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Os barcos da ilusão

Perseguidos em Myanmar ou refugiados no Bangladesh, pagam a traficantes para que os tirem dali

Rezuwan não teve a coragem da irmã. Abandonada pelo marido e com duas filhas a seu cargo, Hatamonesa pagou 100 mil tacas bengalis (€900) a um traficante para que a metesse num barco e a resgatasse da vida difícil no campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

A 25 de novembro de 2022, Hatamonesa e uma filha de cinco anos estavam entre os cerca de 180 ocupantes de uma embarcação, maioritariamente rohingyas, que zarpou da zona de Teknaf. Para trás deixou a filha mais velha, entregue ao cuidado de familiares que não ousaram seguir com ela.

Foi o caso do irmão Rezuwan, de 25 anos, casado e pai de uma bebé de um ano. “É muito perigoso. Aqueles barcos são impróprios para navegar e os traficantes tentam meter mais e mais pessoas lá dentro para ganharem mais dinheiro”, conta ao Expresso. “É como jogar à moeda: se tivermos sorte, sobrevivemos, se não tivermos…”

Do campo foi acompanhando a odisseia da irmã. “Dias após terem partido, o homem do barco disse ao traficante, através de um telefone satélite, que o motor tinha parado. De início não nos disseram nada e tentaram resolver o problema. Mas quando a situação se descontrolou, falaram connosco para pedirmos ajuda à comunidade internacional. Para ser sincero, não acreditei neles. Nem imaginava que tivessem um telefone satélite. Pensei que era apenas uma artimanha para extorquirem mais dinheiro às famílias.” Acabou por chegar à fala com o barqueiro e inteirou-se da real situação do barco.

Um mês à deriva

O plano da irmã era chegar à Indonésia e depois seguir para a Malásia ou outra “terra humanitária, onde a filha pudesse ir à escola e depois à universidade e ela própria tivesse uma vida diferente”. Assim que tivesse condições, tentaria que a filha mais velha se lhes juntasse.

Tudo foi posto em causa depois de o barco ter ficado à deriva entre a baía de Bengala e o mar de Andamão. A angústia durou mais de um mês, sem que nenhum país à volta respondesse à urgência e abrisse as fronteiras.

JAIME FIGUEIREDO

Em águas tailandesas, alguns atiraram-se à água na esperança de serem resgatados por pescadores ou pela Marinha. Depois, a corrente levou o barco para águas indianas, onde, por fim, desembarcaram, a 26 de dezembro, na zona de Aceh, na ponta norte da ilha de Samatra. Não sobreviveram à odisseia 26 pessoas. Desde então, Rezuwan vai tendo notícias da irmã de longe a longe, através de telefonemas de três minutos facilitados pela ONU.

O desespero em que vive esta minoria muçulmana — que no seu país, Myanmar, é perseguida e no Bangladesh, para onde fugiu, vive em campos de refugiados — leva os rohingyas a recorrerem aos barcos como tentativa de fuga para uma vida mais segura e digna.

“Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por nenhum país. Vou para onde?”

Em 2022, segundo a ONU, 3545 rohingyas lançaram-se ao mar em 39 embarcações — mais 360% do que no ano anterior. Desembarcaram 3040, morreram ou desapareceram 348 e, no final do ano, havia ainda 157 no mar. Quase 45% dos embarcados eram mulheres e crianças.

Este fenómeno encerra uma ironia: 32% dos barcos foram intercetados em Myanmar (e os ocupantes presos, incluindo crianças). A Malásia acolheu 25%, a Indonésia 24%, 10% dos barcos voltaram ao Bangladesh, 5% foram para a Tailândia e 3% para o Sri Lanka.

Um povo sem cidadania

A perspetiva de terem futuro nestes países é uma ilusão. Sem reconhecimento legal, este povo não tem passaporte que lhe permita emigrar. “Em Myanmar dizem que sou bengali, no Bangladesh sou rohingya. Não sou reconhecido por estes países. Aliás, por nenhum. Vou para onde, então?”

Rezuwan chegou ao campo em 2017, fugido à repressão ordenada pela junta militar contra o seu povo. Em duas semanas, cerca de 700 mil rohingyas cruzaram a fronteira com o Bangladesh, triplicando a população de refugiados na região de Cox’s Bazar (Sueste). Até lá, foram três dias a pé, com seis familiares, incluindo a mãe e um irmão com deficiência. Hoje vivem todos numa estrutura coberta por um toldo, com paredes de bambu e chão em cimento.

