Aung San Suu Kyi tem sido criticada por não falar dos rohingya, mas neste país fazê-lo pode custar uma carreira política
Selo norueguês dedicado a Aung San Suu Kyi, Nobel da Paz 1991
Treze anos após ter recebido o Prémio Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi é cada vez mais contestada por reagir ao drama dos rohingya… com silêncio. “A questão dos rohingya é difícil não só para Aung San Suu Kyi mas para todos os políticos birmaneses. Nenhum líder político, incluindo os ativistas pró-democracia, tem coragem suficiente para falar do problema”, explicou ao Expresso Akihisa Matsuno, professor na Universidade de Osaca (Japão), perito em assuntos do Sudeste Asiático. “Os birmaneses budistas mas também minorias étnicas que têm lutado pela autonomia ou pela autodeterminação não olham para os rohingya como compatriotas, mas como estrangeiros (bangladeshianos). Nisso estão todos de acordo.”
Desafiar essa retórica tão profundamente enraizada na sociedade trará inevitavelmente consequências. “Se Aung San Suu Kyi falar dos rohingya, ela e a sua Liga Nacional para a Democracia (o principal partido da oposição) perderão apoio interno, o que afetará a popularidade de todo o movimento democrático”, refere Matsuno. “Para os políticos birmaneses, falar dos rohingya significa o fim das suas carreiras políticas.”
Em novembro, a Birmânia realizará eleições parlamentares. Depois, um colégio eleitoral escolherá o próximo chefe de Estado. Suu Kyi, que fará 70 anos a 19 de junho, está impedida de se candidatar a Presidente ou vice-presidente — os seus filhos não têm nacionalidade birmanesa (são britânicos). Para alterar essa cláusula na Constituição é necessário o apoio de mais de 75% dos deputados — 25% dos parlamentares são nomeados pelos militares no poder.
“Não posso provar que o regime esteja a incitar à violência em Rakhine, mas intencionalmente não toma medidas contra a escalada. Deixa que aconteça e explora o sentimento popular de que, quem apoia os ‘estrangeiros’ não tem patriotismo para liderar o país”, explica Matsuno. “O regime pode ter a secreta esperança de que Aung San Suu Kyi mencione os rohingya num deslize. É sabido que o regime tem um histórico de tentativas de descrédito de Suu Kyi com o trunfo nacionalista. É muito provável que, neste caso, espere ter o mesmo efeito.”
Artigo publicado no “Expresso”, a 30 de maio de 2015
O Presidente birmanês recebeu um prémio de paz, a UE levantou sanções, mas falta conter a violência contra a minoria islâmica
Prémio “In Pursuit of Peace” atribuído, em 2013, a Thein Sein pelo International Crisis Group DR
Até há três anos, a antiga Birmânia era um Estado-pária. Hoje, diz, ter em curso um processo democrático exemplar. Esta semana, em Nova Iorque, o International Crisis Group atribuiu ao Presidente Thein Sein o prémio “Em Busca da Paz”. “Myanmar (nome dado ao país pela Junta Militar que governou até 2011) iniciou um conjunto notável e sem precedentes de reformas desde que Thein Sein assumiu funções em março de 2011”, justificou Thomas R. Pickering, presidente da organização. “Pela primeira vez em 50 anos, todos, exceto um dos grupos étnicos armados, assinaram tréguas e espera-se um acordo com os kachin para breve.”
Para acentuar a reabilitação birmanesa, no mesmo dia (segunda-feira), a União Europeia levantou as últimas sanções comerciais, económicas e individuais, com exceção do embargo de armas. “É tempo de acabar com as sanções”, comentou a líder da oposição e Nobel da Paz Aung San Suu Kyi. “Não quero depender para sempre de fatores externos para alcançar a reconciliação nacional.”
Adeus à barragem
Vários factos contribuem para que se fale numa ‘primavera birmanesa’: a líder da oposição saiu de prisão domiciliária, houve eleições, foram libertados mais de 6000 presos políticos, há mais vistos para visitar o país, as regras da censura foram revistas e debates no Parlamento são transmitidos na televisão. Em jeito de reconhecimento, em novembro de 2012, Barack Obama tornou-se o primeiro Presidente dos EUA a visitar este país, estrategicamente situada entre a Índia e a China.
Também a relação com os vizinhos está a mudar. A 30 de setembro de 2011, o Presidente Thein Sein suspendeu a construção da gigantesca barragem Myitsone, em parceria com a China. A decisão foi aplaudida pelos ambientalistas — dada a extensão de área a inundar — e mostrou que Rangum já não é ‘um pau mandado’ de Pequim.
