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Drones, mísseis, navios e sanções: as ‘armas de arremesso’ que colocam iranianos e sauditas em tensão permanente

08.05.2018 — Os Estados Unidos retiram-se do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, assinado três anos antes. Um acordo “horrível”, diz Trump

24.06.2018 — Com uma ofensiva em curso no Iémen desde março de 2015, contra os rebeldes huthis, apoiados pelo Irão, a Arábia Saudita diz ter intercetado dois mísseis balísticos nos céus de Riade lançados a partir do Iémen

25.07.2018 — Um petroleiro saudita é atacado e danificado ao largo do Iémen

07.08.2018 — Entra em vigor o primeiro pacote de sanções suspensas pela assinatura do acordo nuclear de 2015

09.08.2018 — Riade anuncia a interceção de dois mísseis disparados desde o Iémen

10.01.2019 — A explosão de um drone de fabrico iraniano mata seis membros das forças iemenitas apoiadas pela Arábia Saudita, durante uma parada militar, junto à base aérea de Al-Anad, perto de Aden

03.04.2019 — A coligação liderada por Riade que bombardeia o Iémen diz ter abatido dois drones que se dirigiam para a cidade de Khamis Mushait, onde a força aérea saudita tem uma das suas principais bases

14.05.2019 — Drones armados atingem duas estações de bombagem de petróleo a oeste de Riade

20.05.2019 — Dois mísseis balísticos são abatidos nos arredores de Jeddah e Taif, após sobrevoarem mais de 200 quilómetros de espaço aéreo saudita

02.05.2019 — Os EUA acabam com isenções que permitiam a países terceiros comprar petróleo ao Irão sem penalizações

12.05.2019 — Quatro navios, incluindo dois petroleiros, são danificados ao largo dos Emirados Árabes Unidos. A investigação conclui tratar-se de sabotagem. Os EUA implicam o Irão

12.06.2019 — Um míssil lançado do Iémen atinge o aeroporto de Abha, no sul da Arábia Saudita, ferindo 26 pessoas

13.06.2019 — Dois petroleiros são atacados no Golfo de Omã. Washington acusa Teerão de ter sabotado os cascos com explosivos

17.06.2019 — Os rebeldes huthis reivindicam novo ataque contra o aeroporto de Abha, desta vez com um drone

20.06.2019 — A Arábia Saudita confirma um ataque a uma planta de dessalinização na cidade de Shuqaiq

20.06.2019 — Teerão abate um drone americano sobre o estreito de Ormuz por violação do seu espaço aéreo. Trump aborta um ataque ao Irão a dez minutos do seu início

22.06.2019 — Trump autoriza medidas de retaliação que incluem ataques cibernéticos contra sistemas de defesa antiaérea iranianos

02.07.2019 — Novo ataque com drones contra o aeroporto de Abha causa nove feridos

04.07.2019 — Forças britânicas capturam o petroleiro iraniano Grace 1 ao largo de Gibraltar, acusando-o de contrabando de petróleo para a Síria

19.07.2019 — O Irão captura o petroleiro britânico “Stena Impero” no estreito de Ormuz

01.08.2019 — Os rebeldes iemenitas lançam míssil contra o porto saudita de Dammam

05.08.2019 — Ataque de drones contra os aeroportos de Abha e Najran e a base Rei Khalid

17.08.2019 — Ataque com drones incendeia o campo petrolífero Shaybah

25.08.2019 — Os huthis lançam dez foguetes Badr-1 sobre o aeroporto de Jizan

14.09.2019 — Ataque às centrais de Abqaiq e Khurais

19.09.2019 — A coligação saudita interceta um barco com explosivos ao largo do Iémen

(IMAGEM Bandeiras da Arábia Saudita e do Irão PORT TECHNOLOGY)

Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de setembro de 2019

Arábia Saudita e Qatar ‘unidos’ em nome de um perigo maior

Na próxima quinta-feira, na cidade santa de Meca, duas cimeiras árabes irão abordar a tensão no Golfo Pérsico. Por momentos, a Arábia Saudita “esqueceu” o bloqueio que impôs ao Qatar e convidou o Emir a estar presente

A escalada da tensão no Golfo Pérsico, protagonizada por Estados Unidos e Irão, está a aproximar “irmãos árabes” desavindos. No domingo, o Rei da Arábia Saudita convidou o Emir do Qatar a participar em duas cimeiras convocadas com caráter de urgência que terão lugar na próxima quinta-feira, na cidade saudita de Meca.

