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Ninguém sabe do Presidente da Síria

Com Damasco tomada por confrontos, o paradeiro do Presidente da Síria Bashar al-Assad é uma incógnita — uns dizem que continua em Damasco outros que terá fugido para o litoral

Vinte e quatro horas após o atentado suicida em Damasco que decapitou uma parte importante do aparelho de segurança sírio, o paradeiro do Presidente da Síria é uma incógnita.

Bashar al-Assad não reagiu ao atentado. Fontes da oposição citadas pela Reuters dizem que o Presidente poderá ter-se refugiado na cidade costeira de Latakia. Informações recolhidas pelo jornal francês “Figaro” garantem que ele continua em Damasco.

A capital da Síria está envolta em confrontos entre membros do Exército Livre Sírio (rebeldes) e o Exército regular e os apelos para que a população se afaste das áreas de combate multiplicam-se. Hoje, de manhã, registou-se uma intensa troca de fogo perto da sede do Conselho de Ministros.

“Estes combates, de uma violência extrema, devem continuar nas próximas 48 horas visando limpar Damasco de terroristas antes do início do Ramadão (na sexta-feira)”, afirmou à agência noticiosa France Press uma fonte da segurança síria, sob anonimato.

“Até ao momento, o exército tem dado mostras de contenção nas suas operações”, continuou. “Mas, depois do atentado de ontem, decidiu utilizar todas as armas ao dispor para acabar com os terroristas.”

Batalha continua… na ONU

Os combates em Damasco começaram no domingo passado, após insurgentes munidos com armas ligeiras e lança-granadas RPG terem conseguido entrar na capital.

O atentado de ontem foi um feito importante na estratégia rebelde para “libertar Damasco” e tem sido referido por muitos analistas internacionais como um ponto de viragem na crise síria.

Segundo o Observatório Sírio dos Direitos Humanos, só ontem morreram 214 pessoas, das quais 124 civis, 62 soldados e 28 rebelde.

Prevista para ontem, a votação de um novo pacote de sanções não-militares à Síria deverá realizar-se hoje no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O adiamento foi solicitado por Kofi Annan, enviado da ONU e da Liga Árabe para a crise na Síria.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de julho de 2012. Pode ser consultado aqui

Assad ganha na ONU e surge na TV síria

O Conselho de Segurança da ONU falhou a aprovação de sanções ao Governo sírio. Russos e chineses temem uma intervenção externa, como aconteceu na Líbia

Rússia e China vetaram, hoje à tarde, no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CS), um projeto de resolução proposto pelo Reino Unido que ameaçava diretamente o Governo sírio com sanções.

Onze países votaram a favor (incluindo Portugal) e dois abstiveram-se (Paquistão e África do Sul). Foi a terceira resolução vetada por russos e chineses, em defesa do regime de Bashar al-Assad.

A resolução dava um ultimato de dez dias ao Presidente sírio para que aplicasse o plano de paz mediado por Kofi Annan (enviado da ONU e da Liga Árabe) e aceite por Assad há três meses.

Intervenção externa na forja?

“O projecto de resolução que foi votado era tendencioso”, afirmou o embaixador russo Vitayy Churkin. “A ameaça de sanções foi feita exclusivamente ao Governo da Síria, e não reflete a realidade atual do país. É especialmente ambígua à luz do que aconteceu (ontem) com o grave atentado terrorista que tomou lugar em Damasco”, acrescentou.

O homólogo britânico, William Hague, afirmou que o agravamento da crise confirmou “a necessidade urgente de uma resolução do Conselho de Segurança ao abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU”.

O Capítulo VII permite que os 15 membros do CS autorizem ações que vão desde sanções económicas e diplomáticas à intervenção militar.

Os EUA esclareceram que a resolução proposta previa apenas sanções e não qualquer intervenção militar, mas russos e chineses acreditam que aprovar a resolução seria viabilizar a repetição de um cenário “à líbia.”

“Não podemos aceitar um documento subordinado ao Capítulo VII”, disse o embaixador russo, justificando o veto de Moscovo. “Abriria o caminho a um envolvimento externo armado nos assuntos internos sírios.”

Assad deu sinais de vida

Paralelamente, a televisão nacional síria divulgou imagens do Presidente sírio, as primeiras desde o atentado de ontem. Bashar al-Assad apareceu na cerimónia de tomada de posse do novo ministro da Defesa, general Fahad Jassim al-Freij. Não foi divulgado o local onde a cerimónia decorreu.

