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Um boicote olímpico para Xi Jinping ver

Vários países decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim, que arrancam hoje. Com que eficácia?

Há oito anos, por esta altura, o mundo temia que a Rússia invadisse a Ucrânia. Para desanuviar a tensão, a 28 de janeiro de 2014 União Europeia e Rússia reuniram-se numa cimeira, em Bruxelas, que terminou com um aperto de mão entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. A trégua era aparente: passado menos de um mês, tropas russas entravam em território ucraniano e a 18 de março seguinte a Crimeia era anexada.

De permeio, a Rússia esbanjou capacidade e organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. “Penso que Putin aceitou participar na cimeira de Bruxelas porque queria assegurar que os Jogos se realizassem sem boicotes e constituíssem uma vitrina diplomática”, diz ao Expresso Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho. “Putin organizou os seus Jogos e assentou a sua imagem como parte de um clube. Instrumentalizou muito bem os Jogos de Sochi.”

O evento não escapou a polémicas, com protestos em todo o mundo contra a perseguição à comunidade LGBT russa, mas nenhum país o boicotou. Oito anos depois, é o Presidente chinês, Xi Jinping, que está confrontado com o êxito de uns Jogos Olímpicos em contexto de grande pressão política.

Direitos humanos no centro

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno que começam hoje em Pequim. Justificam-no com violações dos direitos humanos pelo regime chinês — da questão do Tibete à vigilância draconiana da população, de Hong Kong à repressão da minoria uigure. Putin confirmou a sua presença em Pequim.

“Este boicote diplomático acontece num momento de grande tensão entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, não é assim tão diferente dos boicotes históricos da Guerra Fria”, afirma Sandra Fernandes. Assinala a relação de poder entre “uma China expansionista, muito segura de si, e países que tentam mostrar que há oposição a essa assertividade”. Por outro lado, “na atualidade, a agenda dos direitos humanos e dos valores universalistas é central”, com grande exposição de violações dos direitos humanos nas redes sociais.

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas

Um boicote político neste contexto significa que os países que o aprovam não se farão representar nas cerimónias de abertura e de encerramento, ainda que enviem atletas para competir. Mancha o evento, mas não compromete desportivamente os segundos Jogos Olímpicos na China em 14 anos.

A interrogação é, pois, legítima. Que eficácia têm, na verdade, boicotes e sanções materiais (económicas, financeiras ou comerciais)? Tomemos como exemplo a Coreia do Norte, país isolado do mundo e castigado com várias sanções internacionais.

“A Coreia do Norte guia-se por um modelo de autossuficiência [doutrina Juche] que a leva, em certas alturas, a rejeitar assistência da comunidade internacional, apesar de referências a dificuldades económicas pelo próprio regime, às quais atualmente acresce a pandemia”, diz ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “O facto de ser um país muito fechado resulta de conjunturas internas que o impedem de procurar algo melhor, mas também é reforçado pelas sanções económicas, que o isolam ainda mais.”

Sanções sem efeito

As sanções a Pyongyang têm como principal objetivo forçar o regime a abdicar do armamento nuclear. “Estando uma intervenção na península coreana fora de questão, aplicar sanções tornou-se meio preferencial para lidar com este país e as suas ambições nucleares.” O peso que o regime de Kim Jong-un lhes atribui está exposto: sempre que se perspetivam negociações, o levantamento das sanções surge como principal exigência norte-coreana para fazer cedências. O mesmo acontece com o Irão.

Porém, demonstrações bélicas como a de domingo passado, quando a Coreia do Norte testou um míssil balístico Hwasong-12, de médio e longo alcance — foi o quinto lançamento de mísseis só em janeiro —, provam que as sanções não surtem efeito e podem até estar a provocar um efeito contrário ao desejado. “Ao invés de levarem à desnuclearização da Coreia do Norte, promovem maior apego ao programa, reforçando a ideia, a nível interno, de que a ameaça americana e da comunidade internacional é real, logo a aposta no desenvolvimento do nuclear torna-se necessária para fazer face ao ‘inimigo’”, diz Durão. Para Pyongyang, “as sanções são exemplo da ‘atitude hostil’ de Washington e seus aliados”.

No “quintal” dos Estados Unidos, também a Venezuela é pressionada de fora, visando uma mudança de regime. “As sanções internacionais, sobretudo dos Estados Unidos, não são eficazes quando há apoio de outros poderes, como a Rússia, Irão e outros menos formais, mas muito bem organizados, como a criminalidade”, explica ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa. “As sanções provocaram uma mudança económica — o dólar passou a circular livremente, empresas públicas estão a ser privatizadas —, mas não política. O Governo de Nicolás Maduro continua a controlar as instituições, meios de comunicação e Forças Armadas.”

Não muito longe, Cuba sofre há décadas um embargo dos Estados Unidos. “A ditadura dura há mais de 60 anos, primeiro com apoio da ex-União Soviética e depois do Governo venezuelano”, acrescenta. “Vemos mudanças no modelo económico, mas pouco ou muito pouco a nível político.”

