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Porque fogem os rohingya?

A minoria muçulmana da antiga Birmânia é das mais perseguidas à face da Terra. Dos cerca de um milhão de rohingya, 700 mil já fugiram do país. Não se via um êxodo humano tão rápido desde o genocídio no Ruanda. 2:59 PARA EXPLICAR O MUNDO

Os rohingya são dos povos mais perseguidos à face da Terra. Em Myanmar, a antiga Birmânia, vivem subjugados por uma repressão generalizada que os torna párias no país que sentem como seu e onde nem o Estado nem a restante população os reconhecem. Apontados a dedo como um povo menor, chamam-lhes pulgas, ogres, são frequentemente alvo de violência organizada por parte das forças do Estado.

Em agosto de 2017, mais de 350 aldeias foram invadidas por homens armados. As propriedades pilhadas, casas queimadas, mulheres violadas e todos quantos tentaram fugir a esse inferno foram alvejados a tiro.

Muitos dos sobreviventes fizeram-se à estrada com a roupa do corpo e procuraram abrigo no Bangladesh. Não se via um êxodo humano tão rápido desde o genocídio do Ruanda, em 1994.

Hoje existem cerca de um milhão de rohingya e 700 mil vivem no Bangladesh, em acampamentos temporários, à mercê da ajuda internacional e expostos a novas crises. Recentemente, soaram dois alertas: as monções, que ameaçam fustigar os campos sobrelotados, e um “boom de bebés, fruto de violações em massa durante a fuga.

Mas porquê tanto ódio aos rohingya? Em primeiro lugar, a geografia. Os rohingya vivem sobretudo na parte ocidental de Myanmar, num estado fisicamente separado do resto do país pela cadeia montanhosa do Arakan Yoma. Ao longo dos tempos esse isolamento levou a menor investimento e originou mais pobreza em comparação com o resto do país.

A religião é outro fator potencial de conflito. Os rohingya são muçulmanos, ao contrário da esmagadora maioria dos birmaneses que é budista. Entre as principais vozes de ódio contra os rohingya está um monge budista a quem chamam “o Bin Laden birmanês.

O problema dos rohingya acentuou-se em 1982 quando uma nova Lei da Cidadania reconheceu 135 grupos étnicos, mas deixou-os de fora. Foi a machadada final numa comunidade sistematicamente privada de direitos básicos, como a possibilidade de trabalhar, aceder à educação, movimentar-se livremente, ser proprietário ou até casar.

Em 2014, no último censo realizado em Myanmar, só foram contabilizados os rohingya que aceitaram registar-se como bengalis. Quem se recusou, pura e simplesmente, não existe.

Ativistas e organizações presentes no terreno alertam para um genocídio em curso. Mas falar do assunto tornou-se incómodo num país onde o ódio à minoria muçulmana parece ser um sentimento nacional e rohingya uma palavra proibida.

Em novembro de 2017, o Papa Francisco visitou Myanmar e foi incapaz de condenar expressamente a violência contra os rohingya.

Do mesmo modo, Aung San Suu Kyi, a Nobel da Paz birmanesa que se tornou um símbolo mundial da luta pela democracia, viu a sua reputação arruinada fora de portas por nunca se ter insurgido contra a repressão de que esta comunidade é vítima.

Politicamente, a Birmânia vive um processo de transição entre uma ditadura militar e uma democracia que ninguém quer perturbar. E que por isso se sobrepõe à dignidade dos rohingya.

Episódio gravado por Pedro Cordeiro.

Artigo publicado no Expresso Online, a 21 de junho de 2018. Pode ser consultado aqui

Myanmar abre as portas às Nações Unidas

Uma delegação do Conselho de Segurança da ONU é esperada, ainda este mês, na antiga Birmânia. Ainda não é certo se será autorizada a visitar o estado onde vivem os rohingya e de onde estão a fugir, alvo de uma campanha de perseguição

Após meses de resistência, Myanmar (antiga Birmânia) aceitou abrir as portas a uma delegação do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não é claro, porém, se as autoridades de Rangum irão permitir que os embaixadores se desloquem ao estado do Arracão, onde vive o que resta da minoria muçulmana, após oito meses de perseguição e repressão militar, que forçou milhares a fugir do país.

O embaixador peruano Gustavo Meza-Cuadra, que preside ao Conselho de Segurança durante o mês de abril, disse, na segunda-feira, que o itinerário da visita ainda não é conhecido. “Evidentemente que estamos interessados em ir ao estado do Arracão. Não há melhor do que uma visita ao terreno para perceber” o que se passa.