Entretanto, os combates continuam em Damasco, pelo quinto dia consecutivo. Esta amanhã acercaram-se da sede do Conselho de Ministros.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de julho de 2012. Pode ser consultado aqui

Asma Assad no país das maravilhas

O cosmopolitismo da primeira-dama síria fez dela a relações públicas perfeita de um dos países mais fechados do mundo. Mas as extravagâncias privadas e a forma como se alheou da repressão ordenada pelo marido tornam-na uma vilã

Asma Assad e o marido, Bashar RICARDO STUCKERT / WIKIMEDIA COMMONS

Naquele dia, Bashar al-Assad deve ter sido o homem mais falado em todo o mundo, pelas piores razões. À sua ordem, na véspera, forças de segurança apontaram armas à cidade de Homs — um dos principais bastiões rebeldes do “despertar sírio” — e cometeram uma das piores chacinas desde o início da revolução. Em Damasco, o Presidente não se deixou afetar e entregou-se àquilo que, verdadeiramente, era importante para si naquele momento.

Usando o pseudónimo Sam, escreveu um email à esposa, Asma. Absteve-se de quaisquer referências aos tumultos em curso, descarregou do iTunes o tema ‘God Gave Me You’ (Deus deu-te a mim), do cantor country Blake Shelton, e transcreveu a letra, num aparente ato de autocomiseração: “I’ve been a walking heartache / I’ve made a mess of me / The person that I’ve been lately / Ain’t who I wanna be” (Tenho sido uma dor de coração ambulante / Fiz de mim mesmo uma trapalhada / A pessoa que tenho sido nos últimos tempos / Não é a pessoa que quero ser), diz o primeiro verso.

Estava-se a 5 de fevereiro de 2012, o Presidente levava já quase um ano de contestação, e os Assad pareciam viver num casulo, incapazes de acordar para a realidade e admitir o que era visível para o resto do mundo — o regime tinha os dias contados.

A mensagem de Bashar consta de um conjunto de cerca de 3000 emails a que o diário britânico “The Guardian” teve acesso recentemente, após as contas pessoais dos Assad terem sido intercetadas por membros da oposição. A sensação de autismo em que parece viver a ‘primeira família’ acentuou-se com a revelação de algumas extravagâncias da primeira-dama.

Ao longo do ano passado, quando a contestação ao marido já estava nas ruas, Asma esbanjou dezenas de milhares de dólares em artigos de luxo, encomendados através do iPhone e do iPad: sapatos Christian Louboutin, joias de Paris, mobílias de Chelsea, peças de decoração do Harrods, lustres, cortinas e pinturas. Para contornar as sanções impostas a Bashar, ela socorreu-se de um nome falso — Alia Kayali — e de moradas falsas, em Londres ou no Dubai.

Enquanto o marido ordenava a repressão do mais pequeno sinal de dissidência, no aconchego do lar a primeira-dama parecia tomada por uma terapia consumista, empenhada em concretizar os últimos desejos do clã Assad, particularmente dos filhos Hafez, Zein e Karim. Entre as compras feitas, consta o filme “Harry Potter e as Relíquias da Morte”, um kit para fondue e downloads com fartura do iTunes, de Chris Brown a LMFAO e Right Said Fred.

Bashar vivia o período mais difícil em quase 12 anos de poder. No exterior, cada vez mais vozes acusavam-no de crimes contra a humanidade, quase que sentenciando a sua morte política. Os Assad alhearam-se, mas, após a revelação da ostentação em que vivem, algo mudará: a União Europeia já anunciou que tenciona adicionar o nome de Asma à lista de personalidades sírias alvo de sanções.

Uma rosa britânica no deserto

Nascida em Londres, em 1975, Asma Fawaz al-Akhras é oriunda de uma família sunita (e não alauita, como o marido e a minoria que governa a Síria). Os pais — o cardiologista Fawas Akhras, natural de Homs, e a diplomata Sahar Otri, de Alepo — tinham emigrado para o Reino Unido na década de 50, muito antes de Hafez al-Assad, pai de Bashar, subir ao poder.

Em casa, falava-se árabe, e as férias eram passadas na Síria. Mas, habituados a viver numa sociedade liberal, os progenitores fizeram os possíveis para que a filha crescesse como uma inglesa. Frequentou um colégio anglicano em Acton — onde lhe chamavam Emma — e, depois, o renomado King’s College, onde cursou Ciências da Computação e Literatura Francesa. Ingressou no sector bancário, como analista de fusões e aquisições, primeiro do Deutsche Bank e depois do JP Morgan, em Paris e Nova Iorque.