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas. “Procuram outro tipo de alianças, se possível”, conclui Sandra Fernandes. “No contexto atual, em que os Estados Unidos perdem a sua posição hegemónica, ou pelo menos a partilham com outros, isso é cada vez mais real. A universalidade na adoção das sanções é cada vez mais difícil.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2022

A maior prisão mundial para jornalistas continua a regredir ao nível do acesso à informação

Numa semana especial para o jornalismo, a organização Repórteres Sem Fronteiras tomou o pulso à liberdade de imprensa na China e concluiu que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”. Para este retrato negro contribui, entre outros, 127 jornalistas presos e uma ampla estratégia de controlo do acesso à informação a que nenhum chinês escapa

© 2019 Brian Stauffer for Human Rights Watch

Nas últimas semanas, duas mulheres têm sido rostos dos limites ao exercício de direitos e liberdades na República Popular da China. Uma delas é Peng Shuai, tenista de 35 anos que representou o país em três edições dos Jogos Olímpicos e que acusou um ex-vice-primeiro-ministro chinês de a ter forçado a relações sexuais. Após a denúncia, a atleta desapareceu das redes sociais e da vida pública. O Comité Olímpico Internacional conseguiu contactá-la, mas há suspeitas de que possa estar refém das autoridades de Pequim, proibida de sair do país e forçada a negar a história que denunciou.

Outra chinesa em rota de colisão com as autoridades chinesas é Zhang Zhan, jornalista de 38 anos que, no início da pandemia de covid-19, expôs a situação na cidade de Wuhan, onde primeiro foi identificado o vírus SARS-CoV-2, publicando nas redes sociais mais de 100 vídeos filmados com o telemóvel. A 28 de dezembro passado, foi condenada a quatro anos de prisão.

“Em maio de 2020, Zhang Zhan foi levada pela polícia do seu hotel em Wuhan. A sua reportagem sobre o surto de covid-19 no epicentro da pandemia foi interrompida de forma abrupta. Na prisão, tem feito greves de fome para reclamar os seus direitos constitucionais enquanto cidadã chinesa, poder expressar-se livremente e protestar contra a sua detenção arbitrária. O seu advogado pôde visitá-la algumas vezes e disse que, desde o primeiro dia, ela não fez uma única refeição normal.”

Este relato foi feito por Jane Wang, coordenadora da campanha #FreeZhangZhan, durante um webinar organizado pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que este ano atribuiu um prémio à jornalista chinesa. “No final de julho”, continuou Wang, “Zhang Zhan foi internada num hospital penitenciário, amarrada a uma cama e alimentada à força durante 11 dias. No início de agosto, a sua família foi informada de que ela pesava menos de 40 quilos e tinha sintomas de má nutrição grave. No final de outubro, não conseguia andar ou sequer levantar a cabeça.”

webinar dos RSF, a que o Expresso assistiu terça-feira, visou a apresentação do novo relatório da organização sobre o estado do jornalismo na China. Nas palavras de Christophe Deloire, secretário-geral dos RSF, o documento expõe “como o regime tenta construir uma sociedade-modelo sem jornalismo” e “uma sociedade onde o Estado diz aos cidadãos o que se pressupõe que possam pensar e na qual partilhar informação factual é crime”.

O relatório constata ainda que “sob a liderança do Presidente Xi Jinping, o Partido Comunista Chinês aumentou drasticamente o seu controlo sobre jornalistas”, não só na China continental como em Hong Kong e Macau.

127

jornalistas estão, atualmente, presos na China. Trata-se de uma parte considerável dos 293 repórteres que, segundo o Comité para a Proteção de Jornalistas, estão detidos em todo o mundo

Um caso referido no relatório é o de Cheng Lei, jornalista australiana nascida na China que trabalhava como pivô na China Global Television Network (CGTN). Em novembro de 2019, foi oradora na WebSummit, em Lisboa; meio ano depois era detida na China, acusada de “fornecer segredos de Estado a um país estrangeiro”. Desde então, continua sem data de julgamento marcada.

“Para silenciar os jornalistas, o regime chinês acusa-os de ‘espionagem’, ‘subversão’ ou ‘fomento de altercações e provocação de problemas’, três ‘crimes de bolso’, termo usado por especialistas em direito chinês para qualificar ofensas que são definidas de forma tão ampla que podem ser aplicadas a quase todas as atividades”, lê-se no relatório dos RSF. As duas primeiras acusações podem valer prisão perpétua.

Convite traiçoeiro para um chá

Com 82 páginas, o relatório dos RSF tem como título “O grande salto atrás do jornalismo na China”, num jogo de palavras alusivo ao “Grande Salto em Frente”, a campanha económica e social com que Mao Tsé-Tung pretendeu modernizar a China, entre 1958 e 1962.