Passados cinco anos, a situação provisória dos rohingyas é cada vez mais definitiva. “Somos um milhão nos campos, mas só uns cinco mil trabalham para organizações não governamentais a troco de 100 dólares [€94]. Não tenho trabalho profissional. Ganho algum a ajudar jornalistas.”

Muitos rohingyas vão nos barcos tentar arranjar trabalho e tirar as famílias da miséria, fugindo a uma situação cada vez mais explosiva. “Tornámo-nos um fardo para o Bangladesh, a maioria não nos quer aqui muito mais tempo. Não veem avanços a nível do repatriamento. E há falta de interesse pelo nosso problema. Somos muito poucos. Está a fazer-se tarde. O meu avô morreu sem ver a sua identidade reconhecida, o meu pai também.”

Rezuwan acha que não vai escapar ao mesmo fado, mas não se deixa derrotar. Calcorreou os campos durante dois anos e recolheu contos populares rohingyas da boca dos mais velhos. Traduziu-os e publicou o livro “Rohingya Folktales: Stories from Arakan”, garantia de que aquele património sobreviverá ao desaparecimento de sucessivas gerações de contadores de histórias e à inexistência legal do seu povo.

(FOTO Um barco que transportou refugiados rohingyas permanece ancorado no Mar de Andamão depois do desembarque dos ocupantes numa praia em Aceh, na Indonésia, a 8 de janeiro de 2023 KENZIE EAGAN / UNHCR)

Artigo publicado no “Expresso”, a 3 de março de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

Aos 77 anos, Aung San Suu Kyi tem pela frente (pelo menos) 33 de prisão. Que hipótese há de sair em liberdade?

Desde que regressou à sua Birmânia natal, Aung San Suu Kyi já viveu sensivelmente tanto tempo em liberdade como presa. Detida pela última vez na sequência do golpe militar de 1 de fevereiro de 2021, enfrenta uma maratona de julgamentos que pode levar a que nunca mais saia em liberdade. “Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, comenta um analista. “Todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional.”

Quando, aos 43 anos de vida, Aung San Suu Kyi decidiu voltar ao país onde nascera, e de onde saíra com 15, encontrou uma Birmânia (hoje Myanmar) em ebulição. Corria o ano de 1988 e, nas ruas, gigantescas manifestações populares desafiavam a autoridade da junta militar, no poder.

Suu Kyi regressara por razões do coração, motivada pela vontade de acompanhar os últimos tempos de vida da mãe, que sofrera um grave acidente vascular cerebral. Mas o seu ADN político não a deixou indiferente em relação à agitação interna.

Filha do general Aung San, o herói da independência da Birmânia e considerado o pai das forças armadas do país (Tatmadaw), assassinado quando ela tinha apenas dois anos, Suu Kyi tornou-se um ativo do movimento pró-democracia. Ajudou a fundar a Liga Nacional pela Democracia (LND) e proferiu um discurso memorável em frente ao pagode Shwedagon, em Rangum, para meio milhão de pessoas. Com isto tornou-se alvo dos generais.

A 20 de julho de 1989, cerca de um ano após voltar à Birmânia, Suu Kyi foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez. Hoje, cumpre o quarto período de detenção.

Nobel da Paz em clausura

Dos cerca de 35 anos que Suu Kyi viveu em Myanmar, mais de 17 foram passados em clausura: 1989-1995, 2000-2002, 2003-2010 e desde 2021. Foi durante um destes períodos, em 1991, que recebeu o prémio Nobel da Paz “pela sua luta não violenta pela democracia e os direitos humanos”. Na cerimónia em Oslo, representaram-na o marido e os dois filhos.

Aung San Suu Kyi proferiu o seu discurso de aceitação do Nobel da Paz, em Oslo, 21 anos após ter sido galardoada DANIEL SANNUM-LAUTEN / AFP / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi foi detida pela última vez a 1 de fevereiro de 2021, na sequência de um golpe militar que depôs o Governo que liderava. Desde então, a sua vida transformou-se numa maratona de julgamentos que já lhe valeram um cúmulo jurídico de 33 anos de prisão. Pela frente, enfrenta outras acusações que podem valer-lhe novas sentenças.