À mesa do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) — organização regional que integra as seis monarquias ribeirinhas àquele curso marítimo — e da Liga Árabe (composta por 22 países), estarão as recentes “agressões e respetivas consequências” na região, noticiou a agência de notícias saudita.

Arábia Saudita e Qatar estão de costas voltadas desde junho de 2017 quando os sauditas (apoiados por Emirados Árabes Unidos, Bahrain e Egito) impuseram ao Qatar um bloqueio económico e diplomático. A resolução do conflito está dependente da aceitação do Qatar de uma lista de 13 exigências — entre as quais o corte de relações diplomáticas com o Irão — que Doha não parece inclinada a acatar.

Riade “não quer a guerra”

O convite de Riade para o Qatar se fazer representar ao mais alto nível nos encontros de Meca foi entregue em Doha pelo secretário-geral do CCG, Abdullatif bin Rashid Al Zayani, lê-se num comunicado do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Qatar.

Para a Arábia Saudita, o estender de mão ao pequeno Emirado justifica-se em nome de um perigo maior: a rivalidade com o Irão, com quem o Qatar tem boa relação.

Riade acusa o Irão de estar na origem de recentes ataques com drones a instalações petrolíferas sauditas (reivindicados pelos rebeldes iemenitas huthis, aliados do Irão) bem como de atos de sabotagem a quatro navios comerciais ao largo dos Emirados Árabes Unidos (que ainda não divulgaram as conclusões da investigação aos casos).

Os incidentes levaram a um reforço do dispositivo militar norte-americano na região e a um agravamento da habitual retórica de confrontação entre a República Islâmica e os Estados Unidos. E levaram a Arábia Saudita a tentar deitar água na fervura assumindo que Riade “não quer uma guerra, não a procura e fará tudo para a impedir”, assegurou o ministro saudita dos Negócios Estrangeiros, Adel al-Jubeir.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 27 de maio de 2019. Pode ser consultado aqui

Revolução de mulheres à solta no Twitter

Uma jovem saudita fugiu do país expondo a atual fragilidade do Reino

Imagem de um vídeo de Rahaf Mohammed al-Qunun, feito dentro do quarto onde se barricou, no aeroporto de Banguecoque TWITTER RAHAF MOHAMMED

Três meses após o macabro assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, que implicou o regime da Arábia Saudita, fragilizando-o na cena internacional, aquele que é um dos países mais poderosos e conservadores do mundo está novamente posto à prova. Rahaf Mohammed al-Qunun, de 18 anos, filha do governador de Al-Sulaimi (norte), ousou fugir do Reino e de um futuro traçado pelos rígidos códigos sociais que subordinam a vida das mulheres à vontade dos homens da família.

Determinada a exilar-se na Austrália, após acusar a família de maus tratos, foi intercetada na Tailândia, onde o passaporte lhe foi confiscado. Para resistir ao repatriamento forçado barricou-se num quarto de hotel no aeroporto de Banguecoque e exigiu falar com o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. “Se a jovem não quer partir, não será enviada contra a sua vontade”, declarou o chefe da polícia tailandesa de Imigração. A ONU acabaria por entrevistá-la, validar a sua história e levá-la para “local seguro”. Tudo isto em 48 horas.

“Há certamente um ‘efeito Khashoggi’ neste caso”, comenta ao Expresso a ativista dos direitos humanos suíço-iemenita Elham Manea. “Em 2017, num caso semelhante, Dina Ali ia para a Austrália e foi parada no aeroporto de Manila [Filipinas]. Foi arrastada contra a vontade para um avião que a levou de volta para a Arábia Saudita. O mundo limitou-se a assistir. Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois…”

A arma do telemóvel

“Sem o ‘efeito Khashoggi’, a fuga teria passado despercebida à comunidade internacional e a ONU não teria agido de forma rápida e decisiva”, diz ao Expresso Manuel Almeida, investigador no Centro do Médio Oriente, da Escola de Economia e Ciência Política de Londres. “A morte do jornalista fica apenas atrás do 11 de Setembro como mancha permanente na reputação saudita.”

