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Mike Pompeo visitou cinco países em cinco dias. Objetivo: pressionar os árabes a normalizarem a relação com Israel

Entre domingo e quinta-feira, o secretário de Estado dos Estados Unidos desdobrou-se em contactos em Israel, Sudão, Bahrain, Emirados Árabes Unidos e Omã. Donald Trump precisa de um sucesso ao nível da política externa, comenta ao Expresso um cientista político israelita

O principal interesse é de Israel mas as despesas parecem estar a cargo dos Estados Unidos. Duas semanas após o anúncio da normalização da relação diplomática entre Israel e os Emirados Árabes Unidos, mediada pela Casa Branca, o Estado judeu tem novos alvos árabes em mira. Esta semana, as autoridades de Sudão, Bahrain e Omã foram sondadas acerca da possibilidade de seguirem o exemplo dos Emirados. A abordagem foi feita não por um governante ou diplomata israelita mas por um dos principais governantes da Administração norte-americana: o secretário de Estado Mike Pompeo.

“A tempo das eleições, Donald Trump quer apresentar ao povo norte-americano pelo menos um sucesso ao nível da política externa”, diz ao Expresso Ely Karmon, investigador do Instituto de Política e Estratégia, de Herzliya (Israel). “Ele não foi bem sucedido com os europeus, nem com a China, Coreia do Norte e Irão. Esta é uma possibilidade que lhe permitirá dizer: ‘Eu trouxe a paz, não ao Médio Oriente mas pelo menos entre Israel e alguns países árabes’.”

No universo de 22 países árabes, apenas três reconhecem o cialmente o Estado judeu: Egito (1979), Jordânia (1994) e Emirados Árabes Unidos (2020). Para o cientista político israelita, o Sudão pode ser o próximo. “Está muito interessado em normalizar a sua relação com os Estados Unidos, deixar de ser considerado um Estado pária e sair da lista de países que apoiam o terrorismo. Possivelmente, este é um incentivo americano para convencer o Sudão a iniciar a normalização com Israel.”

Segundo a publicação noticiosa “Sudan Tribune”, as autoridades de Cartum apelaram a que os EUA desvinculem os dois processos. Em comunicado posterior às conversações com Pompeo, o Governo sudanês fez saber que “no que respeita ao pedido dos EUA no sentido da normalização das relações com Israel, o primeiro-ministro [Abdallah Hamdok] explicou ao secretário do Estado que o período de transição no Sudão é liderado por uma ampla coligação com uma agenda específica que visa concluir o processo de transição, alcançar a paz e a estabilidade no país antes de realizar eleições livres”.

O Sudão vive uma fase de transição que decorre da deposição de Omar al-Bashir, a 1 de abril de 2019, após 30 anos de poder, e essa parece ser a prioridade do Conselho Soberano (composto por seis civis e cinco militares) quem manda atualmente no país.

Inegável é que, num passado recente, os dois países têm vindo a esboçar uma aproximação. A 3 de fevereiro, Abdel Fattah al-Burhan foi ao encontro do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, quando este realizava uma visita o cial ao Uganda. Então, o gabinete de Netanyahu fez saber que “ficou acordado o início de uma cooperação que conduzirá à normalização dos laços entre os países”.

“Apesar do Sudão ter participado em guerras contra Israel, algo mudou no ano passado, após a revolução”, comenta Ely Karmon. “O novo governo mudou a política e está a tentar que o país seja membro de uma coligação sunita mais moderada.”

O peso do Irão

Depois da visita ao Sudão, Mike Pompeo seguiu para o Bahrain, um pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico particularmente permeável a promessas de mais segurança. “Uma das razões que leva o Bahrain a querer ter relações diretas com Israel é o facto de se sentir ameaçado pelo Irão”, diz o israelita. “Talvez seja o Estado mais ameaçado pelo Irão.”

O país vive a singularidade de ter no poder uma família real sunita enquanto a maioria da população ser xiita (como o Irão). No Bahrain, “há muitos grupos xiitas contrários ao regime que são nanciados e apoiados pelo Irão”, recorda Ely Karmon.

À semelhança do que aconteceu no Sudão, as declarações públicas das autoridades do Bahrain não foram no sentido de uma adesão imediata à proposta de Pompeo. Segundo a agência noticiosa o cial local, o Rei Hamad bin Isa Al-Khalifa “realçou a importância da intensificação de esforços para se acabar com o conflito israelo-palestiniano de acordo com a solução de dois Estados” que leve ao “estabelecimento de um Estado palestiniano independente com Jerusalém Oriental como capital”.

Apesar do discurso oficial, é inegável que, nos últimos anos, o Bahrain tem dado sinais de abertura em relação a Israel. Em 2017, o monarca denunciou o boicote árabe a Israel e afirmou que os seus súbditos são livres de visitar o Estado judeu. No ano passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros reafirmou o direito à existência de Israel e, em dezembro, Shlomo Amar, o rabino chefe de Jerusalém, participou num evento inter-religioso no Bahrain.

Omã, de bem com todos

A última viagem de Mike Pompeo neste périplo levou-o a Omã, um sultanato que nas últimas décadas, sob a liderança do Sultão Qaboos, que morreu a 10 de janeiro passado, após mais de 50 anos no poder, tem adotado uma política de coexistência pacífica com todos os países da região, Israel e Irão incluídos.

Omã tem relações amigáveis com Israel desde os anos 1960, de forma especialmente secreta. Ainda assim, em 1994, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin visitou o país, naquela que foi a primeira deslocação conhecida de um líder israelita a um país do Golfo. E em 2018, também Benjamin Netanyahu foi recebido em Muscate.

Relativamente ao Irão, Omã também tem um histórico de não hostilidade. Não tomou parte na guerra Irão-Iraque e atuou como mensageiro entre Washington e Teerão durante as negociações internacionais relativas ao programa nuclear iraniano.

“Omã tem um novo líder [Haitham bin Tariq Al Said, primo de Qaboos] que não tem o mesmo prestígio do anterior e que tem de levar em consideração a estabilidade do seu regime e do próprio país”, alerta Ely Karmon. “E tem relações sensíveis e economicamente importantes com Teerão. Poderá não querer colocar-se na mira do Irão.”

Esta sexta-feira, Mike Pompeo regressou aos Estados Unidos com cansaço acumulado e aparentemente de mãos vazias. De nenhum dos países sondados, o governante norte-americano leva notícias sonantes que possam ser utilizadas, a curto prazo, como bandeira eleitoral.