No Twitter, a visita foi saudada pela ministra dos Negócios Estrangeiros da Suécia, país que, este ano, também integra o Conselho de Segurança da ONU. Segundo Margot Wallström, a visita acontecerá ainda em abril.

https://twitter.com/margotwallstrom/status/981077890895958016?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E981077890895958016%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fexpresso.pt%2Finternacional%2F2018-04-03-Myanmar-abre-as-portas-as-Nacoes-Unidas

A missão da ONU equaciona também um salto ao outro lado da fronteira para uma visita aos campos de refugiados na região de Cox’s Bazar, no Bangladesh, que desde agosto já acolheram cerca de 700 mil rohingya.

As Nações Unidas têm vindo a denunciar um processo de “limpeza étnica” contra os rohingya, neste país de maioria budista, cenário rejeitado pelas autoridades birmanesas, que dizem apenas responderem a ataques. Algumas organizações internacionais vão mais longe e falam já de uma campanha de genocídio.

Myanmar tem sistematicamente rejeitado apelos internacionais para que viabilize a entrada no território de uma missão de investigação mandatada pelas Nações Unidas para apurar factos. Em dezembro, Rangum deu “luz verde” à visita da relatora especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a sul-coreana Yanghee Lee, tendo depois recuado nessa abertura.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 3 de abril de 2018. Pode ser consultado aqui

Radiografia de um genocídio

Odiados, discriminados e reprimidos, protagonizam o êxodo humano mais rápido e dramático desde o genocídio do Ruanda

Há um genocídio em curso no mundo e — por ignorância, indiferença ou desinteresse — não se vislumbra esforço para o travar. Manifesta-se há décadas, como água a ferver em lume brando. No centro dessa ebulição está o povo rohingya, a minoria muçulmana de Myanmar (antiga Birmânia), que, ano após ano, tem vindo a ser despojada de direitos, dignidade e perspetiva de sobrevivência.

Para as Nações Unidas e a comunidade internacional em geral, a perseguição aos rohingya atingiu contornos de “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de determinada região. Organizações internacionais no terreno vão mais longe, denunciando um processo de “genocídio” — a destruição completa de um grupo.

AS EXECUÇÕES, VIOLAÇÕES E EXPULSÃO DO POVO ROHINGYA SÃO UMA ESTRATÉGIA DE LONGO PRAZO DO ESTADO BIRMANÊS

“Uma campanha brutal de violência, violações em massa e a destruição parcial ou completa de mais de 350 aldeias forçaram 700 mil rohingya a procurar refúgio no Bangladesh desde 25 de agosto de 2017. Foi o êxodo humano mais rápido desde o genocídio do Ruanda”, diz ao Expresso, desde Rangum, a neozelandesa Alicia de la Cour Venning.

Esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, assenta convicções em visitas aos campos de refugiados e nos relatos de sobreviventes do terror orquestrado por forças do Estado birmanês, com a cumplicidade das autoridades de Arracão (estado costeiro também conhecido pelas designações inglesas Rakhine ou Arakan) — de onde têm fugido os rohingya —, monges budistas e ativistas da sociedade civil.

OS ROHINGYA VIVEM NUMA ESPÉCIE DE APARTHEID QUE NÃO LHES PERMITE ESTUDAR, TRABALHAR, CASAR OU VIAJAR

“Temos provas de que este genocídio foi planeado”, diz a investigadora da Iniciativa Internacional para os Crimes de Estado (ISCI, sigla inglesa). “As execuções, violações e a expulsão do povo rohingya foram concebidas como estratégia de longo prazo por parte do Estado birmanês.” Um longo “processo de engenharia social”, por fases, que começou com a estigmatização da comunidade e continuou com o seu enfraquecimento gradual e sistemático visando a sua extinção total.

ESTIGMATIZAÇÃO

Os rohingya enfrentam perseguições há gerações, mas o seu processo de desumanização escalou irreversivelmente a partir de 1982, quando uma nova Lei da Cidadania os excluiu da lista de 135 minorias oficialmente reconhecidas. Passaram a ser “os outros”, bodes expiatórios úteis em contextos de crise. Essa segregação confirmou-se aquando da realização do último censo, em 2014, em que apenas puderam participar os rohingya registados como “bengalis” — entre os birmaneses, são vistos como imigrantes ilegais.

