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Lula em Matosinhos: “O Brasil está de volta. É por isso que eu estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”

O Brasil é incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, mas tem sido maior o investimento português no Brasil do que vice-versa. Passado o apagão dos anos de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto, Lula da Silva e António Costa querem dar gás à relação comercial bilateral e marcaram presença num fórum empresarial luso-brasileiro, em Matosinhos. “O Brasil está de volta para ser protagonista internacional. Por isso, estou a tentar parar de falar em guerra e constituir a paz”, disse Lula. Costa acrescentou: “Agora que voltou, não vamos nunca mais deixá-lo sair”

Lula da Silva, Presidente do Brasil, no CEIIA, em Matosinhos RICARDO STUCKER

“Você deve ter uns dois anos e pouco de mandato ainda. Podemos estabelecer uma meta: o que nós queremos que aconteça entre Brasil e Portugal? A gente pode conseguir isso. Na política você tem de estabelecer a meta, ter um projeto, não pode ficar governando conforme o vento. Você determina estrategicamente aquilo que você quer que aconteça.”

Ao quarto dia de estadia em Portugal, o Presidente do Brasil deslocou-se ao norte do país para assinalar a abertura do Fórum Empresarial Portugal-Brasil, em Matosinhos, e desafiar o primeiro-ministro português, António Costa, ao estabelecimento de metas bilaterais.

“O Brasil está preparado para voltar a ser um país grande, importante e atraente. E o Brasil quer construir políticas de parcerias”, disse Luís Inácio Lula da Silva. “Não queremos relações hegemónicas com ninguém. Não é porque nós somos grandes que nós temos de ter hegemonia”, sossegou o chefe de Estado brasileiro. “Queremos construir parcerias com as empresas portuguesas e queremos que os empresários portugueses construam parcerias com as nossas empresas.”

A escutá-lo, no Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produto (Ceiia), estavam mais de 120 empresários portugueses e brasileiros – das áreas da energia, mobilidade, tecnologia, inovação e saúde –, os protagonistas do Fórum Empresarial Portugal-Brasil.

Costa enumera os trunfos portugueses

António Costa aceitou o desafio, admitiu que o crescimento na relação comercial bilateral tem estado “muito aquém do seu enorme potencial” e acenou com trunfos que a podem potenciar.

Ao nível da transição digital, “Portugal e o Brasil são os pontos de amarração do novo cabo de fibra ótica que liga todo a América Latina ao continente europeu, parte de Fortaleza e chega a Sines”, disse o primeiro-ministro. “É a nova ponte física que existe de ligação entre os dois continentes através dos nossos países.”

Relativamente à transição energética, “Portugal tem estado, desde há 15 anos, na vanguarda”, disse Costa. “58% da eletricidade que hoje consumimos tem origem nas energias renováveis e temos a meta que, daqui a quatro anos, 80% da eletricidade que consumimos tem origem nas energias renováveis.”

Costa não poupou nos argumentos e destacou mais quatro fatores potenciadores da relação:

  • o dinamismo bilateral ao nível do empreendedorismo, recordando que este ano, pela primeira vez, a Web Summit vai realizar-se também no Rio de Janeiro;
  • “um regime bom para acolher investimento e inovação”, nomeadamente a nível fiscal e de autorização de residência;
  • a qualificação dos recursos humanos portugueses, referindo que Portugal tem a terceira taxa de recém-graduados em engenharia da UE, atrás da Áustria e Alemanha.
  • o papel de Portugal como “verdadeiro ponta de lança”, disse Costa, na defesa da conclusão do acordo de comércio entre a União Europeia e o Mercosul, uma organização intergovernamental regional fundada em 1991 com cinco países membros (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e outros sete associados.

Após o apagão que significou a presidência de Jair Bolsonaro relativamente à relação entre Portugal e o Brasil, a estratégia de Lula da Silva de relançamento do diálogo passa pelo impulso da economia e do comércio.

“Sempre se tratou Portugal como um país pequeno”, admitiu Lula da Silva. “Portugal era a entrada do Brasil para a Europa, para a Alemanha ou França. Nada melhor do que estabelecer uma relação com Portugal e, a partir daqui, produzirmos juntos e expor os produtos para outros países europeus. É muito mais fácil.”

Relação é hoje como há 12 anos

A deslocação de Lula da Silva a Portugal, ao fim de três meses de governo, é a quarta ao estrangeiro após a reeleição — após Argentina, Estados Unidos e China — e a primeira à Europa. “Agora que o Brasil voltou, não vamos nunca mais deixar o Brasil sair”, afirmou António Costa.

Com raízes familiares na zona de Aveiro, como fez questão de partilhar, Jorge Viana, presidente da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (APEX), realçou que, hoje, “o fluxo comercial entre Portugal e Brasil é muito parecido com o que tínhamos há 12 anos”, à época da primeira vez de Lula no Palácio do Planalto. “Ou seja, deixamos de crescer, estagnamos”.

