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Um rei do xisto que tem medo dos xiitas

Périplo do Presidente Donald Trump pelo Médio Oriente e pela Europa põe a nu os dilemas geopolíticos dos Estados Unidos

Ao longo de uma semana Donald Trump passou pelo equivalente ao que os instruendos aprendem na recruta: um percurso de obstáculos através do chamado campo de infiltração com valas, saltos, arame farpado e fogo real. Sobreviveu à provação mas sabe que vai ter de a repetir não tarda.

Ao contrário de antecessores como Obama, Carter, Nixon ou Truman, cujas primeiras viagens foram ao México, Canadá ou a países europeus (o que era relevante no tempo da Guerra Fria), Trump optou pelos sauditas, aliados estratégicos mas rivais económicos, capazes de fazer implodir as cotações do petróleo em defesa dos seus interesses como em 2014/15. Prosseguiu com um exercício de equilíbrio no arame entre judeus e palestinianos. Continuou com uma passagem-relâmpago pelo Vaticano, onde o Papa diz e faz o oposto do Presidente dos EUA em quase tudo. Passou pelos aliados da NATO, para os quais olhou menos como um aliado e mais como um cobrador de impostos, exigindo aos parceiros europeus os retroativos de anos abaixo do investimento de 2% do PIB na defesa. E concluirá hoje com uma passagem pela cimeira do G7 na Sicília.

110 mil milhões de armas

Com os sauditas a relação é ambivalente. Os EUA precisam do gigante saudita para contrabalançar o poder crescente do Irão que, beneficiando da implosão do Iraque e da Síria, estende influência de Teerão a Mossul, Damasco e Tripoli. Daí a substancial venda de armas anunciada por ocasião da visita à Arábia Saudita no valor de 110 mil milhões de dólares (98 mil milhões de euros).

Mas se o reino saudita só sobrevive com a ajuda militar norte-americana já lá vai o tempo em que os EUA dependiam do petróleo de Riade. Com o advento do gás e do petróleo de xisto, há uma quase autossuficiência americana que reduz para uns meros 18% o peso das importações da península arábica (e de 5% no caso específico da Arábia Saudita).

A diferença relativamente à política de Obama é que este aproveitava este momento favorável para tentar reconverter o modelo energético para uma menor dependência dos combustíveis fósseis. Trump faz o oposto, reativando projetos de oleodutos e campos petrolíferos congelados por razões ambientais e pondo em lugares-chave climatocéticos e gente ligada às multinacionais do petróleo. Ainda assim para chegar à autossuficiência energética ainda precisa de aumentar a produção de combustíveis fósseis em 50%, o que não será já amanhã.

Mantendo-se ou agravando-se o modelo de hiperconsumo de combustíveis fósseis lá virá o dia em que os EUA podem voltar a precisar do petróleo saudita…

No discurso pronunciado no domingo, 21, em Riade, Trump definiu um novo “eixo do mal”: já não o postulado por George W. Bush (Irão/Iraque/Coreia do Norte) mas o Irão xiita e o Daesh, afirmando que Teerão “financia, arma e treina terroristas que semeiam o caos na região”. Não se tratando do Daesh que é sunita e que o Irão combate ao lado dos americanos no norte do Iraque (nomeadamente no cerco da cidade de Mossul) só pode estar a pensar na milícia xiita libanesa Hezbollah. Na Síria esta é decisiva, não tanto no combate ao Daesh (fundamentalmente a cargo dos curdos apoiados pelos americanos, como sucede no cerco a Raqqa, “capital do califado”) mas na manutenção do regime do ditador Assad, igualmente apoiado pelos russos. O Hezbollah é, ainda, o inimigo nº 1 de Israel que se revelou um osso duro de roer na invasão israelita do sul do Líbano em 2006.

Ora, para cortar este nó górdio, isto é para afastar Moscovo de Teerão e diminuir a influência iraniana no Médio Oriente, Trump precisaria de uma manobra de génio diplomático ao nível da que Kissinger preparou para Nixon em 1973, em plena Guerra do Vietname, visitando Pequim e desanuviando relações com a China maoísta em detrimento da União Soviética. Isso implicaria uma negociação mais ampla de esferas de influência que incluísse outras latitudes como a Crimeia e o leste da Ucrânia. Ora a única coisa que Trump tem em comum com Nixon é a prática de manobras internas no limiar do processo de destituição. Quanto a um Kissinger, manifestamente não o tem na sua equipa.