Em Myanmar, “rohingya” é palavra proibida. “Julgo que decorre de rohang, que é a palavra bengali para Arracão”, explica ao Expresso Justin Watkins, professor de língua birmanesa na Universidade de Londres. “Quererá dizer ‘povo do Arracão’, que é uma das razões por que não são aceites pelo Governo.”

Na segunda-feira, o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou-se “chocado” após o general U Min Aung Hlaing, chefe de Estado-maior do Exército birmanês, se ter referido aos rohingya como “bengalis”, sem “características ou cultura em comum com as etnias de Myanmar”. Em 2009, as palavras de outro general teriam merecido condenação mais vigorosa… após comparar a “pele clara e macia” do povo de Myanmar e a tez “castanha escura” dos rohingya, Ye Myint Aung, em missão no consulado birmanês de Hong Kong, descreveu-os como “ogres horríveis”.

ASSÉDIO

Em paralelo com a privação de direitos, os rohingya têm sido alvo de campanhas de intimidação que levam, com frequência, ao acendimento do rastilho da violência. À semelhança das fases iniciais do genocídio no Ruanda, quando se espalhou na rádio o medo e se alimentou o ódio contra os tutsis, chamados “baratas”, “serpentes” e “diabos que comem os órgãos vitais dos hutus”, esse tipo de propaganda teve eco em Myanmar, com órgãos de informação estatais a retratarem os muçulmanos como “pulgas humanas detestáveis”.

Também proeminentes monges budistas contribuíram para essa demonização. “Os muçulmanos são como a carpa africana: reproduzem-se depressa e são muito violentos, comem os da própria espécie”, defendeu Ashin Wirathu. Em 2013 foi capa da revista “Time” com o título: “O rosto do terror budista”.

Do assédio físico e psicológico às políticas públicas discriminatórias, os rohingya foram acumulando frustração e desespero. O surto mais recente de violência rebentou a 25 de agosto de 2017, depois de rohingya armados terem atacado postos da polícia, matando 12 agentes. A retaliação fez-se sentir ao estilo de uma punição coletiva: aldeias inteiras foram queimadas e quem tentou pôr-se a salvo foi alvejado. Em serviço nos campos do Bangladesh, os Médicos Sem Fronteiras denunciaram, em outubro, que metade das violações ocorridas durante a fuga dos rohingya envolvia menores.

ISOLAMENTO

O pesadelo dos rohingya começa, desde logo, na região onde vivem. Encurralado entre o golfo de Bengala e a cadeia montanhosa de Arakan Yoma, o Arracão é dos estados mais pobres de Myanmar. Para os seus 3,2 milhões de habitantes — 2,1 milhões de budistas e mais de um milhão de muçulmanos —, ir à escola ou ao médico é mais difícil do que no resto do país.

Excluídos da sociedade e alvo de violência organizada, os rohingya foram sendo encurralados em “áreas de segurança”, que mais não são do que campos de detenção, “uma espécie de regime de apartheid que não lhes permite estudar, trabalhar, casar, viajar ou professar a sua religião”, explica ao Expresso Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Ali vivem dependentes da ajuda do Programa Alimentar Mundial e dos Médicos Sem Fronteiras.

De tempos a tempos a violência empurra-os na direção da fronteira. Em janeiro de 2017 foi conhecido um plano polémico do Governo do Bangladesh para recolocar dezenas de milhares de rohingya na ilha de Thengar Char, no golfo de Bengala. É que a ilha é inabitável: remota, vulnerável a inundações e um paraíso para piratas.

ENFRAQUECIMENTO

Acantonados em guetos e impedidos de circular livremente, os rohigya vivem em situação de grande fragilidade: sobrelotação, subnutrição, epidemias, falta de cuidados de saúde, violência, tortura e assassínios esporádicos. Fugindo da perseguição e da miséria, em 2015, milhares lançaram-se ao mar de Andamão em caixões flutuantes”, como a ONU designou os barcos. Andaram semanas à deriva, disputando comida e bebendo urina, sem que nenhum país abrisse fronteiras para os acolher. Muitos morreram afogados ou famintos, outros acabaram nas mãos de traficantes.

EXTERMÍNIO

Corresponde à matança final. A ela escaparam, por agora, os rohingya que conseguiram chegar ao Bangladesh mas alimentam o sonho de regressarem à terra que consideram sua. A 23 de novembro passado, os governos do Bangladesh e de Myanmar assinaram um acordo de repatriamento para ser concretizado em dois anos. “A não ser que haja uma mudança real das condições de acolhimento e integração no país, creio que se manterão elevadas as probabilidades de continuação das políticas de perseguição, exclusão e segregação dos rohingya”, diz Nascimento. Com a agravante de que, como na Alemanha nazi ou no Ruanda, a população birmanesa está “virada” contra os rohingya e pouco recetiva a tê-los de volta. Restará às autoridades procurar uma “solução final”.

REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA

A denúncia foi feita este mês pela Amnistia Internacional, que a comprovou com imagens de satélite: no norte do Arracão, onde existiam aldeias rohingya, há agora terrenos arrasados por bulldozers e edifícios em construção. “O Governo está a tentar redesenhar a paisagem social da região, apropriando-se de terras ‘abandonadas’ pelos rohingya, gado e propriedades, estabelecendo novas zonas económicas e destruindo as casas que restam, estruturas religiosas e até vegetação, tornando a paisagem irreconhecível, para impedir o regresso dos rohingya às suas terras de origem”, conclui Venning. “No lugar onde viveu uma próspera comunidade rohingya o Estado está a criar novas infraestruturas militares, residenciais e económicas e a alterar a demografia, transferindo populações budistas do centro para o norte.” Eliminando a memória de como os rohingya um dia ali viveram.

QUANDO A DEMOCRACIA TRAI A OBRIGAÇÃO MORAL

Reconhecer o genocídio obriga a comunidade internacional a intervir. Mas ninguém parece disposto a perturbar a democratização em curso

A “questão dos rohingya” destruiu a reputação de uma Nobel da Paz, silenciou um Papa conhecido por “colocar o dedo na ferida” e expôs o medo da comunidade internacional em relação à palavra genocídio. “O crime de genocídio implica responsabilidades de ação muito específicas por parte dos Estados signatários da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e do próprio Tribunal Penal Internacional, que, na maioria dos casos, aqueles não estão dispostos a assumir”, defende Daniela Nascimento, professora de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra.

Reconhecido um processo de genocídio, os Estados ficariam legal e moralmente obrigados a intervir. A docente recorda que já em 2003 se multiplicaram alertas de genocídio em relação às populações não-árabes da região sudanesa do Darfur e “também nada aconteceu”.

Há, contudo, uma segunda e forte razão que justifica a inação internacional em relação ao drama dos rohingya: o processo de democratização em curso num país que, entre 1962 e 2011, foi governado por uma junta militar. “O argumento de segurança usado pelo Governo birmanês [que nega qualquer envolvimento na repressão aos rohingya e justifica alguma perseguição com a necessidade de responder a “ataques terroristas”] é uma razão muito forte num sistema internacional pautado pela agenda securitária dos Estados, que acabam por se rever nesse argumento, e por parte de um Estado soberano que se encontra num processo de transição política para a democracia, apoiado internacionalmente há várias décadas”, refere a especialista em questões humanitárias e de direitos humanos.

Em outubro de 2016, ainda com Barack Obama na Casa Branca, os Estados Unidos levantaram sanções económicas impostas a Myanmar em 1997, em virtude dos avanços registados ao nível da “promoção da democracia”. Os generais tinham entregue o poder aos civis e o partido de Aung San Suu Kyi, a líder da oposição que passara 15 anos em prisão domiciliária, e com isso ganhara o reconhecimento internacional como lutadora contra a opressão na Birmânia, tinha arrebatado as eleições parlamentares em 2015. O decreto executivo de Obama data de 7 de outubro; dois dias depois, no noroeste de Arracão, começou mais uma vaga de repressão contra os rohingya que provocou cerca de 1000 mortos — e não reverteu a posição norte-americana.

“Tem havido alguma condenação internacional relativamente à ação do Governo birmanês, algumas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas e do Conselho de Direitos Humanos apelando ao fim da violência”, recorda Daniela Nascimento. “Mas a aplicação de medidas ou sanções mais ‘robustas’ tem sido claramente evitada.”

Novo Presidente, a mesma líder

Na quarta-feira, o Parlamento birmanês elegeu um novo Presidente. Win Myint, apoiado pela Liga Nacional para a Democracia, de Aung San Suu Kyi, recebeu 403 votos das duas câmaras, enquanto Myint Swe, apoiado pelos militares, não foi além dos 211. À semelhança do titular anterior, Htin Kyaw, que se demitiu por razões de saúde, o novo Presidente é muito próximo de Suu Kyi, a líder “de facto” do país, constitucionalmente impedida de assumir a presidência por ter filhos com nacionalidade estrangeira (em concreto, britânica).

