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Estes cinco países podem ganhar com o degelo entre Riade e Teerão

Usados como peças de xadrez no tabuleiro geopolítico regional, cinco Estados podem ser os primeiros a beneficiar com a reaproximação saudita-iraniana

Arábia Saudita e Irão têm uma rivalidade antiga que moldou o Médio Oriente. Mais do que um acordo, o recente entendimento é, acima de tudo, uma medida de criação de confiança entre ambos. Apesar de não contemplar um roteiro para a resolução dos diferendos que os opõem, há potencial para acreditar que possa gerar estabilidade. Também há, contudo, especificidades que transcendem a vontade dos dois gigantes.

IÉMEN

Acordo é bom, mas falta ouvir os locais

Em guerra há quase dez anos, o Iémen tem sido uma peça no xadrez das rivalidades regionais, pelo que é o país onde o impacto do acordo pode ser maior. O Irão é aliado dos rebeldes huthis (xiitas) e a Arábia Saudita lidera uma operação militar regional de bombardeamentos ao país, visando o fim da era huthi e o regresso do Governo deposto, refugiado na cidade de Aden. Mas é ingénuo pensar que basta a vontade dos dois países para ditar a paz naquele território tribal, cuja governação o antigo ditador Ali Abdullah Saleh comparou a “uma dança sobre cabeças de serpentes”.

“Há um consenso de que o acordo diplomático entre a Arábia Saudita e o Irão é bom para o Iémen. Ao mesmo tempo, existe um entendimento de que a dimensão regional é só uma parte do conflito, que também tem uma dimensão local”, explica ao Expresso Veena Ali-Khan, investigadora do International Crisis Group para o Iémen. “Um acordo regional é um passo em frente, mas não é tudo; ainda é preciso um diálogo entre iemenitas.”

No terreno o país vive um cessar-fogo que sobreviveu ao seu término oficial, em outubro passado. Apesar de não ter sido renovado, as principais linhas da frente mantêm-se congeladas, havendo registo de ataques e combates aleatórios. Oficialmente, a trégua continua em vigor e os principais grupos em contenda têm-se privado de lançar ofensivas, o que indicia uma vontade de voltar a página do conflito e seguir em frente.

“Há um ambiente de reconciliação. Os huthis estão a falar com os sauditas, mas há sempre a possibilidade de o conflito se reacender. Os huthis saudaram o pacto, mas deixaram muito claro que um acordo entre Irão e Arábia Saudita não complementa um acordo entre huthis e sauditas.”

Recentemente, num posto de fronteira entre os dois países, as partes devolveram cadáveres de combatentes, num gesto interpretado como sinal de progresso entre ambos. Os sauditas receberam seis corpos e os huthis 58, naquele que foi o terceiro acordo do género.

Enquanto algumas feridas não saram e a política continua a marcar passo, acentua-se a grande catástrofe humanitária em que se transformou o Iémen. Terça-feira, o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas anunciou a suspensão do seu programa de prevenção da desnutrição. Tudo acontece num dos países mais pobres do mundo, altamente dependente da ajuda internacional e onde, segundo a UNICEF, uma criança morre a cada dez minutos.

Síria

Guerra não acabou, mas Assad manda

A guerra na Síria foi outro braço de ferro entre os dois rivais. O Irão foi um esteio para Bashar al-Assad, fazendo deslocar, desde o vizinho Líbano, combatentes do aliado xiita Hezbollah para defender o ditador. A Arábia Saudita, por seu lado, apoiou grupos da oposição. No entanto, 12 anos após o início do conflito, e ainda que não tenha formalmente terminado, Riade e Teerão deixaram de olhar para a Síria como uma guerra por procuração.

Com a ajuda dos bombardeamentos da Rússia, as forças de Assad recuperaram muito território. Hoje, mesmo países que, de início, estiveram do lado da oposição aceitam que reconhecer que Assad voltou a mandar no país é um atalho para limitar mais instabilidade na região. Três países árabes resistem nessa aproximação: Marrocos, Catar e Kuwait.

Em maio passado, esse consenso crescente de que o diálogo com a Síria é necessário foi coroado com a reintegração da Síria na Liga Árabe, de onde tinha sido suspensa no primeiro ano da guerra. Essa reabilitação regional de Assad aconteceu numa cimeira realizada na cidade saudita de Jeddah.

“O Irão não faz parte da Liga Árabe [é um país persa], mas esse regresso da Síria à organização faz parte da normalização entre os dois países”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “Há uma aceitação de que Bashar al-Assad venceu a guerra, e essa normalização do líder é consequência direta da normalização das relações entre Riade e Teerão.”