Para se perceber o quanto falta fazer entre os dois países, os números falam por si. Apesar do Brasil ser incomparavelmente maior e mais populoso do que Portugal, tem sido maior o investimento dos portugueses no Brasil do que de empresários brasileiros em Portugal. Jorge Viana afirmou que “em 2022, o fluxo comercial atingiu os 5300 milhões de dólares. Houve um crescimento, muito vinculado à exportação de petróleo, não de produtos manufaturados que geram emprego de parte a parte”.

O fluxo de investimentos de Portugal no Brasil é ainda maior: em 2021, “somaram 11.900 milhões de dólares acumulados, mas já alcançaram a marca de 13 mil milhões na época do Governo do Presidente Lula”, disse Jorge Viana. “Há a expectativa de que voltemos a ter um crescimento exponencial do fluxo de investimentos.”

Em Matosinhos, as partes deram um primeiro passo através da assinatura da renovação do protocolo de entendimento entre a APEX e a congénere portuguesa, Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).

KC-390, uma face visível da cooperação

O Brasil é um dos 10 maiores investidores em Portugal, o segundo maior fora da União Europeia, “muito aquém do enorme potencial de investimento que tem”, registou Costa. Para Portugal, “o Brasil figura no terceiro lugar do investimento direto no exterior, mas somos somente o 18º investidor no Brasil. Ninguém tem dúvidas do potencial do Brasil e da dimensão de Portugal, mas, francamente, 18º não é a nossa posição. Temos de subir”, desafiou o governante português.

O regresso de Lula da Silva a Lisboa decorreu também sob o signo da cooperação Portugal-Brasil. O chefe de Estado brasileiro viajou a bordo de uma aeronave KC-390, o maior projeto de engenharia desenvolvido entre os dois países.

Esta aeronave resulta de 12 anos de trabalho conjunto entre o Ceiia – nasceu no período em que Lula era Presidente –, as OGMA – Indústria Aeronáutica de Portugal, a Força Aérea Portuguesa e a Embraer. Produzido por esta empresa brasileira, o Ceiia contribuiu com o desenvolvimento de dois terços da estrutura da aeronave.

A despedida de Matosinhos não se fez sem que antes Lula da Silva aflorasse, ainda que indiretamente, o tema que o tem perseguido na sua visita a Portugal. “O Brasil está de volta, e está de volta para ser protagonista internacional. É por isso que eu me estou dedicando em tentar parar de falar em guerra e constituir a paz.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 24 de abril de 2023. Pode ser consultado aqui

Indígenas são prioridade no plano de vacinação contra a covid-19, mas a maioria fica de fora

O Governo brasileiro incluiu os povos indígenas no grupo prioritário de vacinação contra a covid-19, mas excluiu os que vivem em zonas urbanas. “Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo”, alerta ao Expresso uma ativista brasileira da organização Survival International. A vacinação é apenas o último capítulo de um rol de atitudes negligentes de Jair Bolsonaro em relação aos índios brasileiros. Há quatro dias, dois chefes tribais denunciaram o Presidente junto do Tribunal de Haia por crimes contra a Humanidade

Margaret, Raia, Vanda. Estas três mulheres, a quem, sem as conhecermos, conseguimos com facilidade atribuir vidas contrastantes, foram notícia num passado recente por se terem tornado rostos de esperança da cura para a covid-19.

Margaret Keenan, britânica de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser vacinada em todo o mundo. Raia Alkabasi, nascida no Iraque, foi a primeira pessoa refugiada a ser vacinada na Jordânia. Mais recentemente, Vanda Ortega tornou-se a primeira pessoa indígena a ser imunizada no Brasil.

Esta enfermeira de 33 anos, da tribo Witoto, vive no Parque das Tribos, bairro da cidade de Manaus (capital do estado do Amazonas), que enfrenta o colapso do sistema de saúde por conta da pandemia e onde, recentemente, morreram pacientes por falta de oxigénio.

O Parque das Tribos é casa para cerca de 2500 indígenas de mais de 30 etnias. Mas a sorte de Vanda não é extensível ao resto da sua comunidade, que não sabe ainda quando será imunizada. Os povos indígenas foram incluídos no grupo prioritário da primeira fase do plano nacional de vacinação, mas a maioria deles é exceção.

“Não há surpresa quanto à prioridade da vacinação para os indígenas. Em campanhas de vacinação anteriores, de prevenção de outras doenças, os indígenas foram também grupos prioritários. Isso ocorre porque são um grupo que possui uma imunidade mais baixa e são socialmente vulneráveis”, explica ao Expresso Priscilla Schwarzenholz, da organização Survival International Brasil.

Porém, “a prioridade foi dada apenas aos indígenas que vivem em aldeias, excluindo os que vivem nas cidades”, como os moradores do Parque das Tribos. Entre os beneficiários estão milhares de membros da tribo Warao, oriunda da zona do delta do rio Orinoco, na Venezuela, que vive refugiada no Brasil desde o colapso económico do país, em 2018.

A 14 de janeiro, ao anunciar o início do plano de vacinação da população brasileira, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, informou que entre os grupos prioritários estão 410.348 “indígenas aldeados”. Isto corresponde a menos de metade da população indígena apurada no censo de 2010.