A última pena foi-lhe atribuída a 30 de dezembro passado: sete anos de prisão por delitos relacionados com o uso de um helicóptero quando era líder de facto do país.

“Esta sentença final de condenação pela compra de um helicóptero sinaliza o culminar de um julgamento brutalmente ridículo desde o golpe de 2021. Foi tudo planeado para desacreditar Suu Kyi e garantir que não haja retorno político”, diz ao Expresso David Scott Mathieson, analista independente em Chiang Mai (Tailândia), que viveu oito anos em Rangum.

Nos últimos dois anos, sucessivas penas de prisão foram aplicadas a Suu Kyi por incitamento, violação das restrições justificadas com a covid-19, posse ilegal de equipamentos de rádio, violação de uma lei de segredos de Estado da época colonial, corrupção e tentativa de influência de funcionários eleitorais.

Aung San Suu Kyi, no n.º 54 da University Avenue, uma casa de estilo colonial ribeirinha ao lago Inya, onde ela viveu anos em prisão domiciliária CHRISTOPHE LOVINY / GETTY IMAGES

Aung San Suu Kyi é o principal alvo de uma campanha de repressão política levada a cabo pelo regime dos generais contra líderes políticos, ativistas e todos quantos questionem o golpe que terminou com a experiência democrática birmanesa ensaiada a partir de 8 de novembro de 2015, quando o partido de Suu Kyi venceu as eleições legislativas por expressivos 58% dos votos.

Segundo a Associação de Assistência aos Presos Políticos, desde o golpe de 1 de fevereiro de 2021 e até esta segunda-feira:

  • 17.041 pessoas foram detidas
  • 13.321 estão ainda detidas
  • 2711 foram mortas pela junta militar
  • 3696 foram libertadas

Hoje, aos 77 anos, a perspetiva de Suu Kyi passar mais 33 na prisão equivale, na prática, a uma sentença de prisão perpétua. “Quer [os generais] a mantenham encarcerada ou a troquem por concessões e forneçam uma amnistia, todo o processo visa acabar com as aspirações dela à liderança nacional”, diz Mathieson.

Acordo é pouco provável

“Há pouca probabilidade de qualquer tipo de governação compartilhada. Se os militares tentarem usar Suu Kyi como moeda de troca para debelar a violência por todo o país, a realidade vai além disso”, acrescenta o antigo investigador da Human Rights Watch.

A 13 de fevereiro de 2015, envolta numa multidão de apoiantes, na cidade de Natmauk, após uma cerimónia do 100º aniversário do nascimento do seu pai YE AUNG THU / AFP / GETTY IMAGES

“Duvido que muitos dos novos grupos a escutassem se ela tentasse fazer um acordo com o Conselho de Administração do Estado [nome formal da junta militar]. Mesmo que o regime quisesse um acordo, eles não são fiáveis, e muitos dos grupos armados que nunca viram Suu Kyi como sua líder não vão receber ordens dela.”

Guerras étnicas

A atual Constituição de Myanmar, de 2008, dividiu o país em sete estados étnicos e reconhece a existência de 135 grupos étnicos — que não os rohingya, a minoria muçulmana do país, perseguida pelo regime.

Vários desses grupos étnicos estão envolvidos numa luta armada com o poder central, que deixa Myanmar, com frequência, à beira de um precipício de violência. No último dia de 2022, a junta prorrogou o acordo de cessar-fogo com os grupos armados até ao fim de 2023. Desde 21 de dezembro de 2018, essa trégua já foi prolongada 21 vezes.

“Os militares calcularam mal o seu golpe e agitaram todo o país contra eles”, diz Mathieson. “Provocaram uma geração mais jovem a lutar contra o regime repressivo. Muitos desses jovens não ouviriam Suu Kyi se ela tentasse liderá-los quando fosse libertada. O país mudou drasticamente.”

Dirigente democrática foi criticada

Aung San Suu Kyi não é uma personalidade imune a críticas. Se a atribuição do Nobel da Paz foi um reconhecimento unânime, o seu silêncio em relação à repressão aos rohingya colocou-a sob fogo. Em 2019, diante do Tribunal Penal Internacional, em Haia, defendeu os militares birmaneses das acusações de genocídio contra os rohingya (palavra que ela nunca usou).