Na cimeira árabe de Jeddah, Assad comentou o regresso da Síria ao concerto árabe: “Espero que marque o início de uma nova fase de ação árabe pela solidariedade entre nós, pela paz na nossa região, por desenvolvimento e prosperidade em vez de guerra e destruição”. Para trás ficaram mais de 300 mil civis mortos, quase 340 ataques com armas químicas, 82 mil bombas de barril lançadas sobre zonas residenciais e dezenas de cercos a localidades ao estilo medieval. Mais de 13 milhões de pessoas tornaram-se deslocados ou refugiados.

Líbano

Polarização e crise não são prioridades

O anúncio do acordo entre sauditas e iranianos criou uma ilusão no Líbano. Com o país fortemente polarizado, a nível político, entre o movimento xiita Hezbollah e seus aliados (que representam a influência do Irão no país) e, no campo oposto, algumas fações apoiadas pela Arábia Saudita, “quando o acordo foi inicialmente tornado público, ambos os lados tiveram a expectativa de que ajudasse a resolver o impasse político no país… a seu favor”, explica ao Expresso David Wood, analista do International Crisis Group para o Líbano.

Organizado mediante um sistema confessional, que determina que o Presidente do país seja sempre cristão maronita, o primeiro-ministro muçulmano sunita e o presidente do Parlamento muçulmano xiita, o Líbano está há dez meses sem conseguir eleger o chefe de Estado. A escolha cabe ao Parlamento, que já falhou 12 tentativas.

Este impasse político, num país que reconhece, oficialmente, 18 grupos religiosos, expõe uma classe política que age em função de agendas sectárias e não de um interesse nacional. Para agravar, o país atravessa uma grave crise económica — em abril, a taxa de inflação estava nos 269% — e vive na iminência de colapso financeiro, alimentado por altos índices de corrupção, incompetência e desvios de dinheiro público.

A recuperação económica está dependente de um empréstimo de 785 milhões de euros concedido pelo Fundo Monetário Internacional, que não avança devido às múltiplas crises que o país enfrenta. À semelhança do que se passa em relação ao Presidente, os políticos também não se entendem sobre o governador do Banco Central.

“O Líbano ainda não sentiu qualquer impacto tangível da reaproximação iraniano-saudita”, assegura Wood. “Na realidade, o país é uma prioridade muito menor para Riade e Teerão, em comparação com vários outros vizinhos. Por isso, é improvável que a reaproximação faça grande diferença no Líbano até que a Arábia Saudita e o Irão resolvam outros conflitos que consideram mais urgentes, a começar pela situação no Iémen.”

Esta falta de urgência em estabilizar o Líbano prende-se também com o peso desigual que o país tem para Riade e Teerão. Para esta, é uma das pontas do chamado arco xiita, com o qual a República Islâmica projeta influência no Médio Oriente.

Iraque

Arena de diálogo para amaciar

Antes da assinatura do acordo entre Riade e Teerão, em Pequim, foi em Bagdade que, durante dois anos, as partes partiram pedra para desbravar um caminho comum. Pela sua complexidade étnica e religiosa, o Iraque tem fações naturalmente próximas de ambos os países. Essa circunstância contribuiu para transformar este país num campo de batalhas por procuração após a queda do ditador Saddam Hussein e, mais recentemente, numa arena de diálogo. Entre 2020 e 2022, realizaram-se cinco rondas de conversações que serviram para clarificar pontos de vista e criar uma prática regular de comunicação.

Com o Irão, o Iraque partilha 1600 quilómetros de fronteira e uma população de maioria xiita, que foi reprimida nos tempos do sunita Saddam e chegou ao poder nos anos da guerra iniciada em 2003. Mais ainda, é um país atravessado pelo arco xiita de influência iraniana na região. Muitos grupos armados recebem apoio direto da Guarda Revolucionária Iraniana, algo que ficou exposto quando, a 3 de janeiro de 2020, o general Qasem Soleimani — herói nacional no Irão, tido como cérebro da estratégia militar do país para o Médio Oriente — foi assassinado no aeroporto de Bagdade por drones dos Estados Unidos. Em retaliação, Teerão bombardeou uma base americana no Iraque.

Já a Arábia Saudita, que nunca teve um grau de envolvimento militar no Iraque semelhante ao do Irão, partilha uma fronteira de 800 quilómetros, onde chega a sentir vulnerabilidade. Riade tem maior afinidade com a comunidade sunita, profundamente tribal, e representa um potencial de grandes investimentos que Teerão não consegue acompanhar. Para os sauditas, o acordo com o Irão funciona também como salvaguarda, na eventualidade de escalada na sempre tensa relação entre Teerão e Washington.