Entre os vários obstáculos à liberdade de informação na China, o documento destaca:

  • Bloqueio de sites na Internet
  • Vigilância de grupos de conversação online, como a app WeChat, que se tornou uma espécie de cavalo de Tróia da polícia
  • ‘Exército’ de trolls ao serviço do regime
  • Colocação de jornalistas em regime de “Vigilância Residencial num Local Designado”, durante meses
  • Convite para “um chá” com responsáveis pela censura e propaganda, como forma de intimidação
  • Diretrizes diárias do Partido Comunista Chinês sobre assuntos sensíveis, como Tibete, Xinjiang, Hong Kong, Taiwan, corrupção e dissidência
  • Aumento de assuntos tabu sobre os quais é proibido reportar, como Tiananmen e, mais recentemente, o movimento #Me Too e a covid-19
  • Confissões forçadas na televisão, por parte de jornalistas detidos pelo regime
  • Lei da Segurança Nacional (no caso de Hong Kong)
  • app Study Xi

Adotada para “fortalecer o país”, a aplicação Study Xi — uma encomenda do Partido Comunista Chinês à gigante do comércio digital Alibaba — é uma ferramenta educativa destinada a difundir o pensamento do Presidente Xi Jinping. Desde outubro de 2019, os jornalistas chineses têm sido forçados a fazer o download dessa app para renovar a carteira profissional.

A aplicação permite que o regime avalie o conhecimento e a lealdade dos jornalistas à doutrina oficial, mas mais do que isso… também permite que as autoridades espiem o conteúdo dos smartphones dos jornalistas, pondo em perigo profissionais e fontes.

“Sabemos que a livre circulação de informação é a fundação de uma sociedade civil e que informar os cidadãos é a fundação da democracia”, disse Wu’er Kaixi, antigo dirigente dos protestos estudantis na Praça Tiananmen, durante a apresentação do relatório dos RSF.

“Na China, não temos democracia nem sociedade civil, temos totalitarismo, um regime que oprime a dissidência do seu povo, envia jornalistas para a prisão, dissemina informação falsa e transforma os media do Estado numa máquina de propaganda que mente não só ao seu povo como a todo o mundo, mesmo perante a verdade.”

O ativista justifica o declínio da liberdade de imprensa na China com “as atrocidades que o regime comete contra o povo uigur. No século XXI, [a China] mantém mais de um milhão de uigures em campos de concentração”, diz Wu’er Kaixi, que se questiona como é possível que tal aconteça nos dias de hoje.

“Como pode um regime realizar tal ato? Com a tolerância do mundo”, continua. “O mundo tem concordado com a China. Não fazer nada, é concordar”, diz. “É muito importante acordarmos que as democracias ocidentais lideradas pelos EUA e a Europa têm sido cúmplices nas últimas décadas. E é hora de parar.”

No Índice Mundial de Liberdade de Imprensa 2021, dos RSF, a China surge na 177ª posição entre 180 países. Atrás de si, tem apenas o Turquemenistão, a Coreia do Norte e a Eritreia.

Badiucao, o cartoonista político que desenhou a capa do relatório dos RSF, e que vive na Austrália, viu recentemente o Governo chinês tentar cancelar uma exposição sua num museu de Brescia, no norte de Itália. A pressão foi exercida de múltiplas formas: sobre as autoridades italianas, nas redes sociais do artista, junto da sua família em Xangai e através de visitas suspeitas, durante a sua estadia em Itália, onde recebeu ameaças de morte de forma velada.

“A liberdade do jornalismo na China não diz respeito apenas ao bem-estar das pessoas na China. Também tem tudo a ver com as pessoas de fora da China, com a sociedade democrática, com os países que ainda gozam de liberdade de imprensa”, disse Badiucao.

“A propaganda da China como um vírus, que não pára dentro da China e infetará o mundo exterior, e o objetivo é tirar a liberdade de todos. O problema da liberdade de imprensa da China é também um problema nosso”

Badiucao
 cartoonista político chinês

A divulgação deste relatório teve em conta a realização de dois eventos, nos próximos dias, com potencial para indispor a China. Por um lado, a Cimeira pela Democracia, organizada de forma virtual pelo Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, esta quinta e sexta-feiras, que reunirá cerca de 110 países. “A China, claro, não foi convidada, mas estará com toda a certeza nas mentes de todos, uma vez que o regime de Pequim é uma das mais importantes ameaças à democracia em todo o mundo”, disse Christophe Deloire.

Por outro, a entrega do prémio Nobel da Paz, sexta-feira, a dois jornalistas — a filipina Maria Ressa e o russo Dmitry Muratov — numa cerimónia em Oslo, na Noruega. “Será uma mensagem muito forte e poderosa para os predadores da liberdade de imprensa e um encorajamento para todos aqueles que defendem o jornalismo em todo o mundo”, concluiu o secretário-geral dos RSF. “Esta é, na realidade, uma semana muito especial para o jornalismo.”

Os Repórteres Sem Fronteiras divulgaram apenas as versões inglesa e francesa do relatório, disponíveis neste link. A 24 de janeiro, dez dias antes dos Jogos Olímpicos de Inverno, em Pequim, o documento será divulgado em outras oito línguas, inclusive em português

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 9 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Uma acendalha num barril de pólvora

Para Pequim, a ilha simboliza a dificuldade de estender a revolução maoista a todo o território chinês. Para os EUA, é uma forma de fragilizar a China

INFOGRAFIAS DE JAIME FIGUEIREDO

Há países ‘minúsculos’ que têm a capacidade de se agigantar perante vizinhos poderosos, numa espécie de versão geopolítica do episódio bíblico de David contra Golias. Taiwan é um deles. Situada a cerca de 180 quilómetros da costa da República Popular da China, a ilha tem pouco mais de um terço do território de Portugal, embora mais do dobro da população. Reconhecido como Estado independente por apenas 15 países, Taiwan tem enorme potencial para incendiar a região e, por arrasto, todo o mundo, por implicar na definição do seu futuro a China e os Estados Unidos.

