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Aos 77 anos, Aung San Suu Kyi tem pela frente (pelo menos) 33 de prisão. Que hipótese há de sair em liberdade?

Desde que regressou à sua Birmânia natal, Aung San Suu Kyi já viveu sensivelmente tanto tempo em liberdade como presa. Detida pela última vez na sequência do golpe militar de 1 de fevereiro de 2021, enfrenta uma maratona de julgamentos que pode levar a que nunca mais saia em liberdade. “Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, comenta um analista. “Todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional.”

Quando, aos 43 anos de vida, Aung San Suu Kyi decidiu voltar ao país onde nascera, e de onde saíra com 15, encontrou uma Birmânia (hoje Myanmar) em ebulição. Corria o ano de 1988 e, nas ruas, gigantescas manifestações populares desafiavam a autoridade da junta militar, no poder.

Suu Kyi regressara por razões do coração, motivada pela vontade de acompanhar os últimos tempos de vida da mãe, que sofrera um grave acidente vascular cerebral. Mas o seu ADN político não a deixou indiferente em relação à agitação interna.

Filha do general Aung San, o herói da independência da Birmânia e considerado o pai das forças armadas do país (Tatmadaw), assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi tornou-se um ativo do movimento pró-democracia. Ajudou a fundar a Liga Nacional pela Democracia (LND) e proferiu um discurso memorável em frente ao pagode Shwedagon, em Rangum, para meio milhão de pessoas. Com isto tornou-se alvo dos generais.

A 20 de julho de 1989, cerca de um ano após voltar à Birmânia, Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez. Hoje, cumpre o quarto período de detenção.

Nobel da Paz em clausura

Dos cerca de 35 anos que Suu Kyi viveu em Myanmar, mais de 17 foram passados em clausura: 1989-1995, 2000-2002, 2003-2010 e desde 2021. Foi durante um destes períodos, em 1991, que recebeu o prémio Nobel da Paz “pela sua luta não violenta pela democracia e os direitos humanos”. Na cerimónia em Oslo, representaram-na o marido e os dois filhos.

Aung San Suu Kyi proferiu o seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em Oslo, 21 anos após ter sido galardoada DANIEL SANNUM-LAUTEN / AFP / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi foi detida pela última vez a 1 de fevereiro de 2021, na sequência de um golpe militar que depôs o Governo que liderava. Desde então, a sua vida transformou-se numa maratona de julgamentos que já lhe valeram um cúmulo jurídico de 33 anos de prisão. Pela frente, enfrenta outras acusações que podem valer-lhe novas sentenças.

A última pena foi-lhe atribuída a 30 de dezembro passado: sete anos de prisão por delitos relacionados com o uso de um helicóptero quando era líder de facto do país.

“Esta sentença final de condenação pela compra de um helicóptero sinaliza o culminar de um julgamento brutalmente ridículo desde o golpe de 2021. Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, diz ao Expresso David Scott Mathieson, analista independente em Chiang Mai (Tailândia), que viveu oito anos em Rangum.

Nos últimos dois anos, sucessivas penas de prisão foram aplicadas a Suu Kyi por incitamento, violação das restrições justificadas com a covid-19, posse ilegal de equipamentos de rádio, violação de uma lei de segredos de Estado da época colonial, corrupção e tentativa de influência de funcionários eleitorais.

Aung San Suu Kyi, no n.º 54 da University Avenue, uma casa de estilo colonial ribeirinha ao lago Inya, onde ela viveu anos em prisão domiciliária CHRISTOPHE LOVINY / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi é o principal alvo de uma campanha de repressão política levada a cabo pelo regime dos generais contra líderes políticos, ativistas e todos quantos questionem o golpe que terminou com a experiência democrática birmanesa ensaiada a partir de 8 de novembro de 2015, quando o partido de Suu Kyi venceu as eleições legislativas por expressivos 58% dos votos.