Bahrain

A curta distância dos dois gigantes

Este arquipélago do Golfo Pérsico é o único reino da Península Arábica que tem uma monarquia reinante sunita e uma população de maioria xiita, por vezes apontada como potencial quinta-coluna do Irão. Esta circunstância tornou o país vulnerável a interferências do gigante xiita, como sucedeu durante a Primavera Árabe (2011) — Riade interveio em defesa da dinastia Al-Khalifa e Teerão dos manifestantes —, e condena-o a ser um permanente palco de competição ideológica e geopolítica entre os dois gigantes.

Em 2016, o Bahrain foi lesto a solidarizar-se com a Arábia Saudita e a cortar relações com o Irão no dia seguinte a Riade tê-lo feito. Desde então, acentuou as suas divergências em relação a Teerão e reconheceu o Estado de Israel, tornando-se um dos protagonistas dos Acordos de Abraão, promovidos pelo então Presidente americano Donald Trump.

Ao estilo de um efeito dominó, Bahrain, Jordânia e Egito são apontados como os países árabes que estão na calha para normalizar relações diplomáticas com o Irão. “As autoridades egípcias já afirmaram que a melhoria do relacionamento entre o Cairo e Teerão depende de como progredir a relação entre o Irão e a Arábia Saudita”, explica o académico iraniano Javad Heiran-Nia. Da relação Riade-Teerão parece depender o degelo do Médio Oriente.

Quem fica a perder?

ISRAEL

O Irão é o elemento central da política externa de Israel, que o vê como ameaça existencial (devido ao programa nuclear) e circunstancial (pelo apoio a grupos palestinianos). Os Acordos de Abraão, com que o Estado hebraico iniciou uma aproximação ao mundo árabe, visaram também isolar o Irão. Com quatro países a bordo, a Arábia Saudita era candidata. “A pressão está sobre Riade”, diz Tiago Lopes. “Terá de escolher se dá prioridade ao Irão, para reconstruir o grande espaço islâmico, se a Israel, numa lógica de estabilização da região.”

TURQUIA

“A Turquia perde espaço político no Médio Oriente com a aproximação entre Irão e Arábia Saudita”, comenta o docente da Universidade Portucalense. “No mundo sunita, sempre foi vista como poder mediador e moderado. Com a normalização, deixa de poder fazer a ponte, porque não há nada para moderar.” Tiago Lopes recorda a recente cimeira da NATO, em Vílnius, onde após colocar entraves à adesão da Suécia, Ancara acabou por ceder. “A Turquia decidiu voltar à sua política de ambiguidade, que é ter relações com o Ocidente, mas também não estragar o relacionamento que tem com a Rússia.”

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Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de agosto de 2023. Pode ser consultado aqui

Primavera árabe faz 10 anos

A esperança na mudança não se concretizou. E a ocorrência de uma segunda vaga de protestos revela que na rua árabe subsiste a insatisfação

Plantar a democracia na Praça Tahrir, no Cairo CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

A pandemia acabou com os protestos nas ruas da Argélia mas, na rede social Twitter, Said não se cala. Este argelino, que se notabilizou como ativista digital durante as manifestações pacíficas de 2019-2020, motivadas pela vontade de Abdelaziz Bouteflika de se recandidatar a um quinto mandato presidencial, continua a disparar vídeos, fotos e informação de todo o tipo, demonstrativos de tudo quanto o leva a rejeitar o regime — seja o atraso da vacinação contra a covid-19 seja o tratamento dado a manifestantes que estão presos. “Seguramente que os protestos recomeçarão em força a seguir à pandemia”, garante ao Expresso. “Haverá marchas gigantescas.”

Até aparecer o novo coronavírus, a Argélia era um dos países que protagonizavam uma espécie de segunda vida da primavera árabe — o movimento de contestação popular que explodiu em 2011 e derrubou quatro ditadores: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, Hosni Mubarak, no Egito, Muammar Kadhafi, na Líbia, e Ali Abdullah Saleh, no Iémen.

Contrato social falido

“As revoltas de 2011 puseram em marcha exigências populares, no sentido da responsabilização de governos, que continuam a colocar os regimes autocráticos sob pressão, por todo o Médio Oriente. Quanto às manifestações populares da segunda vaga — na Argélia, Sudão, Líbano e Iraque —, têm raízes diferentes e seguem trajetórias particulares. Mas partilham com os protestos de 2011 a rejeição generalizada de um contrato social falido e conseguiram desafiar governantes autocráticos e até confrontar os militares”, diz ao Expresso Eugene Rogan, professor de História Contemporânea do Médio Oriente na Universidade de Oxford (Reino Unido).