À hora de fecho desta edição, Rahaf continuava sob tutela da ONU, à espera de notícias da Austrália. Ontem, massacrada com ameaças de morte, suspendeu a conta no Twitter, o canal com o mundo sem o qual, uma semana após ter fugido, não manteria acesa a esperança num futuro em liberdade. Diante de jornalistas tailandeses, o encarregado de negócios saudita afirmaria que, em vez do passaporte, as autoridades locais deveriam ter-lhe apreendido… o smartphone.

A odisseia de Rahaf é rápida de contar. De férias com a família no Kuwait — onde, ao contrário da Arábia Saudita, as mulheres não necessitam de autorização masculina para viajar sozinhas —, Rahaf comprou uma viagem com destino à Austrália. Travada na escala em Banguecoque faz hoje uma semana abriu uma conta no Twitter quando se sentiu apertada pelas autoridades. Foi o tiro de partida para uma revolução em sua defesa, que galgou as fronteiras digitais graças, em especial, ao empenho de várias mulheres.

Atenta aos tweets desesperados da jovem, Sophie McNeill, uma jornalista australiana da televisão ABC, foi ao seu encontro conseguindo que ela lhe abrisse a porta do quarto. Rahaf haveria de agradecer-lhe essa “proteção”. No Twitter, a feminista egípcia Mona Eltahawy deu visibilidade ao caso, levando um exército de seguidores a fazer pressão junto de organizações, embaixadas e deputados de todo o mundo. E após Rahaf obter proteção da ONU, três jovens sauditas foram importantes para não deixar o caso morrer. Desde a Austrália, a Suécia e o Canadá, foram-se revezando na gestão do Twitter.

Manuel Almeida não prevê que o caso de Rahaf tenha consequências diretas no sistema de tutela masculina em vigor. “Mas acredito que o país caminha a passos largos para a sua abolição. Na Arábia Saudita, há mais mulheres do que homens a estudar, e obtêm melhores resultados em ciências, engenharia e matemática. Há mais mulheres a formarem-se e um número crescente a entrar no mercado de trabalho. Com o tempo, o sistema de tutela masculina será insustentável política, económica e socialmente.”

Artigo publicado no Expresso, a 12 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui

 

A odisseia de uma jovem saudita, contra a família e contra o país

Determinada em libertar-se das amarras sociais que a condenavam a uma vida submissa, uma jovem saudita meteu-se num avião a caminho da Austrália em busca de asilo. Intercetada na Tailândia, temeu pela vida. Sem sair do aeroporto, barricou-se num quarto de hotel, abriu conta no Twitter e gritou por ajuda — 48 horas depois saía em liberdade

“A minha conta oficial será entregue aos meus amigos mais próximos caso eu desapareça, para que as informações reais sobre o meu caso sejam atualizadas e documentadas, para que as restantes provas sejam publicadas e para que a voz das raparigas como eu nunca seja abafada.”

O tom desta mensagem publicada no domingo no Twitter por uma saudita de 18 anos não podia ser mais inquietante. Mais ainda quando, ao percorrer as suas mensagens, se percebia que aquela conta tinha sido criada apenas no dia anterior com o objetivo indisfarçável de pedir ajuda. A utilizadora era Rahaf Mohammed al-Qunun, uma estudante na Universidade Ha’il (nordeste da Arábia Saudita), em fuga a um futuro que lhe haviam traçado.

Aproveitando umas férias com a família no Kuwait, Rahaf ganhou coragem e, no sábado, apanhou um voo para Banguecoque, a capital da Tailândia. Ao contrário do que é possível no seu país natal, não necessitou de autorização de um homem da família para comprar bilhete e subir a bordo.