Pompa e fracos resultados

Se da visita às Arábias resultou uma megavenda de armas, o saldo da visita às terras bíblicas é pobre. Trump escudou-se atrás de um discurso genérico, falando mais de paz do que de outra coisa e nada dizendo sobre o que realmente é relevante: Que estatuto para Jerusalém? A favor ou contra a solução de dois estados para Israel ou Palestina? Falou com o primeiro-ministro, Netanyahu, e com o presidente da Autoridade Palestiniana, Abbas, mas não houve, nem enumeração de pontos a discutir nem calendarização dos mesmos.

Como saldo, apenas a agregação do Estado judaico ao eixo Washington-monarquias do Golfo para combater a expansão xiita no Médio Oriente. Como a História é irónica e às vezes cruel, vai fazer 50 anos que os sauditas ao lado de egípcios, jordanos e sírios travaram a Guerra dos Seis dias contra Israel, da qual resultou a conquista de territórios como Jerusalém e os Montes Golã, ainda hoje no centro dos conflitos do Médio Oriente.

Sendo que as monarquias do Golfo e os sauditas em particular são os campeões do atraso cívico e político na região, com a instauração de um regime ditatorial e teocrático, com polícia religiosa e onde, por exemplo, as mulheres têm direitos residuais. Sem esquecer que a Al-Qaeda e mesmo o Daesh sempre encontraram generosos patronos e financiadores ao mais alto nível no Golfo e que a doutrina político-religiosa vigente no reino saudita, o wahhabismo, é afim da visão do mundo dos extremistas do Daesh. E que 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro eram sauditas (como o próprio Bin Laden) tal como um quinto dos 779 presos de Guantánamo.

Artigo escrito com Rui Cardoso.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

Angela Merkel, os sauditas e a obsessão pelo véu

Sempre que uma governante ocidental visita a Arábia Saudita e se recusa a cobrir a cabeça com um lenço é notícia. Logo se atribui ao gesto — repetido por Angela Merkel no domingo — uma intenção política e solidária para com as sauditas privadas de se vestirem como querem. Mas o véu está longe de ser o principal obstáculo à liberdade das mulheres naquele reino

Há um mês foi a primeira-ministra britânica, Theresa May. Este fim de semana, foi a chanceler alemã, Angela Merkel. As duas governantes europeias visitaram a Arábia Saudita a guardiã das duas mesquitas sagradas do Islão (Meca e Medina) — e recusaram cobrir-se com o chamado véu islâmico (“hijab”). Foram notícia por isso.

“Angela Merkel chega à Arábia Saudita sem véu para conversações com o rei Salman”, escreveu em título, no domingo, o jornal britânico “The Independent”. “Alguém que diga ao Independent que Merkel nunca usou um lenço na Arábia Saudita. Nem nesta visita, nem nas três anteriores”, reagiu no Twitter Joyce Karam, correspondente em Washington do jornal árabe “Al-Hayat”.

A ironia da jornalista alude a uma certa obsessão atribuída a alguns órgãos de informação ocidentais em relação à questão do véu, que quase ofusca os programas e motivos de certas visitas. Desta vez, o gesto de Angela Merkel teve particular impacto uma vez que ocorreu três dias após o Parlamento alemão aprovar uma lei proibindo o uso da “burqa” (vestimenta que cobre todo o corpo) e do “niqab” (lenço que cobre toda a cabeça, deixando apenas os olhos à mostra) em determinadas profissões. Angela Merkel sempre se pronunciou pela proibição deste tipo de indumentária, defendendo que deve “ser banida onde for legalmente possível”.

Véu não é obrigação protocolar

De Riade não saiu qualquer protesto em relação ao “atrevimento” da chanceler alemã, já que o uso do véu não é uma obrigação protocolar, ao contrário do que acontece no Irão, por exemplo. Mas sempre que uma personalidade política feminina estrangeira opta por não aderir ao código de vestuário tradicional para as visitantes – o “hijab” e uma “abaya” (túnica ou casaco comprido) , é atribuído a esse gesto uma conotação política. E um objetivo: inspirar as locais (e as mulheres do Médio Oriente em geral) a rebelarem-se contra restrições às suas liberdades justificadas com preceitos culturais.

