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Bolsonaro não é Trump. É pior?

Elegem a mentira como arma política e valorizam mais a perceção que têm do mundo do que os factos. Donald Trump e Jair Bolsonaro parecem alunos da mesma escola. O Expresso ouviu três estudiosos da governação do norte-americano e confrontou-os com o fenómeno Bolsonaro. Há mais diferenças do que semelhanças, concordam. Mas as frases de ambos são parecidas

Jair Bolsonaro, o lambe-botas de Donald Trump CARLOS LATUFF

Exploração do ódio e de notícias falsas (“fake news”) para fins eleitorais, narrativa anti-media e anti-sistema, discurso intolerante, populista e demagógico. As semelhanças entre Donald Trump e Jair Bolsonaro são óbvias, mas há mais diferenças do que, à primeira vista, se pode pensar.

“Trump é um extremista sonso: insulta, depois diz que não insultou e culpa os media por terem deturpado o que disse de forma inequívoca”, explica Germano Almeida, autor do livro “Isto não é bem um Presidente dos EUA” (Prime Books), que chegará às bancas na segunda semana de novembro. “Bolsonaro é pior: mais gráfico na violência, mais assumido na rejeição do sistema e das regras democráticas, mais demagógico no populismo, ainda mais primário no discurso.”

Recentemente, numa entrevista à BBC Brasil, Steve Bannon, que liderou a campanha de Donald Trump e foi o grande mentor do discurso nacionalista do magnata, não poupou nos adjetivos a Bolsonaro: “líder”, “brilhante”, “sofisticado”. “Muito parecido” com Trump.

Durante meses, no Brasil, especulou-se sobre se Bannon iria integrar a equipa de Bolsonaro. Para esse ruído muito contribuiu um tweet de um dos filhos do ex-militar, após um encontro em Nova Iorque. “Foi um prazer conhecer Steve Bannon, estratega na campanha presidencial de Donald Trump. Tivemos uma ótima conversa e partilhamos a mesma visão do mundo. Ele afirmou-se um entusiasta da campanha de Bolsonaro e ficamos em contacto para unir esforços, especialmente contra o marxismo cultural.”

É o próprio Bolsonaro quem diz ser “uma espécie de discípulo de Donald Trump”, recorda Diana Soller, autora do livro “O método no caos” (Dom Quixote), juntamente com Tiago Moreira de Sá. “Ele é o primeiro a dizer que está a seguir as pisadas de Trump para conquistar a presidência do Brasil. Diz, inclusive, que está disposto a mudar profundamente a política externa brasileira no sentido de uma aliança com os Estados Unidos.”

Aproveitando momentos de fragilidade social nos respetivos países, Trump e Bolsonaro, dois estranhos à política — o segundo um deputado federal desde 1991 sem trabalho digno de nota —, lançaram-se numa escalada do poder, “dizendo aos respetivos povos que vão fazer as mudanças por que eles verdadeiramente anseiam”, diz Diana Soller. “No fundo, dizem às pessoas aquilo que elas querem ouvir”, independentemente da honestidade com que o fazem.

“Trump pintou os EUA muito piores do que, na realidade, eles são. A América não precisa de ser ‘grande outra vez’ porque nunca deixou de o ser. Bolsonaro só precisou de surfar a onda do medo e da raiva, porque, na verdade, a coisa no Brasil ‘está mesmo preta’”, acrescenta Germano Almeida. “Trump assusta porque é Presidente da maior potência do mundo. Mas o sucesso de Bolsonaro é ainda mais assustador e difícil de compreender.”

Eduardo Paz Ferreira, autor do livro “Os anos Trump — O mundo em transe” (Gradiva), recentemente editado, não se alarga nas parecenças entre o chefe de Estado norte-americano e o candidato da extrema-direita brasileira. “Muitas táticas eleitorais, das ‘fake news’ à manipulação das redes sociais, foram comuns, mas eu não levaria muito mais longe as semelhanças.”

E explica porquê: “O Brasil [uma democracia desde 1985] é um país castigado pela mais profunda miséria, onde os coronéis foram sempre o rosto da democracia ou então os generais nos tempos da ditadura. Nos Estados Unidos [uma democracia desde a Declaração da Independência, em 1776] há uma tradição democrática, que passa por um período especialmente mau, mas que é difícil admitir que possa ser totalmente extinta.”

A consolidação dos valores democráticos num e noutro país pesam no perfil dos dois líderes. “Trump, apesar de ser um conservador de uma espécie populista muito diferente que responde a um eleitorado que costumava ter pouca expressão, não deixa de ser um democrata”, constata Diana Soller. “Bolsonaro, por várias vezes, disse sentir uma grande nostalgia da ditadura militar. Tendo em conta a tradição da América Latina, não será surpreendente se Bolsonaro tentar transformar as instituições brasileiras de forma a ter cada vez mais poder. E isto Trump não tem tentado fazer.”

