Os pandas são um barómetro das relações de Pequim. Empresta-os por amizade e reclama-os quando se zanga

“Ya Ya” regressou à China ao estilo de uma celebridade. Durante meses, milhões de chineses acompanharam, com angústia, a odisseia desta panda fêmea de 23 anos (equivalente a 80 num ser humano), que viveu 20 no jardim zoológico de Memphis, nos Estados Unidos. Desde notícias que lhe atribuíam saúde débil até à morte por ataque cardíaco do seu companheiro “Le Le”, em fevereiro passado, “Ya Ya” gerou grande comoção na China, onde se pediu que retornasse a casa. Quando o avião que a transportou tocou solo chinês, no fim de abril, a hashtag “‘Ya Ya’ aterrou em Xangai” explodiu na rede social Weibo (o Twitter chinês): foi partilhada 430 milhões de vezes.
“Ya Ya” foi para a América em 2003, quando o mundo vivia na sombra do 11 de Setembro, mas a relação entre Washington e Pequim atravessava um bom momento, confirmada pelo apoio dos Estados Unidos à adesão da China à Organização Mundial do Comércio, concretizada em dezembro de 2001. “Ya Ya” era a chancela dessa amizade.
“O panda sinaliza que o Estado chinês está de boas relações com outro Estado e valoriza-o. É uma espécie de marcador de livro”, diz ao Expresso Tiago André Lopes, professor de Relações Internacionais na Universidade Portucalense. “A diplomacia do panda é uma forma de soft power (projeção de poder por meios pacíficos) um pouco diferente, porque é um presente e uma obrigação. E é reversível, já que alguns pandas voltam para trás.”
Como um diplomata real
Foi o que sucedeu a “Ya Ya”, que deixou os Estados Unidos num contexto oposto ao da sua chegada, com uma guerra comercial, a questão de Taiwan, a disputa em torno do 5G e até o conflito na Ucrânia a encher de obstáculos a via do diálogo entre chineses e americanos. Ainda que de forma simbólica, a panda tornou-se rosto dessa degradação.

“A retirada de um panda é uma espécie de cartão amarelo aos regimes dos países que os recebem. Antes de fazer o que normalmente os Estados fazem — chamar o seu embaixador de volta e baixar o grau de importância da sua missão diplomática —, a China usa os pandas como primeira linha de aviso”, continua Tiago Lopes. “Quando era chanceler, Angela Merkel comparou os pandas a diplomatas. Se um país corta relações com outro, os diplomatas vão-se embora. Com os pandas é o mesmo”, acrescenta Paulo Duarte, especialista em Relações Internacionais das Universidades do Minho e Lusófona.
Os pandas gigantes são nativos da China. O seu habitat natural é nas montanhas de Sichuan, no sudoeste do país. São, por isso, um tesouro nacional que a China só partilha com quem lhe é especial.