A afirmação birmanesa não se faz, porém, sem condenações. Segunda-feira, a Human Rights Watch divulgou um relatório, implicando as autoridades de Rangum em “crimes contra a humanidade e limpeza étnica de muçulmanos rohingya”. A violência ocorreu em junho e outubro de 2012, no Estado de Arakan (200 mortos e 125 mil deslocados).
Os agressores mais ativos na perseguição aos rohingya são membros de um partido nacionalista e monges budistas. No YouTube, os vídeos de Saydaw Wirathu — um monge fanático de 45 anos que se intitula “Bin Laden birmanês” — são um sucesso. Incita ao ódio anti-islâmico e à criação de um Estado de apartheid (campanha 969). “É muito triste”, condenou o Dalai Lama, líder espiritual tibetano. “Buda ensina perdão, tolerância e compaixão.”
Na Birmânia vivem 800 mil rohingya, sem direito a cidadania e tratados como imigrantes ilegais do Bangladesh. No ano passado, o Presidente birmanês sugeriu o seu envio “para outro país”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 27 de abril de 2013
Aung San Suu Kyi está disposta a participar nas eleições de abril. Já se fala numa ‘primavera birmanesa’
Aung San Suu Kyi, a 22 de março de 2012, numa ação de campanha para as eleições de abril, em Kawhmu HTOO TAY ZAR / WIKIMEDIA COMMONS
A Dama de Rangum está de volta ao combate político. Vinte e dois anos após ter vencido as eleições legislativas em Myanmar — e de ter sido impedida de governar pela junta militar —, a Prémio Nobel da Paz apresentou, na quarta-feira, na comissão eleitoral birmanesa, uma lista de candidatos da sua Liga Nacional para a Democracia às eleições parciais de 1 de abril.
Em causa estarão apenas 48 dos 440 lugares da câmara baixa do Parlamento, deixados vagos por personalidades que entraram para o Governo. Suu Kyi será candidata pelo círculo de Kawhmu, uma zona pobre a sul de Rangum devastada, em 2008, pelo ciclone Nargis.
Ainda que o seu partido arrebate os 48 lugares, ficará com um poder reduzido num hemiciclo dominado ainda por militares e seus aliados. Mas só o facto de Suu Kyi ganharum palco para se fazer ouvir, no coração do poder, é uma conquista histórica. Recorde-se que a Nobel da Paz 1991, de 66 anos, passou 15 dos últimos 21 anos de vida numa “prisão” situada no número 54 da Avenida da Universidade, em Rangum — a sua própria residência.
O anúncio do regresso de Suu Kyi à política segue-se à libertação, fez ontem uma semana, de 650 prisioneiros políticos, entre os quais vários ativistas pró-democracia — entre os quais Min Ko Naing, o líder do movimento estudantil Geração 88 —, monges budistas que participaram na chamada ‘revolução de açafrão’ de 2007 e generais, agentes dos serviços secretos e um ex-primeiro-ministro, detidos na sequência de uma luta pelo poder, em 2004.
“Com a libertação de vários presos políticos proeminentes, a esperança está a substituir a dúvida em relação a um Myanmar mais livre e melhor. A libertação dos presos políticos injetou uma energia nova e impulsionou o espírito de reconciliação no país”, comentou, em editorial, o jornal “The Irrawaddy”, fundado em 1992 por birmaneses exilados na Tailândia.
O dedo do novo Presidente
Em entrevista publicada, na segunda-feira, no jornal francês “Libération”, Aung San Suu Kyi interpretou as razões destas mudanças. “Têm muito que ver com o Presidente Thein Sein e os outros reformadores no Governo, que se aperceberam da necessidade da mudança na Birmânia” (ver outras citações no fim do texto).
Desde março que o país tem um novo Executivo que cedo deu sinais de abertura. Paralelamente ao diálogo com Aung San Suu Kyi e à libertação de presos políticos, as novas autoridades assinaram um cessar-fogo com os rebeldes de etnia karen. Na quinta-feira, iniciaram conversações com os insurgentes da etnia kachin. Oficialmente, estão registadas no país 135 etnias.
Os EUA deixaram cair o rótulo de “pária” e anunciaram o envio de um embaixador para Myanmar — o que não acontecia há 20 anos. Há quem já fale numa ‘primavera birmanesa’, mas Suu Kyi é cautelosa: “Não estamos fora de perigo. Precisamos de mudanças suplementares. Não usarei a palavra ‘irreversível’, porque nada é irreversível”.
