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Uigures pedem à justiça internacional que investigue possível “genocídio demográfico” na China

Membros exilados desta minoria muçulmana chinesa enviaram ao Tribunal Penal Internacional provas de genocídio e crimes contra a Humanidade, cometidos pelas autoridades chinesas na província de Xinjiang. Querem que o TPI abra uma investigação, como fez em novembro passado em relação a outra minoria muçulmana perseguida: os rohingya

Dois grupos de ativistas uigures no exílio fizeram chegar ao Tribunal Penal Internacional (TPI) um conjunto de provas de genocídio e crimes contra a Humanidade cometidos na província chinesa de Xinjiang contra a minoria muçulmana do país.

Segundo o diário britânico “The Guardian”, os queixosos alegam que milhares de uigures foram deportados ilegalmente do Tajiquistão e do Camboja para Xinjiang, onde foram presos, torturados e sujeitos a medidas forçadas de controlo de natalidade.

No final de junho, uma investigação da agência noticiosa Associated Press (AP) denunciou a existência de “medidas draconianas” por parte das autoridades de Pequim, visando “reduzir as taxas de natalidade entre uigures e outras minorias, no âmbito de uma ampla campanha para conter a sua população muçulmana”.

UMA ESPÉCIE DE “GENOCÍDIO DEMOGRÁFICO”

A investigação da AP — feita com base em estatísticas governamentais, documentos oficiais e entrevistas a 30 ex-detidos e a um antigo responsável por um campo de detenção — apurou que as autoridades chinesas obrigam as mulheres uigures a testes de gravidez, forçam a colocação de dispositivos intrauterinos, submetem-nas a métodos de esterilização e obrigam-nas até a abortar.

“A campanha que decorre desde há quatro anos na distante região ocidental de Xinjiang está a conduzir àquilo que alguns peritos qualificam como uma espécie de ‘genocídio demográfico’”, escreveu a AP, motivando um alerta da organização de direitos humanos Amnistia Internacional.

Com esta iniciativa junto do TPI, os uigures tentam, em última instância, implicar o próprio Presidente Xi Jinping no planeamento e condução de uma campanha generalizada e sistemática de violação dos seus direitos humanos.

O processo foi desencadeado, esta segunda-feira, por advogados com sede em Londres. Foi motivado por um precedente recente. A 14 de novembro de 2019, os juízes do TPI aprovaram a realização de “uma investigação à situação [dos rohingya] no Bangladesh e Myanmar”.

OPORTUNIDADE NÃO PODE SER DESPERDIÇADA

Num caso e noutro, nem a China nem Myanmar — os dois regimes acusados de perseguir uigures e rohingya, respetivamente — são países signatários do TPI. Mas como alguns crimes aconteceram fora dos seus territórios — no Tajiquistão e no Camboja (contra os uigures) e no Bangladesh (sobre os rohingya) —, os advogados acreditam que o TPI tem competência para apreciar o caso.

“Durante muito tempo assumiu-se que nada poderia ser feito por parte do TPI. Agora há um caminho legal claro para que se faça justiça aos milhões de uigures que alegadamente são perseguidos pelas autoridades chinesas. Esta oportunidade não pode ser desperdiçada”, afirmou Rodney Dixon, um dos advogados envolvidos no processo dos uigures, citado por “The Guardian”.

Xinjiang fica no noroeste da China e faz fronteira com sete países, maioritariamente muçulmanos: Mongólia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão, Paquistão e Índia. Ali vivem cerca de 25 milhões de pessoas, entre as quais cerca de um milhão de uigures, que Pequim mantém sob forte vigilância e sujeitos a experiências de engenharia social.