“A vida dos ditadores está muito facilitada”, conclui Eduardo Paz Ferreira. “Veja-se o exemplo de Rodrigo Duterte, nas Filipinas, e outros amigos do Presidente norte-americano”. O mais recente deles é o norte-coreano Kim Jong-un. Poderá Jair Bolsonaro ser o próximo?

Este domingo, Diogo Freitas do Amaral – fundador do CDS – classificou Jair Bolsonaro com “fascista”, numa entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, depois de questionado sobre o que está a passar no Brasil. “Acho que é altura sem excessivo alarmismo, sem excessiva precipitação, de começar a chamar os bois pelos nomes: isto é fascismo. Não lhe chamem populismo, que até pode parecer uma coisa simpática. É extremismo, sim. Extremismo de direita, sim. Logo, é fascismo. São autoritários, elogiam a violência, condenam os direitos das mulheres…” E alertou para os três fatores que podem contribuir para o regresso das ditaduras: debilidade dos governos democráticos, crise económica e medo do comunismo.

“Tive uma conversa muito boa com o novo Presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, que ganhou a sua corrida com uma margem substancial. Concordamos que o Brasil e os Estados Unidos trabalharão proximamente juntos nas áreas do Comércio, Militar e todo o mais! Telefonema excelente, desejei-lhe parabéns!”

O QUE ELES DISSERAM DE…

Apesar das diferenças apontadas pelos especialistas, há frases dos dois candidatos que os aproximam nas opiniões e nas atitudes.

MULHERES

Trump — “Agarra-las pela vagina”, disse quando lhe perguntaram como gosta de lidar com mulheres bonitas.

Bolsonaro — “Não vou estuprar você porque você não merece”, afirmou na Câmara dos Deputados à ex-ministra Maria do Rosário.

IMIGRANTES

Trump — “Por que todas essas pessoas desses países merdosos vêm parar aqui?”

Bolsonaro — “A escória do mundo tá chegando aqui no nosso Brasil como se nós já não tivéssemos problemas demais para resolver.”

ARMAS

Trump — “Não quero armar todos os professores. Quem nunca pegou numa arma não o vai fazer. Podem ser 10 ou 20%.”

Bolsonaro — “Todo o vagabundo tá armado! Só falta o cidadão de bem!”

IMPRENSA

Trump  “Vocês são fake news!”, dirigindo-se a um repórter da CNN.

Bolsonaro  “A Folha de S. Paulo é o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do Governo.”

Artigo publicado no Expresso Online, a 28 de outubro de 2018. Pode ser consultado aqui

“Mexeu com Marielle, atiçou o formigueiro”

Brasileiros e portugueses a uma só voz, em frente ao Consulado do Brasil no Porto. Mais do que uma manifestação de solidariedade para com Marielle Franco, a vereadora recentemente assassinada, foram apontadas soluções para o Brasil: “Não tem saída, só a educação salva”

“Alguém tem fita cola?” Terminada a manifestação “Marielle, Presente!”, em frente ao Consulado-Geral do Brasil, no Porto, houve quem sugerisse deixar os cartazes no local do protesto para que as mensagens chegassem a Brasília. Eram cerca das oito da noite de segunda-feira e a porta de entrada do edifício já estava encerrada. Colar os cartazes ao vidro parecia uma opção razoável, até se perceber que, por baixo da porta, havia uma ranhura suficiente larga para enfiar os cartazes. O chão da entrada do prédio rapidamente ficou coberto com algumas inquietações que assolam os brasileiros da Invicta: “Quem matou Marielle?” “Até quando vamos perguntar ‘até quando’?”

Para trás, ficava hora e meia de palavras de ordem, das quais a mais repetida foi “Marielle”, a vereadora do município do Rio de Janeiro assassinada a tiro, na semana passada, quando seguia de carro após um encontro com mulheres negras.

“Este caso diz-nos que, no Brasil atual, muito se faz mas nada se faz”, desabafa Sílvia Aline Ribeiro, uma baiana de 32 anos, a viver no Porto há dois anos e meio. “Ao invés de se investir em educação, e outras prioridades sociais, está-se a colocar o exército nas ruas para atacar os bandidos, só que eles não sabem quem é e quem não é bandido. Então, se você é negro ou pobre, você é bandido.”

Sílvia vai interrompendo a conversa para unir a sua voz às palavras de ordem que se vão sucedendo. “Há muitos assassínios, muita gente a morrer injustamente e a Marielle estava a investigar essas situações.”

Mulher, negra, lésbica e favelada

Marielle Franco, de 38 anos, investigava a violência policial nas ruas do Rio de Janeiro. A sua execução “revela o preconceito, o racismo e a dificuldade que o povo tem na luta pelos direitos humanos”, defende Pedro Valle, de 23 anos, estudante de Gestão de Património, no Porto.

“Há muita coisa que precisa de ser mudada, principalmente em relação à mulher: colocar a mulher no poder, aceitar a palavra da mulher, das pessoas negras, das pessoas faveladas. Essas pessoas precisam de ser ouvidas. Essa é a maioria dos brasileiros.”