Citações de Aung San Suu Kyi
Concordo com a ideia de que as sanções devem ser levantadas passo a passo, seguindo de perto os progressos realizados
Faremos campanha pela resolução dos problemas com as etnias nacionais (…) e para que o maior número de pessoas saia da pobreza. Propomos projetos de microcrédito
NOS CINEMAS
“The Lady — Um Coração Dividido” revela o dilema de Aung San Suu Kyi entre viver com a família no Reino Unido e ir para Myanmar lutar pela democracia. O filme é realizado pelo francês Luc Besson. A atriz malaia Michelle Yeoh é Suu Kyi.
Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de janeiro de 2012
Aclamada pelo povo da Birmânia, temida pelos ditadores que governam o país, admirada por todo o mundo — Aung San Suu Kyi está novamente em liberdade, após sete anos em prisão domiciliária. Impõe-se perceber o que simboliza hoje a Dama de Rangum: Terá ela a capacidade e as condições de Nelson Mandela para promover a reconciliação nacional? Ou será mais — à semelhança da paquistanesa Benazir Bhutto — uma filha do destino com a cabeça a prémio, como aconteceu com o pai, herói da independência birmanesa assassinado em 1947?
“Enquanto prisioneiros, Suu Kyi e Mandela têm semelhanças. Mas o enquadramento político é totalmente diferente. O Congresso Nacional Africano (ANC), de Mandela, e a Liga Nacional para a Democracia, de Suu Kyi, são partidos com abordagens diferentes. Quando foi libertada, ela disse que acreditava na abordagem não-violenta para alcançar uma reconciliação nacional. O ANC agiu de forma diferente”, comentou ao Expresso Kyaw Zwa Moe, editor do jornal “The Irrawaddy”, que cobre a atualidade noticiosa birmanesa a partir da Tailândia.
Quando a líder da oposição pró-democracia se assomou à multidão, há uma semana, aproveitou para levantar o véu sobre os seus planos futuros: “Vou trabalhar para a reconciliação nacional. Estou preparada para conversar com qualquer pessoa. Não guardo ressentimentos pessoais em relação a ninguém”.
O jornalista birmanês não acredita, porém, num encontro — cara a cara e a breve prazo —, entre a Nobel da Paz, de 65 anos, e a principal figura do regime, o general Than Shwe de 77 anos. “Ela vai tentar, mas não me parece que isso venha a acontecer. Os generais não querem falar com ninguém do movimento pró-democracia.”
Aung San Suu Kyi e o regime dos generais parecem empenhados numa espécie de jogo do gato e do rato
A libertação de Suu Kyi aconteceu escassos seis dias após as eleições gerais — as primeiras dos últimos 20 anos. Kyaw Zwa Moe não vê qualquer simbolismo na quase sobreposição dos dois acontecimentos. “A detenção de Suu Kyi expirou a 13 de novembro. Eles não tinham qualquer outra desculpa para mantê-la detida.”
Há quem defenda que, ao ser libertada, a líder da oposição foi colocada numa “prisão” maior do que aquela em que se encontrava anteriormente — por força do contexto político adverso que veio encontrar: o partido apoiado pela junta militar (Partido da Solidariedade e do Desenvolvimento da União) reclama uns improváveis 80% dos votos, nas eleições de 7 de novembro.
“Politicamente, os generais sentem-se muito seguros. Têm tudo o que precisam para continuar a governar. Não a libertaram num gesto de boa vontade”, continua o jornalista.
“Eu não tenho medo”, diz a Nobel da Paz. “Não deixo de fazer isto ou de dizer aquilo com medo que me prendam novamente. Nem me passa pela cabeça. Mas sei que há sempre a possibilidade de voltar a ser presa.”
Aung San Suu Kyi e o regime dos generais parecem constantemente empenhados numa espécie de jogo do gato e do rato. “É bem possível que ela volte a ser presa. As pessoas reagiram à sua libertação de uma forma que não tinham reagido no dia das eleições. É possível que os militares comecem a sentir algum tipo de ameaça…”
Suu Kyi — que passou 15 dos últimos 21 anos em prisão domiciliária — diz que quer escutar as aspirações do povo. Por isso, é pouco provável que se mantenha calada. Sem segurança especial, é um alvo vulnerável, quer para ser presa, quer alvejada. “Altos responsáveis do partido dela estão muito preocupados”, diz Kyaw Zwa Moe. “Dizem que ela pode ser assassinada, como Benazir Bhutto. É provável que isso aconteça se Aung San Suu Kyi forçar a situação.”