A imagem de Aung San Suu Kyi e a data do golpe militar tatuadas nos braços de birmaneses a viver na Tailândia. A saudação de três dedos é um gesto pró-democracia PEERAPON BOONYAKIAT / GETTY IMAGES

Várias vozes defenderem que o Nobel lhe fosse retirado e algumas organizações recuaram no reconhecimento público que lhe tinham prestado. Em 2018, a Amnistia Internacional revogou o Prémio Embaixador de Consciência que lhe fora atribuído em 2009. E em 2020, Suu Kyi foi excluída da comunidade de laureados com o Prémio Sakharov dos Direitos Humanos por causa “da gravidade e escala da violação dos direitos humanos” que os rohingya enfrentam na Birmânia.

“Apesar das suas muitas falhas, Suu Kyi é inocente de todas essas acusações ridículas [pelas quais está a ser julgada] e é uma refém política”, conclui Mathieson. “O mundo deve exigir a sua libertação imediata e incondicional, juntamente com a dos outros 13 mil presos políticos.”

(FOTO Aung San Suu Kyi, na sede da Liga Nacional pela Democracia, a 8 de dezembro de 2010, dias após ser libertada do seu terceiro período de detenção GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de janeiro de 2023. Pode ser consultado aqui

Aung San Suu Kyi. Presa quatro vezes por lutar pela democracia

Filha de um herói da independência da Birmânia (atual Myanmar), a vida de Aung San Suu Kyi confunde-se com a história do próprio país. Nos últimos 32 anos o braço-de-ferro que a Nobel da Paz tem travado com os generais levou-a a passar quase metade desse tempo em prisão domiciliária. O golpe militar de 1 de fevereiro colocou-a de novo em regime de detenção. Hoje e sempre, o mesmo “crime”: a luta pela democracia no seu país

O projeto de democracia em Myanmar (antiga Birmânia) sofreu um duro golpe, faz esta segunda-feira duas semanas, com a detenção de Aung San Suu Kyi, principal rosto da esperança de um país livre, após décadas de governação militar. Escreve o jornal “The Irrawaddy” (publicado por birmaneses exilados no norte da Tailândia) que neste dia 15 de fevereiro um tribunal distrital em Naypyitaw (capital de Myanmar) adiou uma audiência do seu caso para a próxima quarta-feira.

A chefe de Governo birmanesa deposta é acusada de ter violado a Lei de Importação e Exportação do país, ao importar walkie-talkies sem autorização. Se for condenada, poderá enfrentar uma pena de três anos de prisão — o seu quarto período de detenção nos últimos 32 anos.

“Gosto da Aung San Suu Kyi. Gosto da Liga Nacional pela Democracia [partido que lidera], na medida em que está a lutar pela democracia e pelos direitos do povo”, diz ao Expresso Faruque, um rohingya de 32 anos, a partir do campo de refugiados de Kutupalong, no Bangladesh.

Os rohingya não estão entre os apoiantes mais entusiastas da Nobel da Paz, que respondeu com silêncio e inação à repressão desta minoria muçulmana em Myanmar. Mas Faruque tenta ver mais além… “A maioria dos rohingya está feliz [com a detenção de Suu Kyi], mas eu não. Acredito na democracia e acredito que um Governo democrata pode resolver os nossos problemas”, diz. “Mas discordo de algumas políticas de Aung San Suu Kyi. Ela nunca defendeu os rohingya, apenas os militares.”

Filha do general Aung San — líder nacionalista, herói da independência e fundador das forças armadas birmanesas (“Tatmadaw”) —, o seu respeito e reverência em relação à instituição militar vêm-lhe do berço. Suu Kyi partilha com os generais as crenças nacionalistas, mas diverge deles ao defender a subordinação dos militares à autoridade de um governo eleito. Essa visão para o país já a privou de liberdade em quatro ocasiões.

20.07.1989 — 10.07.1995

Independente desde 1948, a Birmânia (Myanmar, desde 1989) tem vivido maioritariamente sob o jugo dos militares. Aung San Suu Kyi vivia em Inglaterra — onde casara e tivera dois filhos — quando, em 1988, decidiu regressar ao seu país natal para cuidar da mãe doente. Encontra um país revoltado com uma gestão económica desastrosa e com a repressão política. Os estudantes estão à cabeça da contestação que atinge o pico a 8 de agosto, no que ficou conhecido como a “revolta do dia 8888”, reprimida de forma sangrenta.