Na Argélia os protestos visaram um regime caduco. No Líbano começaram depois de o Governo taxar serviços de comunicação como o WhatsApp e cedo atingiram o sistema confessional que define a organização política. No Iraque os alvos foram a corrupção e o peso das milícias. E no Sudão, onde há uma transição política em curso, a revolta começou após a triplicação do preço do pão.

Aprender com os erros

Se em 2011, estes quatro países — traumatizados por guerras civis não muito longínquas — não reagiram à primavera árabe, hoje são a prova de que a insatisfação se mantém nas ruas. Segundo o historiador norte-americano, há espaço para os árabes continuarem a sonhar. “Resta ver se estes novos movimentos aprenderam as lições de 2011 sobre como conter o poder dos militares, organizar grupos de ação política capazes de assumir o poder após a queda dos governantes autocráticos, institucionalizar a mudança política através de uma reforma constitucional, evitar soluções armadas para problemas civis. Resta ver se terão mais êxito ou mostrarão mais resistência a forças contrarrevolucionárias do que os movimentos de 2011.”

Hisham pagou caro o envolvimento nos protestos no seu Egito natal. Simpatizante da Irmandade Muçulmana, foi preso após a formação islamita — que venceu as primeiras eleições livres, a seguir à revolução — ter sido arredada do poder por um golpe militar liderado pelo atual Presidente, Abdul Fatah Al-Sisi. “Estive preso 366 dias”, conta ao Expresso. Saiu do Egito e viveu uns anos na Turquia. Hoje mora no Reino Unido. “Pedi asilo aqui e concederam-mo. Em 2025, terei cidadania britânica. Depois poderei viajar até ao Egito com passaporte do Reino Unido. Ninguém me poderá tocar.”

O peso dos mais jovens

Engenheiro de formação, Hisham está a oito meses de terminar um mestrado em Inteligência Artificial, na Universidade de Plymouth. “Depois talvez consiga lecionar em universidades, aqui.” Aos 38 anos, traça na sua mente todo um futuro que lhe está vedado no seu país. “Neste momento, nada no Egito é aconselhável enquanto a democracia não regressar.”

A odisseia de Hisham evidencia feridas abertas durante a primavera árabe: a perseguição a vozes da oposição e a falta de perspetivas dos jovens. “Nas sociedades árabes o verdadeiro desafio é o crescimento demográfico, o peso político dos que têm menos de 30 anos”, diz Eugene Rogan. “Governos autocráticos incapazes de proporcionar aos jovens um bom futuro, dependentes da repressão para permanecer no poder, ver-se-ão desafiados por revoltas populares demasiado grandes para serem controladas.”

Dez anos passados, a esperança de um novo Médio Oriente, mais livre e democrático, não se materializou. Líbia, Síria e Iémen foram engolidos por guerras intermináveis. Dos quatro países que viram ditadores depostos, apenas a Tunísia concretizou um processo de transição democrática.

“A Tunísia, sem dúvida, lançou as bases da democracia há dez anos. O progresso político é uma realidade. Nesse aspeto, a revolução cumpriu a sua promessa. O problema é que esta abertura política, que se deu de forma brutal, não foi acompanhada de progresso social e económico”, comenta ao Expresso a politóloga marroquina Khadija Mohsen-Finan, autora do livro “Tunisie, l’Apprentissage de la Démocratie — 2011-2021” (Tunísia, a aprendizagem da democracia, sem edição portuguesa). “A vida das pessoas não melhorou, pelo contrário. Para os tunisinos a democracia tornou-se obstáculo à mudança e não é essencial, tendo em conta as suas dificuldades quotidianas.”

O peso dos mais jovens ??????????????

Um dos aspetos que tornam o processo tunisino único decorre da atuação do partido islamita Ennahda, vencedor das primeiras eleições livres, que optou por fazer pontes com as demais forças — o que a Irmandade Muçulmana não fez no Egito —, chegando ao ponto de abdicar da sua agenda religiosa.

Se em 2011, os partidos islamitas emergiram como sucessores naturais das ditaduras, hoje não é certo que isso se repita. “No Líbano e no Iraque, os manifestantes apelaram a uma política não-sectária. Além disso, a Irmandade Muçulmana foi fortemente reprimida na maioria do mundo árabe, a seguir à contrarrevolução de 2013 no Egito. Na Argélia e no Sudão, os protestos permaneceram essencialmente seculares, em termos de liderança e orientação”, conclui Rogan. “Já não parece que uma onda islâmica vá seguir-se aos protestos contra os governos autocráticos.” Aos dez anos, a chamada primavera árabe reinventa-se.