Em dezembro de 2000, abandonou o Reino Unido para se casar com Bashar — era ele Presidente havia cinco meses. Conheciam-se desde a juventude e aproximaram-se durante os estudos universitários. Após licenciar-se em Medicina, em Damasco, Bashar foi para Londres fazer a especialização em Oftalmologia. Como se horrorizava com sangue, optou pelos olhos, um órgão pouco dado a hemorragias.

A história de amor escapou aos tabloides britânicos. Na Síria, por seu turno, a união entre Bashar e Asma era sentida também como uma aliança política: ele era alauita (um ramo do Islão xiita) e ela sunita, a maioria que, nos anos 80, tentara derrubar o regime do pai Hafez.

A juventude e sofisticação de Asma rapidamente elevaram-na ao patamar das mulheres mais elegantes do mundo, rivalizando com Carla Bruni, Michelle Obama ou Rania da Jordânia. Asma era a relações públicas por excelência da fechada Síria. Do “60 Minutes” ao “Oprah Show”, choviam pedidos de entrevistas. Em 2008, a “Elle” francesa elegeu-a “a primeira-dama mais bem vestida do mundo”. “Glamorosa, jovem e muito chique. É a mais refrescante e a mais magnética das primeiras-damas”, acrescentaria a revista “Vogue”, num artigo que haveria de causar grande polémica.

Publicado a 25 de fevereiro de 2011, o texto — intitulado “Uma Rosa no Deserto” — abriu as portas do moderno apartamento habitado pelos Assad, no bairro Malki, em Damasco, como não era habitual. Podia ler-se: “Asma al-Assad esvazia uma caixa de mistura de fondue para uma panela, para fazer o almoço. A vida de casa é gerida, naturalmente, por princípios democráticos. ‘Todos nós votamos naquilo que queremos e onde queremos’, diz ela. O candeeiro por cima da mesa de jantar é feito de recortes de livros de desenhos animados. ‘Eles [os filhos] derrotaram-nos por 3-2 nessa votação.’”

A democracia era válida em casa, mas não fora dela, onde um regime de partido único praticava a tolerância zero à dissidência. A “Vogue” acusa o embaraço e retira o artigo do seu sítio na Internet. As revoluções na Tunísia e no Egito já tinham derrubado ditadores e as ruas sírias ensaiavam as primeiras ações de contestação a Bashar. Asma sai em defesa do marido. “O Presidente é o Presidente da Síria, não uma fação de sírios, e a primeira-dama apoia-o nessas funções”, disse num email enviado ao “The Times”.

Há cada vez mais vozes a referirem-se a Asma como a Maria Antonieta árabe

A lealdade conjugal sobrepunha-se a qualquer hesitação moral. Em 2005, Asma fundara a organização Massar, destinada a promover a “cidadania ativa” e a participação dos jovens na política, mas quando essa intervenção cívica visou o marido a sua causa caiu pela base.

Num dos emails tornados públicos, AAA — como Asma al-Assad assina as mensagens de carácter pessoal — confidenciava a uma amiga, a 14 de dezembro de 2011: “E, no que toca a ouvir, eu sou o verdadeiro ditador, ele não tem hipótese.” Ainda que o comentário tenha sido feito em tom de brincadeira, revelava que Asma reconhecia ser essa a imagem do marido. E que ela convivia bem com isso.

Asma parece confortável neste mundo de fantasia, mas os emails tornados públicos revelam igualmente que, entre as abastadas elites do Médio Oriente, há quem tenha lucidez e procure aconselhar os Assad a refugiarem-se… num exílio dourado. Num email trocado com Asma, Mayassa al-Thani, filha do emir do Qatar, apelou-lhe que abandonasse o “estado de negação” em que parecia mergulhada. “Só rezo para que convenças o Presidente a aproveitar esta oportunidade para sair sem ter de enfrentar acusações”, escreveu a princesa do Qatar. “A região necessita de estabilidade e tu precisas de paz de espírito. Estou certa que têm muitos lugares para onde ir, incluindo Doha.”

Em tempos, a revista francesa “Paris Match” descreveu Asma como “a luz num país pleno de zonas obscuras”. O próprio Presidente francês, Nicolas Sarkozy, alertado pelos assessores para a faceta ditatorial de Bashar al-Assad, terá desabafado: “Com uma mulher tão moderna, ele não pode ser completamente mau.” A verdade é que, fruto da defesa incondicional que faz do marido — paralelamente ao aumento de mortos, sobretudo civis, resultante do impasse da crise síria —, há cada vez mais vozes a referirem-se a Asma al-Assad como a “Maria Antonieta árabe”.

Artigo publicado na Revista do Expresso, a 24 de março de 2012, e republicado no “Expresso Diário”, a 15 de dezembro de 2016. Pode ser consultado aqui