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Kosovo assinou os papéis para entrar na UE, mas cinco dos 27 não o reconhecem como país independente

Quase 15 anos após a declaração unilateral de independência do Kosovo, cinco Estados-membros da União Europeia negam-se a reconhecer o mais jovem país do Velho Continente. A braços com pretensões separatistas a nível interno, Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia querem evitar que o reconhecimento da soberania kosovar faça ricochete nos seus territórios

Mapa do Kosovo pintado com a bandeira da União Europeia WIKIMEDIA COMMONS

Dos sete países que se formaram após o desmembramento da antiga Jugoslávia, apenas um não tinha ainda solicitado adesão à União Europeia (UE). Eslovénia e Croácia já fazem parte da União, três outros têm estatuto de candidato (Sérvia, Macedónia do Norte e Montenegro) e a Bósnia-Herzegovina também já formalizou o pedido de adesão. Faltava o Kosovo.

Na semana passada, as autoridades de Pristina deram esse passo, numa cerimónia em Praga, capital da Chéquia, que este semestre preside ao Conselho da UE. “A UE é um destino a que almejamos e é o destino que abraçamos”, afirmou então o primeiro-ministro kosovar Albin Kurti. “Este é um dia histórico para o povo do Kosovo, e um grande dia para a democracia na Europa”, acrescentaria, numa mensagem na rede social Twitter.

Para se tornar elegível para a adesão à UE, o Kosovo terá de cumprir os Critérios de Copenhaga — metas políticas, económicas — e demonstrar capacidade para assumir as obrigações decorrentes do acervo comunitário. Mas não só.

Quase 15 anos após ter declarado unilateralmente a independência em relação à Sérvia (de maioria cristã ortodoxa), o Kosovo (de maioria muçulmana) ainda não é reconhecido por cinco Estados-membros da UE: Espanha, Grécia, Chipre, Eslováquia e Roménia.

Essa resistência deve-se não tanto aos contornos da questão kosovar em si, mas a razões de política interna. “Os cinco têm problemas internos com minorias nacionais ou nacionalidades com potencial secessionista”, explica ao Expresso o professor Pascoal Pereira, da Universidade Portucalense.

“Reconhecendo a independência do Kosovo, estariam a relativizar a interpretação do princípio da integridade territorial, um princípio do direito internacional estruturador do sistema internacional e da relativa estabilidade das fronteiras internacionais. O Kosovo, ao declarar a sua independência, compromete a integridade territorial da Sérvia (o Estado ‘de origem’), que se recusa a reconhecer essa secessão, por considerar precisamente que seria uma violação da sua integridade territorial”, acrescenta.

Para a Sérvia, o Kosovo é, como sempre foi, província sua. Mas que argumentos usam os cinco membros da UE para não estabelecerem relações diplomáticas, de igual para igual, com o Kosovo?

ESPANHA
Um precedente chamado Catalunha

Se há tema que, nos últimos anos, colocou Espanha nas notícias em todo o mundo foi o esforço separatista de parte da região autonómica da Catalunha. O diferendo entre Madrid e Barcelona atingiu o pico a 1 de outubro de 2017 quando o governo regional catalão (Generalitat) realizou um referendo — ilegal face à Constituição espanhola — com vista à proclamação da República da Catalunha. Os implicados no 1-O, como ficou conhecido o referendo, foram condenados a pesadas penas de prisão e inabilitação política.

“Se Espanha reconhecesse a independência do Kosovo — relativizando o princípio da integridade territorial —, estaria a dar argumentos legais e políticos aos movimentos separatistas internos (Catalunha, País Basco) para reivindicarem a independência dos seus territórios, pelo precedente criado por esse reconhecimento”, explica Pascoal Pereira.

Num desenvolvimento recente, o Governo de Pedro Sánchez promoveu uma revisão do enquadramento legal do delito de sedição no Código Penal, ao abrigo do qual o Tribunal Supremo condenou os organizadores do 1-O. Esta alteração, que vai ao encontro das exigências independentistas catalãs, é vista como cedência de Madrid, visando um apoio estável da Esquerda Republicana da Catalunha — que ocupa 13 assentos no Congresso dos Deputados (câmara baixa do Parlamento espanhol) —, o que permitirá a Sánchez enfrentar com alguma confiança as legislativas previstas para finais de 2023. A oposição teme pelo Estado de Direito.

CHIPRE
A culpa é da Turquia

A objeção ao reconhecimento da independência do Kosovo por parte da República de Chipre — os dois terços de território no sul da ilha cipriota, etnicamente grega — decorre da ocupação do terço norte por parte da Turquia (que aí reconheceu a República Turca de Chipre do Norte).