Rahaf tencionava chegar à Austrália, mas a escala tailandesa não foi pacífica. Chegada ao Aeroporto Suvarnabhumi, viu ser-lhe apreendido o passaporte — aparentemente porque não tinha bilhete de regresso, reserva de hotel ou qualquer programa turístico —, o que a impediu de seguir viagem para a Austrália, onde tencionava pedir asilo. Temendo ser deportada para junto da família, barricou-se num quarto de hotel no aeroporto e abriu conta no Twitter. A sua história começou então a circular a reboque da “hashtag” #SaveRahaf.

A jovem acusa a família de abusos, “incluindo espancamentos e ameaças de morte por parte de homens da família, que também a forçaram a ficar no seu quarto durante seis meses por ter cortado o cabelo”, informa a Human Rights Watch. “É evidente que ela procura proteção internacional”, acrescenta a organização humanitária. “Al-Qunun pode estar em sérios riscos se regressar para junto da família. Na Arábia Saudita, ela também enfrenta possíveis acusações criminais, numa violação aos seus direitos básicos, por ‘desobediência parental’, que podem originar castigos desde regressar a casa do seu guardião até à prisão, e por ‘prejudicar a reputação do reino’ nos seus pedidos de ajuda públicos.”

No Twitter, Rahaf foi divulgando provas da sua identidade, desmentindo notícias que iam saindo sobre si na imprensa saudita e publicando imagens do pequeno quarto onde resistia e onde o colchão, uma mesa e uma cadeira bloqueavam a abertura da porta, em caso de invasão forçada. E foi fazendo apelos ao mundo: “Quero a ONU! Quero a ONU! Quero a ONU!”.

Em meia dúzia de horas tinha os principais órgãos de informação internacionais de olhos postos na sua história — a videojornalista australiana Sophie McNeill, que trabalha para a australiana ABC, conseguiu entrar para dentro do quarto — e uma senadora australiana a trabalhar no seu caso: “A Austrália tem de ajudar esta jovem urgentemente! A sua vida está em perigo após ela renunciar ao Islão e fugir a um casamento forçado. Nós podemos emitir documentos de viagem de urgência para que ela apanhe um voo para a Austrália e procure segurança. Já apelei ao Governo para que haja rapidamente!”, escreveu no Twitter a senadora Sarah Hanson-Young.

A partir do seu quarto, Rahaf confirmou que procura “proteção” de um país terceiro, especialmente “Canadá, Estados Unidos, Austrália e Reino Unido”. O impacto mediático do caso, que transbordou as redes sociais, levou a um decisão rápida por parte das autoridades tailandesas: “Se a jovem não quiser partir, ela não será enviada contra a sua vontade” para a Arábia Saudita, esclareceu o major general Surachate Hakparn esta segunda-feira.

A aparente facilidade com que o caso parecia resolver-se levantou dúvidas em relação à sinceridade das palavras do general. A confiança aumentou quando foi dada “luz verde” a uma delegação do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados para visitar Rahaf no quarto. Pouco depois surgia a notícia de que a jovem poderia sair — ficaria à guarda das Nações Unidas. “Ela já saiu do aeroporto com a ONU”, informou o general. “Ela não está mais detida pelos serviços de imigração.”

Até sair da Tailândia, Rahaf não pode respirar de alívio, apesar do rápido e positivo desfecho de um caso que tinha tudo para correr mal. Em abril de 2017, numa situação muito semelhante, a saudita Dina Ali Lasloom foi forçada a regressar a casa durante uma escala nas Filipinas, igualmente a caminho da Austrália.

A odisseia de Rahaf ganhou uma dimensão acrescida dado estar ainda recente na memória o brutal assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi, um crítico do regime de Riade, que colocou o reino saudita no radar do (in)cumprimento dos direitos humanos.

Após ser nomeado príncipe herdeiro da coroa saudita, em junho de 2017, Mohammed bin Salman (MbS), hoje com 33 anos, “libertou” as sauditas de algumas amarras para anunciar ao mundo o início de uma nova era social no reino, designadamente permitindo que passassem a conduzir automóveis.