(FOTO: Bandeiras de Israel e dos Estados Unidos, no aeroporto Ben Gurion, em Telavive, para dar as boas-vindas ao Presidente dos EUA Barack Obama, a 20 de março de 2013 EMBAIXADA DOS EUA EM ISRAEL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui

Mubarak morreu em paz. O que aconteceu aos outros líderes que combateram a “Primavera Árabe”?

Dos seis líderes que enfrentaram os principais palcos de contestação da chamada Primavera Árabe, apenas dois continuam vivos, e ambos no poder. Um graças ao apoio de um dos pesos pesados do Médio Oriente, outro após um banho de sangue que dura há quase nove anos

Hosni Mubarak, Presidente do Egito entre 1981 e 2011 THIERRY EHRMANN / CREATIVE COMMONS

A morte do antigo líder egípcio Hosni Mubarak, conhecida na terça-feira, foi o culminar da lenta agonia de um homem que chegou a ser tratado, ainda que em sentido figurado, pelo título de “faraó”. No poder entre 1981 e 2011, foi o Presidente que mais tempo governou o Egito, até os ventos da mudança que varreram o Médio Oriente — o movimento da “Primavera Árabe” — chegarem também ao Cairo. Durante 18 dias, ignorou os apelos à demissão que saíam da Praça Tahrir, mas acabou deposto, a 11 de fevereiro de 2011.

Diante da Justiça, teve de responder por crimes relacionados com corrupção, abuso de poder e o assassínio de manifestantes, mas raramente abriu a boca. A fragilidade com que aparecia em tribunal — deitado numa cama de hospital, dentro de uma gaiola e de óculos escuros — foi a suprema humilhação para quem se julgara intocável à frente de um país que fora outrora uma das grandes civilizações universais. Foi condenado a prisão perpétua, depois absolvido e libertado a 24 de março de 2017, mas a saúde não deu trégua. Morreu aos 91 anos, com a imagem de um homem irredutível em sair do poder quando não era mais desejado, mas também de um grande comandante da Força Aérea na guerra israelo-árabe de 1973 e da nostalgia de um país estável e cheio de turistas.

TUNÍSIA: ZINE EL ABIDINE BEN ALI

Foi na Tunísia que a “Primavera Árabe” começou e foi o seu líder também o primeiro a cair, ao 28º dia de protestos. A 14 de janeiro de 2011, numa corrida contra o relógio, Ben Ali passou o poder “temporariamente” para o seu primeiro-ministro e fugiu do país, com a mulher, Leila, e os três filhos. Após a França negar autorização de aterragem ao seu avião, rumou à cidade saudita de Jeddah, onde um outro ditador, o ugandês Idi Amin, viveu os últimos dias.

No seu exílio saudita, Ben Ali escapou ao mandado internacional de prisão, mas não à justiça tunisina. A 20 de junho de 2011, o ex-casal presidencial foi condenado “in absentia” a 35 anos de prisão por roubo e posse ilegal de dinheiro e joias. Ben Ali morreu a 19 de setembro de 2019, de cancro na próstata, num hospital de Jeddah e foi enterrado na cidade de Medina. Tinha 83 anos.

LÍBIA: MUAMMAR KADHAFI

A revolução na Líbia levava oito meses nas ruas quando, a 20 de outubro de 2011, Muammar Kadhafi tombou às mãos dos seus — tinha 69 anos de idade. Linchado numa rua de Sirte, o último reduto das forças que lhe eram leais, terminava de forma inglória 42 anos de poder absoluto. Ruía também o sonho de um país único, cuja estrutura política e forma de governo ele próprio idealizara no famoso “Livro Verde”, uma espécie de Constituição, publicado em 1975 e distribuído pelas embaixadas líbias nos quatro cantos do mundo. Hoje, apesar da estabilidade continuar a ser uma miragem no país — e as milícias armadas um grande desafio à paz —, o Livro não passa de uma peça de coleção e Kadhafi um líder que desperta sentimentos contrários na Líbia.

IÉMEN: ALI ABDULLAH SALEH

Abandonou o poder pelo próprio pé ainda que pressionado por dez meses de manifestações populares no Iémen. A 23 de novembro de 2011, em Riade, Ali Abdullah Saleh assinou um acordo de transferência de poder para o seu vice-presidente. Em troca, obteve imunidade para si e para a família, suspeita de enriquecimento à custa do erário de um dos países mais pobres do mundo.

Com a justiça dos tribunais de mãos atadas, vingou a justiça das ruas. A 4 de dezembro de 2017, Saleh foi assassinado nos arredores de Sana quando, após uma emboscada, tentava chegar de carro a território controlado pelos sauditas. Não chegou ao seu destino, atingido mortalmente por um “sniper” dos rebeldes houthis. Estes — que controlavam e ainda controlam a capital — são antigos aliados contra quem Saleh apelara à revolta dois dias antes de ser morto, aos 70 anos.

SÍRIA: BASHAR AL-ASSAD

Aos 54 anos, Bashar al-Assad faz jus ao seu nome de família e resiste no poder, em Damasco, como um leão (“assad”, em árabe). Dos quase 20 anos que o líder sírio leva no poder, metade foram vividos a defender-se, no contexto de uma guerra civil iniciada em março de 2011 e alimentada por uma componente jiadista (Daesh e Al-Qaeda) e por muitos interesses geopolíticos.

O conflito resultou da repressão com que Bashar respondeu aos protestos da “Primavera Árabe” a que os sírios achavam que também teriam direito e que em Tunis e no Cairo já tinham resultado em revoluções. O sírio sobreviveu politicamente mas hoje, no estrangeiro, poucas capitais estão dispostas a estender-lhe a passadeira, para além dos aliados Rússia e Irão. Entre milhares de mortos e milhões de refugiados, “a Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, quando ainda era Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Bashar al-Assad é o rosto dessa grande catástrofe.