“Reconhecer o Kosovo seria um reconhecimento implícito da relativização do princípio da integridade territorial, fragilizando a sua posição em relação à sua região separatista”, explica o professor da Universidade Portucalense. À semelhança de Espanha, Chipre admite alterar a sua posição se o Kosovo chegar a um acordo formal com a Sérvia, o que, atendendo aos últimos desenvolvimentos, parece longe de acontecer.

Presentemente, Pristina e Belgrado travam um braço de ferro relativo às matrículas dos carros da comunidade sérvia kosovar. Esta recusa-se a alterar as placas para a sigla RKS (República do Kosovo), como exigem as autoridades do Kosovo, e quer manter os códigos que já vêm desde 1999, o que lhes possibilita circular com placas licenciadas pela Sérvia, com acrónimos de cidades do Kosovo, como, por exemplo, PR para Pristina.

GRÉCIA
Solidária com o Chipre grego

A posição da Grécia sobre o estatuto político do Kosovo decorre da questão de Chipre — a divisão desta ilha mediterrânica entre um país (reconhecido internacionalmente) de maioria grega e outro (só reconhecido pela Turquia) de maioria turca. A Grécia é uma sólida aliada do Chipre grego e, como este, exige a retirada militar da Turquia do norte da ilha.

Paralelamente, Grécia e Chipre têm grande proximidade com a Sérvia, já que os três países têm populações maioritariamente cristãs ortodoxas.

A relação entre Grécia e Kosovo não é, porém, inexistente. Atenas tem um Gabinete de Ligação aberto em Pristina, uma espécie de embaixada não oficial que viabiliza contactos entre as partes. É, a este nível, um exemplo diferenciador para outros países que não reconhecem o Kosovo, designadamente Espanha.

ESLOVÁQUIA
O impacto na minoria húngara

A posição oficial da Eslováquia em relação ao reconhecimento do Kosovo é fortemente condicionada pela existência, no país, de uma minoria húngara e por receios secessionistas manifestados ao longo da história.

“Nos casos específicos da Eslováquia e da Roménia, também se coloca a questão do precedente político”, explica Pascoal Pereira. “Um reconhecimento da independência do Kosovo conferiria argumentos a movimentos separatistas das minorias húngaras que residem nos dois territórios.”

As raízes da posição eslovaca remontam à desintegração do Império Austro-Húngaro, após a Grande Guerra de 1914-18. Pela primeira vez, a Eslováquia surgiu no mapa político com território, englobando regiões étnicas, no sul, na fronteira com a Hungria.

Quatro décadas de domínio comunista estabilizaram essa fronteira, mas as sensibilidades não morreram e reanimaram-se após a queda do muro de Berlim quando, na Hungria, alguns partidos políticos começaram a exigir a reunificação das populações húngaras da Bacia dos Cárpatos.

“O reconhecimento do separatismo étnico-nacional (que está na base da independência do Kosovo) enfraqueceria a defesa do princípio da integridade territorial que, legalmente até agora, tem protegido a Roménia e a Eslováquia contra ambições territoriais (reais e/ou apenas retóricas) por parte da Hungria”, alerta o académico.

À semelhança dos gregos, os eslovacos mantêm presença política oficial em Pristina, reveladora da vontade de uma relação diferente. Simbolicamente, um ex-ministro dos Negócios Estrangeiros eslovaco, Miroslav Lajcak, é o atual representante especial da UE para o Diálogo Belgrado-Pristina e outros assuntos regionais dos Balcãs Ocidentais. O seu mandato inclui a normalização da relação entre a Sérvia e o Kosovo.

ROMÉNIA
As garras da Hungria

A Roménia partilha os receios eslovacos quanto à sua própria minoria húngara, que reivindica a autonomia de uma área no leste da Transilvânia. Ao rejeitar o reconhecimento de direitos coletivos de minorias nacionais, receando o precedente que isso poderia significar no seu território e em países vizinhos como a Moldávia — esta a braços com separatismo na região pró-russa da Transnístria —, Bucareste não pode ter outra posição que não rejeitar a independência unilateral do Kosovo.

Apesar desta linha geral, a Roménia tem sido pragmática ao contribuir para missões internacionais no Kosovo, nomeadamente a Força do Kosovo (KFOR, liderada pela NATO), a Missão da UE para o Estado de Direito no Kosovo (EULEX) e a Missão de Administração Interina das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK).

“As relações de Roménia e Eslováquia são tradicionalmente tensas com as suas minorias húngaras, algo que é agravado ainda pela persistência de um discurso revisionista húngaro em relação ao Tratado de Trianon (1920), assinado após a I Guerra Mundial. Ao abrigo dele, a Hungria perdeu parte significativa do seu território, incluindo as atuais Eslováquia e Transilvânia (na Roménia, onde reside essa população húngara)”, explica o docente.

