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Panda, o simpático embaixador da China

Os pandas são um barómetro das relações de Pequim. Empresta-os por amizade e reclama-os quando se zanga

Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, apresenta dois pandas nascidos em Toronto (2016) D.R.

“Ya Ya” regressou à China ao estilo de uma celebridade. Durante meses, milhões de chineses acompanharam, com angústia, a odisseia desta panda fêmea de 23 anos (equivalente a 80 num ser humano), que viveu 20 no jardim zoológico de Memphis, nos Estados Unidos. Desde notícias que lhe atribuíam saúde débil até à morte por ataque cardíaco do seu companheiro “Le Le”, em fevereiro passado, “Ya Ya” gerou grande comoção na China, onde se pediu que retornasse a casa. Quando o avião que a transportou tocou solo chinês, no fim de abril, a hashtag “‘Ya Ya’ aterrou em Xangai” explodiu na rede social Weibo (o Twitter chinês): foi partilhada 430 milhões de vezes.

“Ya Ya” foi para a América em 2003, quando o mundo vivia na sombra do 11 de Setembro, mas a relação entre Washington e Pequim atravessava um bom momento, confirmada pelo apoio dos Estados Unidos à adesão da China à Organização Mundial do Comércio, concretizada em dezembro de 2001. “Ya Ya” era a chancela dessa amizade.

“O panda sinaliza que o Estado chinês está de boas relações com outro Estado e valoriza-o. É uma espécie de marcador de livro”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A diplomacia do panda é uma forma de soft power (projeção de poder por meios pacíficos) um pouco diferente, porque é um presente e uma obrigação. E é reversível, já que alguns pandas voltam para trás.”

Como um diplomata real

Foi o que sucedeu a “Ya Ya”, que deixou os Estados Unidos num contexto oposto ao da sua chegada, com uma guerra comercial, a questão de Taiwan, a disputa em torno do 5G e até o conflito na Ucrânia a encher de obstáculos a via do diálogo entre chineses e americanos. Ainda que de forma simbólica, a panda tornou-se rosto dessa degradação.

Ao lado do líder chinês Xi Jinping, o russo Vladimir Putin visita pandas, num zoo em Moscovo(2019) GETTY IMAGES

“A retirada de um panda é uma espécie de cartão amarelo aos regimes dos países que os recebem. Antes de fazer o que normalmente os Estados fazem — chamar o seu embaixador de volta e baixar o grau de importância da sua missão diplomática —, a China usa os pandas como primeira linha de aviso”, continua Tiago Lopes. “Quando era chanceler, Angela Merkel comparou os pandas a diplomatas. Se um país corta relações com outro, os diplomatas vão-se embora. Com os pandas é o mesmo”, acrescenta Paulo Duarte, especialista em Relações Internacionais das Universidades do Minho e Lusófona.

Os pandas gigantes são nativos da China. O seu habitat natural é nas montanhas de Sichuan, no sudoeste do país. São, por isso, um tesouro nacional que a China só partilha com quem lhe é especial.

A alemã Angela Merkel visita pandas no zoo de Berlim (2017) AXEL SCHMIDT / REUTERS

Na era moderna, a utilização do panda como instrumento de política externa começou a ser posta em prática em 1941 quando, a braços com a invasão japonesa, a República da China agradeceu o apoio dos Estados Unidos e ofereceu dois pandas ao zoo do Bronx (Nova Iorque). A estratégia ganhou visibilidade em 1972 quando da histórica visita à China de Richard Nixon, que desbravou caminho até ao restabelecimento da relação diplomática bilateral, em 1979. O Presidente americano presenteou Mao Tsé-Tung com dois bois-almiscarados e, em troca, o Zoo Nacional do Smithsonian, em Washington, recebeu dois pandas.

Mais longe da extinção

“O panda marca distintivamente a China. Trocar cavalos ou cães é muito comum. No mundo clássico, mesmo a troca de prisioneiros de alto nível ou de príncipes e princesas entre famílias nobres para garantir a paz era normal, mas não distintiva”, realça Tiago Lopes.

Se, antes, a China oferecia pandas, desde 1984 empresta-os, criticada por agir contra a Convenção de 1975 sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. O empréstimo é enquadrado por contratos de longo prazo, que obrigam quem os acolhe ao pagamento de uma verba anual — o contrato padrão é de um milhão de dólares por par (€935 mil), ao ano. “A China pode, em qualquer momento, retirar os pandas e tem até missões para vigiar o seu estado”, diz Paulo Duarte.

Em 2010, a China fez regressar um panda que estava em Washington, depois de Barack Obama ter aberto as portas da Casa Branca ao Dalai Lama, o líder tibetano. No ano seguinte, não cumpriu a promessa de enviar pandas para um zoo norueguês, descontente com a atribuição do Nobel da Paz ao dissidente Liu Xiaobo.

Grande parte das receitas dos alugueres são investidas na conservação da espécie. A política tem dado frutos: em 2016, a União Internacional para a Conservação da Natureza, a autoridade global em matéria de espécies ameaçadas, passou os pandas de espécie “ameaçada” para “vulnerável”. Hoje, estima-se que haja quase 1900 exemplares na natureza e 600 em zoos e centros de reprodução.

Estes peluches de carne e osso são campeões de popularidade e muito contribuem para suavizar a imagem autoritária da China. Para Xi Jinping, são intermediários perfeitos para consolidar amizades.

DIÁLOGOS INFORMAIS

DIPLOMACIA DAS MEIAS Nasceu da irreverência do atual primeiro-ministro do Canadá, que não se inibe em usar meias coloridas em eventos públicos. Numa parada gay em Toronto, Justin Trudeau vestiu meias arco-íris, com a inscrição “Eid Mubarak” (alusiva a uma festa islâmica) e feitas numa empresa da cidade. Nesses preparos, homenageou duas comunidades e promoveu a indústria local. A moda fez escola. Em maio, o primeiro-ministro britânico compareceu num encontro com o homólogo japonês de meias vermelhas com o nome de um clube de basebol japonês. Disse Rishi Sunak a Fumio Kishida: “Espero que a sua equipa de basebol tenha tido uma época melhor do que a minha equipa de futebol.” Conversa para criar pontes.