(FOTO Uma máscara de protesto icónica entre a minoria uigur: a mão da China cala um rosto pintado com a bandeira uigur AHVAL)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 7 de julho de 2020. Pode ser consultado aqui

China movimenta-se na fronteira com a Índia como quem fatia um salame

A tensão regressou esta semana à região da Caxemira, desta feita junto à fronteira entre a Índia e a China, depois de soldados dos dois lados se terem envolvido em confrontos que resultaram no incidente mais mortífero em mais de 50 anos. Um analista indiano explica ao Expresso a estratégia de corrosão da fronteira indiana que a China vem levando a cabo desde há décadas

Nos Himalaias, a região indiana de Ladaque — que faz parte do conturbado e disputado território da Caxemira — viveu há séculos tempos gloriosos. Grandes caravanas de comércio, hordas de conquistadores, vagas de cultura, tudo por ali passou numa dinâmica de contacto contínuo entre o Império Indiano e a Ásia Central. A chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, retirou importância a essa rota terrestre, ao demonstrar as vantagens do transporte por mar. Ladaque perdeu relevância mas não o interesse dos países em redor.

“Tem imensa importância estratégica para a China e para a Índia”, explica ao Expresso o investigador Dhruva Jaishankar, da Observer Research Foundation, em Nova Deli (Índia). “Para a China, o planalto de Aksai Chin [encostado a Ladaque, controlado pela China e reivindicado pela Índia] era o elo entre o Tibete e Xinjiang [região chinesa de maioria muçulmana], duas regiões agitadas.” Essa importância estratégica levou a que a China ali construísse uma estrada, na década de 1950.

“Para a Índia, a presença chinesa em Ladaque pressiona a sua capacidade de defender a fronteira com o Paquistão. Por essa razão, controlar a estrada, que é o que a Índia tenta fazer atualmente, é uma necessidade. Porém, o desenvolvimento da infraestrutura indiana levou à mobilização do Exército de Libertação Popular da China, dando origem a impasses em quatro locais”, com os soldados praticamente cara a cara.

Foi num desses locais que, esta semana, soldados chineses e indianos se envolveram nos confrontos mais mortíferos desde 1967. Tudo aconteceu quando, no decurso de uma patrulha, soldados indianos foram surpreendidos pela presença de militares chineses (em maior número) numa zona onde não era esperado que estivessem.

Durante horas, na escuridão da noite e com temperaturas negativas, as tropas envolveram-se em lutas corpo a corpo, com recurso a pedras e ferros, e empurrando adversários ravina abaixo, a 4200 metros de altitude.

O facto de nem um tiro ter sido disparado decorre de um protocolo celebrado entre China e Índia, em 1996, que prevê que os contingentes destacados ao longo da fronteira não tenham armas de fogo. Pretende-se com isto evitar que pequenos atritos evoluam para situações graves.

A contenda de segunda-feira à noite demonstra que a chacina é possível mesmo na ausência de armas de fogo. A Índia noticiou 20 soldados mortos (incluindo um comandante), a China não reconheceu qualquer fatalidade.

“Na ausência de provas credíveis, a comunidade internacional não deve dar como certa a versão chinesa ou indiana dos acontecimentos”, aconselha ao Expresso Robert Daly, diretor do Instituto Kissinger para a China e os EUA, do Centro Wilson (Washington DC, EUA). “A China é a nação mais forte e tem sido cada vez mais assertiva no Pacífico Ocidental nos últimos meses. Mas isso não é motivo suficiente para supor que a China tenha sido o agressor.”

Vizinhos distraídos com a pandemia

Precisamente a assertividade da China no Pacífico leva o indiano Brahma Chellaney, analista de geopolítica e escritor, a consolidar uma teoria segundo a qual também a animosidade nos Himalaias faz parte de uma estratégia de longa duração empreendida pela China, composta por pequenas ações não suscetíveis de se tornarem casus belli por si só, mas que com o tempo levam a uma alteração estratégica a favor da China.

“[O Presidente chinês] Xi Jinping tenta tirar vantagem do facto de os seus vizinhos estarem distraídos com a pandemia de coronavírus e abriu várias frentes na sua campanha para tornar a China a principal potência do mundo“, explica ao Expresso. “Como parte das suas ambições, Xi iniciou um conflito com a Índia invadindo algumas áreas fronteiriças indianas em Ladaque.”