“Esse discurso nacionalista tem sido alimentado por sectores políticos húngaros ao longo dos anos, destacando-se o primeiro-ministro Viktor Orbán. Mais de uma vez proclamou-se defensor dos interesses dessas minorias, alimentando a retórica revisionista que, em última análise, contesta o statu quo fronteiriço de toda a região.”

Para aderir à UE o Kosovo necessita do “sim” de todos os 27 Estados-membros: 22 estão garantidos, faltam cinco, mais problemáticos.

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de dezembro de 2022. Pode ser consultado aqui

Os novos ‘muros da vergonha’

Crescem em todo o mundo para impedir a circulação humana. Travam terroristas, ilegais e dividem populações

Há quem diga que, com os seus 6352 quilómetros de comprimento, a Grande Muralha da China é a única construção humana visível a partir da Lua. Nunca um astronauta o confirmou, mas tal não belisca o estatuto daquela fortaleza histórica, construída ao longo de 14 séculos. Em 1987, a UNESCO consagrou-a património da Humanidade — algo impensável em relação aos muros que hoje crescem um pouco por todo o mundo. À sombra de argumentos antiterroristas ou anti-imigração ilegal, ou em nome de reivindicações políticas, erguem-se autênticos ‘muros da vergonha’.

Esta semana, numa conferência realizada na Fundação Calouste Gulbenkian, intitulada ‘A União Europeia e a Imigração’, o vice-presidente da Comissão Europeia, Franco Frattini, afirmou: “Não imagino uma Europa fortaleza”, defendendo que a “Europa tem de estar mais próxima de África”. Ora, é impossível ignorar que, em matéria de imigração, a relação Europa-África tem esbarrado contra muros, nomeadamente em Ceuta e Melilla. Mas como comentou ao “Expresso” o ex-comissário europeu António Vitorino: “A imigração ilegal não se combate com nenhum tipo de muro. Isso não significa que não tenha que haver mecanismos de controlo das fronteiras. Os espaços têm um limite à capacidade de integração de pessoas que vêm de fora”. Os muros são “uma parte de uma política mais geral de controlo dos fluxos migratórios. Por si só, não pode resolver tudo”, acrescentou.

Mas 17 anos após a queda do Muro de Berlim (ícone da Guerra Fria que dividiu fisicamente a Europa e ideologicamente o mundo), o Velho Continente continua a enfrentar a necessidade de derrubar tais obstáculos. Na Irlanda do Norte, sobretudo em Belfast e em Derry, cerca de 40 barreiras separam protestantes e católicos. Ironicamente chamam-se Linhas de Paz.

MÉXICO-EUA: GRANDE MURALHA ÀS PORTAS DO ‘EL DORADO’

A cidade mexicana Tijuana e a norte-americana San Diego estão separadas por uma vedação metálica, onde, do lado do México, pregadas cruzes (umas identificadas, outras anónimas) que homenageiam migrantes que morreram ao tentar atravessar a fronteira TOMAS CASTELAZO / WIKIMEDIA COMMONS

Ainda que muitas muralhas se estendam mar adentro, como é o caso do Muro da Tortilla — o maior dos vários pedaços de vedação espalhados ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México —, nem sempre conseguem conter a criatividade humana. Do histórico deste muro, erguido para travar a imigração ilegal entre Tijuana e San Diego, consta o feito de um acrobata que, certo dia, com o passaporte na mão, se meteu dentro de um daqueles canhões usados pelos homens-bomba no circo e, tal qual um duplo no cinema, voou para o lado de lá do muro.

A proeza não fez escola, mas ainda hoje cavar túneis é uma técnica popular para quem arrisca entrar clandestinamente nos EUA: já foram descobertos túneis pavimentados, com trilhos férreos e até com electricidade. Mas não são os túneis a maior preocupação da Casa Branca. A 26 de Outubro passado, o Presidente George W. Bush assinou o Decreto Vedação Segura (Secure Fence Act), que prevê a construção de novos 1125 quilómetros de vedação.

Os obstáculos criados pelo muro, equipado com um sofisticado sistema de vigilância, têm levado cada vez mais candidatos a imigrantes a contornar dificuldades atravessando zonas inóspitas, tais como o Deserto Sonoran e a Montanha Baboquivari, no Arizona. Em alguns casos, percorrem 80 quilómetros antes de encontrar a primeira estrada. Mas há quem nunca a alcance.

Também Melilla se tornou um território mais blindado após o drama humano do Verão de 2005. Na sequência de sucessivas avalanchas de subsarianos que tentaram saltar a dupla cerca metálica de 11 quilómetros que percorre a fronteira entre aquele enclave espanhol e Marrocos, as autoridades de Madrid introduziram alterações físicas e tecnológicas para tornar a vedação mais eficaz e… mais humana. Ordenaram então a construção de uma terceira vedação, tridimensional, que, além de retardar o tempo que o clandestino demora a superar os obstáculos, impede que se lesione.