O QUE ACONTECEU

TUNÍSIA — A 14 de janeiro de 2011 Ben Ali fugiu do país, após 28 dias de protestos e 23 anos de poder. Iniciou-se uma transição democrática na qual têm prevalecido o diálogo e a propensão para o consenso. Os militares nunca interferiram.

EGITO — Hosni Mubarak não resistiu à contestação na Praça Tahrir e a Irmandade Muçulmana emergiu da clandestinidade para vencer as primeiras eleições livres. Em 2013, um golpe militar sentenciou os islamitas e devolveu o poder a um homem-forte, o general Sisi.

LÍBIA — Ao fim de 42 anos no poder, Muammar Kadhafi foi morto numa rua de Sirte, quando o país levava meses de protestos. Seguiu-se a guerra civil (que continua, com interferência externa), alimentada pelo carácter tribal da sociedade.

IÉMEN — Acossado pelas ruas, Ali Abdullah Saleh negociou a saída do poder. A rivalidade entre tribos, a existência de grupos separatistas e de um braço da Al-Qaeda alimentaram uma guerra que subsiste, com consequências humanas catastróficas.

SÍRIA — Bashar al-Assad combateu a contestação popular com o fogo das armas, dando origem a uma guerra civil que arrastou vários países da região e não só.

BAHREIN — Os protestos populares foram esmagados com a ajuda dos tanques da vizinha Arábia Saudita, que entrou no país em socorro dos Al-Khalifa.

(FOTOS De cima para baixo e da esquerda para a direita: Protestos no Egito (Praça Tahrir), Tunísia, Líbia, Iémen, Síria e Bahrain (Praça da Pérola) WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

O sabor agridoce da “paz” entre Israel e dois países árabes

A Casa Branca acolheu a assinatura de acordos de normalização diplomática entre Israel e Emirados Árabes Unidos e Bahrein. Uma traição, lamentam os palestinianos

Vinte e seis anos depois, a Casa Branca voltou a abrir portas para consagrar a aproximação entre Israel e o mundo árabe. Longe de serem unânimes, quem ganha e quem perde com os Acordos de Abraão?

VENCEDORES

DONALD TRUMP
A 49 dias de tentar a reeleição como Presidente dos EUA, carimba o seu maior êxito diplomático. Consegue-o após uma entrada em falso ao propor, no início do ano, o “acordo do século” entre israelitas e palestinianos, que refletia sobretudo os interesses israelitas e, sem surpresa, foi rejeitado pelos palestinianos.

Terça-feira, no papel de anfitrião da histórica cerimónia que aproximou Israel, Emirados e Bahrain, garantiu: “Estamos muito adiantados em relação a uns cinco outros países. Francamente, acho que poderíamos tê-los aqui hoje.”

Proposto para o Nobel da Paz, Trump tem contra si o facto de os signatários destes acordos nunca terem travado uma guerra uns com os outros e também a experiência de antecessores. Em 1979, Jimmy Carter foi o anfitrião da assinatura da paz entre Israel e Egito, mas apenas Menachem Begin e Anwar al-Sadat foram agraciados (este veio a ser assassinado). Também os acordos de Camp David de 1993 valeram o Nobel aos israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres e ao palestiniano Yasser Arafat, mas não a Bill Clinton.

BENJAMIN NETANYAHU
Consegue um pacto benéfico para Israel sem fazer cedências. Com o país que governa a cumprir o segundo confinamento (este de três semanas) por causa da covid-19, com um julgamento por corrupção agendado e uma coligação periclitante, o primeiro-ministro israelita arrebata um êxito importante na frente que mais o tem tomado ao longo dos seus sucessivos mandatos: a ameaça do regime iraniano dos ayatollahs.

ARÁBIA SAUDITA
Está ausente da ‘foto de família’ que fica para a História, continua sem relações diplomáticas com Israel, mas a sua concordância em relação aos Acordos de Abraão está implícita. Autorizou o primeiro voo comercial entre Israel e os Emirados a atravessar o seu espaço aéreo e não se opôs ao protagonismo do Bahrein, um dos estados que mais protege na região, por ter poder sunita e maioria xiita. Interessa-lhe todo o reforço da frente anti-Irão.