“Temos de olhar para este processo de democratização com cautela, na medida em que a ‘abertura’ a que se assistiu com a subida de Suu Kyi a Conselheira de Estado [cargo criado para contornar o impedimento legal] não foi acompanhada por uma abertura real no que diz respeito às estruturas de poder e de decisão, que estão ainda muito dependentes e sob controlo das autoridades militares”, alerta a docente de Coimbra.

“A própria Suu Kyi referira, em 2014, que a democratização no país não tinha sido atingida nem era irreversível, pelo que as várias dinâmicas políticas, sociais, económicas e até religiosas e étnicas são muito mais complexas do que parecem, criando desafios extraordinários num país que é, histórica e politicamente, instável”, prossegue Nascimento.

Talvez Suu Kyi quisesse, implicitamente, justificar o seu silêncio em relação aos rohingya. Mas o mundo não lhe perdoa. A 9 de janeiro de 2016, o influente “The New York Times” alertava: “Em breve o mundo testemunhará algo notável: uma Nobel da Paz adorada a presidir a campos de concentração do século XXI”. Nascimento vai mais longe: “A atuação de Aung San Suu Kyi colocou em cima da mesa um cenário impensável: o de uma Nobel da Paz [1991] ser, um dia, indiciada e condenada no Tribunal Penal Internacional.”

(Fotos: Rohingyas acabados de chegar ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigo publicado no Expresso, a 30 de março de 2018 e republicado no “Expresso Online”, a 1 de abril de 2018. Pode ser consultado, parcialmente, aqui

O silêncio do Papa face ao genocídio dos rohingya

Repressão da minoria muçulmana ganha proporções de genocídio mas Francisco não a condenou

O Papa Francisco habituou crentes e não crentes a verbalizar incómodos como nunca antes um seu antecessor tinha feito. Esperava-se, pois, que esta semana, de visita a Myanmar, antiga Birmânia, o líder da Igreja Católica se solidarizasse, de forma explícita, com o drama da minoria muçulmana, como fizera a 27 de agosto, na Praça de São Pedro: “Chegam-nos tristes notícias sobre a perseguição aos nossos irmãos e irmãs rohingya”, disse então. Não aconteceu.

Na terça-feira, num discurso na capital, Naypyidaw, com a Nobel da Paz Aung San Suu Kyi a ouvi-lo, o Sumo Pontífice limitou-se a apelar à reconciliação e ao “respeito por todos os grupos étnicos e identidades”. No país, de maioria budista, o sentimento antimuçulmano é antigo, generalizado e “rohingya”, uma palavra proibida.

Francisco evitou um conflito diplomático com o país que o acolhia, mas saiu moralmente diminuído. “Quem perdeu a dignidade não foram os rohingya, mas antes aqueles que silenciaram o Papa, influenciando-o a não usar a palavra rohingya”, reagiu o ativista birmanês Khin Maung Myint, ao diário “The Guardian”, à margem da missa campal presidida pelo Papa, em Rangum.

Até à matança final

Em setembro passado, as Nações Unidas qualificaram a perseguição aos rohingya como “limpeza étnica” — a expulsão de um grupo de uma região, o que, ao abrigo do direito internacional, não é crime. Acabada de regressar dos campos de  refugiados rohingya no Bangladesh, Alicia de la Cour Venning faz uma avaliação mais severa. Para esta investigadora da Universidade Queen Mary, de Londres, está em curso uma campanha de genocídio — a destruição completa de um grupo —, que caminha a passos largos para a sua etapa final, a da matança em massa.

“O genocídio é um processo que ocorre durante um longo período, às vezes décadas”, diz ao “Expresso” a investigadora. “Começa com a estigmatização de uma comunidade, através de atos discriminatórios, continua com o assédio psicológico e/ou físico, isolando o grupo em campos ou guetos. A comunidade é sistematicamente enfraquecida e os seus membros privados de direitos humanos básicos, como a possibilidade de trabalharem, terem acesso à educação,  movimentarem-se em liberdade, de serem proprietários, de se casarem e — no caso dos rohingya — de terem cidadania. Depois de tudo isto, chega a etapa das matanças em massa.”

Aprender com a História

Foi assim na Alemanha nazi, com os judeus, e no Ruanda (1994), com os tutsis. Na  Birmânia, “a perseguição em curso segue os mesmos padrões de ações previamente reconhecidas como genocídios”, confirma Alicia de la Cour. A visita aos campos insere-se numa investigação que está a ser desenvolvida pela International State Crime Initiative. “Ouvimos relatos de como militares birmaneses, polícias e civis entraram nas aldeias dos rohingya e queimaram casas, pilharam propriedades, violaram mulheres e executaram todos os civis, incluindo mulheres, crianças e idosos, que tentavam fugir.”