ISRAEL-CISJORDÂNIA: TÃO POLÉMICO QUANTO O CONFLITO

Os receios terroristas em relação ao vizinho do lado são os alicerces de alguns muros. Israel, Índia, Marrocos e Arábia Saudita ergueram barreiras em nome da segurança interna

Grafiti do misterioso artista britânico Banksy no chamado “muro da Cisjordânia”. Intitulado “Balloon Debate”, foi desenhado num troço da vedação em Ramallah MARGARIDA MOTA

Nenhum outro muro provocou tanta polémica como o que Israel está a construir, desde 2003, junto ao território palestiniano da Cisjordânia. Para Israel, esta “vedação anti-terrorista” visa a protecção dos seus cidadãos ante a infiltração de bombistas suicidas; para os palestinianos, trata-se de um ‘muro’ que dificulta a vida na Palestina ao expropriar milhares de hectares agrícolas fundamentais à subsistência de muitas famílias palestinianas.

Projectado com 720 quilómetros, o muro faz várias incursões em território palestiniano, violando a fronteira anterior à guerra de 1967. Há dois anos, o Tribunal Internacional de Justiça considerou-o ilegal. Mas para Israel construir a cerca em cima da Linha Verde seria descurar as reais necessidades de segurança dos israelitas em prol de uma mera declaração política.

Também na Índia, a ameaça terrorista levou à construção de muros nos dois lados da fronteira. A oeste, junto ao Paquistão, uma vedação de 550 quilómetros, em arame, electrificada e equipada com sensores de movimento estende-se ao longo da Linha de Controlo, na disputada região de Cachemira.

A leste, junto ao Bangladesh, está em curso a construção de uma outra cerca, com 3286 quilómetros de comprimento e três metros de altura. Visa não só impedir a infiltração de terroristas como também de contrabandistas e de imigrantes ilegais.

Tanto num lado como no outro, a afectação de terras férteis, que as autoridades indianas justificam com a necessidade de criar uma ‘terra de ninguém’ junto às vedações, gerou protestos por parte dos agricultores locais, subitamente privados do principal meio de subsistência.

Neste caso, contra números não há argumentos. Segundo as autoridades indianas, esta política reduziu em 80% a entrada de terroristas. Igualmente, em Israel, a redução drástica do número de atentados parece dar razão aos defensores do muro.

Distante das atenções da comunidade internacional está o muro do Sara Ocidental — tão distante quanto o próprio conflito o está das agendas dos políticos. Construído nos anos 80, consiste em 2720 quilómetros de barreiras de pedras e areia com três metros de altura, artilhadas com bunkers, cercas e minas.

Na ausência de qualquer tipo de diálogo entre Marrocos e a Frente Polisário — que reclama a independência do Sara Ocidental —, as autoridades marroquinas apostam nesta muralha defensiva para conter as incursões dos guerrilheiros sarauis.

Preocupações terroristas, bem como a prevenção de movimentações não-autorizadas de pessoas e bens através da fronteira, estiveram na base da construção de uma vedação entre a Arábia Saudita e o Iémen. Já este ano, Riade apresentou um projecto multimilionário de construção de uma barreira de segurança ao longo dos 900 quilómetros de fronteira com o Iraque.

COREIAS: A ÚLTIMA FRONTEIRA

Conflitos latentes ou mal resolvidos transformaram algumas fronteiras em locais de grande tensão. Na península coreana e na ilha de Chipre há dois exemplos que perduram

“Zona tampão” administrada pelas Nações unidas, em Nicósia, e proibida a “veículos militares e pessoais” MARGARIDA MOTA

O ex-Presidente americano Bill Clinton afirmou tratar-se do “lugar mais assustador à face da Terra”. A apreciação pode ser subjectiva, mas a fronteira entre as duas Coreias é seguramente o sítio mais patrulhado do mundo. Cerca de dois milhões de militares concentram-se nos dois lados da vedação de 248 quilómetros, repleta de sensores, torres de vigia, arame farpado, minas, artilharia automática, armadilhas para tanques e armamento pesado. A cerca divide, desde 1953, a península coreana pela metade e é tida como a última fronteira da Guerra Fria.

Igualmente, em Chipre subsiste uma demarcação em arame com mais de 30 anos. Com quase 180 quilómetros, a chamada Linha Verde separa, desde 1974, as partes turca e grega da ilha. Até 2003, era uma fronteira inultrapassável. Hoje, há cinco pontos de passagem.

(Imagem de abertura: PIXY)

Artigo publicado no Expresso, a 25 de novembro de 2006