BAHRAIN: HAMAD BIN ISA AL-KHALIFA

Era uma revolução condenada à nascença, ainda assim uma fatia importante da população do Bahrain não quis deixar de ir à luta. Maioritariamente xiitas, os habitantes deste pequeno reino ribeirinho ao Golfo Pérsico são governados por uma monarquia sunita. Por essa razão quando, em fevereiro de 2011, se viu acossado por manifestações antirregime em Manama, o rei Hamad bin Isa al-Khalifa apressou-se a pedir ajuda à vizinha Arábia Saudita (o gigante sunita da região), que ajudou a conter a rebelião enviando tropas e tanques. O eventual sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causava calafrios aos sauditas pelo significado que teria para o rival Irão (o gigante xiita), do outro lado do Golfo.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 26 de fevereiro de 2020. Pode ser consultado aqui

Hakeem foi libertado: “Lutámos por uma alma que representava a luta contra a tirania”

Detido na Tailândia durante a lua de mel, um atleta do Bahrain exilado na Austrália temia ser extraditado para o seu país, que acusa de perseguição. Foi libertado esta terça-feira, após uma campanha internacional que uniu governos, organizações de direitos humanos e o mundo do futebol

“You’ll Never Walk Alone.” “Nunca andarás sozinho”, cantaram, esta terça-feira, amigos, conterrâneos, ativistas e colegas de equipa do futebolista Hakeem al-Araibi à sua chegada ao Aeroporto Internacional de Melbourne, na Austrália. Com este famoso tema — nascido nos palcos dos musicais e imortalizado, em especial, pelos adeptos do Liverpoll —, pretenderam celebrar a superação de um momento dramático na vida deste atleta de 25 anos, natural do Bahrain e refugiado na Austrália, vivido ironicamente num período feliz da sua vida.

A 27 de novembro passado — acabado de chegar à Tailândia com a mulher para gozarem a lua de mel —, Hakeem foi detido no aeroporto de Banguecoque, ao abrigo de um mandado de captura internacional emitido pelo Bahrain.

Hakeem é “persona non grata” no seu país, de onde fugiu em 2014 para a Austrália. Outrora jogador da seleção nacional, tinha sido acusado de vandalismo numa estação de polícia. Julgado “in absentia”, foi condenado a 10 anos de prisão. Hakeem, por seu lado, acusa as autoridades do seu país de repressão motivada pela sua crença religiosa (é muçulmano xiita) e também pelo ativismo político do irmão — que está preso.

Detido na Tailândia, a perspetiva de ser extraditado para o Bahrain — e o receio de ser torturado — originou a campanha #SaveHakeem que envolveu o Governo australiano, organizações de direitos humanos e, em especial, Craig Foster, um antigo futebolista australiano que chegou a jogar na Premier League (Portsmouth e Crystal Palace). “Lutámos por uma alma porque Hakeem representava todos aqueles que sofrem às mãos da tirania e, através dele, esperamos construir um mundo melhor”, afirmou Foster, num comunicado, quando foi conhecida a libertação do atleta.

“Este é o resultado para o qual trabalhamos em conjunto com uma vasta coligação de organizações dos direitos humanos, governos e toda a comunidade do futebol nos últimos dois meses”, regozijou-se a FIFA, em comunicado.

Na região do Golfo, as autoridades do Bahrain não se dão por derrotadas. “O veredito de culpado contra o Sr. Al-Araibi mantém-se”, reagiu o Ministério dos Negócios Estrangeiros. “O Reino do Bahrain reafirma o seu direito de prosseguir com todas as ações legais necessárias.”

“Crowdfunding” aberto, para a lua de mel

Em meados de janeiro, o caso de Hakeem cruzou-se com o da jovem saudita Rahaf Mohammed que, em fuga à família a caminho da Austrália (onde pretendia solicitar asilo), foi intercetada igualmente em Banguecoque, resistindo à extradição fechando-se dentro de um quarto de hotel no aeroporto. Após uma campanha de pressão desenvolvida sobretudo nas redes sociais, Rahaf haveria de conseguir asilo no Canadá.

À época, o diário britânico “The Guardian” questionava o porquê de o caso de Rahaf captar as atenções do mundo, enquanto Hakeem “era deixado na prisão”.

Dois meses e meio depois, o pesadelo de Hakeem terminou. Em breve, poderá retomar os treinos no Pascoe Vale Football Club, o clube semiprofissional de Melbourne onde joga. “A justiça prevaleu”, twitou o clube. “O nosso nº 5 Hakeem Al-Araibi está de volta a casa.”

Esta terça-feira, a Associação de Clubes de Futebol Australianos iniciou uma campanha de “crowdfunding” para “a lua de mel que Hakeem e a sua mulher não tiveram”.

Artigo publicado na “Tribuna Expresso, a 12 de fevereiro de 2019. Pode ser consultado aqui

O regresso dos generais

As transições políticas pós-revolução tardam em produzir estabilidade. No Egito e na Líbia, dois militares agarraram o leme

O deposto Hosni Mubarak “na sombra” do general Mohssen ElFangari, membro do Conselho Supremo das Forças Armadas (SCAF) CARLOS LATTUF / WIKIMEDIA COMMONS

A revolução egípcia acaba de colocar um militar no poder — o marechal Abdel Fattah al-Sisi, eleito por sufrágio universal por uma maioria esmagadora. Na Líbia, um general na reserva declarou guerra às milícias islamitas e desencadeou uma ofensiva por conta própria, na região de Bengasi (leste). Líder de um país em guerra, o sírio Bashar al-Assad sobrevive ao conflito apoiado numas forças armadas que continuam a ser-lhe leais, apesar de múltiplas deserções no início dos protestos. São apenas três exemplos que revelam uma crescente preponderância do poder militar sobre regimes bafejados pela Primavera Árabe.

“Há uma grande preocupação nas populações árabes de que a relativa segurança e estabilidade em que viviam sob regimes autocráticos dê lugar ao caos e à desintegração das instituições, como acontece na Síria e, até certo ponto, na Líbia e no Iémen”, diz ao “Expresso” Manuel Almeida, editor da edição inglesa do jornal árabe “Asharq Al-Awsat”. “Neste contexto, as forças armadas, que eram uma pedra basilar dos regimes e que têm privilégios próprios a defender, são para muitos a principal garantia de que as transições políticas não deem lugar ao caos e de que, pelo menos, o exército zele pelo interesse nacional.”

Três anos após o início da Primavera Árabe — Manuel Almeida prefere chamar-lhe “despertar árabe”, por refletir a ideia de que os árabes acordaram de um sono induzido e não voltarão ao estado anterior de medo e indiferença —, é legítimo interrogar se este protagonismo dos militares não significará um regresso às ditaduras contra as quais os povos se rebelaram. “O risco de um retorno a regimes autocráticos e despóticos com os militares no topo da hierarquia existe”, defende o editor daquele conceituado jornal pan-árabe publicado em Londres.