SEIS BATALHAS A TRAVAR
Diálogo com a Junta Aung San Suu Kyi quer encetar um diálogo político com os militares que leve à reconciliação nacional. A Junta está, desde 2003, empenhada na aplicação do Roteiro para a Democracia composto por sete etapas — as eleições foram a quinta.
Libertação de presos Cerca de 2200 birmaneses são presos políticos. Quando foi libertada, Suu Kyi evocou-os dizendo estarem eles, em prisões de todo o país, numa situação bem pior do que ela. Presa em casa, ao ver a BBC, mantinha-se informada e nunca se sentia só.
Divisões políticas Nas últimas eleições, as forças democráticas dividiram-se em dois campos: a Liga Nacional para a Democracia, de Suu Kyi, boicotou; a Força Nacional Democrática (dissidente da LND) contestou. Tida como líder da oposição, Suu Kyi tem de reconciliar as partes.
Unidade étnica A Nobel da Paz demonstrou vontade de promover a segunda Conferência de Panglong — a primeira realizou-se em 1947, antes da independência e foi liderada pelo seu pai — para restaurar a unidade entre os diferentes grupos étnicos birmaneses. Não é certo que o regime autorize o evento.
Constituição de 2008 Pilar do Roteiro para a Democracia da Junta, a Constituição de 2008 é rejeitada pelo partido de Suu Kyi, que a considera antidemocrática. As eleições de 7 de novembro decorrem da nova Lei Fundamental.
Fraude eleitoral A vitória esmagadora do Partido da União para a Solidariedade e Desenvolvimento, apoiado pelos militares — que reclama 80% dos lugares do Parlamento —, lançou suspeitas de fraude sobre o sufrágio de 7 de novembro, realizado longe dos olhares de jornalistas e de observadores internacionais. Irá a Dama de Rangum reclamar?
Artigo publicado no “Expresso”, a 20 de novembro de 2010
Aung San Suu Kyi estava a escassas duas semanas de cumprir os seis anos de prisão domiciliária a que fora condenada pela Junta Militar. A entrada ilegal do norte-americano John Yettaw na sua propriedade originou, na terça-feira, a extensão da pena em 18 meses. A líder da oposição está, assim, impedida de participar nas eleições previstas para 2010. “Yettaw queria ajudar Suu Kyi, mas, na verdade, ajudou a Junta”, afirmou ao Expresso Aung Zaw, editor da revista “The Irrawaddy”, feita por birmaneses no exílio. Membro da Geração 88, o movimento estudantil que, já em 1988, desafiou o regime como nunca antes, diz que “se não fosse o caso Yettaw, um outro qualquer teria sido fabricado para justificar a sua prisão”. Baptizada de Myanmar pelos generais, a antiga Birmânia permanece um enigma.
O VAGABUNDO
John Yettaw, aparentemente, só queria ajudar Aung San Suu Kyi, mas acabou por se tornar o homem mais odiado pelos seus apoiantes. Nascido em Detroit, em 1955, este veterano da guerra do Vietname vivia tomado por fantasmas do passado: stresse pós-traumático, instabilidade familiar — casou quatro vezes —, asma e a angústia decorrente da morte de um filho de 17 anos, num acidente de moto, que lhe fora oferecida pelo pai. Em Maio de 2008, este mormon partiu para a Ásia, para desenvolver pesquisas sobre o perdão e a resiliência, com vista à escrita de um livro. Em Novembro, tentou, pela primeira vez, abordar Suu Kyi. No início deste ano, confidenciou a familiares sentir-se escolhido por Deus para proteger a vida de um “querido líder estrangeiro”. Imbuído nesse espírito missionário, a 3 de Maio, lançou-se ao lago Inya, nadando dois quilómetros até à casa de Suu Kyi. Exausto e com cãibras, passou duas noites à porta da casa, ignorando o pedido de Suu Kyi e das duas criadas para que se afastasse. No percurso de regresso, foi “pescado” pela polícia. Acusado de invasão de zona restrita, foi condenado a sete anos de prisão — quatro de trabalhos forçados. “Nos últimos anos, temos visto várias pessoas como ele a colaborar com o movimento pró-democracia”, diz Aung Zaw. Em 1999, os britânicos Rachel Goldwyn e James Mawdsley tornaram-se famosos. Ela foi detida após cantar temas apelando à democracia e ele por distribuir panfletos contra o Governo. “São loucos e estúpidos. Provocam danos irreparáveis ao movimento. Temo que alguns sejam interesseiros. Querem fama, escrever um livro e visibilidade nos seus países”. Foi assim com James Mawdsley: já escreveu dois livros e candidatou-se a deputado pelos conservadores.
