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Junta Militar afasta Suu Kyi das eleições de 2010

Com a extensão da prisão domiciliária de Aung San Suu Kyi em ano e meio, a líder da oposição em Myanmar deixa de poder participar nas eleições do próximo ano

Nascida a 19 de Junho de 1945, em Rangum, Aung San Suu Kyi passou 14 dos últimos 20 anos de vida em prisão domiciliária. Filha de Aung San, um negociador da independência da Birmânia face ao Reino Unido, em 1947, que, nesse mesmo ano, foi assassinado por facções rivais, Suu Kyi cedo se envolveu na política, à frente da Liga Nacional para a Democracia (LND), o principal movimento de oposição à Junta Militar no poder.

Há precisamente 20 anos, foi colocada em prisão domiciliária pela primeira vez, o que não inviabilizou que, no ano seguinte, a 27 de Maio de 1990, a LND vencesse as eleições legislativas com clareza. O regime militar não reconheceu os resultados e impediu Suu Kyi de assumir o cargo de primeira-ministra.

Com a extensão da prisão domiciliária em mais 18 meses — decretada hoje de manhã por um tribunal especial de Rangum —, Aung San Suu Kyi vê-se assim impedida de ser uma voz activa nas eleições agendadas para 2010. Sem autorização da Junta, ninguém terá acesso à líder da oposição.

Na origem da pena suplementar de detenção domiciliária está John Yettaw, um norte-americano de 53 anos que atravessou a nado o lago adjacente à casa de Suu Kyi, pernoitando duas noites na propriedade. De confissão mormon, Yettaw dizia-se enviado por Deus para avisar Suu Kyi de que seria assassinada. Foi condenado a sete anos de prisão, quatro dos quais de trabalhos forçados.

Num primeiro momento, o tribunal condenou a Prémio Nobel da Paz 1991 a três anos de prisão, por violação das condições de prisão domiciliária. Após uma interrupção de cinco minutos da audiência, o ministro do Interior entrou na sala e leu um decreto do líder da Junta Militar, o general Than Shwe, que reduzia a pena para metade, possibilitando o seu cumprimento em regime de detenção domiciliária.

A medida foi justificada com o desejo de “assegurar a paz e a tranquilidade” e também porque Suu Kyi é filha de um dos heróis da independência da Birmânia e do fim da colonização britânica.

No poder desde 1962, a Junta Militar continua firme na sua intenção de anular toda e qualquer dissidência em Myanmar — assim rebaptizado o país em 1989. Aung San Suu Kyi é o rosto mais visível dessa contestação, mas estima-se que haja cerca de 2100 prisioneiros políticos nas prisões de Myanmar.

Nas reacções internacionais que se seguiram à prisão da “Dama de Rangum”, como Suu Kyi é conhecida, multiplicam-se os apelos à aprovação de mais sanções contra o regime.

A 27 de Abril passado, a União Europeia prolongou por um ano as sanções em vigor desde 2006. As sanções incluem um embargo às armas e material que possa ser usado em operações de repressão, a proibição de entrada no território da UE e o congelamento de bens de membros da Junta.

Na sequência da repressão, em 2007, das manifestações dos monges budistas — Aung San Suu Kyi é uma budista convicta, defensora da não-violência —, os 27 tinham incluído no lote de sanções a proibição da comercialização de madeiras, metais, minerais e pedras preciosas.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 11 de agosto de 2009. Pode ser consultado aqui

Ajuda não chega a 80% dos sobreviventes

Três semanas após o ciclone Nargis, as carências persistem. Amanhã, doadores e Junta Militar vão conversar

Chuva e ventos fortes à passagem do ciclone Nargis por Myanmar, a 3 de maio de 2008 MOHD NOR AZMIL ABDUL RAHMAN / WIKIMEDIA COMMONS)

Ban Ki-moon está desde quinta-feira em Rangum, onde amanhã uma conferência internacional organizada pelas Nações Unidas e pela Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) tentará angariar meios para aliviar o impacto devastador do ciclone Nargis.

A Junta Militar pede 11 mil milhões de dólares de ajuda à reconstrução. Mas na véspera da reunião, a expectativa não está em saber se a soma será conseguida mas antes em perceber de que forma se irão compatibilizar duas sensibilidades: por um lado, os doadores internacionais, particularmente os países ocidentais, insistem na transparência das operações de assistência aos 2,5 milhões de birmaneses carenciados; por outro, a Junta Militar que governa a Birmânia está empenhada em manter os funcionários ocidentais à distância, apenas confiando na ajuda proveniente dos países vizinhos — na quarta-feira, o regime recusou uma proposta da Administração norte-americana de transporte de ajuda em navios.