Pelo povo e para o povo

Mas hoje, entre os árabes, nem tudo é exatamente como antes das revoluções, a começar pela forma como encaram os seus governantes. “O sentimento que se estabeleceu, nos últimos três anos, de que o poder político (seja de que natureza for) tem de prestar contas pelas suas decisões, implica que haja uma pressão maior sobre quem assumir o poder”, continua o editor português. “A necessidade de apresentar trabalho e resultados vai existir, seja o governo em causa democrático ou não, civil ou militar.”

Será assim com o marechal Sisi no Egito, apesar do apoio incondicional que recebeu nas presidenciais de maio (96,9% dos votos). “Sisi poderá ser alvo de um forte descontentamento popular a médio prazo, principalmente se não conseguir reavivar a economia e reduzir o desemprego. A reforma da economia vai inevitavelmente envolver medidas impopulares, como a diminuição dos subsídios. Para partilhar responsabilidades, acredito que Sisi se veja obrigado a garantir que, a breve prazo, haja um governo maioritariamente de civis e tecnocratas.”

Para Manuel Almeida, uma segunda razão concorre para a popularidade e ascensão política das forças armadas nos países árabes: “Uma reação ao poder dos islamitas, principalmente dos vários grupos nacionais da Irmandade Muçulmana”. Embora, em muitos casos, estivesse banida ou proibida de participar no processo político, “a Irmandade Muçulmana é um movimento extremamente determinado e organizado. Esse facto e a ausência de oposição ativa permitiu-lhe tirar partido das transições políticas e posicionar-se como uma das principais forças políticas, como aconteceu no Egito, Tunísia e Líbia.”

Precisamente a Líbia é, hoje, outro país onde o poder militar impõe as regras. Khalifa Haftar — um general na reforma, laico, que lutou ao lado dos rebeldes contra Muammar Kadhafi — lançou a “Operação Dignidade” contra posições islamitas na região de Bengasi, onde começaram os protestos antirregime, coordenando ataques terrestres e bombardeamentos com caças e helicópteros.

A Líbia organiza eleições legislativas a 25 de junho e o general já prometeu um cessar-fogo para essa altura.

“Este combate às milícias surgiu numa altura em que crescia a preocupação em relação ao domínio islamita — e da Irmandade Muçulmana em particular —, tanto no Parlamento como nas regiões estratégicas exportadoras de petróleo, como Bengasi”, explica Almeida. “Há certamente um interesse da parte de Haftar em reclamar para si uma posição de relevo, que procura desde há décadas no exílio (nos EUA). No entanto, o país está bastante fragmentado, existem demasiadas divisões regionalistas e tribais, assim como milícias fortemente armadas, para permitir que um general assuma o controlo facilmente.”

Na falta de um projeto nacional que una as diferentes fações líbias — regionais, tribais, religiosas ou seculares —, a possibilidade de o país se desintegrar não é ficção. “O mais grave é o facto de não existir qualquer tipo de monopólio do uso da força. Há dezenas de milícias e grupos armados e uma forte presença de jihadistas nacionais e de outros países árabes. É uma receita explosiva.”

Militares impiedosos

No contexto das revoltas árabes, dois países preocupam particularmente o editor. Por um lado, o Iémen, palco de uma tragédia humana com tendência para se agravar. “O Iémen quase não tem petróleo e espera-se que a sua população duplique em menos de 20 anos.” Por outro, a Síria. “Talvez a Síria não tenha matado a Primavera Árabe, mas foi certamente um travão.”

No Norte de África, a Argélia destoa por ser o único país onde não se fizeram sentir esses “ventos da mudança”. “Além do eterno Abdelaziz Bouteflika, que foi reeleito recentemente para um quarto mandado presidencial — apesar da deterioração da sua saúde indicar que provavelmente não o irá terminar —, a Argélia é dominada pelos militares e pelos serviços secretos de uma maneira particularmente eficiente e impiedosa”, diz o editor do “Asharq Al-Awsat” (“Médio Oriente”, na língua árabe). “Existe não só a preocupação da oposição em não ir longe demais na exigência de reformas para não dar azo a instabilidade, mas há também reformas tímidas”, como as legislativas de 2012, que a oposição considerou serem um esquema do Governo para prolongar o poder de Bouteflika, mas que foram um passo no sentido da democracia.

Também os fantasmas da guerra civil dos anos 90 — a repressão à violência islamita por parte das forças de segurança provocou, em números redondos, 200 mil mortos — inibem os argelinos na hora de sair à rua para reivindicar.

“Para muitos” no mundo árabe, conclui Manuel Almeida, “a intervenção política das Forças Armadas é, no máximo, um mal menor. Mas inevitavelmente há um preço a pagar, por se colocar o futuro das transições políticas nas mãos dos militares. Como diz o ditado, quando se tem um martelo, todos os problemas começam a assemelhar-se a pregos.”

O QUE CONQUISTARAM
OS PAÍSES DA PRIMAVERA ÁRABE?

TUNÍSIA: Avanço a conta-gotas

Ben Ali fugiu do país a 14 de janeiro de 2011, mas só a 27 de janeiro passado foi aprovada a primeira Constituição pós-revolução. Governo, oposição e sociedade civil discutem agora se realizam primeiro legislativas ou presidenciais. Estes sufrágios concluirão a fase de transição, que foi liderada pelos islamitas do Movimento Ennahda (moderado), vencedor das eleições de 2011 para a Assembleia Constituinte.

O processo tunisino avança lentamente e com recuos, como o assassínio de dois líderes da oposição laica, em 2013. Mas é notória a procura de consensos. A 9 de janeiro, o primeiro-ministro Ali Larayedh (Ennahda) demitiu-se para desbloquear o impasse político e viabilizar a aprovação da Constituição.

Capa do “El País” de 15 de janeiro de 2011

EGITO: De volta à estaca zero

Com a eleição de Abdel Fattah al-Sisi, os militares regressaram à cadeira do poder de onde os revolucionários da Praça Tahrir tinham apeado Hosni Mubarak a 11 de fevereiro de 2011. Como previsto na Constituição aprovada em janeiro, o Governo interino demitiu-se segunda-feira, tendo Sisi reconduzido o primeiro-ministro Ibrahim Mehleb, que formará Governo até novas legislativas, previstas para este ano.

Em mais de dois anos, a transição egípcia decorreu ao estilo de uma falsa partida. Sempre que o povo votou (legislativas, presidenciais e referendo constitucional), a Irmandade Muçulmana venceu. A experiência islamita no país dos faraós terminou a 3 de julho de 2013, quando os militares, liderados por Sisi, afastaram o Presidente Mohamed Morsi após, num abaixo-assinado, milhões terem pedido a sua demissão.