A DAMA
Aung San Suu Kyi estava prestes a ver a luz do dia. A sentença da Junta condenando-a a seis anos de prisão domiciliária cumpria-se a 26 de Maio. Eis senão quando John Yettaw lhe bateu à porta, dando um pretexto oportuno aos militares para continuarem a trancá-la em casa. “Se não fosse o caso Yettaw, um outro qualquer teria sido fabricado para justificar a sua detenção. Foi um golpe político”, diz Aung Zaw. Nos últimos 20 anos, a “Dama de Rangum” — como lhe chamam — viveu 14 em regime de prisão domiciliária. Nascida em 1945 e filha de Aung San — que negociou, com os britânicos, a independência da Birmânia, sendo assassinado em 1947 —, ela emergiu como uma voz contestatária ao regime no âmbito da histórica rebelião estudantil 8888, que começou a 8 de Agosto de 1988 e que culminaria numa repressão policial sangrenta. A 15 de Agosto, numa carta aberta ao Governo, Suu Kyi fez a primeira intervenção política, pedindo a realização de eleições multipartidárias. A primeira prisão domiciliária chegaria quase em Julho de 1989, mas já não foi a tempo de impedir que o seu partido ganhasse as eleições, no ano seguinte. A comunidade internacional solidarizou-se com ela e foram-lhe atribuídos três galardões de vulto em matéria de direitos humanos: os Prémios Rafto e Sakharov em 1990 e o Nobel da Paz em 1991. Budista convicta, Aung San Suu Kyi defende a resistência não-violenta. Essa áurea pacifista combinada com a sua frágil aparência têm-lhe granjeado uma forte simpatia internacional. “Qualquer pessoa rapidamente se apaixona por ela”, diz Aung Zaw. “Ela é uma senhora pequena, mas ‘de ferro’. É muito bonita e magnética: atrai milhares de admiradores, birmaneses e estrangeiros. E pessoas como Yettaw”.
O VILÃO
Than Shwe, o general que preside à Junta desde 1992, tornou-se, por estes dias, alvo de chacota em Myanmar. Momentos após um juiz ter condenado Aung San Suu Kyi a três anos de prisão e trabalhos forçados, o ministro do Interior irrompeu na sala de audiências e anunciou a comutação da pena, decidida por Than Shwe, para ano e meio de detenção domiciliária. Afinal, tratava-se da filha de um herói da independência e havia que “assegurar a paz e a tranquilidade”… Sobrepondo-se à justiça dos tribunais, o general reafirma os seus intentos — impedir a participação de Suu Kyi nas eleições previstas para 2010. Nas últimas eleições que se realizaram no país, em 1990, a Liga Nacional para a Democracia, de Suu Kyi, ganhou com 59% dos votos. Os militares não reconheceram o resultado e não deixaram que ela tomasse posse como primeira-ministra. “Eles são muito espertos, manipuladores e repressivos. Não sairão do poder facilmente. São muito corruptos. Não querem reformar a economia para não partilharem o seu quinhão”, diz Aung Zaw. Também não é segredo que os generais depositam uma confiança cega na astrologia, no ocultismo, na numerologia e no yadaya, uma forma birmanesa de vudu. As datas importantes e os valores monetários não são estipulados sem o parecer dos astrólogos. Em 1989, os generais mudaram o nome do país para Myanmar. Em 2005, transferiram a capital de Rangum para Naypyidaw, construída no interior. A extravagância acentuou o isolamento do regime em relação ao mundo e ao povo. Isso foi evidente quando da passagem do ciclone “Nargis”, em 2008. Protegidos na capital, os generais retardaram a entrada da ajuda humanitária vinda do exterior. Morreram 146 mil pessoas.