“Conseguimos convencer as autoridades acerca da necessidade de termos pessoal especializado em certas regiões e, esta semana, obtivemos permissão para quatro expatriados irem até à região do Delta”, afirmou ao Expresso Hugues Robert, chefe da unidade de emergência dos Médicos Sem Fronteiras (MSF).

No terreno desde as primeiras horas da tragédia, os MSF constatam, por experiência própria, o que a ONU denunciou esta semana: apenas 20% dos sobreviventes do ciclone Nargis receberam ajuda. “Começamos a dar assistência a umas populações fora da zona de Bogaliy, junto a pequenos rios, que ainda não tinham recebido qualquer ajuda”, diz Hugues Robert. “Fomos os primeiros a chegar lá, mas há muitos outros sítios sem qualquer assistência”.

Os MSF têm 270 pessoas no terreno — uma equipa movimenta-se de barco —, mas apenas 11 estão no Delta do rio Irrawaddy, a região mais atingida. Entrar na Birmânia é um processo burocrático demorado, mas uma vez lá dentro é necessário negociar toda e qualquer movimentação. E é só à medida que as equipas de ajuda vão circulando que é feito o diagnóstico ao nível dos problemas de saúde. Hugues diz que os MSF já detectaram diarreias, malária, dengue e sobretudo infecções respiratórias.

Refere ainda que a maior necessidade das populações prende-se com a falta de abrigos e com a escassez de água potável. “Estas populações estão habituadas a recolher a água das chuvas acumulada nos telhados e a consumir a água recolhida por bombas hidráulicas. Mas a maioria dos telhados foi destruída e as bombas foram contaminadas pelos caudais das inundações. Agora, com as monções, as populações começaram a recolher água boa para consumo, mas em pouca quantidade”, diz.

O início das monções expôs outra faceta deste drama birmanês. “Esta é a época em que costumamos ir para os campos semear o arroz. Seria a altura mais atarefada do ano, mas agora não temos trabalho”, lamentava-se um agricultor de 50 anos, da região de Laputta, ao jornal ‘Mizzima’. Outro agricultor, cuja família escapou ao ciclone, não sabe agora como alimentá-la: “Eu tinha 28 búfalos. Só quatro sobreviveram”.

AS VÍTIMAS DO NARGIS

78 mil birmaneses estão dados como mortos e 56 mil estão desaparecidos, segundo a ONU

Artigo publicado no Expresso, a 24 de maio de 2008

 

A tempestade perfeita

O quadro de 100 mil mortos não aflige a ditadura, que taxa a ajuda internacional e vende casas a refugiados

Imagem de satélite do ciclone ‘Nargis’, a 1 de maio de 2008 NASA / WIKIMEDIA COMMONS

Oito meses após a Revolução de Açafrão, os monges budistas birmaneses voltaram a sair dos mosteiros — desta vez não para contestar o regime militar, mas antes para limpar as árvores das ruas e distribuir comida pelos sobreviventes da tragédia provocada pelo ciclone ‘Nargis’. “Onde estão os militares quando mais precisamos deles?”, interrogava-se uma dona de casa birmanesa. “Demoraram um dia para se abaterem sobre os monges mas quatro dias após o ciclone ainda ninguém os viu”, disse.

A coberto do anonimato, muitos birmaneses testemunham a forma negligente como a Junta Militar tem respondido à maior catástrofe de sempre no país. “Somos sobreviventes. Mas se quisermos um telhado novo temos de pagar às autoridades”, disse uma habitante de Rangum. “Até nos sentimos com sorte, porque depois vemos pessoas próximas das autoridades comprar esses materiais e venderem-nos a preços inflacionados”.

Em entrevista ao Expresso, um porta-voz do governo birmanês no exílio denunciou: “Os militares estão a exigir um imposto de 10% sobre a ajuda que entra na Birmânia”, acusou Bo Hla Tint. “Não posso confirmar essa informação, mas não me surpreenderia”, revelou ao Expresso Fernando Nobre, presidente da Assistência Médica Internacional (AMI). “Já houve países que cobraram a aterragem de aviões humanitários, após eles próprios terem lançado apelos de ajuda. Aconteceu-me no Zaire, em 1994, e em países de língua portuguesa também”. Contactados, Programa Alimentar Mundial (PAM) e Médicos Sem Fronteiras negaram ter pago qualquer taxa para entrar no país.

A caminho dos 100 mil mortos

Oficialmente, morreram 22 mil pessoas e 41mil estão desaparecidas; estimativas independentes admitem que os mortos poderão superar os 100 mil. Aye Kyu, um deputado da região de Laputta — onde, segundo o Comité Internacional da Cruz Vermelha, 92% das casas foram destruídas — descreveu ao Expresso o caos gerado pelo ‘Nargis’: “Não havia casas com telhados intactos e algumas tinham colapsado. Havia cobras na água das inundações e ondas gigantescas tão altas quanto as casas. As pessoas tinham de subir aos postes quando as ondas vinham e eram levadas pelas águas quando ficavam sem força para trepar a postes ou árvores. Muitas aldeias desapareceram totalmente. Alguns cadáveres flutuavam”.