Capa do “The New York Times” de 4 de julho de 2013

LÍBIA: Muitas armas na rua

Muammar Kadhafi foi executado a 20 de outubro de 2011. Desde então, o país continua refém das milícias (muitas delas armadas durante a intervenção da NATO em apoio dos rebeldes), que se recusam a depor as armas até que a sua participação na “libertação” da Líbia se traduza em ganhos políticos.

A segurança no país é intermitente, interrompida ocasionalmente por episódios de violência extrema, como o ataque ao consulado dos EUA em Bengasi, a 11 de setembro de 2012 (o embaixador Christopher Stevens foi um dos 11 mortos). Também a 10 de outubro de 2013, o então primeiro-ministro Ali Zeidan foi levado por homens armados do Hotel Corinthia, em Tripoli, sendo libertado horas depois.

A Líbia elegeu uma Assembleia Constitucional a 20 de fevereiro passado e realiza legislativas a 25 de junho. As últimas, em julho de 2012, foram ganhas por uma aliança composta por 58 partidos. Delas saiu um Parlamento interino que, em fevereiro, por pressão popular, acordou a sua dissolução. Os líbios responsabilizam os deputados pelo caos generalizado.

Árabes e árabes-berberes (amarelo), tubus (azul), tuaregues (vermelho), berberes (preto), zona desabitada (branco) CBC / RADIO-CANADA

IÉMEN: O poder das tribos

Ali Abdullah Saleh abandonou o poder a 23 de novembro de 2011, após dez meses de protestos pró-democracia e após garantir imunidade total. Sucedeu-lhe o seu vice, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi, para um mandato de dois anos — prorrogado, em janeiro, por mais um ano.

Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional aprovou, em fevereiro, um sistema federativo que divide o país em seis regiões. “É uma resposta às reivindicações das regiões que se sentem historicamente marginalizadas pelo poder central”, diz Manuel Almeida, editor no jornal “Asharq al-Awsat”. “É o modelo que mais poderá contribuir para a resolução dos gravíssimos problemas do Iémen.”

O país foi unificado em 1990, mas enfrenta uma rebelião huthi (xiita) a norte e pretensões separatistas a sul. Alberga ainda a Al-Qaida na Península Arábica, um dos braços mais ativos da organização. “Julgo que não voltará a haver dois Estados. Mesmo regiões como Hadramaut, historicamente parte do Iémen do Sul, escolheram ser autónomas e não integrar uma solução de dois Estados, o que foi um sério revés para o movimento separatista do sul, baseado em Aden.”

O Iémen antes da unificação, em 1990 WIKIMEDIA COMMONS

SÍRIA: Guerra sem fim

A 3 de junho, Bashar al-Assad fez-se reeleger Presidente, por 88,7%, indiferente ao facto de já não mandar em todo o país (os curdos declararam autonomia a norte e fações rebeldes, algumas islamitas radicais, disputam parcelas de território), mas convicto de que o seu “reinado” está para durar. A Constituição aprovada em 2012 — com a guerra em curso — instituiu o multipartidarismo (nas presidenciais de 3 de junho houve três candidatos) e permitirá a recandidatura de Assad. Se sobreviver politicamente ao conflito poderá ficar no poder até 2028.

A contestação ao Presidente começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito de Tunis e do Cairo. Assad não hesitou em recorrer às armas e à supremacia aérea para reprimir a oposição. Porém, “o fator desequilibrador da guerra tem sido o enorme apoio, a todos os níveis, que Assad tem recebido do Irão, do Hizbullah (a milícia xiita libanesa), e da Rússia”, diz Almeida. “Comparativamente, o apoio à oposição política e militar dos EUA e de países da União Europeia e do Golfo fica muito aquém daquele que Assad tem recebido.”

Notícia da Al-Jazeera de 5 de junho de 2014

MARROCOS: Um rei com visão

Mohammed VI foi hábil a tirar conclusões das consequências da Primavera Árabe noutras latitudes e antecipou-se a problemas. Com o Movimento 20 de Fevereiro nas ruas, reivindicando mais democracia, o monarca promoveu uma revisão constitucional, aprovada em referendo a 1 de julho de 2011.

O novo texto obriga o rei a nomear para primeiro-ministro uma personalidade do partido mais votado, a transferir prerrogativas para o primeiro-ministro, como a possibilidade de dissolver o Parlamento, e outras para o Parlamento, como a concessão de amnistias. E torna o berbere língua oficial. O rei também convocou eleições antecipadas, que foram ganhas, a 25 de novembro de 2011, pelo Partido Justiça e Desenvolvimento (islamita).

Notícia do “El Mundo” de 16 de fevereiro de 2011

BAHRAIN: Luta já não é notícia

O Bahrain é a única monarquia do Golfo com uma população etnicamente divergente da família real: os bahrainis são maioritariamente xiitas e os Al-Khalifa sunitas. A tensão entre povo e poder é, por isso, latente. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora palco de protestos que pediam, entre outros, reconhecimento político para os xiitas e que foram reprimidos com a ajuda de tanques enviados pela Arábia Saudita (sunita).

A revolução desapareceu das televisões, mas, na internet, o Centro para os Direitos Humanos do Bahrain noticia diariamente atentados à liberdade e à condição humana. A 1 de junho, Firas al-Saffar, de 15 anos, foi levado de casa por polícias à paisana. Num posto de Manama, foi interrogado e acusado de “filmar reuniões não autorizadas”.