CENSO DE 2010

896.917
pessoas pertencem a povos indígenas

305
povos indígenas, pelo menos, existem no Brasil

A exclusão de parte significativa da população indígena é incompreensível à luz dos números da pandemia, que comprovam a vulnerabilidade das tribos. “Os dados de infeção e óbitos de indígenas pela covid-19 mostram que ambas as taxas superam a média nacional”, diz a ativista brasileira. “Estima-se que, atualmente, a mortalidade entre os indígenas seja 16% superior à da média da população brasileira.”

Até esta terça-feira, a APIB tinha contabilizados:

  • 936 indígenas mortos pela covid-19. O povo Xavante é o que regista mais óbitos
  • 46.834 casos de infeção entre indígenas
  • 161 tribos atingidas em todo o país

“Os indígenas da região amazónica são cinco vezes mais atingidos pela covid-19 do que o resto do Brasil”, particulariza Priscilla Schwarzenholz. “Isso é muito preocupante, pois significa que [a pandemia] está presente no território com o maior número de povos indígenas isolados do mundo. Esses povos são os mais vulneráveis do planeta. O contacto com o vírus pode significar o extermínio de todo um grupo.”

As tribos indígenas vivem exclusivamente do que a natureza lhes dá. Guardiãs das florestas, são botânicos e zoólogos de excelência. Desenvolvem os seus próprios medicamentos e métodos de cura a partir de plantas e animais, e são autossuficientes para tratar as doenças das florestas — mas não as doenças que decorrem do contacto com o exterior, como sarampo, gripe, malária, febre amarela ou tuberculose.

Para controlar estas maleitas, as vacinas têm sido fundamentais, como agora acontece em relação à covid-19. Mas como em qualquer sociedade desenvolvida, também entre os indígenas há resistência à toma da vacina, pois são vulneráveis à propagação de mentiras e boatos.

Na reserva guarani Te’yikue, no estado de Mato Grosso do Sul, acredita-se que a doença surge de feitiços e “espíritos maus” e que quem for vacinado virará vampiro. Mensagens de WhatsApp dizem que os índios são um grupo prioritário para funcionarem como cobaias e que a vacina provoca cancro e altera o ADN das pessoas.

“Há também denúncias feitas por indígenas de que missionários estão a promover discursos antivacina em aldeias pelo Brasil”, alerta a ativista da Survival International. Relatos de que os religiosos se referem à vacina como a “marca da besta” e ao que está na seringa como “chip líquido”.

Sexta-feira passada, a APIB lançou a campanha “Vacina, Parente!” para exigir ao Governo federal a imunização de toda a população indígena e combater a desinformação. “Parente” é a expressão usada nas tribos para denominar indígenas de todas as etnias e diferenciá-los dos não-índios.

Jair Bolsonaro, que já foi infetado, é um dos principais porta-vozes da atitude antivacinas no Brasil. O Presidente brasileiro já disse não ter intenção de ser vacinado e alertou para efeitos colaterais em termos dignos de um filme de ficção.

“Se você virar um jacaré, é problema seu. Se você se transformar em Super-Homem, se crescer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada com isso. E, o que é pior, mexem no sistema imunológico das pessoas.”

Jair Bolsonaro, Presidente do Brasil

A forma como o Presidente desincentiva à toma da vacina é apenas a última das manifestações negligentes de Bolsonaro em relação aos povos indígenas. “Desde que Bolsonaro ganhou as eleições, o número de invasões e ataques a comunidades indígenas aumentou drasticamente”, refere Priscilla Schwarzenholz. “Isso é resultado do seu discurso racista e das políticas anti-indígenas”, que a ativista enumera:

  1. Promoção de um projeto de lei para abrir territórios indígenas à mineração em grande escala.
  2. Restrição das ações de órgãos governamentais essenciais, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsáveis pela proteção e defesa das terras e vidas dos povos indígenas.
  3. Apoio à proposta do “Marco Temporal”, ação no Supremo Tribunal Federal que defende que os indígenas só possam reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988 (data da assinatura da Constituição do Brasil). “Se for aprovado, centenas de territórios indígenas podem ser afetados e dezenas de povos isolados estariam em risco”, comenta a ativista.

“O Governo Bolsonaro também está incentivando à disseminação da covid-19 em territórios indígenas, deixando de protegê-los contra invasores e bloqueando planos de proteção para o combate do vírus nas aldeias”, acrescenta.

“Até ao momento, nenhum plano federal de combate ao coronavírus nas comunidades indígenas foi colocado em prática. Não se trata de omissão, mas de uma clara intencionalidade de não combater a epidemia, demonstrando nitidamente o plano genocida desse governo contra os povos indígenas do Brasil.”

Este histórico do Presidente brasileiro, que leva apenas dois anos no poder, levou dois “caciques” (chefes índios) a denunciar Bolsonaro, sexta-feira passada, diante do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes contra a Humanidade.

Raoni Metuktire e Almir Suruí responsabilizam Bolsonaro pelo avanço do desmatamento e das queimadas na região da Amazónia, pela transferência forçada de comunidades, por ataques às populações indígenas (alguns dos quais resultam em mortes) e pelo desmantelamento de agências governamentais, como o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

A queixa pretende também que o TPI reconheça o crime de ecocídio — destruição do meio ambiente a um nível tal que comprometa a vida humana — em face das consequências ambientais da política de Bolsonaro.