Nos primeiros dias, a assistência às vítimas foi lenta. “Há obstáculos naturais que dificultam o acesso a muitos locais seriamente afectados. Os barcos que costumamos usar na região do delta foram destruídos”, relatou ao Expresso Marcus Pryor, porta-voz do PAM. “Também temos dificuldades para obter vistos. Temos pessoal em Banguecoque (Tailândia), à espera de entrar. É muito frustrante”. Ontem, o Governo birmanês fechou as portas à ajuda internacional, alegando que o país não está preparado para a receber.

As organizações humanitárias fazem fila para entrar. Uma equipa da AMI parte este fim-de-semana para a Tailândia para lutar por vistos junto da embaixada birmanesa. “A obtenção de vistos pode demorar de três dias a três semanas”, diz Fernando Nobre.

“As autoridades de Myanmar estão mais interessadas no apoio (sobretudo financeiro) de países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), nomeadamente da China, que não levantarão muitas questões, ao contrário das instituições humanitárias da sociedade civil que são vistas como potenciais críticos da situação local”, continua o presidente da AMI.

Uma semana após rajadas de vento superiores a 200km/h terem transformado regiões do delta do rio Irrawaddy em zonas de guerra, a preocupação prende-se agora com a prevenção de doenças. “A Birmânia tem uma situação endémica de febre tifóide e padece de dengue e de malária”, diz Fernando Nobre. “Dentro de uma semana muitos desaparecidos serão considerados mortos. O problema é cuidar dos vivos. As doenças hídricas poderão vitimar muita gente”.

Serviço especial da agência de notícias birmanesa Mizzima

ALDEIA DE BAMBU

Milagre ou boa arquitectura?
Enquanto o ciclone ‘Nargis’ passava, na sua máxima força, sobre Hlaing Tha Yar, uma aldeia no sudoeste da Birmânia, os habitantes rezavam para que as suas leves cabanas de bambu não fossem pelos ares. Passada a tempestade, a maioria das construções permanecia firme e intacta. Apenas um em cada dez telhados — feitos de folhas — foram arrancados. Mas “ninguém morreu. Tivemos muita sorte”, desabafou um estudante de 18 anos. Em Hlaing Tha Yar moram cerca de 10 mil pessoas.

CRISE ALIMENTAR

Ciclone devasta zona de arrozais
O coração da produção de arroz da Birmânia, em tempos o primeiro produtor mundial, foi severamente afectado pelo ‘Nargis’. Segundo a ONU, os cinco estados mais atingidos lavram 65% da produção total. Até agora, a Birmânia era auto-suficiente em matéria de arroz, o que lhe permitiu controlar o preço do cereal que, recentemente, triplicou no mercado externo. Os 30 milhões de toneladas que produz são quase na totalidade para consumo interno. O ciclone trouxe o receio de escassez.

EXECUÇÕES DEPOIS DO CICLONE

Governada por militares desde 1962, a Birmânia está isolada do mundo. As sequelas do ciclone ‘Nargis’ confirmaram-no

Às primeiras horas do caos que se seguiu à passagem do ciclone ‘Nargis’, a famosa prisão de Insein — que alberga os prisioneiros políticos e é considerada o local mais sinistro da Birmânia — foi palco de uma chacina: 36 prisioneiros foram executados durante um motim espoletado por um incêndio.

Tido como um dos regimes mais paranóicos e repressivos à face da Terra, o Governo liderado, desde 1992, pelo general Than Shwe mostrou, assim, não abdicar da sua política securitária mesmo quando o país está envolto na maior das tragédias. “Este regime militar é estúpido. Só se preocupa em perpetuar-se no poder. É xenófobo e não quer que a comunidade internacional veja esta tragédia”, denunciou, em entrevista ao Expresso, Bo Hla Tint, porta-voz do Governo birmanês no exílio, sediado nos Estados Unidos.

Desde 1962, a Birmânia — uma antiga colónia britânica independente desde 1948 e baptizada de Myanmar em 1989 — tem sido governada, ininterruptamente, pelos militares. Em 2005, o regime deixou Rangum e mudou-se de armas e bagagens para uma nova capital. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a manutenção desse complexo ministerial custa 2% do PIB do país.

Instalado em Naypyidaw, o regime distanciou-se ainda mais do povo e tornou-se mais autista, impedindo jornalistas estrangeiros de entrarem no país e mantendo um controlo apertado sobre as redes de Internet e de telemóvel.