“Direitos humanos não são permitidos no Bahrain”, lê-se neste “aviso” acompanhado pela imagem do ativista Nabeel Rajab CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

Artigo publicado no Expresso, a 13 de junho de 2014

Primavera sombria

Três anos depois do início da Primavera Árabe, os países onde começaram a soprar ventos de mudança pouco têm a celebrar. Na Tunísia, Egito, Líbia, Iémen, Bahrain e Síria as transições revelaram-se mais difíceis do que o derrube dos ditadores ou, noutros casos, a luta pela democracia tornou-se um braço de ferro sangrento

TUNÍSIA

O FAROL DA MUDANÇA

Ficou conhecida como a Revolução de Jasmim (a flor nacional), embora nem todos os tunisinos apreciem a designação. A verdade é que o seu bálsamo contagiou outros povos árabes que se sentiram tentados a imitar os tunisinos que em 28 dias de protestos acabaram com um regime de 23 anos. O ditador Ben Ali fugiu para a Arábia Saudita a 14 de janeiro de 2011, mas três anos passados a transição política continua a marcar passo. As primeiras eleições “livres e democráticas” — a 23 de outubro de 2011, para a Assembleia Constituinte — ditaram a vitória do Ennahda (partido islamita moderado) que, na falta de uma maioria confortável, estendeu a mão a duas formações políticas laicas, de esquerda: o Congresso para a República e o Partido Ettakatol. Para a presidência do país, a Assembleia elegeu um médico e ativista dos Direitos Humanos — Moncef Marzouki, que na juventude viajara até à Índia para estudar a filosofia de resistência pacífica do Mahatma Gandhi. Porém, a falta de progressos a nível económico — o investimento estrangeiro e os turistas tardam a regressar — e o braço de ferro na Assembleia Constituinte sobre o peso da religião na futura Constituição desgastaram a troika no Governo. A situação agravou-se durante 2013 com o assassínio de dois importantes líderes da oposição laica — Chokri Belaid, em fevereiro, e Mohamed Brahmi, em julho —, factos que mergulharam o país num impasse político. No passado dia 9, o Governo concordou em entregar o poder a um novo Executivo, independente, formado por tecnocratas, e demitiu-se. Este desbloqueio político voltou a lançar a Tunísia no caminho da construção democrática, mas já não foi a tempo de viabilizar a aprovação da nova Constituição. Prevista para ser anunciada a 14 de janeiro de 2014 — dia do terceiro aniversário da revolução —, continua a ser votada, por estes dias, artigo a artigo. Não sendo um exemplo de uma revolução pacífica — uma comissão independente apurou que 338 pessoas foram mortas, 66% baleadas —, a Tunísia continua a ser o farol da Primavera Árabe. A transição avança a ritmo lento, mas tem prevalecido o diálogo, uma propensão para o consenso e, apesar de tudo, uma certa aversão à violência. E as Forças Armadas têm-se mostrado equidistantes.

O VENDEDOR AMBULANTE QUE DERRUBOU UM DITADOR

Mohamed Bouazizi foi o tunisino que catalisou todo o movimento da Primavera Árabe. A 17 de dezembro de 2010, este vendedor ambulante de 26 anos regou-se com gasolina e ateou o fogo ao corpo em frente à casa do governador da cidade de Sidi Bouzid. Protestava contra a apreensão da sua banca de frutas e vegetais pela polícia. Com queimaduras em 90% do corpo, sobreviveu ao seu ato desesperado e foi internado num hospital de Ben Arous, onde, a 28 de dezembro, recebeu a visita do Presidente Ben Ali, líder máximo do regime contra o qual se revoltara. Morreria a 4 de janeiro de 2011. Nesse ano, foi-lhe atribuído, a título póstumo, o Prémio Sakharov, pelo contributo para as “mudanças históricas no mundo árabe”. O Governo tunisino homenageou “o mártir da revolução da dignidade” estampando o seu rosto num selo de correio (em cima). Em Sidi Bouzid há uma avenida de 4 km com o seu nome.

EGITO

A FORÇA DOS MILITARES

Hosni Mubarak saiu de cena a 11 de fevereiro de 2011, mas talvez só ano e meio depois muitos egípcios tenham percebido a ironia em que a sua revolução se tinha tornado. Em junho de 2012, a segunda volta das presidenciais foi disputada entre o candidato da Irmandade Muçulmana (Mohamed Morsi, que venceu) e o do antigo regime (Ahmed Shafik, que obteve 48%). Quem representava os jovens revolucionários que, durante 18 dias a fio, não arredaram pé da Praça Tahrir até que Mubarak se fosse? A Irmandade colheu frutos da sua organização, da legitimidade angariada após anos de luta na clandestinidade e por ter sobrevivido à repressão do regime. Sem surpresa, os islamitas venceram as três consultas populares da era pós-Mubarak: legislativas, presidenciais e referendo constitucional. Eleito democraticamente, Mohamed Morsi não viria, porém, a comportar-se como tal. A 22 de novembro de 2012 aprovou uma declaração constitucional que o colocou acima da lei e dos tribunais. Dotou-se de poderes como nunca antes Mubarak tinha feito e, com isso, ditou a sua sentença de morte (política). A 3 de julho de 2013, os militares afastaram Morsi, após, nas ruas, um abaixo-assinado pedindo a sua demissão (campanha “Tamarud”) ter sido assinado por mais de 22 milhões de pessoas — Morsi tinha sido eleito por ‘apenas’ 13 milhões. Para quem assinou o documento, o golpe militar tinha, pois, base democrática. Os apoiantes da Irmandade não se ficaram e, nas ruas, ao estilo de um ‘verão quente’, a violência fez jorrar ainda mais sangue do que durante a revolta anti-Mubarak (que fez 846 mortos). Já este mês os egípcios aprovaram uma nova Constituição. Seguir-se-á uma nova ronda de eleições — a segunda vida da revolução. Até lá, os militares serão o principal poder político. E a mais pequena dissidência não será tolerada: Morsi está detido, a Irmandade Muçulmana foi declarada organização terrorista e ativistas laicos que impulsionaram a revolução de 2011 — como Ahmed Maher, fundador do Movimento 6 de Abril — estão presos. Nem no tempo de Mubarak.

O CIBERNAUTA QUE EMOCIONOU O PAÍS
E MOBILIZOU O FACEBOOK

Khaled Said (o jovem retratado na ilustração) adorava computadores e passava longas horas num cibercafé da cidade de Alexandria, onde vivia com a mãe. A 6 de junho de 2010, dois agentes da polícia de Sidi Gaber irromperam pelo café e arrastaram-no para a rua, onde o espancaram até à morte. Khaled, de 28 anos, provocara a fúria da polícia ao publicar, no YouTube, um vídeo que mostrava vários polícias a distribuírem entre si o produto de uma apreensão de haxixe. A foto do seu rosto desfigurado — tirada na morgue, por um irmão, com o seu telemóvel — tornou-se viral na internet. A 19 de julho de 2010, foi criada, no Facebook, a página “Todos Somos Khaled Said”, para denunciar casos de tortura e “a brutalidade da polícia egípcia” em geral. Neste mural foi convocada a primeira grande manifestação antirregime, que saiu às ruas a 25 de janeiro de 2011. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