Em entrevista à Agência Pública, o advogado que defende os caciques, o francês William Bourdon (que já defendeu Julian Assange, Edward Snowden e agora Rui Pinto), disse haver documentação exaustiva que prova que Bolsonaro “anunciou, premeditou e implementou uma política sistemática de destruição” total da Amazónia.

“É muito mais do que assédio, é muito mais do que uma política cínica de desprezo, é uma política de destruição, pela interação de muitos crimes. E é a interação de todos esses crimes que caracterizam os crimes contra a Humanidade.”

(FOTO Jovem indígena do povo Awá, o mais ameaçado do mundo SURVIVAL INTERNATIONAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 26 de janeiro de 2021. Pode ser consultado aqui

Bolsonaro levou uma indígena às Nações Unidas. A encenação correu mal

Jair Bolsonaro levou uma apoiante sua indígena à Assembleia Geral das Nações Unidas, onde discursou esta terça-feira. O Presidente do Brasil quis calar o mundo que o acusa de negligência ambiental provando que os nativos da Amazónia estão com ele. A reação revoltada dos indígenas brasileiros ecoou em Nova Iorque

Ysani Kalapalo ao lado de Jair Bolsonaro, durante a viagem às Nações Unidas INSTAGRAM YSANI KALAPALO

O Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cumpriu esta terça-feira uma tradição com mais de 60 anos e realizou o discurso de abertura da 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque. “Obrigado a Deus pela minha vida, pela missão de presidir o Brasil e pela oportunidade de restabelecer a verdade”, assim começou Bolsonaro um discurso de meia hora, grande parte dedicado à questão da Amazónia.

Sentada na plateia, integrada na delegação brasileira, esteve Ysani Kalapalo, uma indígena de 28 anos que Bolsonaro levou na comitiva. Habitante no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso, Ysani — que no Twitter se descreve como “a indígena do século 21”, “apresentadora” e “YouTuber” — é uma crítica da retórica catastrofista que se seguiu aos grandes incêndios na Amazónia que, diz ela, decorre de notícias falsas.

Em Nova Iorque, Bolsonaro leu uma carta aberta de apoio à presença da indígena na sua comitiva assinada pelo “Grupo dos Agricultores Indígenas do Brasil”. Com ela, procurou responder a uma carta de repúdio divulgada horas antes onde os caciques (chefes) dos 16 povos do Território Indígena do Xingu dizem: “O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente nas redes sociais com o objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”.

E acrescentam: “O governo brasileiro não se contentando com os ataques aos povos indígenas do Brasil, agora quer legitimar sua política anti-indígena usando uma figura indígena simpatizante de suas ideologias radicais com a intenção de convencer a comunidade internacional de sua política colonialista e etnocida.”

Para Bolsonaro, a indígena era o melhor trunfo que poderia jogar diante do mundo para responder a quem o acusa de ser um governante negligente em relação ao ‘pulmão da Terra’ — ideia que Bolsonaro, na ONU, disse ser “um equívoco”, tal como dizer que a Amazónia é património da Humanidade é “uma falácia”. Indiferente às polémicas internas, Ysani foi, para Bolsonaro, a prova de que é apoiado pelas vítimas imediatas da destruição da Amazónia.

No Brasil, 14% do território está demarcado como terra indígena, há 225 povos indígenas identificados e referências a 70 tribos isoladas. Vivem do que a floresta lhes dá: alimentos e medicamentos, materiais para construir casas, arcos e flechas, cestas e redes. Essa autossuficiência faz deles botânicos e zoólogos de excelência — os melhores cuidadores que a Amazónia pode ter.

“Nossos nativos são seres humanos”, contrapôs Bolsonaro, que “querem e merecem usufruir dos mesmos direitos que todos nós”. “Infelizmente, algumas pessoas de dentro e fora do Brasil, apoiadas por organizações não governamentais, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas.”

Uma das organizações que está na mira de Bolsonaro é a Survival International, considerada o movimento global de defesa dos povos indígenas. “Quando a floresta é destruída, o acesso aos territórios indígenas torna-se mais rápido e mais fácil, o que incentiva invasores ilegais: grileiros, mineiros, agricultores”, explica ao Expresso Fiona Watson, ativista da organização.

“Alguns incêndios começam deliberadamente, ateados por grileiros e colonos que querem roubar terras indígenas para vende-las ou ocupa-las ilegalmente. Muitos sentem-se encorajados pelo discurso de ódio do Presidente Bolsonaro e pelo seu apoio ao sector do agronegócio, interessado na exploração de terras indígenas.”

No estado brasileiro do Maranhão (nordeste), um grupo de Guajajaras — um dos povos indígenas mais numerosos no Brasil — realiza patrulhas na floresta. Conhecidos como “Guardiões”, estão atentos às visitas indesejadas de madeireiros e fazendeiros. “Eles são forçados a defender os seus territórios das máfias madeireiras e dos colonos que as invadem impunemente”, denuncia Fiona Watson. “É um trabalho perigoso, pois esses invasores estão fortemente armados.”