“Para a República Popular da China, Taiwan simboliza a dificuldade de implantar a revolução maoista em todo o território chinês. Não devemos esquecer que foi a República da China de Taiwan que ganhou assento como país fundador da ONU, mantendo-se nessa posição até 23 de novembro de 1971. Para a China, Taiwan representa um projeto político alternativo, que é uma ameaça putativa ao sistema político de Pequim”, explica ao Expresso Tiago André Lopes, docente na Universidade Portucalense. “Para os Estados Unidos, a instrumentalização de Taiwan é forma de fragilizar a China, num momento de expansão e projeção de poder no Pacífico onde Washington tem interesse estratégico.”

Ameaças de invasão

Taiwan sempre foi uma questão central na relação entre a China e os EUA, desde 1949. Fruto da guerra civil, a República da China dividiu-se em duas: a República Popular da China (também designada China continental ou comunista) e a República da China (Taiwan, Formosa ou China nacionalista).

“A República Popular da China há muito que ameaça invadir Taiwan”, diz ao Expresso Ming-sho Ho, professor no Departamento de Sociologia da Universidade Nacional de Taiwan, que identifica três razões para a mais recente tensão em torno da ilha: “Agravamento das relações China-EUA em muitas frentes, como guerra comercial e Hong Kong; chegada ao poder, em Taiwan, do Partido Democrático Progressista, em 2016, que se inclina para a independência; e intrusão recente e cada vez mais frequente de caças chineses no espaço aéreo taiwanês.”

Na próxima semana, a Cimeira pela Democracia corre o rico de atiçar ainda mais a fogueira. Convocada por Joe Biden, decorrerá de forma virtual, quinta e sexta-feira, com representantes de 111 países, entre eles Portugal. As intervenções far-se-ão em torno de três eixos: rejeição do autoritarismo, luta contra a corrupção e respeito pelos direitos humanos.

Taiwan foi convidada para a cimeira, mas não a China nem a Rússia. Num artigo conjunto, publicado a 26 de novembro no sítio do jornal conservador norte-americano “The National Interest”, os embaixadores chinês e russo nos EUA, Qin Gang e Anatoly Antonov, respetivamente, defenderam que a iniciativa é “produto evidente da mentalidade de Guerra Fria” de Washington, que “vai estimular o confronto ideológico e uma fenda no mundo, criando novas ‘linhas divisórias’”.

A ironia de Biden

Tiago André Lopes constata uma “ironia” na forma como o Presidente americano estende a mão a Taiwan. “É curioso notar que os EUA só passaram a reconhecer a China continental em detrimento de Taiwan em dezembro de 1978, com o Presidente Jimmy Carter, do Partido Democrata. Existe alguma ironia histórica em ser o Presidente Joe Biden, do mesmo partido, a olhar de novo para Taiwan como alavanca da sua ação política.”

A 15 de novembro, Biden e Xi Jinping reuniram-se pela primeira vez, numa cimeira virtual. Taiwan veio à baila e as diferenças de abordagem ficaram expostas. Segundo a Casa Branca, Biden reafirmou o apoio de longa data dos EUA à política da “China Única”, segundo a qual há apenas um Estado soberano que é a China e Taiwan faz parte dele, e a oposição aos esforços unilaterais para mudar o statu quo ou minar a paz em torno do estreito de Taiwan. Já a agência estatal chinesa Xinhua noticiou que Xi defendera que quem busca a independência em Taiwan, e aqueles que os apoiam nos EUA, estão “a brincar com o fogo”.

“Suspeito que Biden preferisse que Taiwan não fosse nada importante para os EUA”, diz ao Expresso Alan Bairner, professor na Universidade de Loughborough (Reino Unido). “No entanto, a posição americana contém em si uma contradição fundamental que não é fácil de resolver. A vontade de defender Taiwan, em conjunto com a aceitação da política da China Única, pura e simplesmente não pode ser sustentada em circunstâncias em que a China ameace invadir ou assumir o controlo de Taiwan por outros meios.”

Olhando para o planisfério, o estreito de Taiwan surge como putativa acendalha numa região percorrida por aparatosos dispositivos militares, tornando o Pacífico um cenário de jogos de guerra. Uma interrogação persiste nas análises ao potencial de conflito da zona: estará a China disposta a recorrer à guerra para submeter a sua província rebelde?

“Os especialistas estão divididos”, diz Ming-sho Ho. “Alguns acham que a República Popular está apenas a fazer bluff, enquanto outros acham que é um cenário cada vez mais provável.” “É impossível prever”, acrescenta Alan Bairner. “Diria que é improvável, mas não totalmente implausível.”