LÍBIA

O REINADO DAS MILÍCIAS

A revolta na Líbia introduziu uma dinâmica nova na Primavera Árabe: afinal, a rapidez com que caíram ditadores na Tunísia e no Egito era ‘boa demais para ser verdade’. Os líbios tinham agendado o “Dia da Ira” para 17 de fevereiro de 2011, mas o descontentamento popular explodiu dois dias antes, após a prisão de um conhecido advogado, em Bengasi. As forças leais a Muammar Kadhafi — guia da Revolução desde 1969 — tentaram conter os protestos desde a primeira hora. Mas a repressão não evitou o contágio da rebelião a outras grandes cidades. Os ataques contra civis e a suspeita de “crimes contra a humanidade” levaram o Conselho de Segurança da ONU a aprovar, a 17 de março de 2011, a criação de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia para proteger as populações. No mesmo dia, a NATO começou a bombardear posições do regime. Kadhafi já tinha perdido muito território, mas vendeu cara a derrota: foi apanhado (e executado) apenas a 20 de outubro de 2011, quando muitos líbios já tinham pago com a vida o preço da rebelião — o número de vítimas oscila entre os 2500 e os 25 mil. Oficialmente, o fim da guerra civil foi declarado a 23 de outubro de 2011. No poder, Kadhafi foi hábil a tecer uma teia de lealdades tribais para forjar uma unidade nacional, que ele corporizava. Após o seu desaparecimento, reavivaram-se sensibilidades num país historicamente dividido em três grandes regiões. O novo poder central tem-se revelado fraco perante o poder das milícias (rivais entre si) que se têm recusado a entregar as armas sem que a sua participação na “libertação” do país se traduza em ganhos políticos. Em três anos, a Líbia foi capaz de organizar eleições para o Parlamento — a 7 de julho de 2012, ganhas por uma aliança de tendência liberal composta por 58 partidos — e de recuperar os níveis de produção de petróleo anteriores à revolução. Persiste a insegurança e um baixo nível de insurgência que, ocasionalmente, explode de forma preocupante — como a 11 de setembro de 2012, quando o consulado dos EUA em Bengasi foi atacado e o embaixador assassinado.

O ADVOGADO QUE DEFENDEU OS PRESOS
E ACABOU NA PRISÃO

Fathi Terbil é um advogado e ativista que, em 1996, após o massacre de cerca de 1200 amotinados na prisão de Abu Salim, aceitou representar famílias das vítimas. Tornou-se persona non grata para o regime que, a 15 de fevereiro de 2011, o mandou prender pela sétima vez. A notícia correu depressa e, no mesmo dia, centenas de pessoas reuniram-se em frente à sede da polícia de Bengasi para exigir a sua libertação. Fathi voltou a ver a luz do sol no dia seguinte, mas os protestos não mais pararam na segunda cidade líbia, que se tornaria o berço da revolução. Nesse ano, Fathi recebeu o Prémio Ludovic-Trarieux, atribuído a um advogado que se tenha destacado na defesa dos Direitos Humanos — em 1985, foi dado a Mandela. Hoje, com 43 anos, Fathi é ministro da Juventude e Desporto do Governo Interino. [Fathi Terbil foi escolhido pela revista “Time” (na imagem) como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2011.]

IÉMEN

A COSMÉTICA DO REGIME

Na Tunísia e no Egito, os ditadores demoraram dias a cair. No Iémen, Ali Abdullah Saleh combateu, durante meses, os protestos pró-democracia iniciados a 27 de janeiro de 2011, resistiu às deserções no Governo e nas Forças Armadas, sobreviveu a um atentado à bomba que o atirou para um hospital na Arábia Saudita e ignorou a atribuição do Nobel da Paz a uma voz crítica do seu regime. A 23 de novembro de 2011, disse finalmente que sim e cedeu o poder, após garantir imunidade total — durante a revolução, morreram mais de 2000 pessoas. A 27 de fevereiro de 2012, Saleh marcou presença na tomada de posse do sucessor, o seu vice-presidente, Abd Rabbuh Mansur al-Hadi — candidato único às presidenciais, onde obteve 99,80% de aprovação. Na cerimónia, Saleh entregou-lhe uma bandeira do país — e também um conjunto de problemas que têm contribuído para a afirmação do Iémen como um dos países mais pobres do mundo. Por um lado, o Iémen alberga um dos braços mais ativos da Al-Qaeda. Saleh abriu os céus iemenitas aos drones dos EUA e, com isso, tornou-se um importante aliado na luta antiterrorismo. Por outro lado, dada a natureza tribal do país — norte e sul estão unificados apenas desde 1990 —, o ativismo de vários grupos secessionistas coloca o país, com frequência, à beira da guerra civil. Lançada em março de 2013, a Conferência para o Diálogo Nacional no Iémen continua reunida sem conclusões, apesar de o Iémen ter previstas eleições gerais para este ano. O país está entregue a um governo de unidade nacional, chefiado por Mohammed Basindawaust, um dissidente do regime anterior que a 31 de agosto de 2013 escapou a uma tentativa de assassínio — situação que também o ex-ditador conhece e, pelos vistos, quer que o povo não o esqueça. No ano passado, Saleh inaugurou um museu em Sana sobre os seus 33 anos de poder. Entre os objetos expostos estão as calças queimadas que vestia quando tentaram matá-lo e estilhaços retirados do seu corpo.

A JORNALISTA QUE VENCEU O REGIME

Os iemenitas chamam-lhe “a mãe da revolução”. Tawakkol Karman deu nas vistas em 2005 quando, aos 26 anos, fundou a Jornalistas Femininas Sem Correntes (WJWC, em inglês). No ano seguinte, a organização iniciou um serviço de mensagens instantâneas para telemóveis, com notícias sobre direitos humanos. Tornou-se tão popular que o Governo o encerrou. A WJWC não baixou os braços e começou a publicar relatórios anuais sobre a liberdade de imprensa no Iémen. Aos poucos, as denúncias começaram a extrapolar o âmbito dos media e a visar também casos de corrupção. A 15 de janeiro de 2011, Tawakkol organizou uma jornada de solidariedade para com a revolução tunisina. Manifestações anteriores já a tinham levado, várias vezes, à prisão e a viver sob ameaças de morte. Em 2011, ganhou o Nobel da Paz.