Assim que a catástrofe provocada pelo ciclone ‘Nargis’ se tornou evidente, o Governo emitiu um comunicado dizendo que o referendo constitucional previsto para hoje iria manter-se, sendo apenas adiado, para o próximo dia 24, nos 47 municípios mais afectados. Ao preocupar-se mais com a agenda política do que com as consequências do ciclone, o regime revelou incapacidade e umgrande desfasamento em relação à realidade.

Membro da Liga Nacional para a Democracia — o partido liderado pela Prémio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, que se encontra em prisão domiciliária —, Bo Hla Tint foi um dos líderes das históricas manifestações pró-democracia de 1988 — brutalmente reprimidas pelas autoridades. Questionado sobre se não sente que a Birmânia é um país esquecido pela comunidade internacional, ele responde: “O problema da Birmânia não é o desconhecimento internacional em relação à magnitude da questão ou à intransigência e opressão do regime militar. O problema-chave prende-se com interesses estratégicos. Ninguém quer embaraçar a Índia e a China”.

Artigo publicado no Expresso Online, a 4 de agosto de 2018

Monges abalam ditadura com 45 anos

A revolta na Birmânia pode terminar num banho de sangue. É a convicção de um perito da ONU que em conversa com o Expresso analisou a situação

Marcha dos monges contra a Junta Militar, em setembro de 2007 KILLING THE BUDA

Como começou esta crise?

A revolta estalou em meados de Agosto, depois de o Governo da Birmânia ter cortado nos subsídios aos combustíveis; o preço do gasóleo aumentou 100% e o gás natural cinco vezes. Milhares de pessoas responderam com manifestações pacíficas convocadas pela Liga Nacional para a Democracia e pela Geração de Estudantes de 88. Posteriormente, o envolvimento dos monges trouxe sangue novo à contestação — e originou o “slogan” ‘revolta de açafrão’. “Antevejo o pior desfecho possível para esta crise”, disse ao Expresso o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, relator especial das Nações Unidas para a Birmânia. “Há muito tempo que o regime militar não tolera manifestações, muito menos de monges”.

O regime birmanês está em causa?

“Absolutamente”, continua este professor na Universidade de Brown (EUA). “A manifestação dos monges não é política. Politizou-se pela repressão e pela participação de movimentos de desagrado contra décadas de ditadura e de ausência de direitos económicos e sociais. Espero estar errado, mas não vejo nada no horizonte que indique que o regime vá mudar”, diz Pinheiro, que aos 63 anos é “persona non grata” na Birmânia. Mas é inegável que se os primeiros protestos usaram cânticos e orações, a contestação rapidamente adoptou “slogans” políticos exigindo a deposição do regime e a libertação de Aung San Suu Kyi.

O que simboliza Aung San Suu Kyi?

É a líder do movimento pró-democracia no país. Em 1990, o seu partido, a Liga Nacional para a Democracia (LND), venceu as eleições gerais com 59% dos votos. Os militares não só não abdicaram do poder como a colocaram em prisão domiciliária. É nessa condição que recebe o Prémio Nobel da Paz 1991. No passado fim-de-semana, as autoridades permitiram que ela acenasse aos manifestantes no portão da sua casa, em Rangum, o que não acontecia desde 2003. Suu Kyi não tem margem de manobra. “Até hoje, a comunidade internacional não conseguiu aliviar a condição dela. Ela não comunica nem com o próprio partido. Tem apenas um papel simbólico”.

Porque reprime a Junta Militar?

Não é a primeira vez que o regime militar, no poder desde 1962, dá estas instruções às forças da ordem. A insurreição, iniciada a 8 de Agosto de 1988 — a Revolta 8888 —, foi violentamente reprimida e terá provocado 3000 mortos.

Como reagiu a comunidade internacional?

O enviado da ONU para a Birmânia, Ibrahim Gambari, deve chegar hoje à Birmânia com o acordo das autoridades locais. Na quarta-feira, o Conselho de Segurança da ONU instou a junta a conter o uso da violência, mas China e Rússia impediram uma condenação do regime. “Se a comunidade internacional não se acertar para uma acção coordenada de abertura do diálogo com as autoridades locais, a minha bola de cristal não mostra cenários positivos”, alerta Paulo Pinheiro. “Ao abrigo da guerra global contra o terrorismo, várias democracias fazem alianças com autocracias e regimes militares. Não vejo porque não se pode fazer o mesmo com o regime birmanês. A linguagem da ameaça não funcionou, não funciona e não vai funcionar. Estamos condenados ao diálogo”, conclui.

Artigo publicado no Expresso, a 29 de setembro de 2007