INDÚSTRIA DAS ARMAS
É um assunto que os protagonistas não abordam em público, mas que foi decisivo para o sucesso dos Acordos. Netanyahu terá viabilizado a venda de aviões de combate F-35 dos EUA aos Emirados. O negócio, que reduzirá a superioridade militar israelita na região, conta com a oposição de militares e políticos em Israel. Trump já disse “não ter problemas” em vender os caças aos Emirados, aliados da Arábia Saudita nos bombardeamentos ao Iémen.

PERDEDORES

PALESTINIANOS
“Traição”, “facada nas costas”. Os palestinianos não escondem a desilusão, ainda que os Emirados garantam que os Acordos de Abraão suspendem a anexação da Cisjordânia. Porém, a ocupação não recua um centímetro, a Palestina independente não tem perspetiva e abriram-se brechas na unanimidade árabe em torno da causa. Dias antes da cerimónia, a Liga Árabe — que sempre subordinou a normalização da relação com Israel ao reconhecimento da Palestina — rejeitou a condenação dos Acordos de Abraão proposta pelos palestinianos.

IRÃO
Vizinho das duas petromonarquias que abriram braços ao “inimigo sionista”, como Teerão designa Israel, o Irão qualificou a aproximação entre os Emirados e Israel como ato de “estupidez estratégica”, que terá o condão de “fortalecer o eixo de resistência na região”.

Com os Acordos de Abraão, Israel passa a ter quatro pontos de apoio no mundo muçulmano sunita, que olha para o Irão como o gigante xiita que ameaça a região com um projeto de expansão. O impacto desta nova frente anti-Irão tenderá a aumentar se a ela aderirem novos membros, como Omã, o Kuwait e, de forma decisiva, a Arábia Saudita.

TURQUIA
Com os Acordos de Abraão, vê um grande adversário, os Emirados, ganhar acesso a sofisticado armamento norte-americano. Turquia e Emirados intervêm atualmente na guerra na Líbia: Ancara pelo poder em Trípoli (reconhecido pela ONU) e Abu Dhabi em apoio do general rebelde Khalifa Haftar. A Turquia foi o primeiro país muçulmano a reconhecer Israel.

QATAR
Grande rival dos Emirados, é alvo, desde 2017, de um bloqueio regional imposto por Arábia Saudita, Egito, Emirados e Bahrein. Os Acordos de Abraão reforçam a posição dos dois últimos.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Emirados e Bahrain assinam hoje “a paz” com Israel. Quem se seguirá?

Dois países da região do Golfo Pérsico assinam esta terça-feira acordos de normalização diplomática com Israel. Nos últimos meses, a Administração Trump fez deste assunto uma prioridade e desenvolveu intensos contactos com outros países da região do Médio Oriente e não só, visando quebrar o isolamento internacional do Estado hebraico

Vinte e seis anos depois, a Casa Branca volta a abrir portas para possibilitar a assinatura de um acordo “de paz” relativo ao Médio Oriente. É assim que são apresentados os pactos celebrados entre Israel, por um lado, e Emirados Árabes Unidos e Bahrain, pelo outro, ainda que nenhum dos signatários tenha alguma vez estado em guerra.

Esta terça-feira, a relação diplomática entre Israel e os Emirados será normalizada através de um “Tratado de Paz” e a que envolve o Bahrain através de uma “Declaração de Paz”. A Administração Trump, que fez a mediação, designou esta conquista diplomática de Acordos de Abraão.

Por Israel, assina esses documentos históricos o primeiro-ministro Benjamin Netahyahu. “Passaram 26 anos entre o segundo acordo de paz com um país árabe [com a Jordânia, em 1994] e o terceiro [com os Emirados Árabes Unidos, anunciado a 13 de agosto passado]. Mas apenas 29 dias entre o terceiro e o quarto [com o Bahrain, anunciado a 11 de setembro]. E haverá mais”, garantiu o governante israelita.

Nas últimas semanas, por iniciativa do Governo dos Estados Unidos, têm-se multiplicado iniciativas junto de vários países — árabes e não só — com o intuito de tornar Israel um país menos isolado no Médio Oriente e criar uma frente de entendimento entre países que olham para o Irão como inimigo. O esforço tem-se concentrado sobretudo na região do Golfo Pérsico, onde já começou a produzir resultados.

EMIRADOS ÁRABES UNIDOS

Torna-se esta terça-feira o terceiro país árabe a reconhecer Israel a nível oficial, após o Egito em 1979 e a Jordânia em 1994. “Este avanço histórico abrirá um novo capítulo de oportunidades e estabilidade para a região. Agora que a anexação [israelita do território palestiniano da Cisjordânia] foi descartada, podemos trabalhar juntos na construção dessa base sólida de paz”, afirmou Yousuf al-Otaiba, embaixador dos Emirados nos Estados Unidos.