Segundo a Associação de Assistência aos Presos Políticos, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021 e até esta segunda-feira:

  • 17.041 pessoas foram detidas
  • 13.321 estão ainda detidas
  • 2711 foram mortas pela junta militar
  • 3696 foram libertadas

Hoje, aos 77 anos, a perspetiva de Suu Kyi passar mais 33 na prisão equivale, na prática, a uma sentença de prisão perpétua. “Quer [os generais] a mantenham encarcerada ou a troquem por concessões e forneçam uma amnistia, todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional”, diz Mathieson.

Acordo é pouco provável

“Há pouca probabilidade de qualquer tipo de governação compartilhada. Se os militares tentarem usar Suu Kyi como moeda de troca para debelar a violência por todo o país, a realidade vai além disso”, acrescenta o antigo investigador da Human Rights Watch.

A 13 de fevereiro de 2015, envolta numa multidão de apoiantes, na cidade de Natmauk, após uma cerimónia do 100º aniversário do nascimento do seu pai YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES

“Duvido que muitos dos novos grupos a escutassem se ela tentasse fazer um acordo com o Conselho de Administração do Estado [nome formal da junta militar]. Mesmo que o regime quisesse um acordo, eles não são fiáveis, e muitos dos grupos armados que nunca viram Suu Kyi como sua líder não vão receber ordens dela.”

Guerras étnicas

A atual Constituição de Myanmar, de 2008, dividiu o país em sete estados étnicos e reconhece a existência de 135 grupos étnicos — que não os rohingya, a minoria muçulmana do país, perseguida pelo regime.

Vários desses grupos étnicos estão envolvidos numa luta armada com o poder central, que deixa Myanmar, com frequência, à beira de um precipício de violência. No último dia de 2022, a junta prorrogou o acordo de cessar-fogo com os grupos armados até ao fim de 2023. Desde 21 de dezembro de 2018, essa trégua já foi prolongada 21 vezes.

“Os militares calcularam mal o seu golpe e agitaram todo o país contra eles”, diz Mathieson. “Provocaram uma geração mais jovem a lutar contra o regime repressivo. Muitos desses jovens não ouviriam Suu Kyi se ela tentasse liderá-los quando fosse libertada. O país mudou drasticamente.”

Dirigente democrática foi criticada

Aung San Suu Kyi não é uma personalidade imune a críticas. Se a atribuição do Nobel da Paz foi um reconhecimento unânime, o seu silêncio em relação à repressão aos rohingya colocou-a sob fogo. Em 2019, diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, defendeu os militares birmaneses das acusações de genocídio contra os rohingya (palavra que ela nunca usou).

A imagem de Aung San Suu Kyi e a data do golpe militar tatuadas nos braços de birmaneses a viver na Tailândia. A saudação de três dedos é um gesto pró-democracia PEERAPON BOONYAKIAT / GETTY IMAGES

Várias vozes defenderem que o Nobel lhe fosse retirado e algumas organizações recuaram no reconhecimento público que lhe tinham prestado. Em 2018, a Amnistia Internacional revogou o Prémio Embaixador de Consciência que lhe fora atribuído em 2009. E em 2020, Suu Kyi foi excluída da comunidade de laureados com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos por causa “da gravidade e escala da violação dos direitos humanos” que os rohingya enfrentam na Birmânia.

“Apesar das suas muitas falhas, Suu Kyi é inocente de todas essas acusações ridículas [pelas quais está a ser julgada] e é uma refém política”, conclui Mathieson. “O mundo deve exigir a sua libertação imediata e incondicional, juntamente com a dos outros 13 mil presos políticos.”

(FOTO Aung San Suu Kyi, na sede da Liga Nacional pela Democracia, a 8 de dezembro de 2010, dias após ser libertada do seu terceiro período de detenção GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

Junta militar retomou as execuções. Porquê?