“Espero que as pessoas me vejam como uma mulher que é líder”, afirmou Theresa May, em inícios de abril, em vésperas de partir para a Arábia Saudita. “Espero que vejam o que as mulheres podem alcançar e como podem chegar a postos significativos.”

A Arábia Saudita é um reino ultraconservador onde vigora, a tírulo oficial, a interpretação waabita do Islão sunita, que pugna por uma prática purista da religião e onde se inspiram grupos terroristas fundamentalistas como a Al-Qaeda (fundada pelo saudita Osama bin Laden) ou o autodenominado “Estado Islâmico” (Daesh).

É também um dos maiores aliados do Ocidente na conturbada região do Médio Oriente, e tanto a Alemanha como o Reino Unido estão entre os países que vendem armas à Arábia Saudita. Quer Angela Merkel quer Theresa May expressaram reservas em relação ao uso que Riade faz das armas que os dois países lhe vendem, nomeadamente no Iémen, onde a guerra em curso — e a intervenção militar saudita iniciada a 26 de março de 2015 — originou uma catástrofe humanitária que colocou em penúria alimentar 18 milhões de pessoas.

“Nós aceitamos as reticências alemãs em relação às exportações para a Arábia Saudita”, afirmou o vice-ministro saudita da Economia, Mohammed al-Tuwaijri, em entrevista à revista “Der Spiegel”, publicada no domingo. “Não vamos causar mais problemas ao Governo alemão com novos pedidos de armas.” Segundo o governante, Riade quer tornar a Alemanha um dos seus “parceiros económicos mais importantes”.

Hipocrisia ocidental

Também Theresa May foi a Riade motivada por questões económicas. Com o Brexit (processo de saída do Reino Unido da União Europeia) em contagem decrescente, Londres tem necessidade de procurar novos parceiros comerciais preferenciais. A Arábia Saudita surge como um alvo óbvio, uma vez que já é um grande cliente dos britânicos em matéria de… armamento. Em 2015, o Reino Unido foi quem mais armas vendeu ao reino saudita: 83% das armas exportadas pelos britânicos seguiram para Riade.

Entre interesses económicos e chorudos negócios de armas, o discurso humanitário e as iniciativas antivéu que emanam de muitas capitais ocidentais soam a hipocrisia. E constituem oportunidades perdidas para se lançar o foco sobre os reais obstáculos, neste caso, à liberdade das mulheres sauditas.

“Nem as estrangeiras (melhor dito, ocidentais) estão sujeitas ao mesmo tratamento discriminatório que as mulheres autóctones, nem a indumentária, nem a proibição de conduzir são o principal problema das sauditas”, escreve Ángeles Espinosa, correspondente do diário espanhol “El País” no Médio Oriente e autora do livro “El Reino del Desierto” (2012). “O mais grave é o sistema de tutela que, no reino e, de forma distinta, também nos outros países da Península Arábica, converte as mulheres em eternas menores, dependentes para sempre da vontade de um homem, o pai, o marido, o irmão e, às vezes, até um filho pequeno.”

(Foto: Banca de uma loja em Ramallah, no território palestiniano da Cisjordânia MARGARIDA MOTA)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 2 de maio de 2017. Pode ser consultado aqui

Faz esta sexta-feira 33 anos na prisão. E vive no medo de ainda receber 950 chicotadas

Dois anos após receber 50 vergastadas numa praça da Arábia Saudita, o bloguer Raif Badawi, que amanhã faz 33 anos, vive no receio permanente de que as 950 chicotadas em falta a que foi condenado comecem a ser aplicadas a qualquer momento dentro da prisão. Não podemos esquece-lo…, apela ao Expresso uma amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade

Raif Badawi já foi notícia em todo o mundo por diversas vezes. Foi-o a 29 de outubro de 2015 quando o Parlamento Europeu anunciou que o Prémio Sakharov daquele ano era dele. Tinha-o sido meses antes também pelas dramáticas razões que o tornaram universalmente conhecido: em frente a uma mesquita na cidade saudita de Jeddah, na presença de centenas de pessoas, Raif recebeu 50 chicotadas nas costas por “insulto ao Islão através de canais eletrónicos”, decretou a justiça saudita. Inspirado pelos “ventos da mudança” da Primavera Árabe, Raif criara o blogue “Liberais Sauditas Livres”, onde promovia debates sobre religião e sociedade uma ameaça à segurança nacional, considerou Riade.