Data de 23 de julho o último assassínio conhecido de um indígena. O sexagenário Emyra Waiãpi, um dos líderes do povo Waiãpi, foi encontrado morto pela mulher junto a um rio, na região do Amapá. O cadáver tinha os olhos perfurados e o órgão genital decepado. Numa posição excecional na cultura waiãpi, os familiares autorizaram a exumação do cadáver para ajudar as investigações. Antecipando-se a conclusões, acusaram garimpeiros da morte de Emyra.

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 24 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

O coração da Terra está doente

Algumas zonas da grande floresta tropical já emitem
mais dióxido de carbono do que a quantidade que absorvem

Se o funcionamento da Terra se regesse por um orçamento, a verba para este ano tinha-se esgotado a 29 de julho. O apuramento resulta do projeto “Earth Overshoot Day” (Dia da Sobrecarga da Terra) que, anualmente, publica a pegada ecológica global após cruzar os recursos do planeta com os gastos da população mundial. Em 1970, a capacidade de suporte da vida na Terra cobria os 12 meses. Em 1980, acabou a 4 de novembro, em 1990 a 10 de outubro e em 2000 a 22 de setembro. A cada década, a Humanidade consome os recursos do planeta um mês mais cedo.

Para suprir o resto do ano, a solução passa por sobre-explorar os ecossistemas. É o que acontece na Amazónia — uma área de 5.500.000 km2 de floresta tropical (correspondente a 60 territórios de Portugal), dispersa por nove países — onde, segundo um estudo recente da revista “Nature”, há já zonas que lançam mais dióxido de carbono para a atmosfera do que aquele que absorvem.

“A Amazónia tem um papel de relevância para todo o planeta. Ela funciona como uma grande bomba de água que recicla a humidade que vem do Oceano Atlântico e a envia para o mundo inteiro. Isso tem um impacto sobre o regime de chuvas de todo o planeta”, explica em entrevista ao Expresso Virgílio Viana, que dirige a Fundação Amazonas Sustentável (FAS), galardoada com o Prémio Calouste Gulbenkian 2016. “Ainda que ela possa estar fisicamente distante, existe uma relação de todo o mundo com a Amazónia. É como se ela fosse o coração do planeta.”

Agente e vítima do clima

Dois fatores contribuem para uma acentuada degradação do bioma amazónico. Um está à vista nos quatro cantos do mundo, em fenómenos climáticos extremos e cada vez mais frequentes. “A Amazónia é agente das mudanças climáticas e ao mesmo tempo vítima das alterações climáticas. A temperatura está a aumentar na Amazónia e o regime das chuvas está a alterar-se.”

Outra causa decorre da intervenção humana em torno do que este professor brasileiro designa como “economia do desmatamento” (ver texto em baixo). “O Brasil é o maior produtor mundial de carne e de soja. Em muitos casos, ambas estão relacionadas com o desmatamento”, alerta, realçando que um quarto da economia brasileira está ligado ao agronegócio.

“Há um grande debate na Europa sobre controlo de madeira que vem da Amazónia, e sobre a questão da carne também”, diz, para realçar a importância de serem criados sistemas de rastreabilidade que permitam atestar se determinada carne tem origem em atividades ilegais de desmatamento. “Os consumidores portugueses e europeus têm um papel importante em certificar que os supermercados não compram carne de desmatamento.”

“A estratégia de quem defende a sustentabilidade é fazer com que a engrenagem económica que hoje move o desmatamento passe a mover-se noutra direção, desestimulando as cadeias produtivas ligadas ao desmatamento e estimulando as cadeias ligadas ao uso sustentável. O açaí, a castanha, o peixe são cadeias do bem”, diz. “Defendo há muito tempo uma política tributária global que reduza os impostos desses produtos, uma política de imposto zero para produtos sustentáveis da Amazónia.”

Virgílio Viana, especialista na Amazónia, fotografado no Jardim Botânico do Porto FERNANDO VELUDO/NFACTOS

Virgílio Viana falou ao Expresso no Jardim Botânico do Porto. Na Invicta, participou no segundo seminário sobre a Amazónia, do Instituto Amigos da Amazónia (IAMA), criado na cidade em março de 2020 e que o próprio dirige. “Queremos a partir daqui dialogar com a comunidade europeia, trazer a filantropia europeia, as grandes empresas, a opinião pública, porque os governos respondem àquilo que a sua população pensa. Um dos temas que eu trouxe foi a oportunidade de celebrarmos os 200 anos de independência do Brasil, em 2022, no Porto com atividades relativas à Amazónia. O coração de D. Pedro [I do Brasil, IV de Portugal] está aqui. Há esse vínculo físico, além do histórico, entre a Amazónia e a cidade.”

A revolução do Papa

Nascido em 1960, em Belo Horizonte (estado de Minas Gerais) e a viver em Manaus (Amazonas) desde 2002, Viana foi secretário de Estado de Meio Ambiente e de Desenvolvimento Sustentável entre 2003 e 2008, era Lula da Silva Presidente. “Reduzimos o desmatamento em 66% e ampliámos as áreas de reservas. Criámos 12 milhões de hectares em unidades de conservação, mais ou menos um Portugal.”