O Governo da China não se poupa na cobertura diplomática a Myanmar, quase que dando razão a quem se refere ao país como “a 24ª província da China”. Enquanto membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, a China tem vetado condenações maiores ao regime militar. Em contrapartida, faz dinheiro com a venda de armas aos generais e tem um acesso privilegiado aos recursos naturais e ao mercado de Myanmar. Só em 2007, o comércio entre os dois países aumentou 40%. Inversamente, a União Europeia aprovou, na quinta-feira, um novo pacote de sanções. A UE puniu Myanmar, pela primeira vez, em 1990, na sequência da repressão à rebelião 8888. As sanções começaram por um embargo à exportação de armas e foram-se estendendo a outros domínios. Presentemente, há cerca de 500 dirigentes políticos, ou respectivas viúvas, com restrições de circulação e 1207 empresas de madeiras exóticas e pedras preciosas proibidas de exportar para a UE. Mas, apesar da unanimidade dos 27, as sanções a Myanmar têm alguns limites… A França, por exemplo, sempre bateu o pé à inclusão da Total no pacote de empresas a punir. A petrolífera francesa é um forte investidor no campo de Yadana… “Ninguém quer as sanções”, diz Aung Zaw. “Queremos ter prosperidade económica. Mas as sanções são aprovadas devido à natureza deste governo. Temos 2100 prisioneiros políticos e, nas regiões das minorias, registam-se violações aos direitos humanos. Paralelamente às sanções, deverá haver um maior envolvimento diplomático”, conclui. À semelhança de muitos outros dissidentes birmaneses, Aung Zaw vive e trabalha na Tailândia. Ironicamente, é lá também — e não na China — que os generais têm segundas casas.
REACÇÕES À CONDENAÇÃO DE AUNG SAN SUU KYI
Barack Obama, Presidente dos Estados Unidos: “Esta decisão injusta recorda os milhares de presos políticos na Birmânia a quem foi negada liberdade por desejarem um governo que respeite direitos e aspirações”
Gordon Brown, primeiro-ministro britânico: “É uma sentença puramente política que visa impedi-la de participar nas eleições planeadas pelo regime para o próximo ano”
Presidência da França: “O Presidente exige que a União Europeia adopte novas sanções contra o regime birmanês, que deverão visar os recursos de que lucra, nas áreas da exploração da madeira e dos rubis”
Luís Amado, ministro português dos Negócios Estrangeiros: “Dada a natureza do regime, nada nos fazia esperar outra decisão”
Jiang Yu, ministro dos Negócios Estrangeiros da China: “Relativamente a esse caso doméstico, a comunidade internacional deveria respeitar totalmente a soberania judicial de Myanmar”
CRONOLOGIA
1945 — A 19 de Junho, em Rangum, nasce Aung San Suu Kyi
1948 — A Birmânia torna-se independente do Reino Unido
1962 — Um golpe militar depõe o governo do nacionalista U Nu
1988 — Em Agosto, protestos estudantis contra a opressão política contagiam o país. A repressão policial provocou 3000 mortos. Uma Junta passa a governar o país. A lei marcial é imposta, dias antes da criação da Liga Nacional para a Democracia (LND). Suu Kyi é secretária-geral
1989 — A Junta declara a lei marcial e muda o nome do país para Myanmar. Aung San Suu Kyi é detida por “ameaça ao Estado”
1990 — A LND vence as eleições de 27 de Maio, com 59%. A Junta impede Suu Kyi de tomar posse como primeira-ministra
1991 — Aung San Suu Kyi ganha o Prémio Nobel da Paz
1992 — O general Than Shwe torna-se o líder da Junta militar
1995 — Aung San Suu Kyi é libertada da prisão domiciliária
2000 — A Prémio Nobel volta a ser colocada em prisão domiciliária, por violar a proibição de viajar
2002 — Aung San Suu Kyi é libertada
2003 — Apoiantes de Suu Kyi são atacados. Suu é posta em “custódia protectora”
2006 — O Governo transfere a capital desde Rangum para Naypyidaw, uma cidade construída de raiz
2007 — Em Agosto, o encarecimento dos combustíveis origina as maiores manifestações desde 1988. Os monges budistas associam-se — Revolução de Açafrão. Os protestos adoptam slogans pró-democracia. Suu Kyi é vista à porta de casa, pela primeira vez desde 2003. A polícia reprime com violência
2008 — Em Maio, o ciclone “Nargis” provoca inundações no delta do Irrawaddy. Morrem 146 mil pessoas. A Junta estende a prisão domiciliária de Suu Kyi
2009 — A LND diz que participará nas eleições de 2010, se a Junta libertar os presos políticos, mudar a Constituição e permitir
Artigo publicado no “Expresso”, a 15 de agosto de 2009
Jornalista de Internacional no "Expresso". A cada artigo que escrevo, passo a olhar para o mundo de forma diferente. Acho que é isso que me apaixona no jornalismo.