Esta sexta-feira, o bloguer saudita faz 33 anos. Assinala-os na prisão, longe da família a mulher e três filhos menores vivem exilados no Quebec (Canadá) e das manchetes noticiosas. “Não, o caso não está esquecido”, garante ao Expresso Évelyne Abitbol, amiga da família e cofundadora da Fundação Raif Badawi para a Liberdade. “Não podemos esquece-lo. Devemos continuar a lutar pela sua libertação. Ele não é um criminoso, é um blogger, um jornalista, um escritor. E não insultou o Islão, defendeu a liberdade de expressão, de religião, de opinião…”

Após a sua prisão, em 2012, a Amnistia Internacional considerou Raif Badawi um prisioneiro de consciência, “detido unicamente por exercer pacificamente o seu direito à liberdade de expressão”. Na imagem, uma das campanhas da organização: “Blogar faz mal às costas”, lê-se. Usa-se a palavra “blogging” em vez de “flogging” (flagelação) AMNISTIA INTERNACIONAL

O caso de Raif tem constado da agenda diplomática de muitos países ocidentais nos seus contactos bilaterais com as autoridades sauditas. Os ministros dos Negócios Estrangeiros de todos os países ocidentais apelarem à sua libertação de cada vez que têm encontros na Arábia Saudita, mas não temos qualquer indicação de que ele vá ser libertado, refere Évelyne, nascida em Casablanca (Marrocos) e que é assessora especial para a diversidade de Jean-François Lisée, o líder da oposição na Assembleia Nacional do Quebec. Destaca as posições assumidas pelos Governos da Áustria, Suíça, Alemanha, França, Suécia, Noruega, Reino Unido e Canadá. Estão a trabalhar muito para o tirar de lá.

Esta semana, o potencial político do caso de Raif foi aflorado a propósito da visita à Arábia Saudita do Rei Felipe de Espanha, que se inicia no sábado. Segundo a imprensa espanhola, Letizia recusou-se a acompanhar o marido. Num artigo de opinião no diário digital El Español, o diretor adjunto Miguel Ángel Mellado enumera várias razões que podem ter contribuído para a posição da rainha. Segundo o jornalista, ela nunca visitaria um país onde as mulheres são proibidas de conduzir, as mulheres casadas não podem viajar sozinhas sem a tutela de um membro da família do marido, onde 150 pessoas foram executadas nos últimos anos, por decapitação na sua maioria, nalguns casos por se oporem à família real, um país que financia milhares de mesquitas em todo o mundo promovendo o wahabismo, uma corrente religiosa muçulmana radical, onde as divorciadas não podem entrar por serem consideradas adúlteras e onde um bloguer, Raif Badawi, recebeu 50 chicotadas em público e está na prisão à espera das restantes 950 a que foi condenado.

As chicotadas foram uma parte da pena decretada em maio de 2014. Raif foi também condenado a 10 anos de prisão, a mais 10 anos sem poder sair do país e a uma multa de um milhão de rials (mais de 250 mil euros). Recebeu as primeiras 50 chicotadas a 9 de janeiro de 2015; a segunda leva foi sendo sucessivamente adiada por razões de saúde. Raif sofre de hipertensão e é convicção da família que se o castigo continuar a ser aplicado, ele não sobreviverá. Ele tem sempre esse medo. Está sempre em grande tensão, continua Évelyne. Ele não está bem. Nem a nível físico ele tem pedras no rim nem emocionalmente. Claro que já lá vão quase cinco anos de prisão. Raif foi preso a 17 de junho de 2012.