A fuga de Rahaf revela que o principal problema subsiste: o sistema de tutela familiar que subordina as mulheres à vontade de um homem — seja pai, marido, irmão ou mesmo filho — para decisões como estudar ou viajar para o estrangeiro. Estas obrigações duram a vida inteira. Para o Estado, as mulheres são permanentemente menores — até jovens destemidas como Rahaf Mohammed al-Qunun o provarem que não.

(IMAGENS Rahaf Mohammed al-Qunun, no interior de um quarto de hotel, no aeroporto de Banguecoque, na Tailândia TWITTER)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de janeiro de 2019. Pode ser consultado aqui

O dia em que americanos e sauditas firmaram um acordo para toda a vida

O assassínio do jornalista saudita Jamal Khashoggi abalou a aliança de décadas entre Estados Unidos e Arábia Saudita, mas não ao ponto de a ferir de morte. Petróleo, armamento e inimigos comuns contribuem para a solidez de uma relação especial em que os dois países têm muito a perder um sem o outro

Na vertigem com que rasga tratados internacionais, há um acordo, porém, que Donald Trump não se atreve a questionar. Data de 14 de fevereiro de 1945 e foi celebrado a bordo do USS Murphy, atracado no Grande Lago Amargo, no Egito. A caminho de casa — oriundo da Conferência de Ialta, onde se reuniu com o britânico Winston Churchill e o soviético José Estaline —, o Presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt recebeu, no contratorpedeiro, Abdulaziz Ibn Saud, pai de Salman, o atual monarca da Arábia Saudita, e avô de Mohammad bin Salman (MBS), o príncipe herdeiro que hoje surge como o líder ‘de facto’ do país.

Na década anterior a este encontro histórico, tinha sido descoberto petróleo na Arábia Saudita. Em 1945, o reino vivia sobre um autêntico mar de “ouro negro” e empresas americanas controlavam a Arabian Oil Company (Aramco), a petrolífera saudita criada em 1933. Roosevelt e Saud constataram essa realidade e firmaram um acordo para a vida: os sauditas continuariam a produzir petróleo e os norte-americanos jamais deixariam de o comprar. Com o tempo — e sucessivas crises e conflitos no Médio Oriente —, esta aliança passou a incluir uma dimensão militar, que transformou a Arábia Saudita num cliente vip do mercado de armas dos EUA.

Mais de 70 anos depois, a aliança Washington-Riade está posta à prova por força do “caso Khashoggi”. O príncipe herdeiro saudita é suspeito de ter dado pessoalmente a ordem para a execução do jornalista, crítico do regime de Riade, no interior do consulado da Arábia Saudita em Istambul (Turquia). Em Washington, o Congresso e a Casa Branca já defenderam medidas penalizadoras se ficar provado o seu envolvimento no crime.

Esta sexta-feira, MBS e Donald Trump estão na Argentina para participar na cimeira do G20, que termina sábado. Washington já fez saber que não está previsto um “encontro formal” entre os dois líderes, mas quer a História quer palavras recentes do Presidente dos EUA mostram que jamais este caso levará a uma rutura entre os dois países.

Num comunicado publicado no sítio da Casa Branca, a 20 de novembro, Trump defendeu acerrimamente a aliança com os sauditas, recordando os lucros que resultaram da sua visita ao país, em maio de 2017. “O reino concordou em gastar e investir 450 mil milhões de dólares (398 mil milhões de euros) nos Estados Unidos. É uma quantia recorde. Vai criar centenas de milhar de empregos, um desenvolvimento económico tremendo, e muita riqueza adicional para os EUA. Desses 450 mil milhões de dólares, 110 mil milhões de dólares (97 mil milhões de euros) serão gastos na compra de equipamento militar à Boeing, Lockheed Martin, Raytheon e muitas outras grandes empresas americanas da área da Defesa. Se nós estupidamente cancelarmos esses contratos, a Rússia e a China seriam os enormes beneficiários — e ficariam muito felizes em ficar com todo esse novo negócio. Seria, para eles, um presente maravilhoso enviado diretamente dos Estados Unidos!”