DIPLOMACIA DO BASQUETEBOL Antes de Donald Trump ser Presidente e promover cimeiras até então impensáveis com Kim Jong-un, o excêntrico basquetebolista americano Dennis Rodman lançou-se numa cruzada para aproximar Estados Unidos e Coreia do Norte. Sem cobertura oficial, liderou delegações de antigas glórias da NBA àquele país totalitário, que realizaram “jogos de boa-vontade” com atletas norte-coreanos. A iniciativa não deu frutos políticos, mas Rodman provou que algum diálogo é possível.

DIPLOMACIA DO CRÍQUETE Índia e Paquistão já se enfrentaram em três guerras desde a partição da Índia britânica e, graças à ferida aberta chamada Caxemira, as duas potências nucleares estão permanentemente envoltos em tensão. Em várias ocasiões, o críquete — desporto mais popular nos dois países — tem sido usado para desanuviar, com jogos entre as duas seleções e dirigentes políticos dos dois lados na tribuna. Enquanto a paz não chega, o críquete cria essa ilusão.

DIPLOMACIA DO BASEBOL Barack Obama foi dos Presidentes americanos que mais tentaram aproximar-se de Cuba. Se há imagens que o provam, são as que o mostram no Estádio Latino-Americano de Havana, ao lado do homólogo Raúl Castro, a ver uma partida de basebol entre a seleção cubana e uma equipa da Florida. A conversa relaxada entre ambos foi puro ato político. Já o basebol, modalidade mais apreciada nos dois países, afirmou semelhanças entre ambos.

DIPLOMACIA DO PINGUE-PONGUE Em 1971, antes da histórica visita de Richard Nixon à China, Pequim convidou jogadores americanos de ténis de mesa para realizarem uma digressão no país. O grupo foi fotografado junto à Grande Muralha e foi capa da revista “Time”, com o título “China: um jogo totalmente novo”. Pouco tempo depois, EUA e China fizeram as pazes.

A AGENDA ESCONDIDA DA DIPLOMACIA DO IOGA

O dia 14 de dezembro de 2014 entrou para a História como a data em que a Índia levou a sua paixão pelo ioga ao palco da política internacional. Na Assembleia-Geral da ONU, apresentou uma resolução aprovada por 175 Estados-membros, a instituir o Dia Internacional do Ioga a cada 21 de junho. Ao fazê-lo, a Índia oficializou o ioga como instrumento de afirmação internacional. “Quando o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, subiu ao poder (em maio de 2014), tentou usar o ioga globalmente para afirmar o poder crescente da Índia, tal como a China faz com os pandas”, diz ao Expresso o indiano Amit Singh, que antes de ser investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foi professor de ioga durante anos. “Na ONU, quase nenhum país se opôs, porque o ioga existe em todo o lado e faz bem a toda a gente. O problema é a agenda escondida do Governo de Modi, a promoção do hindutva”, nacionalismo hindu, que tenta elevar o hinduísmo ao estatuto de religião superior da Índia. “E, infelizmente, o ioga faz parte disso.” Singh tem formação na área dos direitos humanos e do multiculturalismo. “Direitos humanos e ioga são basicamente o mesmo.” Com essa sensibilidade, o indiano desconstrói a centralidade do ioga no projeto de Modi. “Ao promover o ioga no estrangeiro, tenta esconder o que se passa na Índia ao nível da violação dos direitos humanos de muçulmanos, da minoria cristã e de laicos”, acusa. “Acho que o ioga deve ser para toda a gente, mas não deve ser imposto. Modi tenta impô-lo nas mesquitas e escolas muçulmanas.” Depois, “vai ao estrangeiro e fala do exemplo de Gandhi”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui ou aqui

Uma promessa por cumprir

População vasta e jovem não garante à Índia o estatuto de potência global que hoje tem a China, o outro colosso demográfico

SANJAY KANOJIA / AFP / GETTY IMAGES

A Índia está num momento-chave da sua história. O rápido crescimento continuará, provavelmente, e até vai acelerar”, vaticina a prestigiada “Foreign Affairs”. “Trabalhadores da Índia, tendes a atenção do mundo”, diz a respeitada “The Economist”. “A Índia desperta”, prevê a consagrada “Time”. “Alimentada por um crescimento de alta octanagem [resistente à pressão], a maior democracia do mundo está a tornar-se uma potência global. Pelo que o mundo nunca mais será o mesmo.”

Qualquer destas análises ao momento da Índia foi feita… há quase 17 anos. Já em 2006 a projeção internacional daquele país era uma certeza anun­ciada. Chegados a 2023, essa promessa continua por cumprir, mas o potencial continua a alimentar o mesmo tipo de expectativa. “Será este o ‘século indiano’?”, perguntava, há dias, o influente “The New York Times”.

Sem certezas quanto ao dia exato, 2023 ficará na História como o ano em que a Índia ultrapassou a China, tornando-se o país mais populoso do mundo, com mais de 1425 milhões de habitantes. Este marco não resulta de um crescimento demográfico exponencial — na Índia, a taxa média de fecundidade é de dois filhos por mulher —, antes do declínio populacional da China, após décadas de restrições à natalidade impostas pelo Governo de Pequim. Hoje, uma chinesa tem, em média, 1,2 filhos.

“O problema com a população na Índia é que milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza [$2,15/€2 por dia, segundo o Banco Mundial]”, diz ao Expresso o investigador Amit Singh, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Estima-se que em 2019 mais de 600 milhões de indianos (cerca de 45% da população) viviam com menos de 3,65 dólares (€3,30) por dia. “O Governo atual não cuida da população marginalizada, que pode ser um ativo mas também pode tornar-se um fardo.”

Amit Singh é natural do Estado de Utar Pradexe, o mais populoso. No mundo, só quatro países — China, Estados Unidos, Indonésia e Paquistão — têm mais habitantes do que essa região do Norte da Índia.

A força da juventude

“Por si só, o crescimento demográfico não é necessariamente sinónimo de outros tipos de crescimento”, acrescenta ao Expresso Paulo Duarte, professor de Relações Internacionais nas Universidades do Minho e Lusófona. “Pode até ser paradoxal no aumento de maiores riscos, porque nem sempre o crescimento da população é acompanhado pelo aumento de empregos, e isso pode gerar tensões.”

As expectativas em torno do crescimento da Índia assentam noutro registo impressionante. O país tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos. “Chegou a hora. O mundo inteiro olha para a Índia e a maior razão para isso é a juventude. Yuva Shakti [poder da juventude] é a força motriz da jornada de desenvolvimento da Índia”, empolgou-se o primeiro-ministro, Narendra Modi, em janeiro passado, num discurso perante o Corpo Nacional de Cadetes, em Nova Deli.

A Índia tem uma das populações mais jovens do mundo, com uma média de idades a rondar os 29 anos

Para que o país agarre a oportunidade proporcionada por uma população vasta e jovem e destrone a China também a nível económico, contudo, há investimentos urgentes a fazer a nível do capital humano. “Em circunstân­cias normais, ter uma população e uma força de trabalho jovens pode ser um boom para qualquer nação”, diz Amit Singh. “Mas para o Governo indiano a educação não tem sido prioridade, bem como a criação de emprego para os jovens. O desemprego é o mais alto de sempre, em 2023 anda à volta dos 7,5%. É o maior desde a independência”, declarada a 15 de agosto de 1947.

A Índia é independente há 76 anos, mas só há pouco mais de 30 funciona numa lógica de mercado. Os recentes protestos de agricultores, que se prolongaram durante mais de um ano, são sintoma do descontentamento gerado pela aplicação de reformas económicas num sector que dependia de subsídios e de preços fixos estabelecidos pelo Executivo.

Dinheiro sem valor do dia para a noite

“Na Índia há uma falta de visão a curto, médio e longo prazos”, segundo Paulo Duarte. “Não há planos quinquenais, como na China, que é um país comunista mas onde o capitalismo é cada vez mais omnipresente e selvagem. Na China produz-se e projeta-se a longo prazo desde tempos milenares. No próprio Partido Comunista, que tem mais de 90 milhões de militantes, tudo é projetado no tempo e no espaço de forma holística. Esta é uma diferença importante em relação à Índia”, prossegue o académico, a comparar os dois gigantes.

Amit dá como exemplo da falta de planeamento do Governo de Modi — que está no poder há nove anos — o caó­tico 8 de novembro de 2016, quando, sem aviso prévio, o primeiro-ministro comunicou na televisão que à meia-noite daquele dia as notas de 500 e 1000 rupias (€5,50 e €11 ao câmbio atual), as de maior montante, deixariam de ter valor de circulação e teriam de ser depositadas no banco.

Num país onde a esmagadora maioria das transações se faz em dinheiro vivo, Modi justificou a medida com a necessidade de combater a economia paralela e a circulação de dinheiro ilícito e falsificado. “O dinheiro negro e a corrupção são os maiores obstáculos à erradicação da pobreza”, explicou. Ao não acautelar as consequências, porém, o anúncio originou uma corrida às notas de baixo valor. De um dia para o outro, milhões de indianos viram-se sem trocos para pagar a despesa na padaria.

“Isto teve impacto no sector manufatureiro e efeitos devastadores ao nível da pequena e média indústria”, diz o investigador indiano. “Claro que a Índia está a crescer, mas os benefícios desse crescimento económico vão apenas para ricos e para a elite.”

Estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI) preveem que em 2023 a economia indiana seja a que mais cresce em todo o mundo, na ordem dos 5,9%. Ainda que de forma involuntária, há aqui dedo da China. “A pandemia e a guerra comercial [entre EUA e China] mostraram que não pode estar quase tudo localizado na ‘fábrica do mundo’. É impensável, caso surja outra pandemia, estar-se dependente de um único país”, defende Paulo Duarte.

Aptidão para as tecnologias

Várias multinacionais reconheceram que colocar os ovos todos no cesto da China foi má estratégia. Marcas como as desportivas Nike e Adidas ou as tecnológicas Apple e Samsung já começaram a deslocalizar estruturas de produção. Dado a aptidão dos indianos para a área das tecnologias, a Índia surge como alternativa natural.

Dhruva Jaishankar, diretor da Observer Research Foundation America, em Washington, não crê que os indianos tenham características inatas para essa área. “Uma explicação possível é a combinação da ênfase dada ao ensino STEM [modelo de aprendizagem focado em Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemáticas] nos sistemas escolar e universitário indiano, combinada com uma educação básica em inglês, que torna os indianos empregáveis no exterior”, afirma ao Expresso.

“É notável que haja um número tão grande de engenheiros e profissionais de ciência e tecnologia indianos a trabalhar em todo o mundo, muitas vezes com grande procura.” Ao mais alto nível, são exemplos disso os CEO Satya Nadella (Microsoft), Sundar Pichai (Google), Indra Nooyi (PepsiCo), Arvind Krishna (IBM) e Raj Subramaniam (FedEx), nascidos na Índia.

A 18 de abril, Tim Cook inaugurou, em pessoa, a primeira loja da Apple na Índia, em Mumbai, a capital financeira. A gigante americana já instalou unidades de produção de iPhones nos Estados de Tâmil Nadu e Carnataca, cuja capital é Bangalore, a “Silicon Valley” indiana. Num relatório envia­do a clientes em outubro de 2022, analistas do banco JPMorgan previram que até 2025 um em cada quatro iPhones seja fabricado na Índia.

UMA DIMENSÃO ÚNICA

86 mil

crianças nascem na Índia, em média, todos os dias. Na China, esse número ronda os 49.400. A taxa de natalidade indiana é de dois filhos por mulher, enquanto na China caiu para 1,2

100

smart cities [cidades inteligentes] serão desenvolvidas por toda a Índia no âmbito de um programa de renovação e modernização urbana lançado pelo Governo em 2015. Utar Pradexe é o Estado com mais projetos (14)

23%

das indianas realizam um trabalho pago, diz o Banco Mundial. No vizinho Bangladeche esse número é de 37%, e na China de 63%. Na Índia, as mulheres são ainda pressionadas a não trabalhar fora de casa

ÍNDIA PRECISA DE ‘FILHOS ÚNICOS’?

Em 1979, a braços com um crescimento exponencial da sua população e receios de que o país não produzisse o suficiente para alimentar tantas bocas, a China impôs o limite de um filho por casal. Em 2016, a restrição passou a dois filhos e em 2021 foi abolida. Hoje, Pequim contabiliza os custos dessa política, que levou a esterilizações, abortos forçados, feminicídios e retirou sentido às palavras “irmã” e “irmão”. “A Índia não precisa de medidas restritivas centradas no controlo, como a política do filho único. O seu percurso demonstra que o declínio da fertilidade pode ocorrer sem coerção. O programa de planeamento familiar é voluntário e alcançou o nível de fertilidade de reposição [dois filhos por mulher] sem quaisquer medidas coercivas”, assegura ao Expresso Poonam Muttreja, diretora-executiva da Fundação da População da Índia. Esta responsável rejeita o cenário de “explosão” demográfica. Salienta que o país está no caminho da estabilização, após ter mudado de paradigma: “A ênfase era o controlo populacional”, agora está em “melhorar a qualidade de vida como meio de alcançar uma população estável”.

Artigo publicado no “Expresso”, a 19 de maio de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

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17 respostas para 2023: da guerra na Ucrânia aos protestos na China e no Irão, passando por epidemias e acordos globais

Podemos prever o futuro? Provavelmente não, tal como não escapamos a apostar no desenvolvimento dos temas que acompanhamos ao longo do ano. Aqui ficam as respostas da equipa do Internacional às perguntas que colocaram por si, leitor

1 A Guerra na Ucrânia vai acabar?
Sem vontade de procurar uma solução diplomática, a guerra só pode terminar no terreno com uma conquista suficientemente esmagadora (ou, no caso da Ucrânia, uma reconquista) que obrigue o outro lado a capitular ou a aceitar negociações de paz. O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, diz que a paz pressupõe que a Rússia entregue a Kiev todos os territórios anexados desde 2014, o que é pouco realista. Do lado russo continuam os ultimatos e ameaças. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, disse que a Ucrânia tem de completar o processo de “desnazificação e desmilitarização”, ou “o assunto será resolvido pelo exército russo”.

2 A próxima COP (28) conseguirá um acordo de redução dos combustíveis fósseis?
O elefante no meio da sala das conferências globais das Nações Unidas para o Clima permanece a ausência de acordo para a redução das emissões de gases com efeito de estufa de modo a impedir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 1,5º, o que já é uma irrealidade em si. A vitória da COP27 foi o reconhecimento das “perdas e danos” e “falar-se” em indemnizações para os países mais prejudicados pelas ondas de calor prolongadas, secas agudas prolongadas, subida do nível da água do mar, acidificação dos oceanos, incêndios selvagens, inundações bíblicas e extinção de espécies no chamado Sul global. O lóbi dos combustíveis fósseis não perdeu ainda terreno.

3 Lula da Silva vai governar o Brasil à esquerda?
O homem que, pela terceira vez, toma posse como Presidente a 1 de janeiro tem de privilegiar as políticas sociais e ambientais para cumprir as promessas feitas na campanha eleitoral. O grande desafio do novo Governo é conseguir atribuir verbas para a Cultura, Educação, Saúde e Ambiente – sobretudo no combate ao desmatamento da Amazónia – e manter o equilíbrio das contas públicas para evitar uma escalada inflacionista. A resposta executiva passa, em boa parte, pelo trabalho dos futuros titulares da pasta da Fazenda, Fernando Haddad, e da pasta do Planeamento, Simone Tebet.

4 Cyril Ramaphosa é destituído da presidência da África do Sul?
Em 13 de dezembro, Cyril Ramaphosa sobreviveu a um voto de destituição na Assembleia Nacional pedido pelos partidos da oposição. O Presidente da República e do ANC, que sucedeu a Jacob Zuma após escândalos de corrupção sem precedentes e captura do Estado, prometeu voltar a pôr o país nos eixos. Porém viu-se envolvido num processo cujas acusações combate ainda em tribunal, o qual pode vir a acusar Ramaphosa de “má conduta e violação da Constituição”. Ainda que tenha vencido até agora, o ANC, tem perdido eleitores em cada eleição desde 1994. Por enquanto, Ramaphosa conta com o apoio do ANC para limpar o seu nome sem perder a credibilidade política. Até quando, se 2023 é ano de eleições gerais?

5 Como vai acabar a revolta no Irão?
Os protestos já contam mais de 100 dias e as imagens que nos chegam do Irão mostram que as pessoas continuam a acorrer às ruas apesar dos castigos aplicados serem cada vez mais severos. Pelo menos 506 pessoas já perderam a vida e outras 40 aguardam execução, segundo uma investigação da CNN. Sem liderança coesa e com este nível de repressão, tortura, prisão e morte é pouco provável que a liderança dos aiatolas venha a ser derrubada, porém os iranianos dizem que algumas mudanças já são visíveis nas ruas. Um exemplo é a recusa de muitas mulheres em usar o lenço sobre os cabelos.

6 O regime chinês vai ceder aos protestos?
Semanas depois de o Presidente Xi Jinping assumir um terceiro mandato na liderança do Partido Comunista da China emergiram protestos em várias cidades do país contra a política de ‘zero casos’ de covid-19. Foram a maior demonstração pública de descontentamento desde o massacre de Tiananmen em 1989. A ida à rua parece ter resultado. Várias medidas foram relaxadas no seu seguimento e demonstrou a capacidade da população em manifestar-se apesar da censura existente no país. No entanto, é incerto quais são as políticas estatais que podem vir a gerar oposição com esta capacidade de mobilização.

7 As pandemias e vírus assustadores vieram para ficar?
O risco de novas epidemias é certo e os especialistas alertam os Estados para que tenham respostas enérgicas. Tal como os tsunamis, a covid-19 convenceu da necessidade de sistemas de alerta que permitam detetar os problemas de forma a controlá-los. Antes da Sars-cov-2, a década de 1980 conheceu a sida. Porém, foi “a partir do ano 2000 que se assistiu a uma série de acontecimentos que traduzir a emergência inesperada de fenómenos epidémicos de natureza zoonótica”, como lembra Francisco George, ex-diretor-geral de Saúde de 2005 a 2017, referindo-se a doenças que têm origem em agentes infecciosos que têm animais como reservatório.

8 Erdogan perde a presidência da Turquia?
É possível. Porém não se sabe ainda se é provável, uma vez que a oposição, grande parte dela unida com o único propósito de derrotar Erdogan, ainda não apresentou candidato. As sondagens, contra um opositor desconhecido, dão ao incumbente cerca de 34% das intenções de voto, o mesmo valor atribuído ao seu partido, Justiça e Desenvolvimento (AKP), nas eleições parlamentares, também em 2023, o ano do centenário do país. Não chega para a vitória. O declínio da economia vai ser o tema principal da campanha. Resta saber a quem vai o povo atribuir a culpa.

9 A Itália de Giorgia Meloni vai continuar nas boas graças de Bruxelas?
Giorgia Meloni – líder do partido de extrema-direita Irmãos de Itália – foi eleita primeira-ministra de Itália em setembro. A postura de euroceticismo gerou preocupação, porém Meloni tem procurado acalmar a esfera internacional assumindo um discurso mais moderado. Perante o Parlamento repudiou o fascismo e mostrou oposição a “qualquer forma de racismo”; em viagem a Bruxelas afirmou querer uma defesa dos interesses nacionais “dentro da dimensão Europeia”. A reação foi positiva, com a Presidente da Comissão Europeia a agradecer Meloni pelo “forte sinal” ao escolher Bruxelas como a primeira viagem enquanto líder do governo italiano.

10 A Índia vai continuar a comprar petróleo à Rússia?
É provável. A Rússia tornou-se o principal fornecedor de petróleo da Índia em novembro, com importações a chegarem aos 908 mil barris por dia. As declarações de figuras do governo indiano não sugerem mudanças de rumo. Em dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros deu a entender que se a Europa pode priorizar as suas necessidades energéticas, não deve pedir à Índia para nao priorizar as suas também. Em outubro, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou numa resolução a condenar os referendos ilegais de anexação realizados pela Rússia em territórios da Ucrânia. A Índia foi um dos 35 países a absterem-se.

11 O regime talibã vai ser reconhecido internacionalmente?
Não é de esperar. Os talibãs estão há mais de um ano no poder, o tempo suficiente para que algum país os reconhecesse como governo legítimo. Na década de 1990, quando governaram pela primeira vez, foram reconhecidos por Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Decisões como a recente proibição do acesso das mulheres afegãs às universidades tornam embaraçoso o reconhecimento do regime. A medida foi criticada de forma generalizada, inclusive por países muçulmanos: a Arábia Saudita expressou “espanto e desapontamento” e a Turquia considerou a decisão “nem islâmica nem humana”.

12 O conflito no Nagorno-Karabakh voltará a escalar?
É inevitável. Não há um processo de paz digno desse nome neste conflito que opõe dois países tornados independentes após o desmembramento da União Soviética: a cristã Arménia e o muçulmano Azerbaijão. De um lado e do outro, há apoios importantes que conferem a este conflito, que se arrasta desde finais da década de 1980, uma dimensão geopolítica: a Rússia apoia os arménios e a Turquia os azeris. Esta disputa pelo enclave de Nagorno-Karabakh, no sul do Cáucaso, que oscila entre períodos de guerra aberta e outros de tensão latente, ressente-se muito do estado da relação entre estes dois países.

13 O embargo dos EUA a Cuba vai terminar?
Não é provável, ainda que as razões que sustentam o bloqueio económico à ilha sejam cada vez mais indefensáveis. O embargo dura há décadas basicamente por uma questão de política interna dos EUA. É ponto de honra da imensa comunidade cubana que vive na Florida, que odeia o regime cubano e que, a cada ato eleitoral, vota em função da posição dos partidos / candidatos em relação a Cuba. A eleição de Joe Biden, que não venceu na Florida, prova que o voto cubano não é imprescindível. A nível internacional, os EUA estão praticamente isolados nesta questão: na ONU apenas Israel vota ao seu lado.

14 Ron DeSantis vai entrar na corrida presidencial?
É muito possível. A menos de dois anos das presidenciais de 2024, ele é visto como o republicano melhor posicionado para bater o pé a Donald Trump, que já anunciou que irá disputar as primárias do partido do elefante. O potencial de Ron DeSantis decorre da reeleição como governador da Florida, em novembro, derrotando o candidato democrata com quase 60% dos votos. Entre os republicanos, também o antigo vice-presidente de Trump, Mike Pence, dá cada vez mais sinais de querer aventurar-se na corrida à Casa Branca: lançou um livro e tem-se desdobrado em viagens pelo país, discursos e entrevistas.

15 Isabel dos Santos pode ir parar à prisão?
Desde que a investigação do Luanda Leaks começou a ser divulgada pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, no início de 2020, a filha do antigo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, tem confiado nos melhores escritórios de advogados dos vários países europeus onde os negócios que ali fazia se transformaram em problemas. Autoridades de Portugal e da Holanda arrastaram contas bancárias, imobiliário e participações em empresas e, mais recentemente, o Supremo Tribunal de Angola autorizou o arresto preventivo dos bens da empresária Isabel dos Santos no valor de mil milhões de dólares, a pedido do Ministério Público. As múltiplas camadas usadas nos negócios ainda a protegem, porém, o cerco aperta-se.

16 A China vai invadir Taiwan?
A China afirma que Taiwan é “uma questão interna” e “a primeira linha vermelha que não deve ser cruzada” nas relações com os Estados Unidos. A aliança internacional que os EUA e a União Europeia mostraram contra a Rússia pode levar a China a ser mais cautelosa nos passos para uma reunificação com Taiwan, mas as tensões têm-se vindo a agravar e mantêm-se os receios de um escalar da situação. No Congresso do Partido Comunista da China, o líder Xi Jinping afirmou que o objetivo é uma reunificação pacífica ainda que o país não renuncie ao uso da força. Em outubro, o almirante americano Mike Gilday alertou que pode ocorrer uma invasão até 2024.

17 Irá Donald Trump ser acusado formalmente pelo Departamento de Justiça norte-americano?
Há vários indicadores nesse sentido, sim. Porém o caso é muito sensível uma vez que Trump já apresentou a candidatura à Casa Branca e levá-lo a tribunal poderia ser considerado um ato desenhado especificamente para o impedir de voltar à presidência, e provocar uma divisão ainda maior no país. No entanto, o homem que neste momento dirige as investigações, Jack Smith, já enviou diversas intimações para depor a várias pessoas que estiveram em contacto com Trump durante as suas tentativas para interferir com o resultado das presidenciais de 2020.

Texto escrito com Ana França, Cristina Peres, Manuela Goucha Soares e Salomé Fernandes.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 29 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui e aqui

Esquecidos e assimilados à força, tibetanos já só querem autonomia

Ofuscado pela agitação em Hong Kong, a tensão em Taiwan e o drama dos uigures, o Tibete continua a ser uma pedra no sapato de Pequim

A escala de Mingyur Paldon no aeroporto de Lisboa, a 3 de janeiro passado, devia ter durado só uma hora, mas prolongou-se por quase um dia inteiro. Em trânsito entre os Estados Unidos, onde estuda Relações Internacionais e Desenvolvimento Humano no Connecticut College, e a Bélgica, onde ia fazer um semestre, esta tibetana, de 22 anos, viu a viagem interrompida quando, a caminho da ligação, foi intercetada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Foi interrogada após cinco horas de espera e percebeu que havia desconfianças em relação ao documento com que viajava: um “certificado de identidade” emitido pelo Governo da Índia para refugiados tibetanos. Parecido com um passaporte amarelo, tem ao centro o capitel do Leão de Ashoka, emblema nacional da Índia. Mingyur — que nasceu no Tibete e chegou à Índia aos dois anos — usou-o sem problemas no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Portugal não foi aceite.

No aeroporto, “foram muito ignorantes sobre um conjunto de coisas”, afirma ao Expresso. “Disseram que eu devia ter uma cidadania, de alguma forma, e perguntaram se não tinha passaporte chinês. Expliquei que não é possível, porque sou refugiada. Deixaram-me ir, mas recusaram-se a carimbar o meu passaporte. Fizeram-no no cartão de embarque.” Após pernoitar num hotel perto do aeroporto, deixou o país às 7h20 do dia 4.

Antes morto do que preso

Desde o início do ano, já morreram três tibetanos imolados pelo fogo. Tsewang Norbu, cantor de 25 anos a quem chamam “o Justin Bieber tibetano”, sacrificou-se em frente ao Palácio Potala, em Lassa. Em Ngaba, um homem de 81 anos imolou-se junto a um posto da polícia. Em junho, em Kanlho, um monge morreu ao lado de uma foto do Dalai Lama, o líder espiritual tibetano.

Perante tibetanos que se imolam pelo fogo, o Governo chinês fica impotente. Não sobra ninguém para punir

Desde 2009, foram já 161 os tibetanos a recorrer a esta forma extrema de protesto. “Nos anos 80 havia manifestações quase todos os meses, que o Governo chinês tratou de controlar e eliminar. Quem participasse ia preso, era torturado e via as famílias sofrer. Com práticas coercivas de controlo, intimidavam comunidades inteiras. Por vezes, não apenas a família, mas todo o bairro era punido”, recorda ao Expresso Tsering Shakya, da Universidade de British Columbia, em Vancôver (Canadá).

A experiência de Mingyur em Portugal é apenas um exemplo das dificuldades que enfrentam os estimados 150 mil tibetanos da diáspora. Nada comparável, porém, ao quotidiano de desespero e frustração de mais de seis milhões, que vivem, desde 1950, sob ocupação chinesa, no planalto tibetano: dois milhões na Região Autónoma, quatro milhões noutras regiões chinesas.

“A maioria dos presos só saía em liberdade quando estava prestes a morrer. Os tibetanos começaram a perceber que ser preso significava morrer e que imolarem-se não requeria qualquer organização, apenas que fossem a uma praça e ateassem fogo ao corpo. Não sobraria ninguém para ser punido e o Governo ficaria impotente”, continua o tibetano, nascido em Lassa em 1959. “Negar o poder de torturar é poderoso.”

Mal atendeu a videochamada do Expresso, o professor agarrou no livro que andava a ler e mostrou-o para a câmara. “É sobre os jesuítas portugueses no Tibete. Estavam em Goa, na Índia, e foram para o Oeste do Tibete. Foram muito importantes de 1582 até cerca de 1700. Mas o Papa mandou que se retirassem e deixassem o Tibete para os confucianos. Foi um grande erro.”

JAIME FIGUEIREDO

As armas de Pequim

Desde 1984 que a China tem em vigor uma lei da autonomia regional pela qual formalizou a atribuição de autonomia às suas minorias. Desde que Xi Jinping é Presidente (2013), no entanto, a situação do Tibete “piorou muito”, conta ao Expresso Tsering Tsomo, diretora-executiva do Centro Tibetano para os Direitos Humanos e Democracia, com sede em Dharamshala, na Índia. “O Governo chinês está a aplicar ativamente uma política de assimilação cultural forçada.” O professor Shakya fala de “colonização mental do Tibete”.

Cerca de 800 mil crianças vivem em internatos coloniais e recebem uma educação altamente politizada

A autoridade chinesa exerce-se prioritariamente no sector educativo. Na escola, ensina-se desde tenra idade que o Tibete faz parte da China e que o hino nacional que devem saudar é a “Marcha dos Voluntários”. Tudo é explicado em chinês, sendo o tibetano ensinado como língua estrangeira.

Um relatório recente do Tibet Action Institute expõe “uma vasta rede de internatos coloniais no Tibete, onde os estudantes vivem separados das suas famílias e são sujeitos a uma educação altamente politizada, essencialmente em chinês”. Afeta pelo menos 800 mil crianças, dos 6 aos 18 anos.

O que querem os tibetanos?

Desde que, na década de 80, Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, teorizou o “Caminho do Meio” — que consagra a interpretação budista da vida quotidiana e rejeita posições extremas — que as aspirações políticas tibetanas ficaram claras. A posição oficial do Governo tibetano no exílio (em Dharamshala, no Norte da Índia, para onde o Dalai Lama fugiu em 1959, após uma revolta tibetana esmagada pelos chineses) é de apelo à autonomia, não à independência.

‘Um país, dois sistemas’ não seduziu Taiwan e não funciona em Hong Kong. Porque haveria o Tibete de aceitar?

Nascida na Índia, Tsering Tsomo, de 45 anos, nunca foi ao Tibete. “É preciso uma autorização das autoridades chinesas. Trabalho na área dos direitos humanos, é impossível. Sei que estou sob vigilância.” Podia obter cidadania indiana com facilidade, mas prefere manter o estatuto de refugiada e lutar pelo sonho nacional. “Apelamos a uma verdadeira autonomia, não só na Região Autónoma como em todas as áreas tibetanas. Devem beneficiar e exercer poderes de autogoverno.”

O quarto problema

Quando o Dalai Lama propôs o “Caminho do Meio” aos tibetanos, a China ofereceu a Hong Kong, Macau e Taiwan a fórmula “um país, dois sistemas”. “Não seduziu Taiwan e não está a funcionar em Hong Kong. Porque é que o Tibete haveria de aceitar algo semelhante?”, questiona Shakya. Se o Tibete já foi o principal fantasma a perseguir Pequim fora de portas, hoje três outros problemas absorvem a atenção mediática: a repressão à minoria uigur (muçulmana) em Xinjiang, o silenciamento do movimento pró-democracia em Hong Kong e a tensa coexistência com a China nacionalista (Taiwan).

A China está a ficar mais descarada. Pode fazer o que quer e a comunidade internacional nada faz

“O Tibete foi relegado para quarto lugar”, apesar de ter sido “o primeiro assunto que chamou a atenção da comunidade internacional para quão implacável e brutal é o regime comunista chinês”, diz a ativista Tsering. “Foi o primeiro aviso, mas tudo continuou na mesma. E outros problemas surgiram. Todo este acumular de questões mostra como a China está a ficar mais descarada, pensando que pode fazer o que quer e que a comunidade internacional não faz nada. O Tibete devia ser um alerta para que mais nenhum assunto fosse adicionado à lista.”

(IMAGEM Bandeira do Tibete WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 29 de julho de 2022. Pode ser consultado aqui

Seis razões (e cinco ilustrações) que justificam os apelos ao boicote dos Jogos Olímpicos de Pequim

Um conjunto de dossiês polémicos, alguns dos quais duram há décadas, colocam a China sob permanente escrutínio internacional. Sempre que Pequim procura projetar prestígio, como acontece com a realização dos Jogos Olímpicos de Inverno, não falta quem recorde que há problemas que continuam por resolver. Da ocupação do Tibete à ameaça de invasão a Taiwan, da repressão da minoria uigur à falta de transparência em relação à origem da pandemia de covid-19

Ocasiões como os Jogos Olímpicos projetam os países que os organizam à escala planetária. Tornam-se montras de poder e de capacidade, mas podem contribuir também para virar os holofotes para situações que se quer manter discretas. É o que acontece com a China, anfitriã dos XXIV Jogos Olímpicos de Inverno até domingo próximo.

Alguns pesos pesados da política, e também do desporto, como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália, decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim. À semelhança do que aconteceu na cerimónia de abertura, não se farão representar na festa de encerramento. 

O boicote não prejudicou o evento a nível desportivo, já que os mesmos países enviaram atletas para competir, mas beliscou o prestígio de Xi Jinping. Nos corredores políticos, significa uma reprovação tácita da atuação do Presidente chinês e, implicitamente, das lideranças que o antecederam, em problemas que se arrastam há anos.

OCUPAÇÃO DO TIBETE

Apelidada de “teto do mundo”, em virtude dos picos montanhosos que a caracterizam, a região do Tibete vive sob ocupação chinesa há sete décadas. A repressão do povo tibetano — que incluiu a destruição de cerca de 6000 mosteiros e templos budistas — atirou grande parte da população para um exílio forçado. Foi também o destino do líder espiritual Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, galardoado com o Prémio Nobel da Paz em 1989, que acusa o regime chinês de “genocídio cultural”. 

“Estes 50 anos trouxeram sofrimento e destruição incalculáveis à terra e ao povo do Tibete. Hoje, a religião, a cultura, a língua e a identidade estão em vias de extinção. O povo tibetano é visto como um criminoso que merece ser morto”, afirmou em 2009, por altura do 50.º aniversário de uma tentativa de revolta tibetana, que foi reprimida e que o levou ao exílio na Índia. “No entanto, é uma conquista a questão do Tibete estar viva e a comunidade internacional interessar-se cada vez mais por ela. Não tenho dúvidas de que a justiça da causa do Tibete prevalecerá, se continuarmos a trilhar o caminho da verdade e da não-violência.”

Se fosse um país independente, o Tibete seria, em área, o 10.º maior do mundo. Para a China, esse imenso território — que faz fronteira com Myanmar, Butão, Nepal e Índia, nomeadamente com a conflituosa região da Caxemira — é parte inalienável da sua soberania. Para o povo tibetano, é a sua pátria ancestral e um Estado independente desde 1913 (após o fim da dinastia Qing), hoje sob ocupação ilegal.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

Aquando dos Jogos Olímpicos (de verão) de Pequim de 2008, a campanha “Liberdade para o Tibete” motivou protestos em todo o mundo. O tradicional rito do transporte da tocha olímpica desde a Grécia até ao local dos Jogos transformou-se numa prova de obstáculos, com ativistas a tentarem romper o cordão de segurança à volta do estafeta para apagar a chama.

Em outubro passado, em vésperas de se repetir o ritual, dois ativistas foram detidos junto à Acrópole de Atenas, após desfraldarem uma bandeira do Tibete e uma tarja que dizia: “Revolução Hong Kong Livre”. Eram uma tibetana de 18 anos e um rapaz de 22, nascido em Hong Kong e a viver no exílio, outro dossiê quente que a China tem em mãos.

CERCO À DEMOCRACIA EM HONG KONG

Quando Hong Kong foi transferido do Reino Unido para a República Popular da China, em 1997, ficou acordado um período de transição de 50 anos, durante o qual a antiga colónia britânica conservaria a sua autonomia económica, bem como direitos e liberdades não extensivos à população da China Continental. 

Esse estatuto — ao abrigo do princípio “um país, dois sistemas” — tem sofrido erosão, com sucessivas leis a subordinarem crescentemente o quotidiano de Hong Kong à vontade de Pequim. A 30 de junho de 2020, a introdução de uma nova Lei da Segurança Nacional no território, na sequência de gigantescas manifestações populares pró-democracia, acentuou esse controlo político e o cerco à oposição democrática.

ILUSTRAÇÃO Badiucao

A nova lei “limpou” as ruas de manifestantes, que passaram a correr o risco de terem de responder por crimes de “secessão, subversão, terrorismo”, e colocou uma mordaça no sector da comunicação social. Jornais independentes tiveram de fechar portas na sequência da prisão de jornalistas ou da apreensão de ativos. O último foi o “Zhongxin News”, em janeiro passado, e antes dele o “Stand News”, em dezembro. Um dos títulos mais populares, o “Apple Daily”, encerrou em junho de 2020. O seu proprietário, o milionário Jimmy Lay, foi preso e condenado a 14 meses de prisão por “organização de protestos ilegais”.

Na avaliação da organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a China surge como um dos “predadores” da liberdade de informação. No relatório de 2021, ocupa o 177º lugar (em 180), devido a “censura na Internet, vigilância e propaganda a níveis sem precedentes”. Há 78 jornalistas e 39 “jornalistas cidadãos” presos na China.

‘BIG BROTHER’ CHINÊS

À partida para Pequim, vários comités olímpicos nacionais sugeriram aos membros das respetivas delegações que usassem telemóveis provisórios durante a sua estada na China. Segundo o jornal holandês “De Volkskrant”, o Comité Olímpico dos Países Baixos proibiu mesmo os seus atletas de levarem smartphones e laptops pessoais.

Com o evento a decorrer em tempo de pandemia, a organização solicitou a atletas, dirigentes e jornalistas que instalassem a aplicação MY2020 para reportarem, diariamente, o seu estado de saúde. Esta medida desencadeou receios de espionagem digital.

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Nos últimos anos, na China, um sistema de vigilância intrusivo tem ganho contornos cada vez mais Orwellianos. Uma das suas dimensões é o Sistema de Crédito Social, que consiste num mecanismo de pontuação dos cidadãos e que os recompensa ou penaliza em função de comportamentos. 

De iniciativa governamental, este projeto lançado em 2014 ambiciona traçar o perfil pormenorizado de cada um dos mais de 1300 milhões de habitantes da China Continental — numa primeira fase, Macau e Hong Kong ficam de fora.

REPRESSÃO DOS UIGURES

A segregação e a violência com que as autoridades chinesas tratam a minoria uigur (muçulmana) têm-lhes valido acusações de “genocídio”. Segundo organizações internacionais dos direitos humanos, nos últimos anos, mais de um milhão de uigures foram enviados para “campos de reeducação” na província de Xinjiang, no noroeste da China. Há denúncias de trabalhos forçados, de esterilização à força de mulheres e relatos de tortura e abusos sexuais.

Pequim tem repetidamente negado maus tratos aos uigures e defende as suas ações em Xinjiang com a necessidade de combater o terrorismo. Dentro desta narrativa, os campos são considerados uma espécie de centros de formação vocacional cujo objetivo é manter os uigures longe da radicalização.

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Quando anunciaram o boicote diplomático aos Jogos de Pequim, os Estados Unidos justificaram a posição com o “genocídio e os crimes contra a Humanidade em curso em Xinjiang e outras violações dos direitos humanos” pelo regime chinês.

Numa tentativa de limpar a imagem — ou de passar a mensagem de que não aceita lições em matéria de direitos humanos —, a China proporcionou um momento de grande simbolismo na cerimónia de abertura dos Jogos: um dos dois atletas escolhidos para acender a chama olímpica no interior do estádio foi um esquiador uigur.

ASSÉDIO’ A TAIWAN

Também chamada China Nacionalista, Taipé ou Formosa, esta ilha situada a cerca de 180 km da costa chinesa é um Estado independente para apenas 15 países em todo o mundo (e funciona como tal, sob um regime democrático). Mas a disputa geopolítica em torno do seu futuro político é um desafio à paz mundial.

Para Pequim, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoísta em todo o território chinês e corporiza um projeto político alternativo que ameaça a política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado chinês soberano e Taiwan faz parte dele.

De tempos a tempos, a China manifesta o seu ascendente sobre a ilha fazendo incursões aéreas na área de defesa de Taiwan. Em finais de janeiro, Pequim bateu o recorde diário de intrusões, com 39 aviões de guerra a aproximarem-se da “província rebelde”. Este modus operandi tem valido à China condenações internacionais, mas para Pequim funcionam como simulações de uma eventual invasão de Taiwan no caso de falhar a reunificação por via pacífica, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

A ORIGEM DA COVID

Mais de dois anos após o início da pandemia de covid-19 — cujo vírus foi detetado, pela primeira vez, em dezembro de 2019, na cidade chinesa de Wuhan —, a falta de explicações sobre como tudo começou origina desconfianças em relação à responsabilidade da China. “Infelizmente, o que vimos da República Popular da China, desde o início desta crise, é incumprimento das suas responsabilidades básicas em termos de acesso e partilha de informações”, acusou o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken.

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Entre 14 de janeiro de 10 de fevereiro de 2021 — quase um ano após ser declarada a pandemia —, uma missão da Organização Mundial da Saúde (OMS) esteve por fim na China, para tentar apurar factos. Divulgado o relatório final, um conjunto de 14 países, entre os quais os EUA, Reino Unido, Japão e Israel, emitiu um comunicado conjunto dizendo que o relatório “foi significativamente atrasado e não continha acesso a dados e amostras completos e originais”.

Esta posição soou como crítica à influência da China dentro da OMS e à incapacidade da organização conduzir uma investigação independente, já que Pequim pôde vetar cientistas destacados para integrar a missão e impor limitações aos investigadores durante a visita.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 16 de fevereiro de 2022. Pode ser consultado aqui