Suu Kyi junta-se aos manifestantes e funda um partido: a Liga Nacional pela Democracia (LND). Ser filha de um herói do país torna-a uma voz mobilizadora. A 20 de julho de 1989, é detida ao abrigo da Lei de Proteção do Estado e colocada em prisão domiciliária, no n.º 54 da Avenida da Universidade, em Rangum.

Quando os militares acedem a realizar eleições, para um comité constitucional, a 27 de maio de 1990 — as primeiras multipartidárias desde 1960 —, o partido de Suu Kyi não se ressente da detenção da líder e conquista 392 dos 485 lugares. Os militares não reconhecem os resultados, mas o mundo reconhece o valor da vitória: em 1991, Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz. O marido e os dois filhos representam-na na cerimónia, em Oslo.

Aung San Suu Kyi é libertada a 10 de julho de 1995, ao fim de seis anos de reclusão. O seu partido desafia uma proibição governamental e volta a nomeá-la secretária-geral. Continua o braço-de-ferro com os militares.

23.09.2000 — 06.05.2002

De regresso à vida política, Aung San Suu Kyi percebe que a sua liberdade é ilusória. Em 1996 tenta ir de comboio até Mandalay, mas não passa da estação. As autoridades desacoplam a carruagem em que devia seguir, alegando problemas técnicos.

Quatro anos depois, tinham as universidades acabado de abrir portas após três anos e meio encerradas pelo regime, para calar os protestos antigovernamentais, a líder da oposição tenta repetir a viagem até à segunda cidade do país. Planeia fazer a deslocação na companhia de outros militantes do seu partido, para confirmar denúncias de que o regime interferia nas atividades da LND. Mais uma vez, fica confinada numa sala de espera da estação ferroviária.

Seguem-se 19 meses de prisão domiciliária, que terminam a 6 de maio de 2002. Nesse dia, uma multidão de apoiantes acompanha-a num passeio triunfal por Rangum (antiga capital e maior cidade de Myanmar) até à sede do seu partido, onde Suu Kyi declara que a sua liberdade é incondicional. Está de volta ao combate político.

30.05.2003 — 13.11.2010

Sensivelmente um ano após sair em liberdade, Suu Kyi volta a ser presa, desta vez para cumprir o período mais longo de reclusão a que foi sujeita: sete anos e seis meses. Nesse 30 de maio de 2003, um grupo de simpatizantes da junta militar ataca a comitiva da líder da oposição, perto da cidade de Depayin. Oficialmente morrem quatro pessoas, mas a oposição reclama um verdadeiro massacre, com pelo menos 70 vítimas mortais.

Suu Kyi é levada para a prisão de Insein, os escritórios do seu partido são encerrados e as universidades fecham por tempo indeterminado. Meses depois, é transferida para sua casa, onde continua a cumprir pena.

Em setembro de 2007, Suu Kyi assoma brevemente ao portão de casa para saudar centenas de monges que ali se dirigiram para saudá-la. Os religiosos budistas levavam dias de protestos contra a junta militar, que ficaram conhecidos como a Revolução de Açafrão (a cor das suas túnicas).

Myanmar continua em polvorosa e, no ano seguinte, a 10 de maio, os generais promovem um referendo constitucional que mais parece destinado a cortar as asas à líder da oposição. Uma das cláusulas impede a candidatura à presidência a cidadãos com nacionalidade estrangeira ou com familiares diretos nessa condição. Era o caso de Suu Kyi, casada com um inglês (entretanto falecido sem que pudesse ter ido visitá-lo no fim da vida, pois não a deixariam voltar a entrar em Myanmar) e mãe de dois rapazes com cidadania britânica.

O cerco do regime aperta-se ainda mais quando um norte-americano de 53 anos invade a sua propriedade, a 30 de novembro de 2008, após atravessar a nado o lago contíguo à casa. Suu Kyi alerta as autoridades para aquela presença indesejada, mas estava criado mais um pretexto para a penalizar.

É levada para a prisão de Insein e sujeita a julgamento: é condenada a três anos de trabalhos forçados, pena comutada para 18 meses de detenção domiciliária, que termina a 13 de novembro de 2010.