O alvo foram quatro ativistas pró-democracia. Há mais de 100 sentenças de morte à espera

1. Porque há críticas a Mianmar?
Esta semana, a junta militar no poder anunciou a execução de quatro ativistas pró-democracia, acusados de contribuir para “atos terroristas” ao oporem-se ao golpe militar de 1 de fevereiro de 2021. Desde o afastamento do Governo democraticamente eleito, gerou-se um Movimento de Desobediência Civil com várias formas de protesto: bater em panelas, manifestações de rua, recusa em pagar contas e boicote a lotarias patrocinadas pelo Estado e empresas ligadas aos militares. A junta tem em curso uma repressão à campanha.

2. Quão surpreendentes foram as execuções?
O regime não aplicava sentenças de morte desde a década de 80. E há receios de que não se fique só por estas quatro. Segundo a Associação de Assistência a Presos Políticos, desde o golpe, tribunais militares já decretaram 117 penas capitais. Esta semana, ao rebater a condenação internacional, um porta-voz da junta mostrou determinação e disse que os ativistas “mereciam muitas sentenças de morte”. Segundo o jornal “The Irrawaddy”, os quatro foram enforcados.

3. Onde está Aung San Suu Kyi?
A líder da oposição e Nobel da Paz está presa, mais uma vez. Era ela que liderava o Governo civil, eleito nas urnas, deposto pelo golpe militar do ano passado. Aos 77 anos, Suu Kyi está na prisão de Naypyitaw a cumprir pena de 11 anos. Acusada de fraude eleitoral, enfrenta um total de 11 acusações que podem valer-lhe um cúmulo jurídico de mais de 150 anos atrás das grades.

4. Mianmar é um país em paz?
A impopularidade do golpe levou alguns grupos a pegar em armas para se juntarem à resistência. Isto acontece num país cuja Constituição reconhece 135 grupos étnicos, que não os rohingya (muçulmanos), o que tem valido sanções internacionais a Mianmar. Alguns grupos levam anos de rebelião contra o poder central. A 15 de julho, oito soldados governamentais foram mortos em Myawaddy Township, no estado dos Karen, o grupo armado mais antigo.

5. Quem tem influência no país?
A China, que ali tem interesses, como o Corredor Económico China-Mianmar, um conjunto de infraestruturas projetadas ao abrigo da Nova Rota da Seda. Mas a junta preza o isolamento. No último debate na Assembleia-Geral da ONU, em que os 193 países levam representantes a discursar em Nova Iorque, apenas dois faltaram: o Afeganistão dos talibãs, a quem a ONU fechou a porta, e Mianmar.

(FOTO Min Aung Hlaing, líder da Junta militar de Myanmar WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Aung San Suu Kyi. Presa quatro vezes por lutar pela democracia

Filha de um herói da independência da Birmânia (atual Myanmar), a vida de Aung San Suu Kyi confunde-se com a história do próprio país. Nos últimos 32 anos o braço-de-ferro que a Nobel da Paz tem travado com os generais levou-a a passar quase metade desse tempo em prisão domiciliária. O golpe militar de 1 de fevereiro colocou-a de novo em regime de detenção. Hoje e sempre, o mesmo “crime”: a luta pela democracia no seu país

O projeto de democracia em Myanmar (antiga Birmânia) sofreu um duro golpe, faz esta segunda-feira duas semanas, com a detenção de Aung San Suu Kyi, principal rosto da esperança de um país livre, após décadas de governação militar. Escreve o jornal “The Irrawaddy” (publicado por birmaneses exilados no norte da Tailândia) que neste dia 15 de fevereiro um tribunal distrital em Naypyitaw (capital de Myanmar) adiou uma audiência do seu caso para a próxima quarta-feira.

A chefe de Governo birmanesa deposta é acusada de ter violado a Lei de Importação e Exportação do país, ao importar walkie-talkies sem autorização. Se for condenada, poderá enfrentar uma pena de três anos de prisão — o seu quarto período de detenção nos últimos 32 anos.