O diretor da prisão autorizou-o a receber livros, mas estes não lhe chegam. Os livros têm de passar pela censura religiosa, explica Évelyne. Na prisão, ninguém o visita, mas Raif pode telefonar à família. Eles contactam-se. A família não pode telefonar-lhe, mas ele liga de uma cabine pública no interior da prisão. Falam-se a cada dois ou três dias.

VIGIADA, COMO O IRMÃO

Raif Badawi tornou-se o rosto mais visível entre um conjunto de intelectuais, ativistas, académicos que foram severamente punidos por ousarem dizer o que pensam na Arábia Saudita criticando as autoridades, apelando a reformas ou denunciando violações aos direitos humanos. Muitos são criminalizados ao abrigo de legislação anti-terrorista e de combate ao cibercrime.

No seu sítio na Internet, a Organização Saudi-Europeia para os Direitos Humanos apresenta vários casos de repressão, tortura, detenções arbitrárias, execuções políticas, que visam quem esboça a mínima dissidência em relação à Casa de Saud. Entre eles, está o de Samar Badawi, uma ativista dos direitos humanos de 35 anos. O apelido não ilude o parentesco: é irmã de Raif.

A 12 de janeiro do ano passado, foi presa por incitamento à opinião pública contra o Estado. Durante um interrogatório, foi questionada por ter feito o upload no Twitter da foto de um ativista a cumprir pena de prisão e por ter saudado a saída da prisão de um outro. Acabou por ser libertada, mas hoje vive com rédea curta no que respeita ao exercício das liberdades. O Expresso pediu-lhe uma entrevista para este artigo. Não posso, infelizmente, responde por email. Fui proibida pelo Governo saudita. Não posso falar com jornalistas. Lamento muito.

Tirada na noite da passagem de ano para 2017, a foto mostra Ensaf Haidar (a mulher de Raif) e os três filhos do casal: Doudi, Miriyam e Najwa. Entre as duas meninas, está a amiga Évelyne ÉVELYNE ABITBOL

No sítio da Fundação Raif Badawi para a Liberdade, um contador vai assinalando os dias, horas, minutos e segundos que faltam para a libertação de Raif — uma meta que a família gostaria de encurtar. Conta, para isso, com a pressão exercida por Governos nacionais sobre as autoridades sauditas — a ministra dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Margot Wallström, qualificou a punição a Raif como “medieval” — e também com o voluntarismo de cada cidadão individualmente — como aconteceu com a própria Évelyne.

“Envolvi-me há dois anos. Tinha sido jornalista e tinha trabalhado na área internacional sobre diversidade, direitos humanos e desenvolvimento democrático. Um dia, vi um apelo da Ensaf no Youtube e pensei que podia ajuda-la, já que ela vive em Sherbrooke (Quebec), muito perto de mim. Conhecemo-nos numa vigília e rapidamente tornei-me amiga da família. Comecei a ajudar nas conferências de imprensa, apresentações públicas, elaboração de discursos e moções a apresentar na Assembleia Nacional do Quebec.” Depois, “decidimos abrir uma fundação com o nome de Raif e assente nos seus valores”.

Aos portugueses, em particular, Évelyne faz dois apelos. Por um lado, pede que participem numa campanha de crowdfunding (recolha de fundos) lançada em novembro passado para ajudar a custear as ações desenvolvidas pela Fundação. Qualquer quantia é bem vinda, diz. Por outro, apela a que uma editora portuguesa se interesse pelo livro da Ensaf, Mon combat pour sauver Raif Badawi (O meu combate para salvar Raif Badawi), lançado no ano passado. A tradução espanhola vai ser lançada em fevereiro. Seria muito bom arranjarmos alguém que traduzisse o livro para português e o publicasse.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 12 de janeiro de 2017. Pode ser consultado aqui

Faíscas num barril de pólvora

A Arábia Saudita cortou relações com o Irão. A rivalidade transcende a religião e tem potencial para incendiar toda a região

Arábia Saudita e Irão, os dois gigantes do Médio Oriente WIKIMEDIA COMMONS

Sempre que a relação entre Irão e Arábia Saudita azeda, agita-se a bandeira de um conflito global entre sunitas e xiitas. No entanto, a rivalidade entre os dois gigantes do Médio Oriente vai muito além da religião. “A rivalidade é essencialmente geoestratégica e a desastrosa invasão do Iraque, que destruiu um dos três pilares de equilíbrio do poder regional, veio agravar de sobremaneira esta rivalidade”, explica ao Expresso Manuel Castro e Almeida, colunista do sítio da televisão Al-Arabiya. “Em tempos de crise como os de hoje, o elemento religioso/sectário ganha mais importância.”