BAHRAIN

A REVOLUÇÃO IMPOSSÍVEL

Os protestos no Bahrain arrancaram condenados à nascença. Contrariamente às revoltas árabes no Norte de África, esta rebelião mexia com grandes interesses geopolíticos do Médio Oriente. A maioria da população do Bahrain — uma das seis petromonarquias ribeirinhas do Golfo Pérsico — é de confissão xiita; porém, o poder reinante — a família Al-Khalifa — é sunita. Fora de portas, esta rivalidade é protagonizada por dois gigantes: a Arábia Saudita, sunita, e o Irão, xiita, separados apenas pelo Golfo Pérsico. O sucesso de uma revolta xiita na Península Arábica causa calafrios ao regime saudita (a braços com uma minoria xiita problemática). Por isso, foi sem surpresa que, mal o rei Hamad bin Isa Al Khalifa pediu ajuda aos vizinhos para conter os protestos que se faziam ouvir desde 14 de fevereiro de 2011 — exigindo mais reconhecimento político para os xiitas —, cerca de 1000 militares sauditas (e 500 dos Emirados Árabes Unidos) tenham entrado no Bahrain. A repressão que se seguiu não poupou ativistas, blogueres, médicos — condenados por prestar assistência a vozes críticas do regime —, nem mesmo o património. A 18 de março de 2011, as autoridades mandaram derrubar a estátua do centro da Praça da Pérola, em Manama, que fora o palco dos protestos. A praça foi cimentada e é hoje um cruzamento da capital como outro qualquer. Uma Comissão de Inquérito Independente, ordenada pelo monarca do Bahrain e composta por personalidades independentes estrangeiras, apurou que o regime recorreu a tortura sistemática e a outras formas de abusos físicos e psicológicos contra os manifestantes. A Comissão também refutou as acusações feitas pelo regime de que os protestos foram instigados pelo Irão. A revolução no Bahrain desapareceu do noticiário internacional, mas, na internet, o sítio do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain não para de noticiar casos de cidadãos que são presos e condenados após fazerem uso da liberdade de expressão. Só em 2013 foi o que aconteceu com 651 cidadãos, rotulados de ameaças à segurança por terem participado nos protestos.

A ATIVISTA QUE FEZ A REVOLUÇÃO A PARTIR DO TWITTER

“Quando estamos acorrentados, vivendo sem dignidade ou sem direitos e curvando-nos perante ditadores criminosos, o primeiro passo a dar é esquecer os medos e perceber que temos o direito… de nos zangarmos.” Esta é a mensagem de apresentação de Zainab al-Khawaja no Twitter — onde é @angryarabiya (“a árabe zangada”) —, a arma que mais usou para divulgar os protestos pró-democracia no Bahrain. Nascida em 1983, Zainab herdou os genes do ativismo do pai, Abdulhadi Abdulla Hubail al-Khawaja, fundador do Centro para os Direitos Humanos do Bahrain, que cumpre uma pena de prisão perpétua por participação em manifestações antirregime. Zainab também já foi detida várias vezes. Inseparável do Blackberry, tanto alinha em protestos coletivos como se senta sozinha no meio de uma autoestrada.

SÍRIA

A GUERRA INTERMINÁVEL

No início de 2014, as Nações Unidas anunciaram que iam parar de atualizar o número de mortos na Síria. A contabilidade oficial ficou nos “mais de 100 mil mortos”, uma catástrofe a que se soma o facto de um terço dos sírios ter fugido de casa — dois milhões refugiaram-se noutros países e cinco milhões são deslocados internos. “A Síria é a grande tragédia deste século”, disse António Guterres, alto comissário da ONU para os Refugiados. A contestação a Bashar al-Assad começou a 15 de março de 2011 com o mesmo espírito das revoluções em Tunis ou no Cairo. Porém, a sua fase primaveril durou pouco tempo. O Presidente sírio não hesitou em recorrer às armas para reprimir a oposição e, valendo-se da sua superioridade aérea, tem conseguido garantir a sobrevivência do seu regime, alauita — etnia minoritária entre os sírios e de inspiração xiita (o que lhe tem valido o apoio do Irão). Beneficiando do interesse da Rússia — que tem em Tartus a sua única base naval nos mares quentes —, Damasco nunca foi condenado no Conselho de Segurança da ONU: Moscovo ameaça usar o direito de veto. No terreno, há muito que a guerra deixou de ser um confronto entre forças leais ao regime e o Exército Livre da Síria, o grupo rebelde que angariou apoio ocidental. A presença de grupos jihadistas, alguns fiéis à Al-Qaida, que se combatem uns aos outros, quase torna Assad “um mal menor”. Hoje, a Síria é uma manta de retalhos com pedaços do território controlados pelo regime, outros pelos rebeldes, outros por jihadistas e outros nas mãos da minoria curda, que ainda esta semana declarou a autonomia de uma região do norte. Vizinho da Síria, o Iraque, que tem índices de mortalidade semelhantes aos do tempo da guerra, é um exportador de instabilidade. E o Líbano, onde a classe política se divide entre os pró-Síria e os anti-Síria, tem visto aumentar os ataques suicidas. Atento, Israel já fez vários bombardeamentos dentro da Síria para impedir que material perigoso chegasse ao seu inimigo — e aliado de Assad — Hezbollah (xiita libanês). No caos da Síria, tudo é possível.

A CRIANÇA QUE FOI COM OS PAIS À ‘MANIF’
E NUNCA MAIS VOLTOU

A gozar o fim de semana, a família de Hamza Ali Al-Khateeb, de 13 anos (na ilustração a perseguir Bashar al-Assad), destinou aquela sexta-feira, 29 de abril de 2011, para participar num protesto em Jizah, na província de Daraa. Havia semanas que os ânimos estavam exaltados, após 15 crianças terem sido presas por escreverem nas paredes da escola o slogan que, na televisão, ouviam gritar em vários países árabes: “O povo quer a queda do regime.” Em Jizah, Hamza sumiu-se no caos gerado pela repressão da polícia. A 25 de maio, o cadáver foi devolvido à família, com marcas de queimadura, ferimentos de bala e os órgãos genitais decepados. As imagens do corpo e os indícios de tortura levaram muitos sírios a suspeitar dos serviços secretos. Os protestos continuaram e, além do “Dia da Ira” (às sextas-feiras), os sírios passaram a assinalar, aos sábados, o Dia de Hamza. ILUSTRAÇÃO DE CARLOS LATUFF / WIKIMEDIA COMMONS

(Legenda do mapa: A preto, Tunísia, Líbia, Egito e Iémen, onde os protestos derrubaram os líderes. A vermelho, a Síria, onde aos protestos sucedeu a guerra. A azul, o Bahrain, com manifestações reprimidas com ajuda externa)

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 25 de janeiro de 2014