“Gosto da Aung San Suu Kyi. Gosto da Liga Nacional pela Democracia [partido que lidera], na medida em que está a lutar pela democracia e pelos direitos do povo”, diz ao Expresso Faruque, um rohingya de 32 anos, a partir do campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

Os rohingya não estão entre os apoiantes mais entusiastas da Nobel da Paz, que respondeu com silêncio e inação à repressão desta minoria muçulmana em Myanmar. Mas Faruque tenta ver mais além… “A maioria dos rohingya está feliz [com a detenção de Suu Kyi], mas eu não. Acredito na democracia e acredito que um Governo democrata pode resolver os nossos problemas”, diz. “Mas discordo de algumas políticas de Aung San Suu Kyi. Ela nunca defendeu os rohingya, apenas os militares.”

Filha do general Aung San — líder nacionalista, herói da independência e fundador das forças armadas birmanesas (“Tatmadaw”) —, o seu respeito e reverência em relação à instituição militar vêm-lhe do berço. Suu Kyi partilha com os generais as crenças nacionalistas, mas diverge deles ao defender a subordinação dos militares à autoridade de um governo eleito. Essa visão para o país já a privou de liberdade em quatro ocasiões.

20.07.1989 — 10.07.1995

Independente desde 1948, a Birmânia (Myanmar, desde 1989) tem vivido maioritariamente sob o jugo dos militares. Aung San Suu Kyi vivia em Inglaterra — onde casara e tivera dois filhos — quando, em 1988, decidiu regressar ao seu país natal para cuidar da mãe doente. Encontra um país revoltado com uma gestão económica desastrosa e com a repressão política. Os estudantes estão à cabeça da contestação que atinge o pico a 8 de agosto, no que ficou conhecido como a “revolta do dia 8888”, reprimida de forma sangrenta.

Suu Kyi junta-se aos manifestantes e funda um partido: a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ser filha de um herói do país torna-a uma voz mobilizadora. A 20 de julho de 1989, é detida ao abrigo da Lei de Proteção do Estado e colocada em prisão domiciliária, no n.º 54 da Avenida da Universidade, em Rangum.

Quando os militares acedem a realizar eleições, para um comité constitucional, a 27 de maio de 1990 — as primeiras multipartidárias desde 1960 —, o partido de Suu Kyi não se ressente da detenção da líder e conquista 392 dos 485 lugares. Os militares não reconhecem os resultados, mas o mundo reconhece o valor da vitória: em 1991, Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz. O marido e os dois filhos representam-na na cerimónia, em Oslo.

Aung San Suu Kyi é libertada a 10 de julho de 1995, ao fim de seis anos de reclusão. O seu partido desafia uma proibição governamental e volta a nomeá-la secretária-geral. Continua o braço-de-ferro com os militares.

23.09.2000 — 06.05.2002

De regresso à vida política, Aung San Suu Kyi percebe que a sua liberdade é ilusória. Em 1996 tenta ir de comboio até Mandalay, mas não passa da estação. As autoridades desacoplam a carruagem em que devia seguir, alegando problemas técnicos.

Quatro anos depois, tinham as universidades acabado de abrir portas após três anos e meio encerradas pelo regime, para calar os protestos antigovernamentais, a líder da oposição tenta repetir a viagem até à segunda cidade do país. Planeia fazer a deslocação na companhia de outros militantes do seu partido, para confirmar denúncias de que o regime interferia nas atividades da LND. Mais uma vez, fica confinada numa sala de espera da estação ferroviária.

Seguem-se 19 meses de prisão domiciliária, que terminam a 6 de maio de 2002. Nesse dia, uma multidão de apoiantes acompanha-a num passeio triunfal por Rangum (antiga capital e maior cidade de Myanmar) até à sede do seu partido, onde Suu Kyi declara que a sua liberdade é incondicional. Está de volta ao combate político.