A questão voltou a colocar-se esta semana, na sequência do corte de relações diplomáticas, no domingo, decretado pela Arábia Saudita, após a sua embaixada em Teerão ter sido atacada por iranianos em fúria contra a decapitação de um clérigo saudita xiita — braço do Islão minoritário no reino que é o guardião das mesquitas sagradas de Meca e Medina.

“A decisão de cortar relações é inevitável após o ataque à embaixada saudita em Teerão. Qualquer outro país faria o mesmo”, continua o ex-editor do jornal “Asharq Al-Awsat”. “Há muita especulação sobre as intenções da Arábia Saudita ao executar Al-Nimr. Alguns analistas veem-no como uma manobra destabilizadora numa altura em que há uma relativa melhoria nas relações entre o Irão e o Ocidente depois do acordo sobre o programa nuclear iraniano”, assinado em Genebra, a 14 de julho.

Revolução iraniana mudou tudo

O xeque Nimr al-Nimr foi condenado à morte juntamente com mais 46 pessoas (na esmagadora maioria sunitas), acusadas de participação em “organizações terroristas” e “conspirações criminosas”. “Al-Nimr não era um ativista pacífico como foi descrito por parte da imprensa internacional”, continua o analista. “Durante anos, muito antes da primavera árabe, advogou nos sermões que a dinastia Al-Saud era ilegítima, que os xiitas na Arábia Saudita deviam optar pela resistência armada contra o Governo e até o secessionismo. Os sauditas defendem que não o executaram por ser xiita, mas pelo seu papel de incentivador da violência armada.”

No Médio Oriente, os xiitas — que, basicamente, se distinguem dos sunitas por defenderem Ali na linha de sucessão do Profeta Maomé — são maioritários em apenas três países: Irão, Iraque e Bahrain. No resto do mundo islâmico o sunismo é a corrente dominante mas desde a Revolução Islâmica no Irão, em 1979, o peso demográfico das duas sensibilidades deixou de ter uma importância meramente estatística…

“Historicamente, a relação entre Arábia Saudita e Irão foi, de uma maneira geral, racional e cordial, especialmente quando ambos se centraram não em questões ideológicas mas nos seus interesses nacionais”, defende Manuel Castro e Almeida. “As relações pioraram drasticamente com a revolução iraniana. A política externa iraniana passou a assentar no objetivo de exportar a revolução para o mundo árabe” — o Irão não é um país árabe, mas antes de cultura persa —, “incentivar as populações xiitas a revoltarem-se contra os seus governos e mesmo a procurar derrubar outros governos árabes, incluindo os da Arábia Saudita, Kuwait, Iraque, Bahrain, etc.” Na perspetiva de Riade, que é tudo menos um exemplo de respeito pelos direitos humanos (veja-se a sentença de flagelação do blogger Raif Badawi), o clérigo Al-Nimr seria um peão da estratégia iraniana.

Rédea curta no Golfo

Outro exemplo da rédea curta da Arábia Saudita perante agitações xiitas aconteceu em 2011, no Bahrain, em plena primavera árabe. A maioria da população daquele reino do Golfo Pérsico (com o Irão em frente) é xiita, mas o poder reinante é sunita. Quando as manifestações começaram a reivindicar direitos políticos para os xiitas e a contestar a família real, a Arábia Saudita enviou tanques e tropas em socorro dos Al-Khalifa.

Sem surpresa, na segunda-feira, o Bahrain seguiu a posição saudita e cortou relações com o Irão. Emirados Árabes Unidos, Qatar, Sudão, Djibouti e Jordânia anunciaram corte ou revisão da relação com Teerão.