Tudo acontece sem que, a nível internacional, haja um esboço de reação em socorro dos rohingya. Em defesa da Birmânia, pelo contrário, China e Rússia garantem o veto a qualquer resolução condenatória no Conselho de Segurança da ONU. E pelo mundo não falta quem abra a porta aos generais de Rangum. Em abril, o chefe das forças armadas birmanesas, Min Aung Hlaing, foi recebido em Berlim e Viena. Pela mesma altura, Israel vendia à Birmânia lanchas de patrulha rápidas e sofisticadas Super-Dvora MK III. “Sanções específicas contra os militares seria um bom começo” para tentar inverter a campanha de genocídio, defende a investigadora.

Pretextos para reprimir

O drama dos rohingya tem epicentro num estado ora designado Rakhine (terminologia birmanesa) ora Arakan, palavra inglesa que deriva da designação… portuguesa: Arracão (ver ao lado). Estende-se ao longo de 560 km da costa oeste, junto ao Golfo de Bengala, e abriga 3,2 milhões de habitantes: 2,1 milhões são budistas e mais de um milhão, muçulmanos. Entre as duas comunidades, a tensão é constante.

A mais recente vaga de violência seguiu-se à morte de 12 agentes das forças de segurança, a 25 de agosto, em ataques contra postos de fronteira levados a cabo pelo Exército de Salvação dos Rohingya do Arracão (Arsa), “um pequeno grupo, mal organizado e mal armado, uma ameaça muito baixa para o governo”, garante Alicia de la Cour. “A razão que leva à formação destes grupos decorre da discriminação constante e da opressão por parte do Estado birmanês. Os grupos pegam em armas como resposta à política criminosa do Governo.”

Os ataques do Arsa dão às autoridades “um pretexto para reprimirem. É o que têm feito, uma punição coletiva contra os civis rohingya”. Desde agosto, mais de 600 mil já se fizeram à estrada, rumo ao Bangladesh e aos campos junto à cidade de Cox Bazar — Hiram Cox (1760-1799) foi um diplomata britânico que se destacou na área da reabilitação de refugiados. Com eles levaram a roupa do corpo e um sonho: “Querem todos regressar”, diz a investigadora. “É a terra deles.”

ROHINGYA NÃO CONTAM

135 grupos étnicos, com direito a solicitarem cidadania birmanesa, foram identificados numa lei de 1982. Os rohingya ficaram de fora

2014 foi o ano do último censo na Birmânia. Os rohingya foram excluídos, a não ser que se registassem como “bengalis”, o que muito poucos fizeram

A LEI DA GEOGRAFIA E A PRESENÇA PORTUGUESA

A palavra rohingya não vem nos dicionários. Mas a geografia ajuda a perceber a sua presença num país abordado por portugueses

Para tentar explicar ao “Expresso” as origens da maldição dos rohingya na Birmânia, Maria Ana Marques Guedes socorre-se de um mapa. “Enquanto reino, o Arracão teve uma independência bastante razoável em relação à Birmânia por razões geográficas. Está separado do resto do território pela cadeia montanhosa Arakan Yoma e está virado para o Golfo de Bengala e para o Bangladesh, que já era muçulmano quando os portugueses lá chegaram, e com quem o Arracão sempre teve mais relações comerciais do que com a Birmânia”, diz esta doutorada pela Universidade Nova de Lisboa, com investigação desenvolvida na Birmânia. “Julgo que os rohingya são descendentes desses muçulmanos. O termo é discutidíssimo por historiadores e linguistas. Não vem sequer nos dicionários.”

Por causa dessa particularidade geográfica, quando o rei Tabinshwehti (1516/50) unificou a Birmânia, o Arracão ficou de fora. Só seria conquistado em 1785, muito depois da abordagem dos portugueses, no século XVI, atraídos pelas riquezas da Birmânia. “Foi o maior exportador de arroz até ao fim da II Guerra Mundial e ainda tem os melhores rubis do mundo”, diz a professora.

Os portugueses, que tentaram conquistar o Arracão e Pegu (a capital), fizeram uma ocupação não oficializada pelo Estado luso da Índia. O mercenário Filipe de Brito Nicote chegou a ter uma fortaleza no Sirião. “No princípio do século XVII, os portugueses chegaram a raptar um príncipe birmanês de seis anos. Educaram-no em Lisboa e tentaram pô-lo no trono de Arracão, para depois verem legitimada a presença portuguesa.”

