As críticas ao Islão continuam a ditar sentenças de morte. Ayaan Hirsi Ali está ameaçada desde que renegou a religião em que foi educada
Dezanove anos após o escritor Salman Rushdie se ter tornado o rosto universal dos perseguidos pelo radicalismo islâmico, casos subsistem em que a liberdade de expressão continua a ditar sentenças de morte. Dois escritores sauditas ousaram desafiar algumas interpretações do Corão e têm a cabeça a prémio. Em artigos publicados no jornal ‘Al-Riyadh’, Yousef al-Khail e Abdullah Al-Otaibi defenderam, designadamente, que cristãos e judeus não devem ser considerados infiéis pelos muçulmanos.
Há cerca de um mês, o clérigo radical Abdurrahman Al-Baraak emitiu uma “fatwa” apelando à morte dos autores dos “artigos heréticos”, colocando as suas vidas à mercê de um qualquer fanático — uma realidade bem familiar a Ayaan Hirsi Ali, a argumentista do filme ‘Submissão’, do realizador holandês Theo van Gogh.
Quatro anos após a exibição do filme, “estão a ser questionados alguns versículos do Corão que dizem que as mulheres desobedientes devem ser castigadas, que devem andar veladas, que o homem pode dispor da sua mulher sempre e quando lhe apetecer e que a mulher e o homem que cometerem adultério devem ser vergastados 100 vezes”, afirmou Ayaan Hirsi Ali, em entrevista ao Expresso. “Estes são os versos que eu seleccionei e que foram escritos no corpo da mulher (que surge no filme). Agora pergunta-se: é nisto que os muçulmanos acreditam? É desta forma que querem praticar a sua religião?”.
O realizador seria assassinado às mãos de um jovem holandês de origem marroquina que lhe cravou no peito uma carta dirigida a Ayaan — ela seria a próxima. “A morte de Theo van Gogh levanta uma questão: criticar o Islão conduz à morte daqueles que o criticam”, acusa.
Aos 38 anos, esta somali naturalizada holandesa — que foi deputada entre 2003 e 2006 — encontrou nos Estados Unidos a tranquilidade que lhe fugiu na Europa. “Pago a um segurança para me proteger, mas nos EUA sinto-me anónima. É um país enorme. Na Holanda, a minha vida tornou-se impossível, todos conheciam a minha cara e, por causa do nível de intensidade da ameaça, ninguém queria viver perto de mim…”, recorda.
O efeito 11 de Setembro
As ameaças contra Ayaan começaram ainda antes de ‘Submissão’. Em 2002, ela afirmou que “o Islão era mau para as mulheres” e renegou publicamente aquela que fora a sua religião desde o berço. Ainda hoje, recorda com clareza o dia em que o “ayatollah” Khomeini lançou uma “fatwa” — ainda em vigor — condenando à morte o autor de ‘Os Versículos Satânicos’, o indo-britânico Salman Rushdie: “Tinha 19 anos, vivia em Nairobi (Quénia) e usava voluntariamente o véu. Quando ouvi a notícia, encolhi os ombros e pensei: ‘É natural, ele fez por merecê-las. Nunca devia ter insultado o Profeta’. Hoje, peço-lhe desculpa”.
O 11 de Setembro de 2001 levou-a a reflectir como nunca antes… “Olhei-me ao espelho e pensei: a quem queres enganar? O problema não é as pessoas, mas a fé em si. As pessoas actuam em nome da fé”, recorda. “Fomos ensinados não só a ser bons muçulmanos, mas a não criticar o Islão”.
E haverá alguma religião à face da terra que aceite a crítica? “Há uma diferença entre o Islão e religiões como o cristianismo, judaísmo, budismo e hinduísmo: hoje, no Ocidente, apenas o Islão responde com violência”, acusa Ayaan Hirsi Ali.
Transformada numa feroz porta-voz dos direitos das muçulmanas, tem em preparação um novo livro sobre o tema, determinada em não paralisar perante a “fatwa” capital que a persegue. Ayaan diz nunca ter sofrido qualquer ataque físico, mas nem todos os críticos do Islão podem dizer o mesmo. Em 1992, o escritor egípcio Farag Foda foi assassinado por dois activistas do grupo Al-Gamaa al-Islamiyya, inflamados pelas suas sátiras antifundamentalistas.
Desde o caso Rushdie (1989) que as “fatwas” são vistas no Ocidente como sinónimo de condenação à morte — erradamente. Em 2005, a estrela feminina do ténis indiano, Sania Mirza, foi advertida por uma “fatwa” para que deixasse de jogar com saias curtas e ‘tops’ insinuantes. No ano passado, o astronauta malaio Sheikh Muszaphar Shukor pediu orientações ao Conselho Nacional da Fatwa do seu país sobre como cumprir os preceitos islâmicos no espaço.
O QUE É UMA “FATWA”?
É um termo técnico usado na lei islâmica para indicar um decreto interpretativo ou orientativo. Exemplo curioso aconteceu em 1990 quando um “mufti” de Jerusalém emitiu uma “fatwa” confirmando que a cristã Hanan Ashrawi era a pessoa “certa” para ser porta-voz dos palestinianos na Conferência de Madrid. Uma outra surpreendente data de 2005 quando, na véspera do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Março, em Madrid, a Comissão Islâmica de Espanha condenou “os actos terroristas de Osama Bin Laden e da sua organização Al-Qaeda” e apelou à denúncia do seu paradeiro. Recentemente, pronunciando-se sobre bebidas energéticas, um clérigo egípcio lançou a polémica ao defender que o Islão permite um nível de 0,5% de álcool. Original é a iniciativa do “mufti” Ebrahim Desai que, a partir de uma “madrassa” sul-africana, esclarece, num “site”, as dúvidas que lhe chegam por “e-mail”: “Como posso conhecer uma rapariga para casar?” “O Islão permite o uso de unhas postiças?”
A MULHER NO CORÃO
“E elas têm direitos sobre eles, como eles os têm sobre elas, condignamente; mas os maridos conservam um grau (de primazia) sobre elas” (2:228)
“E se receais que não podereis tratar com justiça os órfãos casai com as mulheres que vos parecerem boas para vós; — duas, três ou quatro. E se receais que não podereis proceder com equidade com todas casai, então, com uma somente…” (4:3)
‘‘Ó Profeta! Dize às tuas esposas e às tuas filhas e às mulheres dos crentes que se envolvam e fechem nos seus mantos (quando saírem). Isto será melhor para que possam ser reconhecidas e para que não sejam perturbadas” (33:59)
“O adúltero e a adúltera: castigai-os com severidade e cada um dos dois com um cento de varadas. E não deixeis que a piedade, por eles, vos impeça de obedecer a Alá, se credes em Alá e no Último Dia. E deixai que um grupo de crentes testemunhe o castigo” (24:2)
(Imagem: “Tolerar a intolerância é cobardia”, lê-se na citação atribuída a Ayaan Hirsi Ali)
Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de maio de 2008