A paciência das elites chinesas

“Em política tudo é impossível até se tornar possível”, sugere Tiago André Lopes. “A ameaça de uma invasão militar pela China, se Taiwan avançar com reivindicações de soberania política, não é nova e culmina na famosa Lei Antissecessão de 2005, que materializa juridicamente essa possibilidade.” O diploma prevê o uso da força contra Taiwan se falharem os meios pacíficos para a reunificação, como aconteceu com Hong Kong e Macau.

“Contudo, Pequim está consciente de que qualquer intervenção musculada em Taiwan abriria portas a que a comunidade internacional se sentisse legitimada em usar a força contra a China”, continua o académico português. “Ou seja, o ganho de assimilar Taiwan por via bélica é menor do que a manutenção do statu quo e a expectativa de que, a longo prazo, as novas gerações de Taiwan venham a ser progressivamente menos nacionalistas e pró-soberanistas. Não podemos olhar para as escolhas políticas da China no curto prazo: as elites políticas chinesas sabem ser pacientes.”

A estratégia de Pequim passa também por apertar o cerco a países que invistam na relação com Taiwan. O alvo mais recente foi a Lituânia, onde a ilha abriu recentemente uma missão diplomática. A 21 de novembro, a China reduziu a categoria do seu representante em Vilnius de embaixador para encarregado de negócios e fez dois bombardeiros com capacidade nuclear sobrevoar o sul de Taiwan, numa clara ação de intimidação, destinada a exercer pressão.

“É provável que a maioria das pessoas em Taiwan esteja disposta a aceitar a continuação do entendimento atual. Sabem, no entanto, que depende do Partido Comunista Chinês aceitar o estatuto de quase independência de Taiwan, que concede à ilha um reconhecimento internacional muito limitado”, diz Alan Bairner. “Nos corações, muitos preferem a independência formal e um assento na ONU, mas não vejo como é que isso pode acontecer nas atuais circunstâncias. A única esperança seria convencer mais países a reconhecer Taiwan e, assim, pressionar a China para que desistisse da sua reivindicação. Mas por enquanto, demasiados Estados estão dependentes da China para que isso aconteça.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 4 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Um ano após a Lei da Segurança Nacional, Hong Kong está menos livre, mas com igual vontade de contestar a China

A Lei da Segurança Nacional, imposta há um ano por Pequim a Hong Kong, “silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do Partido Comunista Chinês”, diz ao Expresso um cidadão daquele território autónomo, a viver no Reino Unido. Aos poucos, o regime comunista vai esculpindo a cidade à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”

Quando, em finais de 2015, os cinemas de todo o mundo se enchiam para visionar o sétimo episódio da saga Guerra das Estrelas — “O Despertar da Força” —, a corrida às bilheteiras em Hong Kong revelava um concorrente à altura de tanto entusiasmo. “Dez Anos”, um filme independente de baixo orçamento, projetava a vida naquele território, em 2025, no âmbito de uma sociedade distópica controlada pela China.

Numa das cinco histórias contadas, funcionários do governo local orquestravam um assassínio político com o intuito de gerar medo na sociedade de Hong Kong e fomentar o apoio público à adoção de uma lei de segurança nacional.

Noutra trama, um taxista falante de cantonês (língua de Hong Kong) via-se cada vez mais marginalizado e condicionado no exercício do seu trabalho por não falar mandarim (putonghua), a língua falada na China Continental que os locais estavam obrigados a aprender para poderem trabalhar sem limitações em Hong Kong.

Num terceiro episódio, o dono de uma pequena mercearia sentia os limites à liberdade de expressão entrarem-lhe negócio adentro quando as palavras que usava para promover os ovos que ali vendia — “ovos locais” — foram parar a uma lista oficial de termos censurados.

https://www.youtube.com/watch?v=ePJuYVSNZTM&ab_channel=NeoFilmReviews

Cinco anos e meio depois de este filme conquistar as bilheteiras de Hong Kong, o exercício de ficção revela-se assustadoramente real. Pelo menos estas três histórias não andam muito longe da realidade que se vive naquela região administrativa especial da China.

O fim de um sistema

Faz um ano esta quarta-feira que entrou em vigor a Lei da Segurança Nacional, imposta pelo regime de Pequim, que condicionou a autonomia do território e acentuou a submissão de Hong Kong à vontade do Partido Comunista Chinês (PCC). Aos poucos, Pequim vai esculpindo o território à sua imagem e ditando o fim do princípio “Um País, Dois Sistemas”.

“Hong Kong ainda não é ‘só mais uma cidade chinesa’. Restam linhas, mesmo que não sejam claras. Ao contrário do que acontece na China Continental, não há pessoas a desaparecer, nem são feitas ameaças às famílias de forma rotineira como meio para silenciar dissidentes. Hong Kong é muito menos livre, mas não é a China Continental”, comenta ao Expresso Evan Fowler, cidadão de Hong Kong residente do Reino Unido, diretor do jornal digital “Hong Kong Free Press”.