Ainda que analistas recordem que as verbas chorudas de que Trump fala não decorram de contratos efetivamente já assinados, as estatísticas dizem que os sauditas são, de longe, o maior comprador de armamento americano. Segundo um relatório do Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo (SIPRI), entre 2013 e 2017, a Arábia Saudita comprou 18% (quase um quinto) de todo o armamento vendido pelos Estados Unidos, que é o maior exportador mundial de armas.

Para Riade, os equipamentos militares americanos são fundamentais à segurança do reino e aos seus esforços de contenção do arquirrival Irão — em alta na Síria, no Iraque, no Líbano e no Iémen. Para Washington, os milhões sauditas injetam saúde na sua indústria de armamento.

A atestar o estatuto especial de que os sauditas beneficiam, o Pentágono tem, a cerca de 20 quilómetros para sudeste de Riade, uma missão de treino militar (USMTM), liderada por um general de duas estrelas, que funciona como canal de comunicação entre os fabricantes de armamento e a hierarquia militar saudita.

A missão está instalada na “Eskan Village”, uma área habitacional construída em 1983 para albergar tribos beduínas, que recusaram mudar para ali. O espaço manteve-se desocupado até agosto de 1990, quando estalou a Guerra do Golfo e as tropas norte-americanas destacadas para participar na Operação Tempestade do Deserto foram ali instaladas, para ajudar a conter os ímpetos do Iraque de Saddam Hussein sobre as jazidas do Kuwait.

Hoje, o país que tanto norte-americanos como sauditas querem conter é o Irão. A 5 de novembro, os EUA repuseram as sanções à indústria petrolífera iraniana que tinham sido suspensas após a assinatura do acordo internacional sobre o programa nuclear do Irão, em maio passado. Com menos petróleo iraniano a jorrar no mercado internacional, a Arábia Saudita é chamada a garantir a sua estabilidade.

A aliança EUA-Arábia Saudita aproxima o país que mais petróleo consome à face da Terra e aquele que mais exporta. Por dia, os norte-americanos importam 800 mil barris de crude dos sauditas, o que corresponde a 5% do total das necessidades norte-americanas. Até um passado recente, os EUA compravam diariamente mais 600 mil barris, para além dos 800 mil. O corte justifica-se com a chamada ‘revolução do xisto’, que levou a um significativo aumento da produção energética norte-americana e à queda do preço do petróleo no mercado internacional. Nada que abalasse a relação.

A interdependência entre EUA e Arábia Saudita estende-se também ao sector financeiro. A Arábia Saudita ocupa o décimo lugar no ranking dos detentores estrangeiros de dívida americana, com 166,8 mil milhões de dólares em obrigações do Tesouro. Em Silicon Valley, “unicórnios” como a Uber ou a Tesla — “unicórnios” são startups tecnológicas avaliadas em mais de mil milhões de dólares — beneficiam, direta ou indiretamente, de investimentos provenientes do Fundo de Investimento Público Saudita.

No discurso de Washington, a Arábia Saudita é também um aliado precioso no combate ao terrorismo. No comunicado de 20 de novembro, em que coloca os EUA incondicionalmente ao lado da Arábia Saudita, Donald Trump inicia a mensagem com um forte ataque ao Irão. “Os iranianos mataram muitos americanos e outros inocentes por todo o Médio Oriente. O Irão declara abertamente , e a plenos pulmões, ‘Morte à América!’ e ‘Morte a Israel!’ O Irão é considerado ‘o principal patrocinador mundial do terrorismo’.”

O outro lado da moeda revela que 15 dos 19 terroristas que sequestraram os quatro aviões que realizaram o 11 de Setembro eram de nacionalidade saudita, como o eram cerca de 140 dos 790 homens que passaram pelos calabouços de Guantánamo — apenas três eram iranianos. No 11 de Setembro, foram mortas 2977 pessoas, a esmagadora maioria cidadãos norte-americanos. A relação Washington-Riade sobreviveu, e continuou especial como sempre.

(IMAGEM Bandeiras dos Estados Unidos e da Arábia Saudita EMBAIXADA E CONSULADOS DOS EUA NA ARÁBIA SAUDITA)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de novembro de 2018. Pode ser consultado aqui