Em lados opostos

O braço de ferro entre sunitas e xiitas ocorre em países com guerras civis, ou seja, na Síria e no Iémen, onde sauditas e iranianos estão em lados opostos. Na Síria, o Irão apoia o regime liderado pelo alauita Bashar al-Assad (os alauitas são uma das seitas do xiismo) e as incursões do libanês Hezbollah, enquanto a Arábia Saudita financia grupos rebeldes (e tem uma relação dúbia com o Daesh). No Iémen, os iranianos apoiam os rebeldes houthis (que são zaiditas, outra seita xiita) e os sauditas apoiam o Presidente deposto pelos houthis.

“Não está nas intenções dos governos de Riade e de Teerão iniciar um confronto direto”, diz o articulista da Al-Arabiya. “Seria desastroso para ambos e para a região. Mas com tanta tensão e conflitos regionais com envolvimento iraniano e saudita, pode haver agravamento das guerras por procuração.”

No Irão, as eleições de fevereiro darão pistas sobre o futuro interno do país e sobre a relação com a Arábia Saudita

Na quinta-feira, órgãos de informação iranianos, citando um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, noticiaram que a embaixada do Irão na capital do Iémen tinha sido atingida deliberadamente pelos bombardeamentos da coligação liderada pelos sauditas. Horas depois, a partir de Sanaa, multiplicavam-se testemunhos de que fora apenas atingida a vizinhança da embaixada.

“A tensão pode baixar se houver acordo em relação à Síria e ao futuro de Assad. Mas isso parece distante. Vai depender da política interna iraniana e quem irá vencer a rivalidade entre as fações radicais e as mais moderadas, que se acentuou com o acordo nuclear. Os moderados querem ver o Irão comportar-se mais como um Estado e menos como uma ideologia imperialista.”

A 26 de fevereiro, as eleições para o Parlamento iraniano e para a Assembleia de Peritos — o órgão que escolhe o Líder Supremo (o ayatollah Ali Khamenei tem 76 anos) — poderão dar pistas sobre o futuro do Irão e, consequentemente, sobre a relação com a Arábia Saudita.

Artigo publicado no Expresso, a 9 de janeiro de 2016

“Guerra fria” aquece no Médio Oriente

Arábia Saudita e Irão protagonizam, há mais de 30 anos, uma espécie de “guerra fria” na região, exibindo toda a sua histórica rivalidade através de guerras por procuração. A execução de um clérigo xiita na Arábia Saudita azedou a já de si tensa relação entre os dois gigantes. Riade cortou relações e já arrastou consigo o Bahrain

A fasquia da conflitualidade no Médio Oriente subiu consideravelmente após, no domingo, a Arábia Saudita ter cortado relações diplomáticas com o Irão. Os dois países personificam as grandes rivalidades políticas, religiosas e culturais que caracterizam — e dividem — a região: a Arábia Saudita (31,5 milhões de habitantes) é uma monarquia árabe sunita, que abriga os principais lugares santos do Islão (Meca e Medina); o Irão (79,1 milhões) é uma república islâmica xiita de cultura persa.

A mais recente crise entre os dois gigantes geopolíticos estalou na sequência da execução, na Arábia Saudita, de um importante clérigo xiita, o xeque Nimr Baqir al-Nimr que, em 2011, no contexto da Primavera Árabe, apelou à realização de eleições no país e apoiou os protestos contra a Casa de Saud (a monarquia reinante).

O xeque pertencia à minoria xiita no país (estima-se que entre 10 e 15% da população, concentrados nos oásis de Al-Ahsa e Qatif, na Província Oriental, onde se encontram as zonas agrícolas mais produtivas e as maiores jazidas de petróleo do reino). Os xiitas dizem-se marginalizados e perseguidos por Riade.

Juntamente com Nimr, foram executados três ativistas xiitas (incluindo um sobrinho) e 43 sunitas condenados por envolvimento em ataques terroristas no reino, em 2003 e 2004, atribuídos à Al-Qaeda — fundada pelo saudita Osama bin Laden.

Com estas execuções — realizadas através de pelotões de fuzilamento e decapitações —, Riade mostra mão firme em matéria de segurança interna e aproveita para calar vozes críticas e reivindicativas de direitos e liberdades para os xiitas, que partilham com o inimigo iraniano a mesma interpretação do Islão.

Conhecida a morte do xeque Nimr, no sábado, violentos protestos visaram a embaixada saudita em Teerão (que foi incendiada) e o consulado em Mashhad (nordeste do Irão), levando à detenção de dezenas de pessoas.