O analista indiano compara a estratégia chinesa ao ato de “fatiar o salame”. “A China começou a aperfeiçoar esta tática nos Himalaias na década de 1950, quando cortou o planalto de Aksai Chin, do tamanho da Suíça, que fazia parte da região de Ladaque”, explica. “Nos anos mais recentes, tem ‘fatiado o salame’ no Mar do Sul da China. As suas recentes invasões em Ladaque são outro exemplo desta estratégia. Mordida atrás de mordida, a China tem vindo a corroer as fronteiras himalaias da Índia.”

Estima-se que fruto das movimentações das forças chinesas ao longo da fronteira durante o passado mês de maio, a China tenha tomado entre 40 a 60 quilómetros quadrados de território que a Índia considera seu. slém da conquista territorial, Pequim parece querer, com estas ações, testar a preparação militar, a vontade política e a determinação da Índia para responder.

Índia quer a paz, mas…

“Quero assegurar à nação que o sacrifício dos nossos jawans [soldados do Exército indiano] não será em vão. A Índia quer paz mas é capaz de dar uma resposta adequada se for instigada”, afirmou o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, numa mensagem ao povo transmitida pela televisão.

“Enquanto as forças chinesas não se retirarem, haverá riscos de mais confrontos”, vaticina Brahma Chellaney. “É improvável que a Índia tolere a agressão da China, e um prolongado impasse militar não pode ser descartado. A China calculou mal ao acreditar que poderia causar uma agressão gratuita.”

Uma guerra aberta entre chineses e indianos resultaria num cenário tão apocalíptico que é muito natural que nenhum dos países a deseje. Frente a frente estariam os dois exércitos com o maior número de efetivos no ativo do mundo — o chinês com 2,2 milhões e o indiano com 1,4 milhões —, ambos com acesso a armas nucleares.

Os dois países são liderados por homens profundamente nacionalistas e habitados por cerca de 1300 milhões de pessoas. Ou seja, um conflito entre China e Índia envolveria diretamente um terço da população mundial. “Haverá sem dúvida um aumento das tensões, e muita ira popular contra a China na Índia. Mas há muitas razões para acreditar que este caso não levará a um conflito total”, acrescenta Dhruva Jaishankar. “Mas suspeito que vamos ver menos cooperação ao nível económico ou diplomático entre a Índia e a China no futuro próximo.”

Xi Jinping e Narendra Modi — nos cargos desde 2013 e 2014 respetivamente — vinham desenvolvendo uma relação amigável nos últimos anos. Em abril de 2018, em Wuhan (China), iniciaram um mecanismo de cimeiras informais anuais que teve continuação em outubro de 2019, em Bengala (Índia), onde Xi convidou Modi para nova visita à China em 2020. Aparentemente, a relação não se ressentia do facto da China ser um importante aliado do arqui-inimigo da Índia, o Paquistão, com quem disputa a região himalaia da Caxemira.

Entre estes dois colossos, “a Índia é a nação mais fraca e tem de proceder com a maior cautela, independentemente da sua razão”, defende Robert Daly. “A guerra é improvável. Nem a China nem a Índia têm um interesse vital em jogo em Ladaque e os dois líderes estão profundamente conscientes da necessidade de evitar a violência. As matanças são uma escalada preocupante, mas não aconteceu ainda nada que não possa ser revertido e negociado se houver vontade para tal.”

A fronteira entre a China e a Índia é uma amálgama de disputas territoriais não-contíguas ao longo de uma cordilheira montanhosa. Mesmo o comprimento da fronteira é objeto de discórdia, oscilando entre os 4057 km (métrica internacional), os 3488 km (Governo indiano) e os 2000 km (media chineses). A maior parte do troço não está demarcado, correndo ao sabor de montanhas, rios e desfiladeiros. Tem, pois, muito potencial de desestabilização, assim haja esse interesse.

(IMAGEM Bandeiras da Índia e da China THE HINDU)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de junho de 2020. Pode ser consultado aqui

China aprova nova lei da segurança para Hong Kong. A fórmula é cada vez mais “um país, um sistema”

O Congresso Nacional do Povo, principal órgão legislativo chinês, aprovou a polémica nova lei da segurança para Hong Kong. A autonomia daquela região administrativa especial chinesa e as liberdades de que a população usufrui são cada vez mais uma miragem

Mapa da Região Especial Administrativa de Hong Kong, pintado com a bandeira do território WIKIMEDIA COMMONS

Hong Kong está cada vez mais perto de deixar de ser uma região autónoma chinesa. Esta quinta-feira, o Congresso Nacional do Povo (CNP) — o órgão legislativo de topo da República Popular da China — aprovou uma resolução que prevê uma nova lei de segurança nacional para aquele território.