O contraste com a era Jair Bolsonaro, que regista uma explosão do desmatamento, é evidente. “O Governo é uma tragédia para a Amazónia. O discurso político é que a legislação ambiental atrapalha.” Para o Presidente, “a mudança climática não existe, é bobagem, fake news, e desmatamento é exagero.”

Viana, que integra a Comissão de Ética da Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano (que existe desde Galileu), invoca a encíclica “Laudato Si” (2015, sobre o “Cuidado com a Casa Comum”), na qual o Papa Francisco apela a “uma mudança radical” nos padrões de produção e consumo. “Temos de olhar para a Amazónia na perspetiva de que não é um problemazinho lá longe. Precisamos de mudar profundamente as coisas no nosso quintal”, conclui. “Costumo dizer que a Amazónia é too big to fail [grande demais para falhar]. Esta expressão foi usada na crise de 2018 quando pacotes de muitos milhões de dólares e euros foram usados para salvar os bancos. A Amazónia é muito mais importante do que esses banquinhos de Wall Street ou da City. Temos de mobilizar recursos de grande escala para a Amazónia.”

SEIS ETAPAS DA ECONOMIA DO DESMATAMENTO

Do abate de árvores à expulsão de comunidades indígenas, a degradação da Amazónia resulta de muitas ilegalidades

A desflorestação está identificada como uma das principais causas do aquecimento global. No caso da Amazónia, o corte de árvores é apenas a primeira etapa de uma indústria de exploração desenfreada, e por vezes ilegal, montada por interesses económicos.

DESMATAMENTO A economia do desmatamento começa com a extração ilegal de madeira. A madeira de alto valor paga a abertura de estradas e a construção de pontes, ou seja, prepara o terreno para a indústria da grilagem.

GRILAGEM Trata-se da apropriação de terras públicas por parte de privados, muitas vezes com recurso a documentação falsa, “mais ou menos como se fosse o velho oeste nos EUA”, compara Virgílio Viana, que dirige a Fundação Amazonas Sustentável. Esta é uma indústria marcada pela ilegalidade. A grilagem é das principais ameaças às comunidades indígenas.

QUEIMADAS Quando uma terra é grilada, o dono reivindica a posse de duas formas: desmatando o terreno ou fazendo queimadas. “No Brasil, tem até um slogan: ‘Dono é quem desmata’”, diz o perito brasileiro. “A maneira de mostrar que se é dono de um pedaço de terra é desmatar e atear fogo.” Há dois tipos de incêndio: o que consome o lugar que foi desmatado e o que evolui de forma descontrolada, propaga-se pela floresta e degrada o ecossistema.

GARIMPO Juntamente com a grilagem, surge o garimpo — a extração de ouro — que hoje também está muito descontrolado. Dados recentes da MapBiomas (que monitoriza as transformações no uso da terra no Brasil) revelam que a Amazónia concentra atualmente 93,7% dos garimpos que ocorrem no país.

PECUÁRIA A melhor forma de lavar o dinheiro que resulta do garimpo é investir tanto na compra de terras (grilagem) como na produção agropecuária. “A pecuária gera muita liquidez, é um porto seguro para quem tirou o dinheiro do garimpo ou da madeira ilegal ou do tráfico de drogas, que é outra componente muito importante da economia do desmatamento. O narcotráfico está a aumentar muito na Amazónia.”

EXPULSÃO DE INDÍGENAS “A Amazónia não é só bicho, planta e água. Na maior parte das terras públicas tem gente”, alerta Viana, que enumera 353 povos indígenas, falantes de mais de 60 línguas. “O lugar mais distante com que nós trabalhamos fica a 15 dias de viagem de barco…” A grilagem “tem sempre uma mancha de sangue. Ela avança sobre terras usadas por indígenas ou por populações tradicionais” — descendentes de seringueiros, pescadores, quilombolas (remanescentes de escravos). “E avança com um exército de motosserras e capangas armados. Em muitos casos, os povos resistem.”

(FOTO PRINCIPAL GUSTAVO BASSO / GETTY IMAGES)

Artigo publicado no “Expresso”, a 10 de setembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Os guardiões das florestas só querem que os deixem sós

Serão uns 370 milhões em todo o mundo. Vivem do que a natureza lhes dá e dela extraem curas para as suas maleitas. Os indígenas são dos povos mais vulneráveis à face da Terra. Ao Expresso, uma ativista da Survival International denuncia a apropriação ilegal de terras. E diz temer pelas tribos do Brasil

Sergio Rojas Ortiz sabia que tinha a cabeça a prémio. Já tinha tido um primeiro aviso em 2014, quando escapou ileso a uma rajada de oito tiros. No passado dia 18 de março, a sorte foi diferente. Era já noite escura quando este costa-riquenho de 55 anos foi surpreendido no segundo andar de sua casa, no território indígena de Salitre, e alvejado com 15 tiros. A sua morte foi noticiada em todo o mundo.