01.02.2021 — (…)

As raízes do golpe militar de 1 de fevereiro passado, que voltaram a privar Aung San Suu Kyi de liberdade, datam de 8 de novembro de 2020, quando a LND venceu as eleições gerais de forma esmagadora.

Os deputados não chegam a tomar posse já que no dia previsto para a cerimónia (1 de fevereiro), os militares declaram as eleições ilegítimas e tomam o poder, fechando o parêntesis democrático aberto em 2015 pela inequívoca vitória eleitoral do partido de Suu Kyi e pela sua entronização como líder de facto de Myanmar.

Desde as detenções de Suu Kyi e do Presidente do país, Win Myint (também da LND) que várias cidades birmanesas estão tomadas pelos maiores protestos populares desde a Revolução de Açafrão. Nas mãos dos manifestantes há muitos retratos de Aung San Suu Kyi, heroína birmanesa e também, cada vez mais, um ícone mundial da resistência pacífica.

(ILUSTRAÇÃO “Seria difícil dissipar a ignorância a menos que houvesse liberdade para buscar a verdade sem medo”, Aung San Suu Kyi DEVIANT ART)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 15 de fevereiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Primeiro a perseguição, agora as monções e os elefantes: o drama sem fim dos rohingya

O pesadelo dos rohingya parece não ter fim. Refugiados em campos do Bangladesh, em áreas onde outrora se erguiam densas florestas, enfrentam agora a época das monções. Recolhidos em “casas” feitas de plástico e bambu, (sobre)vivem vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações. E também à visita, inesperada e por vezes mortífera, de elefantes que ali viviam antes

Cerca de 25 mil rohingya correm reais riscos de vida nos campos do Bangladesh, onde pensariam estar a salvo. Para que a tragédia aconteça, basta apenas que as chuvas das monções — o fenómeno natural que recentemente encurralou 12 jovens futebolistas e o seu treinador numa gruta tailandesa — se intensifiquem. Com grande probabilidade, as frágeis tendas de plástico e bambu onde os refugiados estão instalados deslizarão terra abaixo, levando consigo quem está próximo a caminho de uma morte certa — como aconteceu a 25 de julho, com cinco crianças.

“As monções não são uma possibilidade, são uma certeza. E aquela zona tem três vezes mais pluviosidade do que o resto do Bangladesh, que, já de si, é um país muito suscetível a monções”, diz ao Expresso o lisboeta Pedro Matos, de 44 anos, acabado de regressar dos campos, após uma missão de cinco meses com o Programa Alimentar Mundial (PAM), das Nações Unidas. “A grande dúvida é saber como reagirá a zona onde estão os rohingya” assim que as chuvas caírem com maior intensidade.

Entalado entre a Índia e Myanmar, o Bangladesh tem um histórico que pode ajudar a antecipar o efeito das monções no território, mas a área dos campos tem uma especificidade… “A zona onde os rohingya estão era um parque nacional, uma floresta densa, que agora está completamente despida.” As árvores, que ajudavam a prevenir deslizamentos de terras, tiveram de ser arrancadas em nome de uma urgência maior. “A preocupação principal, nos primeiros tempos, foi arranjar sítio para as pessoas, que atravessavam a fronteira ao ritmo de milhares por dia. As monções ainda estavam à distância”, diz Pedro Matos. “Como tudo foi completamente arrasado — até as raízes foram arrancadas, para serem usadas como lenha para as pessoas cozinharem —, toda aquela zona, meio arenosa e argilosa, ficou muito vulnerável aos efeitos das monções.”

Duas emergências numa só

No início deste ano, quando o fluxo de pessoas começou a acalmar, outros desafios ganharam visibilidade. Entre os cerca de 900 mil rohingya que vivem nos campos — uns 200 mil já ali estão há anos, na sequência de vagas de repressão anteriores —, “entre 100 e 200 mil estavam instalados em declives e vales, vulneráveis a deslizamentos de terras e inundações”, explica o funcionário do PAM. “E, desses, 25 mil corriam grande risco de vida.”

Iniciou-se então a segunda fase da emergência: a preparação para a época das monções e também dos ciclones, fenómenos que requerem respostas diferentes. “Os ciclones são ventos fortes, as monções são chuvas fortes. O último ciclone que atingiu aquela zona teve ventos entre os 100 e os 300 quilómetros por hora. Se um ciclone entrar por aqueles campos, nenhuma cabana resistirá. Felizmente, a época dos ciclones passou sem nenhum por perto.”