30.05.2003 — 13.11.2010

Sensivelmente um ano após sair em liberdade, Suu Kyi volta a ser presa, desta vez para cumprir o período mais longo de reclusão a que foi sujeita: sete anos e seis meses. Nesse 30 de maio de 2003, um grupo de simpatizantes da junta militar ataca a comitiva da líder da oposição, perto da cidade de Depayin. Oficialmente morrem quatro pessoas, mas a oposição reclama um verdadeiro massacre, com pelo menos 70 vítimas mortais.

Suu Kyi é levada para a prisão de Insein, os escritórios do seu partido são encerrados e as universidades fecham por tempo indeterminado. Meses depois, é transferida para sua casa, onde continua a cumprir pena.

Em setembro de 2007, Suu Kyi assoma brevemente ao portão de casa para saudar centenas de monges que ali se dirigiram para saudá-la. Os religiosos budistas levavam dias de protestos contra a junta militar, que ficaram conhecidos como a Revolução de Açafrão (a cor das suas túnicas).

Myanmar continua em polvorosa e, no ano seguinte, a 10 de maio, os generais promovem um referendo constitucional que mais parece destinado a cortar as asas à líder da oposição. Uma das cláusulas impede a candidatura à presidência a cidadãos com nacionalidade estrangeira ou com familiares diretos nessa condição. Era o caso de Suu Kyi, casada com um inglês (entretanto falecido sem que pudesse ter ido visitá-lo no fim da vida, pois não a deixariam voltar a entrar em Myanmar) e mãe de dois rapazes com cidadania britânica.

O cerco do regime aperta-se ainda mais quando um norte-americano de 53 anos invade a sua propriedade, a 30 de novembro de 2008, após atravessar a nado o lago contíguo à casa. Suu Kyi alerta as autoridades para aquela presença indesejada, mas estava criado mais um pretexto para a penalizar.

É levada para a prisão de Insein e sujeita a julgamento: é condenada a três anos de trabalhos forçados, pena comutada para 18 meses de detenção domiciliária, que termina a 13 de novembro de 2010.

01.02.2021 — (…)

As raízes do golpe militar de 1 de fevereiro passado, que voltaram a privar Aung San Suu Kyi de liberdade, datam de 8 de novembro de 2020, quando a LND venceu as eleições gerais de forma esmagadora.

Os deputados não chegam a tomar posse já que no dia previsto para a cerimónia (1 de fevereiro), os militares declaram as eleições ilegítimas e tomam o poder, fechando o parêntesis democrático aberto em 2015 pela inequívoca vitória eleitoral do partido de Suu Kyi e pela sua entronização como líder de facto de Myanmar.

Desde as detenções de Suu Kyi e do Presidente do país, Win Myint (também da LND) que várias cidades birmanesas estão tomadas pelos maiores protestos populares desde a Revolução de Açafrão. Nas mãos dos manifestantes há muitos retratos de Aung San Suu Kyi, heroína birmanesa e também, cada vez mais, um ícone mundial da resistência pacífica.

(ILUSTRAÇÃO “Seria difícil dissipar a ignorância a menos que houvesse liberdade para buscar a verdade sem medo”, Aung San Suu Kyi DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

O silêncio do Papa face ao genocídio dos rohingya

Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas Francisco não a condenou

O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar, antiga Birmânia, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então. Não aconteceu.

Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.

Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.

Até à matança final

Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de  refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.

“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao “Expresso” a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação,  movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”

Aprender com a História

Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na  Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”

Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.

Pretextos para reprimir

O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação… portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.

A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”

Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”

ROHINGYA NÃO CONTAM

135 grupos étnicos, com direito a solicitarem cidadania birmanesa, foram identificados numa lei de 1982. Os rohingya ficaram de fora

2014 foi o ano do último censo na Birmânia. Os rohingya foram excluídos, a não ser que se registassem como “bengalis”, o que muito poucos fizeram

A LEI DA GEOGRAFIA E A PRESENÇA PORTUGUESA

A palavra rohingya não vem nos dicionários. Mas a geografia ajuda a perceber a sua presença num país abordado por portugueses