“O efeito da Lei de Segurança Nacional vai muito além da aplicação da lei. Cria incerteza e medo. Silenciou toda uma cidade, exceto as vozes que promovem a narrativa do PCC. Das pessoas com quem me encontrei em Hong Kong em 2019, quando visitei a minha pátria pela última vez, metade foi presa. Os restantes não ousam falar, ou passaram a limitar fortemente as suas conversas. Hong Kong, vale a pena recordá-lo, já foi a sociedade mais vibrante e livre da Ásia, e um modelo de liberdades cívicas para grande parte da região.”

A Lei da Segurança Nacional entrou em vigor no território a 30 de junho de 2020, a poucos minutos das zero horas de 1 de julho — dia de aniversário da transferência da soberania de Hong Kong do Reino Unido para a China, em 1997. Passado um ano, confirmam-se os receios de quem se opôs desde a primeira hora a esta ferramenta, com a qual as autoridades chinesas querem combater atividades “subversivas e secessionistas” no território.

Promessas quebradas

“Quando a Lei de Segurança Nacional foi imposta por Pequim a Hong Kong, de uma forma que era, em si, uma violação da Lei Básica do território, as autoridades locais, claramente às escuras a esse respeito, prometeram que a Lei se aplicaria a muito poucos casos. Disseram que Hong Kong não seria afetada e que os seus cidadãos não teriam nada a temer. Um ano depois, esta declaração não só soa a falso como reflete a falta de autoridade do Governo de Hong Kong, para não falar da promessa de autonomia de alto nível”, diz Evan Fowler.

No último ano, um conjunto de alterações legislativas e restrições às práticas democráticas introduzidas por Pequim reescreveu as regras e contribuiu para a sensação de que 2047 — ano em que termina o período de transição de 50 anos e a China assumirá total controlo sobre Hong Kong — chegou adiantado mais de duas décadas e meia. Foram especialmente visíveis em quatro domínios.

1. “Reformar” a democracia

Hong Kong tinha eleições para o seu Parlamento — Conselho Legislativo (LegCo) — previstas para 6 de setembro de 2020. Alegando preocupações com a pandemia, a contestada presidente do governo, Carrie Lam, vista como marioneta de Pequim, adiou-as. O escrutínio está agora agendado para 19 de dezembro deste ano, mas terá contornos muito diferentes do que até agora.

A 30 de março de 2021, o Governo de Xi Jinping promulgou uma reforma do sistema eleitoral de Hong Kong que visa marginalizar a oposição no território. A composição do LegCo foi alargada de 70 para 90 membros, mas apenas 20 serão eleitos por sufrágio universal. Até então 35 de 70 lugares (50%) eram escolhidos pelo povo; com esta alteração, apenas 22% do hemiciclo passa a ser efetivamente eleito. Dos restantes lugares, 40 são escolhidos por um comité eleitoral de 1500 personalidades pró-Pequim e 30 são selecionados por grupos socioprofissionais, num complexo sistema que a China opera a seu favor.

Para Pequim, estas foram “reformas” necessárias para garantir que Hong Kong seja governada por “patriotas”. Para os locais que prezam a autonomia, mais não são do que machadadas na democracia.

2. Controlar a imprensa

Após 26 anos nas bancas, o “Apple Daily”, um dos jornais mais populares de Hong Kong, crítico do regime chinês e considerado o único órgão de comunicação pró-democracia, foi obrigado a fechar portas, acusado de espalhar a sinofobia no território. A última edição impressa, publicada quinta-feira da semana passada (24 de junho), teve uma tiragem de um milhão de exemplares. À chuva, milhares de pessoas aguardaram em fila a sua vez para comprarem aquela edição histórica, revelando inconformismo com a ordem das autoridades chinesas.

O cerco ao jornal decorria há meses. A 10 de agosto de 2020, a polícia de Hong Kong invadiu os escritórios da Next Digital, empresa proprietária do jornal, e deteve o seu fundador e ativista pró-democracia Jimmy Lai (detentor também de cidadania britânica), acusando-o de “conluio com forças estrangeiras”.

Em dezembro seguinte, o empresário de 73 anos foi agraciado com o Prémio Liberdade de Imprensa, atribuído pelos Repórteres Sem Fronteiras. Quatro meses depois, foi condenado a 14 meses de prisão por “organizar protestos ilegais”, em 2019.

3. Silenciar os críticos

O primeiro cidadão de Hong Kong acusado na justiça ao abrigo da nova Lei de Segurança Nacional foi um homem de 23 anos, acusado de embater com uma moto contra um grupo de polícias, durante os protestos de 1 de julho, imediatamente após a entrada em vigor da Lei. Tong Ying-kit, que empunhava uma bandeira com um dos slogans fortes dos protestos em Hong Kong — “Libertem Hong Kong, Revolução dos nossos tempos” —, foi acusado de terrorismo e secessão. Um ano depois, continua a ser julgado e enfrenta pena de prisão perpétua.

Com o intuito de decapitar o movimento pró-democracia de Hong Kong, a China tem promovido detenções de vozes críticas, ora de forma cirúrgica, ora em massa. Uma das operações com maior impacto aconteceu em janeiro passado e envolveu a prisão de 55 personalidades da oposição, entre ativistas, antigos deputados e académicos, acusados de envolvimento em conspirações e ações subversivas contra o Estado.