(Foto: Chegada de membros da etnia rohingya ao campo de refugiados de Balukhali, em Cox’s Bazar, Bangladesh, em novembro de 2017 OLIVIA HEADON / IOM / UN MIGRATION AGENCY)

Artigos publicados no “Expresso”, a 1 de dezembro de 2017. O primeiro artigo foi republicado e adaptado no “Expresso Online”, a 1 de dezembro de 2017. Pode ser consultado aqui

Quando os Nobel da Paz contribuem para a guerra

Aung San Suu Kyi está a ser criticada por não defender a minoria rohingya. Não é caso único entre aqueles que receberam o Nobel da Paz. Nem sempre o percurso dos galardoados corresponde às expectativas e, noutros casos, é o próprio Comité que nunca deu o Nobel da Paz a Mahatma Gandhi, por exemplo a distinguir personalidades implicadas em episódios de violência. Seis casos foram particularmente controversos

Aung San Suu Kyi

De Nobel para Nobel. O líder dos budistas do Tibete, Dalai Lama (Nobel da Paz 1989), apelou na semana passada à líder da oposição na Birmânia, Aung San Suu Kyi (Nobel da Paz 1991), que faça alguma coisa em defesa dos rohingya, a minoria muçulmana que enfrenta uma situação de perseguição naquele país de maioria budista.

“É muito triste. Espero que Aung San Suu Kyi, enquanto Nobel da Paz, possa fazer alguma coisa”, disse o Dalai Lama. “Eu estive com ela duas vezes, em Londres e depois na República Checa. Falei do assunto e ela disse-me que tinha algumas dificuldades, que as coisas eram muito complicadas. Mas apesar disso eu sinto que ela pode fazer alguma coisa.”

Aung San Suu Kyi, que completa 70 anos a 19 de junho, tem sido criticada por não se pronunciar sobre o drama dos rohingya discriminados internamente e rejeitados externamente, como o demonstra os barcos à deriva, cheios de gente desesperada, junto às costas da Tailândia, Indonésia e Malásia, sem que estes países lhe abram portas.

Em declarações ao “Expresso”, Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaka (Japão) especializado em assuntos do Sudeste Asiático, descodifica o silêncio da Nobel da Paz. “O assunto dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi, mas para qualquer político birmanês. Mesmo os ativistas pró-democracia não têm coragem de falar sobre o problema.”

Falar dos rohingya arruína a carreira política

Na Birmânia (país também chamado Myanmar), quer as populações budistas quer as minorias étnicas que vivem no país algumas das quais lutam por autonomia ou autodeterminação olham para os rohingya como estrangeiros (bangladeshianos) e não como cidadãos birmaneses. “Neste aspeto, todos estão de acordo”, comenta o professor Matsuno. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (LND) perderão apoio e verão a popularidade de todo o movimento democrático afetada.”

Em 2012, quando de uma digressão da Nobel birmanesa pela Europa, ela falou publicamente do assunto e logo foi dissuadida por conselheiros a não voltar a fazê-lo. “Para qualquer político na Birmânia, falar dos rohingya significa o fim da sua carreira política”, refere o académico japonês.

A Birmânia tem eleições parlamentares previstas para o final do ano. Estará então em causa a eleição de 75% dos lugares os restantes 25% são nomeados pelo regime. A seguir ao ato eleitoral, um colégio eleitoral designará o chefe de Estado Suu Kyi está impedida de se candidatar aos cargos de presidente ou vice-presidente uma vez que os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos).

Para alterar este preceito constitucional, é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados, uma fasquia difícil de superar dada a lealdade de (pelo menos) 25% dos deputados ao regime liderado pelo ex-general Thein Sein. “Até ao momento, não houve pressão internacional suficiente para que o regime considere rever a Constituição”, comenta o professor da Universidade de Osaka.

Objetivo é sobreviver e ganhar as eleições

“É um erro assumir que Aung San Suu Kyi tem uma ambição pessoal de liderar o país. Mas a sua LND e um ciclo alargado de políticos e ativistas pró-democracia têm de sobreviver e têm de ganhar as próximas eleições. É o objetivo dela neste momento. A LND é totalmente dependente de Aung San Suu Kyi sem qualquer outro político à altura de a substituir. O problema dos rohingya surgiu numa má altura para ela e para o movimento pró-democracia em geral”, defende Akihisa Matsuno.

“A comunidade internacional deveria condenar o Governo da Birmânia, e não Suu Kyi. Também deveria condenar o monge budista radical que instiga a violência (Ashin Wirathu), e não a LND.”