Oficialmente designado “Projeto de decisão sobre o estabelecimento e a melhoria do sistema jurídico e dos mecanismos de aplicação da Região Administrativa Especial de Hong Kong para salvaguardar a segurança nacional”, o diploma foi aprovado por 2878 deputados, com um voto contra e seis abstenções.

Em termos formais, o processo segue agora para o Comité Permanente do CNP que irá redigir a lei, cujos principais contornos foram conhecidos na semana passada e já motivaram protestos de rua em Hong Kong.

A concretizar-se significará um aumento do poder de Pequim sobre um território que vivia na expectativa de conservar a autonomia de que usufrui pelo menos até 2047. É esse o prazo previsto no acordo entre a China e o Reino Unido, pelo qual este país devolveu a sua então colónia em 1997.

EUA abandonam Hong Kong

Ao abrigo da nova lei — que é uma resposta direta da China aos protestos pró-democracia que tomaram Hong Kong grande parte do ano passado —, as manifestações serão consideradas atos secessionistas, subversão do poder do Estado, terrorismo e interferência estrangeira.

Ao governo de Hong Kong — liderado pela odiada Carrie Lam, que a população do território considera um ‘pau mandado’ de Pequim — será pedido que estabeleça novas instituições para salvaguarda da soberania. E, sempre que necessário, as forças de segurança da China Continental serão autorizadas a intervir dentro do território.

Quarta-feira, os Estados Unidos deram um duro golpe nas aspirações democráticas do povo de Hong Kong. “Hoje, informei o Congresso que Hong Kong deixou de ser autónomo da China, tendo em conta o que está a acontecer”, anunciou no Twitter o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo.

https://twitter.com/SecPompeo/status/1265668742220046339

“Os Estados Unidos esperavam que um Hong Kong livre e próspero funcionasse como modelo para a China autoritária, mas agora está claro que a China está a modelar Hong Kong à sua imagem”, acrescentou Pompeo.

Traição a Hong Kong

Hong Kong foi uma colónia britânica devolvida à China a 1 de julho de 1997, mediante o princípio “um país, dois sistemas” — durante 50 anos, o território conservaria um conjunto de liberdades não acessíveis aos restantes habitantes da China Continental. Com a nova lei, parte da autonomia de Hong Kong dilui-se no ordenamento jurídico chinês.

No sábado passado, Chris Patten, último governador britânico de Hong Kong, concedeu uma entrevista ao jornal inglês “The Times”. “Acho que o povo de Hong Kong foi traído pela China, o que provou mais uma vez que não se pode confiar”, disse. A entrevista tem como título: “Temos o dever moral de defender Hong Kong contra o bullying na China”.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 28 de maio de 2020. Pode ser consultado aqui

Protestos em Hong Kong, em defesa da democracia

Milhões manifestam-se nas ruas desde há meses contra o Governo, visto como um fantoche da China

Podia até ser uma campanha de charme, mas no contexto sociopolítico que Hong Kong atravessa mais soa a desespero. Esta semana, jornais influentes de todo o mundo publicaram um anúncio de página inteira, pago pelo Governo desta Região Administrativa Especial chinesa, destinado a sossegar potenciais investidores e visitantes. “Tem sido difícil, mas vamos continuar. A economia caiu, mas vamos recuperar em força. Hong Kong continua a ser uma sociedade livre e acolhedora e os nossos fundamentos são fortes”, leu-se nos norte-americanos “The New York Times” e “The Wall Street Journal”, no inglês “Financial Times”, no alemão “Frankfurter Allgemeine Zeitung” e no francês “Le Monde”, entre outras publicações de referência.