Essa era também a realidade de Marielle – mulher, negra, lésbica, nascida na favela da Maré. A pulso, a ativista fintou um destino que parecia traçado à nascença, aproveitando as políticas de integração. Estudou Sociologia e Ciência Política e conquistou a confiança do povo para desempenhar um cargo público.

“A maioria dos brasileiros não é como os que vivem em Portugal, que têm opções e oportunidades”, continua Pedro. “Essa maioria não está a ser ouvida, precisa de ‘lugar de fala’”, conceito que surgiu, no debate público, como contraponto ao silenciamento da voz de minorias sociais por grupos privilegiados. “O povo negro precisa de ser ouvido, inclusive fora do Brasil.”

É o caso de Raísa Cabral, fisioterapeuta a trabalhar em Portugal há oito meses. “Nós somos a maioria da população”, recorda esta carioca de 26 anos. “Somos os que mais morrem de forma violenta, porque a maioria de nós é marginalizada, desde a escravatura. E isso não evoluiu ao ponto de, hoje, podermos ter uma vida equiparada à de uma pessoa branca. Somos a maioria que está nas favelas, a maioria que estão nas escolas públicas, a maioria que não tem acesso a educação, a saúde e aos direitos básicos…”

O frio que pontuou a chegada da noite na Invicta não desmobilizou as centenas de pessoas que se concentraram em frente ao n.º 20 da Avenida de França, próximo da Rotunda da Boavista. Nas mãos, muitas erguiam pequenos papéis onde, no verso do rosto de Marielle, estava transcrita a letra do “Canto das Três Raças”, de Clara Nunes, tema que fala do povo indígena, dos negros e da luta pela liberdade.

Ao ritmo de um grupo de percussão, que ia marcando o compasso, as mensagens foram ganhando criatividade – “Pisa ligeiro, pisa ligeiro, quem mexeu com Marielle atiçou o formigueiro”.

“Os brasileiros não estão a viver num estado de direito, mas num estado de exceção”, continua Raísa. “Mais do que uma execução, foi deixado um recado: se a gente continuar a falar, eles vão continuar a matar quem se levantar contra o que está a acontecer no nosso governo. Eu acredito que o Brasil tem um governo golpista, o Presidente não foi eleito pelo povo. Isso eles deixaram bem claro.”

A intervenção militar decretada por Michel Temer, que fez o Rio regressar aos tempos da ditadura e colocar o exército nas ruas, até ao fim do ano, para controlar a violência, mereceu muitas vaias. “Não acabou, tem de acabar, eu quero o fim da polícia militar”, gritou-se.

“Eu vivi no Rio de Janeiro a minha vida inteira”, diz Pedro. “Nunca vi tal coisa, é um absurdo, para mim, imaginar que a cidade está a ser tomada por militares. Acredito que isso aconteça por interesses políticos e financeiros, já que antes de isso acontecer nenhuma medida foi tomada. Falaram que não tinha mais jeito, que era preciso ajuda federal, mas não tomaram nenhuma medida antes disso.”

A carioca Raísa concorda. “A priori, os militares nas ruas do Rio não é útil. Eles têm ordem para entrar nas comunidades e agem com violência. Essa não é a melhor medida. A principal medida devia ser a descriminalização das drogas, retirar esse poder aos traficantes.”

“O povo não é bobo!”

Paralelamente à violência gratuita da polícia, os manifestantes criticaram alguma cobertura noticiosa do caso – “Abaixo a Rede Globo! O povo não é bobo!” “A Globo filtra as notícias que são dadas ao povo”, explica Sílvia. “É do interesse só de uma classe branca, que está no poder. Na primeira notícia, a Globo disse que Marielle tinha sido executada. Depois corrigiu a notícia e disse que se tinha tratado de um assalto.”

Mais do que uma demonstração de solidariedade para com Marielle Franco, os brasileiros a viver no norte de Portugal procuraram apontar soluções para alguns dos problemas do Brasil.

“Deveria ser dada mais atenção à classe pobre”, defende Sílvia. “Não tratá-la como bandidos, mas tentar melhorar a desigualdade social para que os negros percebam que podem ter voz e podem ser mais ativos politicamente.”

“Não tem saída, só a educação salva”, concorda Raísa. “Seria positivo um maior investimento na educação, uma diminuição dessa militarização da polícia, uma consciencialização do povo em relação aos seus direitos e deveres.”

Todos esperam que a morte de Marielle não tenha sido em vão e que os protestos que ela inspira continuem e que deles frutifique uma maior consciência cívica. Como se lia num dos cartazes erguidos à porta do Consulado brasileiro: “Não sabiam que eras semente!”

(Foto: Marielle Franco, em agosto de 2016 MÍDIA NINJA / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no Expresso Online, a 20 de março de 2018. Pode ser consultado aqui