O novo acordo prevê o desenvolvimento de relacões comerciais, a intensificação do turismo, a realização de voos diretos, cooperação científica e abertura de embaixadas — não sendo certo, para já, que a delegação dos Emirados fique instalada em Jerusalém.

Num primeiro passo rumo a essa normalização, os Emirados aboliram, a 29 de agosto, uma lei que boicotava Israel e, na prática, inviabilizava o desenvolvimento de relações comerciais e financeiras entre as duas nações. Dois dias depois, a realização do primeiro voo comercial entre Telavive e Abu Dabi começava a dar cor a essa nova realidade.

A autorização da Arábia Saudita para que o avião da israelita El Al atravessasse o seu espaço aéreo — encurtando o voo de sete para pouco mais de três horas — foi outra medida inédita. Implicitamente, Riade não se opõe à aproximação entre os Emirados e o Estado judeu: o tempo dirá se também seguirá nesse caminho.

BAHRAIN

O anúncio da normalização da relação entre o Bahrain e Israel aconteceu a 11 de setembro, dia em que os Estados Unidos assinalavam o 19.º aniversário dos atentados terroristas de 2001. “Não há resposta mais poderosa ao ódio que gerou o 11 de Setembro do que este acordo”, disse Trump, no próprio dia.

Ao contrário dos Emirados, o Bahrain já tinha retirado do seu ordenamento jurídico legislação anti-Israel, em 2005, após assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos durante a presidência de George W. Bush.

Na hora de tornar público o estabelecimento de relações diplomáticas com Israel, também Manama — à semelhança de Abu Dabi — não esqueceu a questão palestiniana. Israel e o Bahrain “continuarão os seus esforços para alcançar uma solução justa, abrangente e duradoura para o conflito israelo-palestiniano e permitir que o povo palestiniano concretize todo o seu potencial”, lê-se num comunicado conjunto divulgado pelos dois países e pelos EUA, que tem a sua Quinta Frota sediada precisamente nesta pequena ilha do Golfo Pérsico.

OMÃ

Tal como os Emirados e o Bahrain, também o sultanato de Omã recebeu recentemente a visita do secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, num périplo por vários países do Médio Oriente e África com quase um ponto único na agenda: a aproximação a Israel.

Omã acolheu positivamente o estabelecimento de relações entre Israel e os dois vizinhos do Golfo, suscitando muitas interrogações sobre se este país poderá ser a próxima peça do dominó a tombar. Omã tem desenvolvido contactos secretos com Israel e em 2018 recebeu mesmo a visita de Netanyahu, que não tem muitas portas abertas na região.

SUDÃO

Quando do périplo de Mike Pompeo pela região, o Sudão foi outro dos Estados árabes visitados e sondados. O país vive uma fase de transição iniciada com a deposição de Omar al-Bashir — ao fim de 30 anos no poder — e tem como prioridade a aceitação internacional e a saída da lista dos Estados-párias associados ao terrorismo.

Em fevereiro passado, após encontro no Uganda entre o atual Presidente do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan, e Netanyahu, o gabinete do primeiro-ministro israelita fez saber que “ficou acordado o início de uma cooperação que conduzirá à normalização dos laços entre os países”.

No final de agosto, em entrevista à televisão Channel 13, o ministro da Informação israelita, Eli Cohen, afirmou: “Haverá, este ano, outro [acordo] com um país africano. Na minha opinião, o Sudão também assinará um acordo de paz com o Estado de Israel”.

No Sudão, contudo, a questão não é consensual. Recentemente um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi despedido após dizer que estava iminente um acordo entre Cartum e Telavive. “O que afirmei refletiu a política do nosso Governo relativamente à normalização com Israel, porque há contactos e reuniões políticas abertas ao mais alto nível governamental”, reagiu depois Haydar Sadig.

Também a causa palestiniana é argumento para haver sectores no Sudão que rejeitam o diálogo com Israel. “Defendemos os direitos do povo palestiniano e estamos contra a normalização com Israel”, afirmou Sadiq Yousef, membro do Comité Central do Partido Comunista do Sudão.

SÉRVIA E KOSOVO

Os esforços da Administração Trump para minimizar o isolamento internacional de Israel não se ficam pelo mundo árabe. A 4 de setembro, a Casa Branca foi cenário de dois dias de conversações entre o Presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro do Kosovo, Avdullah Hoti, que terminaram com a formalização de um acordo de cooperação económica, assinado na Sala Oval. “É um facto histórico”, celebrou Trump. “Tenciono visitar os dois países num futuro não muito distante.”