Ortiz era um conhecido líder bribri, um dos povos indígenas da Costa Rica. Horas antes de ser executado, deslocara-se ao município de Buenos Aires, na província de Puntarenas, para acompanhar uma denúncia apresentada na procuradoria local por usurpação de terras, ameaças e ataques direcionados ao povo bribri. A Frente Nacional de Povos Indígenas da Costa Rica (Frepani) responsabilizou o Governo do Presidente Carlos Alvarado Quesada pela morte de Ortiz.

“Em muitos países, empresas mineiras, madeireiras, agrícolas e agroindustriais invadiram e/ou roubaram terras indígenas com a conivência governamental”, acusa ao Expresso Fiona Watson, da organização não-governamental Survival International. “Nalguns países, como o Brasil, há muita apropriação de terras. Especuladores, muitas vezes com o apoio de políticos locais, apoderam-se de terras indígenas ilegalmente e vendem-nas, depois de saquearem os recursos.”

Na sexta-feira passada, fez-se história no Equador. Os Waorani venceram na Justiça um processo contra três organismos governamentais que efetuaram um processo de consulta deficiente à comunidade antes de disponibilizarem as terras indígenas num leilão internacional para exploração de petróleo. O tribunal decretou a suspensão imediata da vendas das terras e, com essa decisão, estabeleceu um precedente importante que irá proteger todas as outras tribos que vivem na floresta amazónica do sul do país. “Os interesses petrolíferos do Governo não têm mais valor do que os nossos direitos, as nossas florestas, as nossas vidas”, reagiu Nemonte Nenquimo, representante dos Waorani.

Um homem da tribo Pataxo Ha-ha-hae patrulha a área da sua comunidade MAURO PIMENTEL / AFP / GETTY IMAGES

A diretora de Campo e Pesquisa da Survival International coloca os interesses económicos à frente das alterações climáticas no rol de ameaças às populações indígenas. “Projetos de desenvolvimento megalómanos muitas vezes financiados pelo Banco Mundial ou pela União Europeia, como barragens hidroelétricas, ou projetos como o Grande Carajás [um plano de exploração mineira que se estende por mais de 900 mil km2, ou seja, um décimo do território brasileiro], abriram muitos territórios indígenas a estradas, projetos de colonização e à exploração madeireira. Os impactos foram e continuam a ser devastadores.”

E com a mesma naturalidade com que aponta o dedo a governos, a ativista denuncia a cumplicidade de organizações ambientalistas como a World Wide Fund (WWF), a Conservation International, a Wildlife Conservation Society (WCS) e a African Parks. “Têm uma longa história de expulsão de populações indígenas das suas terras ancestrais para criar parques ou delimitar áreas em nome da proteção ambiental.”

Nos Camarões, por exemplo, guardas financiados pelo WWF ameaçam os pigmeus Baka que tentam entrar na floresta de onde foram expulsos em busca de comida. Na Índia, há indígenas expulsos de reservas de tigres ao mesmo tempo que as autoridades encorajam o turismo e a caça de animais de grande porte nessas áreas.

Famosas áreas protegidas como o Yellowstone (EUA), o Serengeti (Tanzânia) ou a Amazónia (Brasil) são terras ancestrais de milhões de pessoas que as têm estimado e protegido ao longo de gerações. São também alvo de uma cobiça crescente.

Membros de uma comunidade indígena perto de Brumadinho, a cidade brasileira devastada pelo rebentamento de uma barragem, em janeiro ADRIANO MACHADO / REUTERS

As Nações Unidas estimam que, atualmente, existam 370 milhões de indígenas espalhados por 90 países. Correspondem a menos de 5% da população mundial mas a 15% dos mais pobres.

Herdeiras e praticantes de culturas únicas, mais de 100 tribos vivem exclusivamente do que a natureza lhes dá. Verdadeiras guardiãs das florestas, são as suas melhores conservadoras e protetoras, funcionado como barreiras ao avanço das atividades de desflorestação.

“Necessitamos do conhecimento indígena e precisamos de o compreender e valorizar. Eles são botânicos e zoólogos incríveis e desenvolveram os seus próprios medicamentos e métodos de cura eficazes baseados em plantas e animais”, explica Fiona Watson. “Dados científicos demonstram, cada vez mais, a importância do conhecimento dos povos indígenas na conservação da biodiversidade e das florestas, o que ajuda a atenuar o aquecimento global e os impactos das alterações climáticas.”

Indígena da tribo Uru-eu-wau-wau banha-se nas águas da reserva, na aldeia de Alto Jaru, Brasil UESLEI MARCELINO / REUTERS

Essa autossuficiência em relação à natureza não é absoluta nem a ativista a encara como um fundamentalismo. “Muitos indígenas também encaram a medicina ocidental como algo importante e desejam ter acesso a ela”, diz. “Uma vez, um xamã Yanomani [um xamã é alguém a quem se atribui poderes mágicos, curativos ou divinos] disse-me que a sua tribo pode curar as doenças das florestas mas não as doenças que os brancos introduziram nos últimos 50 anos, como o sarampo, a gripe, a malária e a tuberculose.”