Na era moderna, a utilização do panda como instrumento de política externa começou a ser posta em prática em 1941 quando, a braços com a invasão japonesa, a República da China agradeceu o apoio dos Estados Unidos e ofereceu dois pandas ao zoo do Bronx (Nova Iorque). A estratégia ganhou visibilidade em 1972 quando da histórica visita à China de Richard Nixon, que desbravou caminho até ao restabelecimento da relação diplomática bilateral, em 1979. O Presidente americano presenteou Mao Tsé-Tung com dois bois-almiscarados e, em troca, o Zoo Nacional do Smithsonian, em Washington, recebeu dois pandas.
Mais longe da extinção
“O panda marca distintivamente a China. Trocar cavalos ou cães é muito comum. No mundo clássico, mesmo a troca de prisioneiros de alto nível ou de príncipes e princesas entre famílias nobres para garantir a paz era normal, mas não distintiva”, realça Tiago Lopes.
Se, antes, a China oferecia pandas, desde 1984 empresta-os, criticada por agir contra a Convenção de 1975 sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Extinção. O empréstimo é enquadrado por contratos de longo prazo, que obrigam quem os acolhe ao pagamento de uma verba anual — o contrato padrão é de um milhão de dólares por par (€935 mil), ao ano. “A China pode, em qualquer momento, retirar os pandas e tem até missões para vigiar o seu estado”, diz Paulo Duarte.
Em 2010, a China fez regressar um panda que estava em Washington, depois de Barack Obama ter aberto as portas da Casa Branca ao Dalai Lama, o líder tibetano. No ano seguinte, não cumpriu a promessa de enviar pandas para um zoo norueguês, descontente com a atribuição do Nobel da Paz ao dissidente Liu Xiaobo.
Grande parte das receitas dos alugueres são investidas na conservação da espécie. A política tem dado frutos: em 2016, a União Internacional para a Conservação da Natureza, a autoridade global em matéria de espécies ameaçadas, passou os pandas de espécie “ameaçada” para “vulnerável”. Hoje, estima-se que haja quase 1900 exemplares na natureza e 600 em zoos e centros de reprodução.
Estes peluches de carne e osso são campeões de popularidade e muito contribuem para suavizar a imagem autoritária da China. Para Xi Jinping, são intermediários perfeitos para consolidar amizades.
DIÁLOGOS INFORMAIS
DIPLOMACIA DAS MEIAS Nasceu da irreverência do atual primeiro-ministro do Canadá, que não se inibe em usar meias coloridas em eventos públicos. Numa parada gay em Toronto, Justin Trudeau vestiu meias arco-íris, com a inscrição “Eid Mubarak” (alusiva a uma festa islâmica) e feitas numa empresa da cidade. Nesses preparos, homenageou duas comunidades e promoveu a indústria local. A moda fez escola. Em maio, o primeiro-ministro britânico compareceu num encontro com o homólogo japonês de meias vermelhas com o nome de um clube de basebol japonês. Disse Rishi Sunak a Fumio Kishida: “Espero que a sua equipa de basebol tenha tido uma época melhor do que a minha equipa de futebol.” Conversa para criar pontes.
DIPLOMACIA DO BASQUETEBOL Antes de Donald Trump ser Presidente e promover cimeiras até então impensáveis com Kim Jong-un, o excêntrico basquetebolista americano Dennis Rodman lançou-se numa cruzada para aproximar Estados Unidos e Coreia do Norte. Sem cobertura oficial, liderou delegações de antigas glórias da NBA àquele país totalitário, que realizaram “jogos de boa-vontade” com atletas norte-coreanos. A iniciativa não deu frutos políticos, mas Rodman provou que algum diálogo é possível.
DIPLOMACIA DO CRÍQUETE Índia e Paquistão já se enfrentaram em três guerras desde a partição da Índia britânica e, graças à ferida aberta chamada Caxemira, as duas potências nucleares estão permanentemente envoltos em tensão. Em várias ocasiões, o críquete — desporto mais popular nos dois países — tem sido usado para desanuviar, com jogos entre as duas seleções e dirigentes políticos dos dois lados na tribuna. Enquanto a paz não chega, o críquete cria essa ilusão.
DIPLOMACIA DO BASEBOL Barack Obama foi dos Presidentes americanos que mais tentaram aproximar-se de Cuba. Se há imagens que o provam, são as que o mostram no Estádio Latino-Americano de Havana, ao lado do homólogo Raúl Castro, a ver uma partida de basebol entre a seleção cubana e uma equipa da Florida. A conversa relaxada entre ambos foi puro ato político. Já o basebol, modalidade mais apreciada nos dois países, afirmou semelhanças entre ambos.
DIPLOMACIA DO PINGUE-PONGUE Em 1971, antes da histórica visita de Richard Nixon à China, Pequim convidou jogadores americanos de ténis de mesa para realizarem uma digressão no país. O grupo foi fotografado junto à Grande Muralha e foi capa da revista “Time”, com o título “China: um jogo totalmente novo”. Pouco tempo depois, EUA e China fizeram as pazes.
A AGENDA ESCONDIDA DA DIPLOMACIA DO IOGA
O dia 14 de dezembro de 2014 entrou para a História como a data em que a Índia levou a sua paixão pelo ioga ao palco da política internacional. Na Assembleia-Geral da ONU, apresentou uma resolução aprovada por 175 Estados-membros, a instituir o Dia Internacional do Ioga a cada 21 de junho. Ao fazê-lo, a Índia oficializou o ioga como instrumento de afirmação internacional. “Quando o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, subiu ao poder (em maio de 2014), tentou usar o ioga globalmente para afirmar o poder crescente da Índia, tal como a China faz com os pandas”, diz ao Expresso o indiano Amit Singh, que antes de ser investigador no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra foi professor de ioga durante anos. “Na ONU, quase nenhum país se opôs, porque o ioga existe em todo o lado e faz bem a toda a gente. O problema é a agenda escondida do Governo de Modi, a promoção do hindutva”, nacionalismo hindu, que tenta elevar o hinduísmo ao estatuto de religião superior da Índia. “E, infelizmente, o ioga faz parte disso.” Singh tem formação na área dos direitos humanos e do multiculturalismo. “Direitos humanos e ioga são basicamente o mesmo.” Com essa sensibilidade, o indiano desconstrói a centralidade do ioga no projeto de Modi. “Ao promover o ioga no estrangeiro, tenta esconder o que se passa na Índia ao nível da violação dos direitos humanos de muçulmanos, da minoria cristã e de laicos”, acusa. “Acho que o ioga deve ser para toda a gente, mas não deve ser imposto. Modi tenta impô-lo nas mesquitas e escolas muçulmanas.” Depois, “vai ao estrangeiro e fala do exemplo de Gandhi”.
Artigo publicado no “Expresso”, a 9 de junho de 2023. Pode ser consultado aqui ou aqui