Nesse dia histórico para sérvios e kosovares, Trump conseguiu que o fosse também para Israel, ao anunciar que a Sérvia vai mudar a sua embaixada em Israel de Telavive para Jerusalém (como fez Washington) e que o Kosovo — antiga província sérvia de maioria muçulmana —, vai em breve reconhecer o Estado judeu.

Esta aproximação entre sérvios e kosovares acontece 21 anos após os 78 dias de bombardeamentos da NATO sobre a Sérvia, com o intuito de acabar com a repressão aos albaneses do Kosovo. Este território declarou a sua independência da Sérvia em 2008, mas as tensões continuam e Belgrado nunca reconheceu a soberania kosovar. Trump bem pode dizer que a paz está mais próxima destes dois países graças à sua liderança.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de setembro de 2020. Pode ser consultado aqui

Um périplo americano com agenda israelita e objetivos eleitorais

Mike Pompeo visitou cinco países em cinco dias. Objetivo: pressionar países árabes a normalizarem a sua relação com Israel

Duas semanas após o anúncio da normalização da relação entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, o Estado judeu tem novos alvos árabes em mira. Esta semana, as autoridades de Sudão, Bahrain e Omã foram sondadas sobre o assunto. A abordagem foi feita não por um israelita mas por Mike Pompeo, secretário de Estado dos EUA, durante um périplo que o levou também a Israel e Emirados.

“A tempo das eleições, Donald Trump quer apresentar pelo menos um sucesso ao nível da política externa”, diz ao Expresso Ely Karmon, do Instituto de Política e Estratégia, de Herzliya (Israel). “Ele não foi bem sucedido com os europeus, com a China, Coreia do Norte, Irão. Esta é uma possibilidade que lhe permitirá dizer: ‘Eu trouxe a paz, não ao Médio Oriente, mas pelo menos entre Israel e alguns países árabes’.”

Entre 22, apenas três reconhecem o Estado judeu: Egito (1979), Jordânia (1994) e Emirados Árabes Unidos (2020). Para o cientista político, o Sudão pode ser o próximo. “Está muito interessado em normalizar a sua relação com os EUA, deixar de ser um Estado pária e sair da lista de países terroristas. Possivelmente, este é um incentivo americano para convencer o Sudão a iniciar a normalização com Israel.”

Segundo o “Sudan Tribune”, as autoridades de Cartum apelaram a que os EUA desvinculem os dois processos. E explicaram a Pompeo que estando o país em fase de transição, depois da deposição de Omar al-Bashir a 1 de abril de 2019, após 30 anos no poder, o Conselho Soberano que dirige o país tem por missão “completar a transição, alcançar a paz e a estabilidade e realizar eleições livres”.

“Apesar de o Sudão ter participado em guerras contra Israel, algo mudou no ano passado, após a revolução”, diz Ely Karmon. “O novo Governo mudou a política e está a tentar que o país seja membro de uma coligação sunita mais moderada.”

O peso do Irão

As abordagens de Pompeo que se seguiram, ao Bahrain e a Omã, esbarram num obstáculo comum: a influência do Irão. “Uma razão que leva o Bahrain a querer ter relações diretas com Israel é o facto de se sentir ameaçado pelo Irão”, diz o israelita. “Talvez seja o Estado mais ameaçado pelo Irão.” O país vive a singularidade de ter uma família real sunita e a maioria da população ser xiita (como o Irão). No Bahrain, “há muitos grupos xiitas contrários ao regime que são financiados e apoiados pelo Irão”.

No caso de Omã, a influência iraniana é de sinal contrário. Sob a liderança do Sultão Qaboos, que morreu a 10 de janeiro após mais de 50 anos no poder, vigorou uma política de coexistência pacífica com todos os países da região. Omã tem relações amigáveis com Israel desde os anos 1960, não tomou parte na guerra Irão-Iraque e foi um mensageiro dos EUA e Irão durante as negociações sobre o programa nuclear iraniano.

“Omã tem um novo líder [Haitham bin Tariq Al Said] que não tem o mesmo prestígio do anterior e que tem de levar em consideração a estabilidade do seu regime e do país. E tem relações sensíveis e economicamente importantes com Teerão. Poderá não querer colocar-se na mira do Irão.”

(FOTO: Bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, para dar as boas-vindas ao Presidente dos EUA Barack Obama, a 20 de março de 2013 EMBAIXADA DOS EUA EM ISRAEL)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui