalização diplomática com Israel (Acordos de Abraão). “Acredito que mais países sigam esse caminho, embora no caso da Arábia Saudita esse passo seja mais complexo. Riade liderou, no passado, a Iniciativa de Paz Árabe, que visava solucionar o conflito israelo-palestiniano. Dada a linha dura do atual Governo israelita em relação aos palestinianos, é complicado para a liderança saudita oficializar esse passo.”

A tudo isto acresce a intervenção militar da Arábia Saudita e dos Emirados no Iémen, que dura desde 2015, e a queda acentuada dos preços do petróleo e do gás, consequência do impacto económico global da pandemia. Conclui Manuel Castro e Almeida: “Para uma região que, nas últimas décadas, se definia mais pela estabilidade, continuidade e conservadorismo, é muita mudança em pouco tempo.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 10 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui e aqui

O reino das 1001 noites

Na casa real saudita, o poder tem passado de irmão para irmão. O paradigma mudará se o atual príncipe herdeiro, o todo poderoso Mohamed bin Salman, subir ao trono. Nos últimos dias, foram detidos e depois libertados alguns príncipes que lhe faziam sombra

Há apenas cem anos, a Arábia Saudita era ainda um projeto de país. A Casa de Saud — uma das famílias mais antigas, numerosas e influentes da região — tinha em curso uma operação política e militar marcada pelo desejo de unificar a Península Arábica e submetê-la à sua interpretação conservadora do Islão — o salafismo. A campanha começou em 1902 e levou à conquista de tribos e reinos, emirados e cidades-estado, pedaços de terra que eram propriedades de xeques. Terminou em 1932 com a proclamação do moderno Reino da Arábia Saudita.

Na liderança ficou Abdulaziz ibn Saud, pai de dezenas de filhos que procriou com 16 mulheres, e para quem aquele país era um assunto de família. Quando morreu, em 1953, sucedeu-lhe no trono o seu filho Saud. Desde então, cumprindo uma determinação do pai fundador, a transmissão do poder tem-se processado de irmão para irmão. Tem sido assim até aos dias de hoje: o atual monarca saudita, Salman, é irmão de Saud. Mas este padrão pode ter os dias contados.

PIRÂMIDE DE SUCESSÃO
AO TRONO SAUDITA

Em 2017, Salman designou como príncipe herdeiro o seu filho Mohamed bin Salman (MbS). No chamado Conselho de Fidelidade — o órgão responsável por determinar o futuro sucessor ao trono, composto por membros mais velhos da família real —, a nomeação de MbS teve apenas três votos contra. Um deles foi particularmente simbólico: o do seu tio Ahmed bin Abdulaziz al-Saud, o irmão mais novo (da mesma mãe) do rei Salman.

Na sexta-feira, Ahmed bin Abdulaziz al-Saud, de 78 anos, foi uma das dezenas de personalidades, entre funcionários governamentais, militares e membros da família real, detidas pela guarda real, “acusadas de montar um golpe conspirativo para derrubar o rei Salman e o príncipe herdeiro”, noticiou o jornal norte-americano “The Wall Street Journal”.

Entre os visados, esteve também Mohammed bin Nayef, sobrinho do rei (filho de um irmão já falecido). Era ele o príncipe herdeiro quando, em junho de 2017, viu-se destituído de todos os cargos que ocupava, incluindo o de ministro do Interior, atribuídos para que um predestinado a mais altos voos possa demonstrar competência. Sem responsabilidades em mãos, Bin Nayef, 58 anos, saiu da linha de sucessão e foi substituído pelo primo MbS, então com 32 anos.

Num reino fértil em intrigas palacianas, as detenções efetuadas na passada sexta-feira fizeram disparar rumores de que estaria em curso uma tentativa de golpe, porventura decorrente da deterioração da saúde do rei Salman, de 84 anos. No domingo, para acabar com a especulação, a agência noticiosa saudita divulgou imagens do monarca sentado no seu gabinete a despachar serviço. Aparentando boa saúde, Salman surgiu também a presidir à cerimónia de entrega de credenciais dos novos embaixadores da Ucrânia e do Uruguai.