A 100ª detenção aconteceu em março seguinte: 83 homens e 17 mulheres, com idades entre os 16 e os 79 anos.

4. Desmobilizar as manifestações

Se, nos últimos anos, Hong Kong tem sido palco de jornadas de protesto épicas, participadas por centenas de milhares de pessoas em atitude pacífica — como a “revolução dos guarda-chuvas”, em 2014 —, quem o tentar hoje arrisca-se a ser preso e condenado a prisão perpétua por “subversão”, “secessão” ou mesmo “terrorismo”. Lemas como “Libertem Hong Kong, a revolução dos nossos tempos” podem ser considerados atos de subversão.

“Além das manchetes relativas às detenções e ao encerramento do ‘Apple Daily’, está uma cidade que enfrenta uma repressão sistémica aos seus direitos e liberdades mais fundamentais — liberdades que Hong Kong tem garantidas não só pela Declaração Conjunta Sino-Britânica e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, como pela própria Constituição da China”, recorda Evan Fowler.

“Muitas vezes esquecemos que instituições como o Estado de Direito e a liberdade de imprensa são garantidas, pelo menos em teoria, pela Constituição da China. Na nova relação da cidade com a lei, e no uso da Lei da Segurança Nacional que vimos desde que foi aprovada, é difícil não concluir que Hong Kong não só é menos livre, mas também menos autónoma. O Estado de Direito aplica-se seletivamente — o que não é Estado de Direito.”

Habituado a recorrer à criatividade para travar a sua luta — como as paredes Lennon —, o movimento pró-democracia está, mais uma vez, confrontado com a necessidade de se reinventar para contornar dificuldades impostas.

Esperança na pressão vinda de fora

“O movimento terá de adaptar-se, como fez no último ano. Já não é mais uma voz de desafio pela democracia. Pequenos gestos terão mais peso. Não se trata de fazer com que Pequim cumpra a sua palavra, mas de demonstrar a Pequim que o povo não está quebrado e que, embora tenha de aceitar a nova realidade, não a apoiará”, diz Evan Fowler.

“Julgo que veremos mais pessoas pressionadas a sair [de Hong Kong] e vozes públicas do movimento falarão a partir do exílio. Uma comunidade maior no exílio terá uma voz mais forte no exterior para pressionar no sentido de uma ação internacional.”

Algumas das novas formas de protesto e de dissidência já foram visíveis este mês, por alturas da tradicional vigília em Victoria Park, comemorativa do aniversário do massacre na Praça Tiananmen (que a China não reconhece).

“Quando a vigília de 4 de junho foi proibida e as pessoas foram ameaçadas com ordens de prisão por se vestirem de preto, gritarem slogans ou acenderem uma vela, recorreram a formas artísticas de protesto — seja andando em silêncio ou usando as luzes dos telefones para [imitar velas e] iluminar partes da cidade. Estes sinais de resistência desaparecerão, a menos que o mundo continue a olhar [para Hong Kong] e condene a repressão”, defende Fowler.

Tudo acontece com uma pandemia em curso, que também tem sido instrumentalizada por razões políticas. “A covid-19 foi invocada como razão oficial das autoridades para proibirem os protestos, incluindo a vigília de 4 de junho. No entanto, mais revelador foi o facto de os partidários de Pequim enfatizarem repetidamente a Lei da Segurança Nacional como motivo, e as autoridades nada fizeram para se opor a essa narrativa”, conclui Evan Fowler.

“É também revelador que alguns dos detidos no ano passado por participarem nos protestos não tenham sido acusados de reunião ilegal, mas de crimes ao abrigo da Lei de Segurança Nacional. Perante isso, não surpreende que a visão comummente aceite seja a de que a covid-19 tem sido usada politicamente para silenciar dissidentes.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 30 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui

China autoriza três filhos por casal. E assim reconhece que algo vai mal no país mais populoso do mundo

Seis anos apenas após acabar com a política do filho único, autorizando os casais a terem um segundo filho, o Governo de Pequim permite agora o nascimento de um terceiro. A população chinesa está a envelhecer e a classe trabalhadora a diminuir. A medida, que revela “urgência”, indicia também a “tarefa hercúlea” que a China tem pela frente, diz ao Expresso a especialista em Assuntos Asiáticos Raquel Vaz-Pinto

Uma pintura de propaganda promove a ideia da família com um só filho WIKIMEDIA COMMONS

O país mais populoso do mundo está a envelhecer rapidamente e as autoridades que o governam já não escondem a preocupação com essa tendência demográfica. Esta segunda-feira, Pequim anunciou uma importante alteração na sua política de controlo da natalidade e decretou que os casais chineses podem ter um terceiro filho.

Trata-se da última manifestação da ‘engenharia social’ com que o regime chinês, desde há décadas, procura controlar o planeamento familiar dos seus cidadãos, que até há meia dúzia de anos estava limitado a um filho só.