Atualmente, continua em curso a resposta às monções, que passa por um grande trabalho de engenharia — num esforço conjunto de três agências das Nações Unidas (Organização Internacional para as Migrações, Alto Comissariado da ONU para os Refugiados e PAM) — com o objetivo de criar sítios novos para alojar as pessoas em situação mais vulnerável. “Movemos montanhas, literalmente”, diz Pedro Matos. “Tirámos topos e pusémo-los nos vales, para criar zonas planas onde pudéssemos pôr as pessoas. Felizmente as monções começaram de uma forma mais suave do que estávamos à espera.”

Além dos ciclones e das monções, uma terceira ameaça aos rohingya emergiu da mãe natureza. “Aquela floresta estava cheia de elefantes, centenas deles, que continuam a fazer as suas rotas migratórias. De vez em quando, entram pelos campos adentro e matam pessoas” — até ao momento, pelo menos 12.

Vídeos captados por telemóvel mostram elefantes “perdidos”
no campo de refugiados rohingya de Kutupalong
VÍDEOS UNHCR / MONTAGEM “THE GUARDIAN”

Pedro Matos, que já testemunhou crises humanitárias no Quénia, no Uganda e no Darfur, considera o Bangladesh marcante a dois níveis: a velocidade do último êxodo rohingya e os riscos ambientais, que “nunca tinha visto na vida”, diz. “E tudo agravado por aquilo que já é uma situação de vulnerabilidade de um refugiado que deixa tudo para recomeçar a vida noutro sítio ou para fugir do perigo.”

A experiência nos campos diz ao português que os rohingya querem regressar a Myanmar, o país que consideram seu — a 21 de junho, o número exato de rohingyas nos campos do Bangladesh era de 918.936. “Querem voltar, mas têm a ideia clara de que, neste momento, não há condições para que isso aconteça. Todos os problemas que existiam antes, incluindo o de não serem reconhecidos como cidadãos de Myanmar, continuam a existir, com problemas acrescidos, como o facto de as aldeias terem sido arrasadas e eles já não terem sítios para onde voltar. E a solução que Myanmar dá são campos já não de refugiados mas vedados — quase campos de concentração.”

(Foto: Sacos de areia ajudam a segurar as terras, no campo de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso Diário, a 7 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui

Os bebés da vergonha

Quase um ano após o início das agressões sexuais, em Myanmar, contra milhares de mulheres rohingya, os campos de refugiados no Bangladesh estão cheios de bebés… que ninguém vê. Vergadas à vergonha, muitas lidam com essas gravidezes indesejadas no interior das tendas, longe de olhares reprovadores e de assistência médica. A fundadora da organização não governamental Projeto Dignidade dos Sem Estado conta ao Expresso o que por lá viu

Captura de ecrã de uma reportagem da Al-Jazeera sobre refugiadas rohingya que foram violadas

Quando se anda pelos campos de refugiados rohingya no Bangladesh mal se veem mulheres grávidas. Não que as não haja, mas simplesmente não se fazem notar. “Eu tinha a expectativa de ver muitas mulheres em adiantado estado de gravidez e também recém-nascidos, mas fiquei um pouco chocada pois não vi quase nenhuns”, confidencia ao Expresso a norte-americana Ashley Kinseth. “Acho que vejo mais grávidas e recém-nascidos em Nova Iorque do que vi nos campos, apesar de haver ali ‘toneladas’ de crianças.”

Em junho, a fundadora e diretora do Stateless Dignity Project (Projeto Dignidade dos Sem Estado) passou dois dias nos acampamentos rohingya na região de Cox’s Bazar, sudeste do Bangladesh. A sua expectativa decorre de uma leitura fria da brutalidade que aquela comunidade — e as suas mulheres em particular — enfrentou nos últimos meses no país onde vivia, Myanmar, a antiga Birmânia.

Em agosto do ano passado, uma vaga de perseguição à minoria muçulmana naquele Estado de maioria budista, levada a cabo pelo exército, obrigou mais de 700 mil rohingya a fugirem de casa com pouco mais do que a roupa do corpo e a procurar refúgio no vizinho Bangladesh — mais de 55% de quem se fez à estrada eram crianças.