A campanha — que custou 7,4 milhões de dólares de Hong Kong (€850 mil) — descreveu um centro financeiro “altamente internacionalizado” e “competitivo”. Em setembro, uma ação de relações públicas do género já tinha realçado “uma sociedade segura, aberta, acolhedora e cosmopolita” e “uma economia dinâmica, vibrante e ligada ao mundo”.

Em circunstâncias normais, este seria um retrato impossível de contrariar. Hong Kong surgiu, este ano, em quarto lugar no Índice de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, que compara riqueza, alfabetização, educação, expectativa de vida, natalidade, entre outros fatores. Mas os tempos são de grande agitação nesta antiga colónia britânica, mergulhada na sua pior crise política desde a transferência da soberania para a República Popular da China, em 1997.

Desde 9 de junho que o território está tomado por gigantescos protestos antigovernamentais. Na mobilização do dia 16 desse mês, estima-se que tenham desfilado dois milhões de pessoas — a população total ronda os 7,5 milhões.

Batalhas no metro e na universidade

Os protestos nasceram pacíficos, mas, face à inação do Governo em corresponder às reivindicações das ruas, evoluíram para jornadas de violência, que provocaram, até ao momento, dois mortos. Sem liderança visível e identificada, os manifestantes já irromperam pelo Conselho Legislativo (LegCo, o Parlamento local), usaram estações de metro para batalhas campais com a polícia, paralisaram o aeroporto internacional e levaram à suspensão das aulas no campus universitário.

Hong Kong quer mais democracia e refuta medidas que instalem no território as garras de Pequim

O rastilho da turbulência foi aceso vai para um ano. Em fevereiro, o Executivo liderado por Carrie Lam propôs uma nova lei da extradição, que semeou a revolta. Ao prever que cidadãos de Hong Kong fossem levados e julgados na China continental, permitia a interferência de Pequim no sistema judicial.

O primeiro grande protesto, a 9 de junho, teve como principal slogan “Não à extradição para a China”. Mas a “surdez” do Governo — o diploma só seria retirado do circuito legislativo a 23 de outubro — provocou os manifestantes, que aumentaram a lista de condições para abandonarem as ruas. Agora exigem também uma investigação independente à atuação da polícia, uma amnistia para os manifestantes presos, a reformulação do discurso das autoridades para quem os protestos são “motins” e a eleição do chefe de Governo por sufrágio direto e universal.

A última exigência, em particular, não é nova nas ruas de Hong Kong. Em 2014, o desejo de mais democracia fez sair à luz do dia o Movimento dos Guarda-Chuvas. Dinamizado, sobretudo, por estudantes, bloqueou o centro da cidade durante 77 dias. A presença de guarda-chuvas nos protestos de 2019 — que invocam a resistência possível aos gases tóxicos disparados pela polícia — recorda que essa reivindicação continua por cumprir.

Hong Kong tem Parlamento e Governo próprios, mas o povo só elege metade dos 70 deputados do LegCo e os conselheiros distritais. O chefe do Governo é escolhido por um colégio eleitoral.

A arma do voto

Enquanto o status quo se mantém, os cidadãos descontentes lutam com todas as armas possíveis, incluindo… o voto. Nas últimas eleições locais, a 24 de novembro, visando a escolha dos conselheiros distritais, os candidatos pró-democracia averbaram uma vitória arrasadora, conquistando 388 dos 452 lugares em disputa. Ainda que simbólica — dado que estes cargos são de mero aconselhamento —, esta foi uma vitória legitimada por uma taxa de afluência às urnas superior a 71%.

Hoje, como em 2014, há uma preocupação maior na mente de quem se manifesta. Hong Kong está em contagem decrescente rumo a um futuro desconhecido. Desde a entrega da soberania à China que o território beneficia de uma transição de 50 anos que garante aos seus 7,5 milhões de habitantes direitos e liberdades não extensíveis aos 1500 milhões da China continental — a fórmula “um país, dois sistemas”.