“A assertividade com que a política do filho único foi concretizada levou não só a uma quebra em termos geracionais, como fez com que, tendo em conta os custos com a educação, seja muito difícil para os chineses terem um segundo filho, quanto mais um terceiro”, explica ao Expresso Raquel Vaz-Pinto, professora de Estudos Asiáticos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “É, no fundo, uma contabilidade que muitas famílias fazem nas próprias sociedades desenvolvidas.”

Suportar as despesas com a educação de uma criança, incluindo atividades extracurriculares, e também a preocupação em tornar possível o acesso a uma boa universidade (na expectativa posterior de um bom emprego), é algo que os chineses não encaram de ânimo leve, em especial os que vivem nas cidades, onde o custo de vida é sobrecarregado pelo preço da habitação, da alimentação e dos transportes.

O relaxamento da política de controlo demográfico, que foi agora anunciado, após uma reunião do Politburo — o órgão de cúpula do Partido Comunista Chinês, presidido pelo Presidente Xi Jinping —, surge na sequência do apuramento das conclusões do último censo nacional, conhecidas há três semanas. A China atualiza o seu recenseamento todas as décadas.

Entre 2010 e 2020, o número de chineses aumentou para mais de 1410 milhões, mas o ritmo de crescimento ao ano é inferior a 1%. Nesse período, a população da China aumentou em média 0,53% ao ano, enquanto na década anterior (2000-2010), esse crescimento tinha sido de 0,57%.

Durante cerca de 35 anos, a China procurou conter o rápido crescimento da sua população impondo uma política de filho único. Mas nos últimos anos, a estratégia oficial de controlo da natalidade já reverteu por duas ocasiões.

DATAS-CHAVE

1979

Entra em vigor a política de filho único

2016

Os casais chineses passam a poder ter um segundo filho. Quem arrisca ter o terceiro pode ser multado

2021

Pequim autoriza a procriação do terceiro filho

O fim da política do filho único revelou-se, porém, insuficiente para garantir um crescimento demográfico sustentado. Pelo contrário, a aceitação de um terceiro filho escassos seis anos após admitir um segundo é “uma consciência clara de uma situação de urgência”, afirma Vaz-Pinto.

“O espaço de tempo entre 2016 e 2021 é muito curto. Quer se queira quer não, acaba por ser a confirmação de que há um problema. Há um conjunto de reformas que são necessárias internamente, ainda que nunca se venha a reconhecer que o Partido se calhar foi longe demais neste tipo de política”, diz a investigadora.

“Esta medida que foi anunciada, no fundo, vem tarde”, continua. “E tem de ser englobada num pacote que torne atrativa a concretização prática desta política. Será que vão mexer na idade das reformas?”

Estudiosos da evolução demográfica chinesa preveem que o número total de habitantes possa começar a diminuir já em 2022. Espera-se também que, em 2026, a Índia ultrapasse a China como país mais populoso do mundo.

Em Pequim, na primeira linha das preocupações relativas estão o rápido envelhecimento da população — que coloca a China ao nível de sociedades com grandes percentagens de idosos, como a japonesa ou a italiana — e a diminuição da classe trabalhadora.

Segundo o último censo, na última década, a população ativa (dos 16 aos 59 anos) diminuiu em cerca de 45 milhões de pessoas, enquanto o número de chineses com mais de 60 anos subiu para 264 milhões, correspondendo a 17% do total da população. Presentemente, a taxa de fertilidade das chinesas é de 1,3 filhos por mulher.

“Esta medida denota sobretudo uma preocupação com a própria situação económica da China”, comenta a professora. Mas “para que esta nova decisão seja acolhida e confirmada pelos cidadãos chineses — já que a medida de 2016 não teve grande efeito — deve ser acompanhada por um pacote de reformas que vão da educação, aos preços da habitação e ao apoio aos mais velhos”.

“O índice de fertilidade que a China tem hoje está em linha com as preocupações do conjunto das economias desenvolvidas”. Porém, “não existe ainda na China uma rede de proteção, de segurança social que encontramos nas sociedades desenvolvidas”, prossegue Raquel Vaz-Pinto.

“A China tem uma tarefa hercúlea pela frente. Isso implica fazer reformas, que serão muito duras porque a geração que está agora a reformar-se e que trabalhou a vida toda tem expectativas. Há um conjunto de factores que tornam estas decisões ainda mais difíceis mesmo tratando-se de uma ditadura tão forte quanto a do Partido Comunista Chinês.”

Segundo a agência Reuters, numa sondagem promovida pela agência noticiosa chinesa Xinhua na rede social Weibo, em que era perguntado se os chineses estavam dispostos a ter três filhos, cerca de 29 mil dos 31 mil participantes responderam que “jamais pensariam nessa possibilidade”. Esse inquérito acabou por ser retirado da Internet.

Conclui Vaz-Pinto: “Seria interessante que a China pudesse, com humildade — já que a sua política externa tem sido de enorme assertividade, nos últimos anos —, aprender um pouco mais com as sociedades que já lidam e têm de gerir estes dilemas em matéria de equilíbrios entre sociedade, economia e até mesmo investimentos”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 1 de junho de 2021. Pode ser consultado aqui