Para tentar explicar ao “Expresso” as origens da maldição dos rohingya na Birmânia, Maria Ana Marques Guedes socorre-se de um mapa. “Enquanto reino, o Arracão teve uma independência bastante razoável em relação à Birmânia por razões geográficas. Está separado do resto do território pela cadeia montanhosa Arakan Yoma e está virado para o Golfo de Bengala e para o Bangladesh, que já era muçulmano quando os portugueses lá chegaram, e com quem o Arracão sempre teve mais relações comerciais do que com a Birmânia”, diz esta doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, com investigação desenvolvida na Birmânia. “Julgo que os rohingya são descendentes desses muçulmanos. O termo é discutidíssimo por historiadores e linguistas. Não vem sequer nos dicionários.”

Por causa dessa particularidade geográfica, quando o rei Tabinshwehti (1516/50) unificou a Birmânia, o Arracão ficou de fora. Só seria conquistado em 1785, muito depois da abordagem dos portugueses, no século XVI, atraídos pelas riquezas da Birmânia. “Foi o maior exportador de arroz até ao fim da II Guerra Mundial e ainda tem os melhores rubis do mundo”, diz a professora.

Os portugueses, que tentaram conquistar o Arracão e Pegu (a capital), fizeram uma ocupação não oficializada pelo Estado luso da Índia. O mercenário Filipe de Brito Nicote chegou a ter uma fortaleza no Sirião. “No princípio do século XVII, os portugueses chegaram a raptar um príncipe birmanês de seis anos. Educaram-no em Lisboa e tentaram pô-lo no trono de Arracão, para depois verem legitimada a presença portuguesa.”

(Foto: Chegada de membros da etnia rohingya ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigos publicados no “Expresso”, a 1 de dezembro de 2017. O primeiro artigo foi republicado e adaptado no “Expresso Online”, a 1 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

O silêncio da Nobel da Paz

Aung San Suu Kyi tem sido criticada por não falar dos rohingya, mas neste país fazê-lo pode custar uma carreira política

Selo norueguês dedicado a Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz 1991

Treze anos após ter recebido o Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi é cada vez mais contestada por reagir ao drama dos rohingya… com silêncio. “A questão dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi mas para todos os políticos birmaneses. Nenhum líder político, incluindo os ativistas pró-democracia, tem coragem suficiente para falar do problema”, explicou ao Expresso Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaca (Japão), perito em assuntos do Sudeste Asiático. “Os birmaneses budistas mas também minorias étnicas que têm lutado pela autonomia ou pela autodeterminação não olham para os rohingya como compatriotas, mas como estrangeiros (bangladeshianos). Nisso estão todos de acordo.”

Desafiar essa retórica tão profundamente enraizada na sociedade trará inevitavelmente consequências. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (o principal partido da oposição) perderão apoio interno, o que afetará a popularidade de todo o movimento democrático”, refere Matsuno. “Para os políticos birmaneses, falar dos rohingya significa o fim das suas carreiras políticas.”

Em novembro, a Birmânia realizará eleições parlamentares. Depois, um colégio eleitoral escolherá o próximo chefe de Estado. Suu Kyi, que fará 70 anos a 19 de junho, está impedida de se candidatar a Presidente ou vice-presidente — os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos). Para alterar essa cláusula na Constituição é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados — 25% dos parlamentares são nomeados pelos militares no poder.

“Não posso provar que o regime esteja a incitar à violência em Rakhine, mas intencionalmente não toma medidas contra a escalada. Deixa que aconteça e explora o sentimento popular de que, quem apoia os ‘estrangeiros’ não tem patriotismo para liderar o país”, explica Matsuno. “O regime pode ter a secreta esperança de que Aung San Suu Kyi mencione os rohingya num deslize. É sabido que o regime tem um histórico de tentativas de descrédito de Suu Kyi com o trunfo nacionalista. É muito provável que, neste caso, espere ter o mesmo efeito.”

Artigo publicado no Expresso, a 30 de maio de 2015