O contacto com pessoas exteriores à comunidade expõe tribos inteiras à possibilidade de contraírem doenças para as quais não têm resistência. Daí o perigo de atos aventureiros como o do norte-americano John Allen Chau, que, em novembro passado, tentou entrar em território dos Sentinelas — nas Ilhas Andamão (de soberania indiana), no oceano Índico — e que acabou assassinado pelos indígenas.

Há muito que os Sentinelas tinham feito sentir que os forasteiros não eram bem vindos. Numa das poucas fotografias tiradas a membros da comunidade, em 2004, vê-se um indígena de arco e flecha na mão apontados a um helicóptero da guarda costeira indiana. Este intruso aéreo andava por ali a averiguar eventuais danos sofridos pelos Sentinelas após o devastador tsunami que varreu as costas do Índico.

Membros de uma aldeia isolada, no estado do Acre, oeste do Brasil. Um dos indígenas aponta uma flecha ao “intruso” aéreo WIKIMEDIA COMMONS

“O maior perigo que ele representava para os Sentinelas — que são provavelmente a tribo mais isolada do mundo — era a introdução de doenças. Uma simples constipação pode facilmente dizimar uma tribo isolada, que não desenvolveu imunidade a vírus da gripe, do sarampo e da varicela. O contacto, que muitas tribos têm desesperadamente tentado evitar desde há muitos anos, resulta inevitavelmente na introdução de tais doenças”, alerta a ativista.

Qualquer missão de contacto com populações isoladas é altamente perigosa, sem que seja possível controlar o seu resultado. “Na Amazónia, há muitos exemplos de populações afetadas ao primeiro contacto. Algumas nunca recuperam”, recorda a ativista. “E mesmo quando o contacto foi planeado e executado por autoridades competentes, o impacto na saúde tem sido subestimado, resultando em epidemias, morte e trauma social.”

No Brasil, a Fundação Nacional do Índio (Funai) é a única instituição governamental em todo o mundo que tem equipas no terreno dedicadas ao contacto com populações isoladas – através de sobrevoos e de expedições a pé. “Não sabemos muito sobre esses povos”, diz Fiona Watson. “Mas pelo menos sabemos que existem e onde ficam os seus territórios, para os podermos mapear e proteger.”

Missão de contacto da Funai, com máscaras na boca, junto a uma comunidade Korubo, na reserva do Vale do Javari, no estado brasileiro do Amazonas FUNAI / REUTERS

A tomada de posse de Jair Bolsonaro como Presidente do Brasil, a 1 de janeiro deste ano, foi uma má notícia para os indígenas. No dia seguinte, no Twitter, ele escreveu: “Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas [NDR: originalmente, os quilombos foram regiões de grande concentração de escravos escondidos nas matas e montanhas do Brasil colonial. Hoje são agrupamentos que herdaram as principais características desses espaços, formados por netos e bisnetos de escravos]. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONG. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros”.

Bolsonaro retirou à Funai a competência para identificar, delimitar e demarcar terras indígenas, transferindo-a para o Ministério da Agricultura. E colocou a Fundação sob tutela do Ministério da Justiça para a do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, dirigido pela pastora evangélica Damares Alves.

Fiona teme que o fundamentalismo cristão se torne uma ameaça crescente para as comunidades indígenas. “Tenho a certeza que muitos fundamentalistas cristãos sentir-se-ão encorajados por Bolsonaro e pelo facto de Damares Alves ser a ministra responsável pela Funai. A bancada evangélica no Congresso Nacional pode muito bem contribuir para aprovar diplomas como a Lei Muwaji (em discussão no Senado), que viabiliza a separação de famílias suspeitas de infanticídio. Esta lei “permitiria que missionários retirassem crianças indígenas das suas comunidades perante a mais pequena suspeita de que podem ser prejudicadas. Já se está a ver como isto abriria a porta a abusos por parte de fervorosos evangélicos desejosos de converter povos indígenas”.

Buracos de balas num sinal oficial colocado pela Funai, assinalando os limites do território do povo Uru-eu-wau-wau UESLEI MARCELINO / REUTERS

Em dezembro passado, em entrevista ao “Estado de São Paulo”, a ministra negou ter planos para evangelizar comunidades indígenas mas admitiu que haverá uma “mudança radical” no tratamento dos povos isolados da Amazónia. “Vamos trazê-los para o protagonismo. Não é por estarem isolados que estão esquecidos e deixados aos cuidados de ONGs. Quem vai assumir o cuidado desse povo isolado é o Estado.”

“Evangelizar faz parte de uma tentativa de integração de povos indígenas no estilo de vida convencional — uma política da ditadura militar — a que tribos e ONGs se opõem”, realça a ativista da Survival International. “É uma forma de os tornar dependentes do Estado e de libertar as suas terras para serem exploradas economicamente por forasteiros”, conclui. “Por outras palavras, é um roubo de terras neocolonial.”

(FOTO DE ABERTURA Crianças da tribo Uru-eu-wau-wau, cuja reserva fica em Campo Novo de Rondónia, no oeste do Brasil UESLEI MARCELINO / REUTERS)

Artigo publicado no “Expresso Diário”, a 30 de abril de 2019 e republicado no Expresso Online, a 5 de maio seguinte. Pode ser consultado aqui e aqui