Pelo caminho e, antes, durante a invasão às aldeias, milhares de mulheres e meninas foram violadas. Quase um ano depois, muitas lidam com o trauma de gravidezes e filhos indesejados no interior de tendas de plástico e bambu, escondidas de olhares reprovadores. “De um modo geral, as mulheres das comunidades rohingya tendem a ficar ‘dentro’, especialmente no final da gravidez ou logo após o nascimento do bebé”, diz Ashley. “É muito difícil ter grande privacidade nos acampamentos mas, mesmo assim, imagino que muitas dessas mulheres” — especialmente se suspeitarem que o bebé possa ser fruto de uma violação — “possam ‘esconder-se’ em casa, provavelmente com algum apoio da família, por vergonha das gestações.”

De porta a porta num campo com 600 mil pessoas

Em maio, após visitar os campos de Cox’s Bazar, o subsecretário-geral das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Andrew Gilmour, alertou para um “inevitável aumento de nascimentos devido ao frenesi de violência sexual em agosto e setembro do ano passado”. Gilmour denunciou também casos de raparigas com 14 anos que sofriam de complicações provocadas por abortos autoinduzidos.

Organizações no terreno reforçaram os seus quadros de pessoal antecipando um “boom” de nascimentos. Foi o caso do Fundo das Nações Unidas para a População, que destacou 60 parteiras adicionais, qualificadas em matéria de agressões sexuais e planeamento familiar. Mas as rohingya não as procuram, preferindo lidar com a sua condição na intimidade possível das tendas.

Em janeiro, a organização Save the Children estimou em 48 mil os nascimentos esperados, este ano, nos campos do Bangladesh — uma média diária de 131 bebés. Confirmá-lo implicava ir porta a porta, tarefa impossível por exemplo numa “cidade”, como é o campo de Kutupalong, onde vivem 600 mil dos 900 mil rohingya alojados em Cox’s Bazar.

“Não sabemos em que medida os bebés que estão a nascer agora foram concebidos num contexto de violência, porque, dada a sensibilidade do assunto, nem todos os casos são relatados, mas também porque nem todos os bebés serão produto de violência”, diz ao Expresso a mexicana Beatriz Ochoa, do escritório da organização Save the Children no Bangladesh. “Dito isto, não quero depreciar a violência sexual que os refugiados viveram. Há meninas e mulheres que passaram pela horrível experiência de serem violadas e ficaram grávidas, e nalguns casos enfrentam agora a estigmatização e os riscos de terem um bebé fora do casamento e como resultado de uma agressão sexual.”

Enfrentar o estigma ou abortar pelas próprias mãos?

Muitas rohingya estão, pois, confrontadas com uma escolha angustiante: lidar com o estigma ou abortar. Jasmeen Zafar Chowdhury, uma médica bengali que trabalha numa maternidade montada pela organização Friendship, diz cautelosamente ao Expresso: “Temos tido casos de parto, mas não podemos correlacioná-los com situações de estupro ou agressão sexual. Em menor número, também recebemos casos complicados, como abortos incompletos”.

Num contexto onde não faltam assuntos difíceis, a começar pelas memórias dos ataques às aldeias, as gravidezes que decorrem da campanha de violações é “um assunto tabu”, refere Ashley Kinseth. Mas a comunidade esforça-se por enfrentá-lo. “Embora o estupro seja, por tradição, algo extremamente estigmatizado, para estes rohingya não há como o negar. As pessoas com quem falei recordam-se de ver as meninas e mulheres das suas aldeias a serem violadas. Embora seja para eles profundamente doloroso lembrá-lo, creio que o estigma não se coloca, antes são vistas como vítimas. Foram muitas as pessoas que testemunharam esses atos. Estigmatizar essas mulheres seria ostracizar uma grande parte da população feminina potencialmente disponível para se casar e gerar filhos.”

O pesadelo destas mulheres não termina no momento em que dão à luz. Para todo o sempre, verão nos rostos não totalmente rohingya dos seus filhos as feições dos seus agressores. Num recado à comunidade internacional, Abdur Rahim, um líder da comunidade rohingya, afirma: “Esses bebés são provas dos crimes” cometidos pelo exército birmanês.

Artigo publicado no Expresso Diário, a 6 de agosto de 2018. Pode ser consultado aqui