Com a violência anti-rohingya concentrada sobretudo na província de Rakhine, junto à fronteira com o Bangladesh, Akihisa Matsuno acredita que esta comunidade corre o risco de ser totalmente expulsa da província. “Seria uma versão birmanesa de limpeza étnica. Não penso ou não quero pensar que haverá um genocídio, porque tal não poderá acontecer se não for organizado de forma sistemática por determinadas autoridades. Instigar a violência pode contribuir para a morte de dezenas de pessoas, mas sem a intervenção dos militares julgo que não haverá assassínios em massa em grande escala. O regime sabe que seria fatal para si. A comunidade internacional não iria tolerar. Mas o que o regime pode fazer é instigar pessoas comuns para que empurrem os rohingya na direção do mar.”

AUNG SAN SUU KYI NÃO ESTÁ SÓ…

BARACK OBAMA  Com apenas nove meses na Casa Branca, Barack Obama recebeu o Nobel da Paz 2009 para surpresa geral. Aos comentários de que o Nobel era precipitado e tinha motivações políticas sucederam-se críticas à atuação do próprio laureado: a coberto da guerra contra o terrorismo internacional, Obama mandou bombardear no Iraque, Afeganistão, Líbia, Paquistão e Iémen, nestes dois últimos casos com aviões não tripulados (drones)

LIU XIAOBO — Galardoado pela sua luta não violenta em prol dos direitos humanos na China, Liu Xiaobo foi criticado por ter apoiado intervenções militares dos Estados Unidos. “O mundo livre liderado pelos EUA combateu quase todos os regimes que esmagaram os direitos humanos. As grandes guerras em que os EUA se envolveram são todas eticamente defensáveis”, escreveu em 1996, num artigo intitulado “Lições da Guerra Fria”. Viu-lhe ser atribuído o Nobel da Paz de 2010, mas Pequim impediu-o de ir recebe-lo. E para protestar contra esse reconhecimento, instituiu o Prémio Confúcio da Paz, atribuído na mesma altura do Nobel

HENRY KISSINGER — Mais de 40 anos depois do fim da guerra do Vietname, muitos continuam a pedir a prisão do então secretário de Estado norte-americano, pelo seu papel no conflito. Kissinger recebeu o Nobel da Paz em 1973, juntamente com o líder vietnamita Le Duc Tho, o qual declinou o prémio dizendo que os Acordos de Paz de Paris não estavam a ser aplicados na sua plenitude. O Nobel a Kissinger é considerado o mais controverso de sempre

YASSER ARAFAT — Em 1994, o Comité Nobel reconheceu os protagonistas da paz celebrada no Médio Oriente e premiou o líder palestiniano Yasser Arafat e os israelitas Yitzhak Rabin e Shimon Peres. Os críticos de Arafat recordaram então o passado violento da Organização de Libertação da Palestina, que liderava, nomeadamente o período na década de 70 que ficou conhecido como “Setembro Negro”. Kare Kristiansen, membro do Comité Nobel, demitiu-se do cargo em protesto contra a escolha. A Arafat chamou “o terrorista mais proeminente do mundo”

ANWAR SADAT & MENACHEM BEGIN — O Nobel da Paz de 1978 foi entregue ao Presidente egípcio Anwar Sadat e ao primeiro-ministro israelita Menachem Begin. Através do Acordo de Camp David, ambos celebraram a paz entre os respetivos países, que dura até hoje. Mas no passado, os dois tinham-se destacado na guerra contra o colonizador britânico. Em 2006, um livro do jornalista alemão Henning Sietz defendeu que Begin participou, em 1952, numa tentativa de assassínio contra o chanceler alemão Konrad Adenauer

HULL CORDELL — Hull Cordell recebeu o Nobel da Paz em 1945 pelo seu contributo para a criação da Organização das Nações Unidas. Cordell tinha sido secretário de Estado do Presidente Franklin D. Roosevelt e protagonista da polémica à volta do St. Louis, uma embarcação que transportava cerca de 950 judeus, em fuga aos horrores do regime nazi, e que em 1939 se acercou do Estreito da Florida para atracar nos EUA. Cordell defendeu junto de Roosevelt a recusa da entrada, posição que prevaleceu, e o St. Louis viu-se forçado a regressar à Europa: um quarto dos seus passageiros morreu nas câmaras de gás

Artigo publicado no Expresso Online, a 1 de junho de 2015. Pode ser consultado aqui e aqui