No Twitter, o Presidente do Irão, Hassan Rouhani, criticou os distúrbios junto àquelas representações diplomáticas, levados a cabo por “indivíduos extremistas”, escreveu. Esta posição não foi suficiente para impedir a retaliação saudita que, no domingo, anunciou o corte de relações diplomáticas com o Irão.

O agravamento da relação Riade-Teerão é um cenário que não agrada a ninguém, sobretudo nos Estados Unidos. Os sauditas têm sido fortes aliados e essa relação tem sobrevivido intacta ao facto de serem sauditas 15 dos 19 terroristas do 11 de Setembro serem sauditas e também ao facto dos sauditas serem, a seguir aos afegãos, a nacionalidade mais representada entre os 779 detidos em Guantánamo, desde 2002.

Quanto aos iranianos — inscritos pelo Presidente norte-americano George W. Bush no “eixo do mal” que apoia o terrorismo internacional —, estão em rota de aproximação com o Ocidente, após o histórico acordo de 14 de julho sobre o seu programa nuclear. Irão e EUA continuam, oficialmente, de relações cortadas, mas o acordo de Genebra abriu perspetivas de uma maior colaboração do Irão em várias crises na região.

Guerras por procuração

Em sentido figurado, quando a relação entre Arábia Saudita e Irão apanha um resfriado, é toda a região que se constipa. À semelhança da Guerra Fria que opôs EUA e URSS durante mais de 40 anos, Riade e Teerão travam, hoje, no Médio Oriente várias guerras por procuração, acicatando divisões sectárias para expandir a sua influência — o que acontece, com maior intensidade na Síria e no Iémen.

Na Síria, os iranianos são, juntamente com a Rússia, o mais sólido apoio internacional do Presidente Bashar al-Assad, enquanto os sauditas apoiam e financiam grupos rebeldes.

No Iémen, os papéis invertem-se: os sauditas têm em curso uma intervenção militar em defesa do Presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi e os iranianos apoiam a milícia huthi (xiita) que tomou o poder pelas armas.

O potencial de conflito não se resume, porém, a esses dois teatros. Desde a Revolução Islâmica de 1979 que um dos pilares do regime dos ayatollahs tem sido a exportação desse modelo político-religioso que, hoje, passa pela preservação do chamado ‘arco xiita’: o Iraque (onde a derrota de Saddam Hussein catapultou a maioria xiita para o poder), a Síria (os alauitas de Bashar al-Assad são xiitas) e o Hezbollah (o movimento xiita que, para além de ser uma milícia armada, também está representado no Parlamento e no Governo do Líbano).

A estratégia internacionalista consta igualmente da agenda da Arábia Saudita, empenhada em divulgar a doutrina waabita, para o que afeta quantias milionárias de petrodólares, seja para apoiar fações políticas ou armadas seja para financiar mesquitas um pouco por todo o mundo.

Pesos pesados do petróleo

Esta disputa geopolítica coloca frente a frente os dois maiores e mais ricos países do Médio Oriente, situados nas margens do Golfo — Pérsico para os iranianos, Arábico para os sauditas —, por onde é transportado um quinto do petróleo consumido em todo o mundo. (Esta segunda-feira, os preços do petróleo e do ouro aumentaram.)

Na margem ocidental do Golfo, os sauditas controlam a Península Arábica com rédea curta, exercendo uma influência quase absoluta sobre as outras petromonarquias (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrain, Qatar e Omã).

Quando a Primavera Árabe atingiu o Bahrain — onde o regime é sunita e a população maioritariamente xiita —, tropas sauditas cruzaram a fronteira em socorro dos Al-Khalifa. Nos países onde os xiitas são minoritários, como na Arábia Saudita, Riade vê-os como uma ‘quinta coluna’ ao serviço de Teerão.

Precisamente o Bahrain, esta segunda-feira, seguiu o exemplo da Arábia Saudita e cortou relações diplomáticas com o Irão. Os Emirados e o Sudão também anunciaram uma revisão da sua relação diplomática com o Irão.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 4 de janeiro de 2016. Pode ser consultado aqui