Em Hong Kong há liberdade de expressão e de imprensa, liberdade de religião e de manifestação, livre comércio e fluxo de capitais. Em contraste, na China vinga a doutrina do Partido Comunista e, desde o ano passado, o “Pensamento de Xi Jinping”, o chefe de Estado chinês, foi incluído na Constituição. Com 2047 no horizonte — e o receio de Pequim passar a pôr e dispor no território —, os cidadãos desta região administrativa pressionam por mais democracia e refutam medidas que transportem as garras de Pequim sobre o território e sobre as vidas de cada um.

“Imagine que Espanha decidia que há uma nação ibérica, reivindicava Portugal, impunha a língua espanhola ao povo português e dizia que para se ser ibérico você teria de adotar a identidade, cultura e tradições espanholas. E também que teria de esquecer a sua própria história e concentrar-se na história de Espanha.” Era nestes termos que, a dada altura, um cidadão de Hong Kong explicava ao Expresso o que estava em causa. A sua esperança é que, chegados a 2047, a dinâmica de Hong Kong tenha contagiado a restante China — ainda que esta pareça empenhada em provocar o movimento inverso.

(FOTO Protestos em Hong Kong, em meados de 2019 STUDIO INCENDO / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso”, a 21 de dezembro de 2019. Pode ser consultado aqui

Censura com humor se paga. “South Park” brinca com Pequim

A China não gostou de um episódio da série de animação “South Park” e apagou-a de todas as suas plataformas digitais. O “pedido de desculpas” dos criadores da “sitcom” transformou-se numa jornada de gozo ao regime de Pequim

Na China, o humor tem rédea curta. Os últimos a sentirem-no na pele foram os criadores da série animada “South Park”. Habituados a recorrer sem limites à sátira e ao humor negro para retratar a sociedade norte-americana, viram a “sitcom” ser censurada em todas as plataformas digitais na China na sequência de um episódio incómodo para Pequim.

Numa cena, um personagem é detido no aeroporto quando tenta entrar na China com marijuana para vender a “chineses com dinheiro” e enviado para um campo de trabalhos forçados, numa alusão ao que hoje se passa com as minorias da região chinesa de Xinjiang.

Noutro quadro, outro personagem aborda algo apresentado como uma tendência nos Estados Unidos e que passa por ajustar as manifestações culturais à censura chinesa. “Não vale a pena viver num mundo em que a China controla a arte do meu país”, diz.

LINK DO EPISÓDIO “BAND IN CHINA”: https://www.southparkstudios.com/episodes/4yl119/south-park-band-in-china-season-23-ep-2

O episódio “Band in China” [Banda na China] alude ainda à semelhança física entre o Presidente Xi Jinping e o ursinho Pooh, imagem proibida na China. Fotografias do boneco ou da comparação surgem com frequência em protestos anti-China, em Hong Kong, Taiwan ou em países onde o chefe de Estado chinês não é presença desejada.

Reagindo às notícias de censura da sua série na Internet e nas redes sociais chinesas, veiculadas pela publicação “The Hollywood Reporter”, os criadores da série recorreram ao Twitter para endereçar um “pedido de desculpa oficial à China”. Carregado de humor e ironia, esse aparente “mea culpa” transformou-se numa nova jornada de gozo.

“Tal como a NBA, nós acolhemos os censores chineses nas nossas casas e nos nossos corações. Também nós amamos mais o dinheiro do que a liberdade e a democracia. Xi não se parece nada com o Ursinho Pooh. Sintonize o nosso 300.º episódio esta quarta-feira às 10! Longa vida ao grande Partido Comunista da China! Que a colheita de sorgo deste outono seja abundante! Nós bem agora China?”

https://twitter.com/SouthPark/status/1181273539799736320

A referência à NBA, a principal liga norte-americana de basquetebol profissional, decorre de um tweet recente do diretor-geral dos Houston Rockets, Daryl Morey, de apoio aos manifestantes em Hong Kong. A mensagem foi entretanto apagada, mas não evitou que várias empresas chinesas cortassem apoios à equipa e à liga. O canal estatal CCTV 5, por exemplo, anunciou que deixaria de transmitir os jogos da equipa do Texas.

(IMAGEM A imagem do ursinho Pooh é proibida na China, devido à semelhança física com o Presidente Xi Jinping ASIA NEWS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 8 de outubro de 2019. Pode ser consultado aqui