Comprovada a saúde do monarca, aos rumores seguiu-se uma intuição: a purga terá sido, acima de tudo, um exercício de imposição de disciplina no interior da família real, “uma tentativa do príncipe herdeiro consolidar o poder dentro da família real”, lê-se, esta segunda-feira, no jornal norte-americano “The Wall Street Journal”, a publicação que primeiro noticiou as detenções na sexta-feira. Segundo o mesmo órgão, as autoridades já começaram a libertar os detidos após serem interrogados por dezenas de responsáveis e membros da família real.

Não é a primeira vez que, com MbS na antecâmara do poder, há purgas a varrer a família real. Em novembro de 2017, cinco meses após ser nomeado príncipe herdeiro, dezenas de príncipes, ministros e homens de negócios ficaram meses fechados dentro do luxuoso Ritz-Carlton de Riade, no âmbito de uma operação anticorrupção, supervisionada pessoalmente por MbS. O hotel deixou de receber hóspedes durante todo esse tempo e os detidos só reconquistaram a liberdade após assinarem acordos confidenciais no valor de muitos milhões de dólares.

Meca sem peregrinos

A mais recente trama nos corredores reais de Riade coincide com o surto do Covid-19 que está a pressionar a Arábia Saudita a vários níveis: o preço do petróleo está em queda nos mercados internacionais e as peregrinações a Meca estão suspensas, para nacionais e estrangeiros.

Desde que foi nomeado príncipe herdeiro, MbS tem-se afirmado como o homem forte da Arábia Saudita e o seu líder de facto. Ministro da Defesa desde janeiro de 2015, foi ele quem desencadeou a operação militar saudita no Iémen, em março seguinte, que se transformou na pior crise humanitária no mundo. Nas notícias, ele ora surge associado a conquistas sociais, como a permissão das mulheres sauditas conduzirem, ora a episódios macabros, como a morte do jornalista crítico do regime saudita Jamal Kashoggi, em 2018, no consulado saudita em Istambul. Então como agora, MbS mostra que não gosta de pedras no seu caminho.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 9 de março de 2020. Pode ser consultado aqui

Acabaram as áreas separadas para mulheres e homens nos restaurantes

Depois de conquistarem o direito de conduzirem e de viajarem para o estrangeiro sem autorização de um homem da família, as sauditas viram mais uma barreira em seu redor ser derrubada. Em cafés e restaurantes, deixam de estar separadas dos clientes masculinos

Neste McDonald’s, em Riade, uma divisória separa áreas de atendimento para mulheres e homens PATRICK BAZ / AFP / GETTY IMAGES

O ultraconservadorismo na Arábia Saudita acaba de sofrer mais um golpe. Cafés e restaurantes deixam de ser obrigados a providenciar salas de refeição e entradas separadas para as mulheres.

A decisão foi anunciada no domingo pelo Ministério dos Assuntos Municipais e Rurais que determinou que a restauração não necessita mais de “especificar espaços privados”.

Até agora, as sauditas estavam proibidas de usufruir das áreas frequentadas por clientes masculinos, sendo relegadas para zonas reservadas a famílias. Em pequenos cafés, sem espaço para áreas privadas, as mulheres estavam proibidas de entrar.

Mas a interdição já apresentava fissuras. Alguns cafés e restaurantes de hotéis de luxo de Riade, ou de cidades costeiras como Jeddah (oriente) ou Khobar (oriente) já autorizavam as mulheres a sentarem-se lado a lado com homens desconhecidos.

O fim da segregação de género nos restaurantes é a última de um conjunto de medidas que têm contribuído para acabar com as restrições de género na Arábia Saudita. Em agosto, as mulheres com mais de 21 anos passaram a poder tirar o passaporte — e sair do país — sem o consentimento do seu tutor masculino. Dois meses antes, já tinha sido abolida a proibição de conduzirem.

As sauditas já conquistaram também a possibilidade de ir a concertos e eventos desportivos antes reservados aos homens. E, nas escolas, as meninas passaram a ter educação física.

O toque do príncipe Salman

Este empoderamento das sauditas seguiu-se à nomeação de Mohammed bin Salman como príncipe herdeiro, a 21 de junho de 2017. Apostado em diversificar a economia, tornando-a menos dependente do petróleo, Salman tem promovido reformas sociais visando desenvolver o sector público e atrair investimentos estrangeiros.

As mulheres têm beneficiado com isso, pelo menos em teoria já que, apesar das mudanças na lei, muitos sauditas encaram a segregação de género como preceito religioso ou tradição cultural — algo que não se altera por decreto.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui