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Chipre, Síria, Líbia, Nagorno-Karabakh… a Turquia está em todas. Com que objetivo?

A Turquia participa atualmente em vários conflitos nas imediações do seu território. Desígnio nacional por parte de um país que há 100 anos era um império? Ou sonhos de um Presidente que pensa e age como um sultão?

No imenso território que nos dias de hoje corresponde ao antigo Império Otomano, o país que herdou esse legado civilizacional está envolvido em múltiplas disputas nas imediações do seu território. Umas contendas acenderam-se mais recentemente, outras são antigas, como o problema de Chipre, que decorre da invasão turca em 1974 e da criação da República Turca de Chipre do Norte no terço norte da ilha.

Este domingo os cipriotas turcos realizaram a segunda volta das eleições presidenciais e o grande vencedor foi… Recep Tayyip Erdogan, o Presidente turco. Nos boletins de voto, Ersin Tatar, de 60 anos, foi o mais votado, com 52% dos votos — era o candidato apoiado por Ancara. Primeiro-ministro há menos de ano e meio, é um nacionalista defensor do atual status quo da ilha: dois Estados separados.

Tatar derrotou o atual Presidente, Mustafa Akinci, de 72 anos, que prometera trabalhar no sentido da reuni cação com a República de Chipre — a parte grega da ilha, membro da União Europeia — sob o teto de uma federação. A concretizar-se, seria o fim da tutela turca sobre Chipre do Norte.

Oficialmente, a Turquia reconhece a República Turca de Chipre do Norte como país independente. É, aliás, o único Estado a reconhecê-lo. Na prática, trata-a quase como uma província. A 6 de outubro, a reabertura da praia de Varosha — ‘terra de ninguém’ na linha verde que separa os dois Chipres — foi uma demonstração turca de ‘quero, posso e mando’, que mina a mais pequena perspetiva de negociações entre cipriotas turcos e cipriotas gregos.

A reabertura de Varosha acontece numa altura em que a Turquia mantém outra contenda com a Grécia nas águas do Mediterrâneo Oriental: os dois países — membros da NATO — disputam o acesso a reservas de gás e reivindicam áreas marítimas que se sobrepõem.

No mês passado, a Turquia apresentou o que designou por doutrina Pátria Azul (Mavi Vatan, em turco), que visa assegurar o controlo das áreas marítimas em redor das suas costas. Este imperativo tem originado momentos de grande tensão no Mediterrâneo Oriental e, frequentemente, as atividades de perfuração realizadas pelos turcos colocam em estado de alerta os militares gregos.

Foi o que aconteceu em julho passado, quando Ancara despachou o navio de exploração sísmica ‘Oruc Reis’ para uma área que a Turquia reclama ser sua, entre Chipre e a ilha grega de Creta, mas que cipriotas e gregos dizem sobrepor-se às suas Zonas Económicas Exclusivas. O ‘Oruc Reis’ foi escoltado por navios de guerra turcos.

A questão de Chipre e as tensões no Mediterrâneo Oriental são apenas dois de vários teatros onde a Turquia está ativa. Num ano atípico, em que a esmagadora maioria dos países está tomada pela batalha contra a covid-19, a Turquia mostra as garras e multiplica-se em intervenções fora de portas.

Há tropas turcas a operar na Síria, com quem a Turquia partilha mais de 800 quilómetros de fronteira. Têm um olho nas movimentações da minoria curda síria (que Ancara acusa de conluio com os curdos turcos, que aspiram à secessão) e o outro na contenção de eventuais novas vagas de refugiados a caminho do seu território. A nível político, a Turquia é, juntamente com Rússia e Irão, um dos promotores do Processo de Astana, a maratona de negociações que tenta pôr fim ao conflito sírio.

Ao lado do Qatar, contra a Arábia Saudita e Emirados

Há também militares turcos na Líbia, um dos palcos da rivalidade entre Turquia e Qatar por um lado (em apoio do Governo sedeado em Trípoli, reconhecido pelas Nações Unidas) e Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (ao lado do general Khalifa Haftar, que lidera uma ofensiva a partir do leste do país).

O interesse da Turquia pela Líbia redobrou a partir do momento em que foram descobertas novas jazidas de gás no Mediterrâneo Oriental. A 28 de novembro de 2019, o próprio Erdogan e o primeiro-ministro líbio, Fayez Sarraj, assinaram dois acordos que foram mal recebidos em capitais da região: um sobre segurança e cooperação militar e o outro relativo à delimitação da fronteira marítima.

“A política externa da Turquia baseia-se numa abordagem anti-status quo. A liderança turca acredita que o status quo atual em todas essas regiões é contrário aos interesses da Turquia”, afirma ao Expresso Emre Kursat Kaya, investigador do EDAM, think tank com sede em Istambul. “Mas isso não é novo. Erdogan partilha essa crença com a tradicional elite militar secular kemalista [apoiante do laicismo instaurado pelo fundador da Turquia moderna, Mustafa Kemal Atatürk], que está de regresso desde 2016”, quando Erdogan foi alvo de uma tentativa de golpe de Estado.

“Portanto, é importante olhar para as políticas de Ancara através de uma abordagem mais homogénea do que focar apenas o Presidente. O que mudou nos últimos anos é o facto de haver mais espaço na região, decorrente da ausência dos Estados Unidos e da relutância da União Europeia, e do aumento da capacidade económica, cultural e militar da Turquia.”

Ao lado do Azerbaijão em Nagorno-Karabakh

Mais recentemente, a Turquia tem ganho protagonismo na região do Cáucaso, onde um dos seus grandes aliados — Azerbaijão — disputa há décadas com a Arménia o controlo do enclave de Nagorno-Karabakh, de maioria arménia mas integrado em território azeri. Ancara tem sido acusada de contribuir para reacender o conflito, sobretudo após estatísticas revelarem que este ano já exportou seis vezes mais equipamento militar para o Azerbaijão, designadamente drones, lançadores e munições.

Em tempos, o ex-Presidente azeri Heydar Aliyev descreveu a relação entre o Azerbaijão e a Turquia como “uma nação, dois Estados”. Hoje, além dessa proximidade histórica e cultural, Ancara quer diversificar as suas fontes de fornecimento energético: este ano o Azerbaijão tornou-se o principal fornecedor de gás da Turquia.

Muito deste protagonismo turco decorre da retirada dos Estados Unidos de algumas regiões. “Não só a Turquia, mas outros atores regionais, como os Emirados Árabes Unidos e o Irão, beneficiaram claramente do não-envolvimento dos EUA”, diz Emre Kursat Kaya. “Há um vácuo de poder na região e, uma vez que nenhuma grande potência quer preenchê-lo, estamos a testemunhar uma luta pelo poder regional.”

Superar o fundador

Esta agenda combativa consagra a Turquia como potência regional atenta que aproveita cada foco que se acende para reclamar influência. O investigador do EDAM admite que o Presidente turco tenha objetivos pessoais a perseguir.

“Em primeiro lugar, há um aspeto político interno óbvio em qualquer envolvimento turco. Erdogan é conhecido por ser capaz de reconhecer o estado de espírito do público e de agir em conformidade. Nenhuma iniciativa de política externa turca dos últimos cinco anos foi feita ao arrepio da opinião pública”, diz. “Em segundo lugar, após quase duas décadas na liderança do país, a base eleitoral do Presidente compara-o a Atatürk, o fundador da República Turca. Há uma rivalidade indireta entre eles, e o Presidente Erdogan beneficiaria com a imagem de defensor dos interesses turcos no exterior.”

Erdogan ocupa a presidência da Turquia desde 2014 — antes, foi primeiro-ministro entre 2003 e 2014. Cumpre o segundo mandato, que, ao abrigo da Constituição, será o último. Mas Erdogan é um líder com fama de sonhar — e agir — como um sultão, pelo que as próximas eleições presidenciais, marcadas para 2023, estão no seu horizonte.

“As eleições presidenciais agora estão vinculadas às eleições parlamentares. Portanto, teoricamente, Erdogan ou o Parlamento poderiam convocar eleições antecipadas a qualquer momento, o que obrigaria Erdogan a candidatar-se de novo”, explica ao Expresso Nicholas Danforth, especialista das relações entre a Turquia e os EUA no think tank German Marshall Fund.

“Erdogan já apresentou a sua teoria sobre porque deveria ter permissão para voltar a concorrer em 2023. Suspeito que um tribunal constitucional composto por juízes nomeados por ele estaria inclinado a endossar essa posição.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 19 de outubro de 2020. Pode ser consultado aqui

O bastardo da Europa

A ilha mediterrânica de Chipre acolhe dois países e um conflito que começou há 33 anos. Reportagem na República Turca de Chipre do Norte

Para José Carreras não terá passado de apenas mais um espectáculo. Mas, para os cipriotas turcos, o concerto que o tenor espanhol deu nas ruínas de Salamis foi a vários níveis histórico. Não é todos os dias que um artista de calibre fura o isolamento internacional a que está votada a parte norte da terceira maior ilha do Mediterrâneo. “Ele já podia ter vindo há dois anos, mas foi impedido por eles”, diz Fatma, uma cipriota turca de 34 anos. “Eles” são os cipriotas gregos, que vivem na parte sul da ilha, reconhecida internacionalmente como República de Chipre e membro da União Europeia desde 1 de Maio de 2004.

Declarada independente em 1983, a República Turca de Chipre do Norte e os seus 265 mil habitantes têm uma única porta para o mundo — a Turquia, o único país que a reconhece. Como herança da invasão turca de 1974, há 23 mil militares turcos estacionados no norte, e a ajuda económica de Ancara ascende a 220 milhões de euros por ano. Fala-se turco, paga-se em liras turcas (1€ = 1,75lt), as operadoras telefónicas são turcas e nos restaurantes come-se “kebbab” turco e bebe-se vinho turco. Kemal Ataturk, o pai da Turquia moderna, está por todo o lado, a CNN turca em todas as televisões e os turistas turcos desembarcam aos magotes.

Nas noites de domingo, as esplanadas da marina de Kerynia, na costa norte, transbordam de gente. Nas fachadas dos bares e restaurantes há vários plasmas sintonizados num jogo da liga turca. A cada golo do Galatasaray, a marina transforma-se numa imensa claque do clube de Istambul.

No Chipre do Norte, não se lamenta esta dependência em relação à ‘terra-mãe’, como chamam à Turquia. O salário mínimo ronda as 900 liras turcas (515 euros), 60% da população tem um curso universitário e o território é o maior importador de BMW “per capita” do mundo. Quanto à presença de militares turcos, representam segurança para os habitantes deste lado da ilha.

O insólito da parte norte — um dos poucos sítios do mundo onde não existe um McDonald’s — prende-se com a ausência de relações comerciais directas com o estrangeiro: se um empresário quiser importar vinho português, só poderá fazê-lo através de um intermediário turco. Também as ligações directas para o aeroporto de Ercan não abundam: do estrangeiro, só se voa para Chipre do Norte através de Istambul.

Governada no passado pelos britânicos, a ilha de Chipre — onde se conduz pela esquerda — é um popular destino de férias no Reino Unido, incluindo o norte. Em Kerynia, o sotaque britânico soa a cada esquina, e na montra da imobiliária Remax o preçário das “villas” está em libras. “Quando os ingleses se queixam que eu tenho um nome difícil de pronunciar, digo-lhes: Não se preocupem, eu tenho uma versão inglesa, podem chamar-me Alex”, brinca Dursun, um empregado de mesa do Café Harbour que nasceu em Ancara há 31 anos: “Na Turquia, a fazer o mesmo, ganharia menos de metade do que aqui”.

Norte e Sul não vivem propriamente de costas voltadas. As duas comunidades visitam-se com naturalidade desde que, em 2003, foram abertos cinco pontos de passagem ao longo dos 185 quilómetros de fronteira. O Expresso constatou que é possível atravessar a pé e quase despercebido o “checkpoint” de Ledra Gate, em Nicósia — a última capital dividida desde a Guerra Fria —, sem que os guardas cipriotas turcos e gregos perguntem ao que vamos.

Facilmente reconhecidos pela matrícula dos carros, muitos cipriotas do Sul atravessam a ‘linha verde’ para jogar nos casinos do Norte, onde o jogo é legal para cidadãos estrangeiros. “Temos clientes que vêm da parte grega”, confirma a responsável pela sala de jogo do Casino Dome. “E também da Turquia. Apanham um voo pela manhã e passam aqui o dia. São turistas-jogadores, como os de Las Vegas”.

Nas ruas, não é perceptível a mínima animosidade. Mas para os cipriotas turcos, a adesão dos cipriotas gregos à União Europeia tornou o diálogo mais difícil. “Eles estão mais arrogantes, ficaram com o bolo e nós sem nada”, diz Meral, uma cipriota turca de 29 anos. Os melhores amigos dos pais de Meral são cipriotas gregos. “Gostam imenso de conviver e de fazer férias juntos, no norte e no sul. Mas quando se sentam à mesa e começam a falar de política, está o caldo entornado…”, diz.

O menu é farto em pastas italianas e tapas espanholas, mas comida portuguesa, nem vê-la. “Não é fácil obter os ingredientes. Onde é que eu arranjo bacalhau?”, interroga Paulo Aguiar, proprietário dos Sabor, dois restaurantes portugueses em Nicósia. “Há clientes que perguntam se não tenho sardinhas…”, confessa este madeirense de 34 anos, a viver em Nicósia há cinco anos.

O negócio corre-lhe bem e Paulo já sonha já com a abertura de uma terceira casa, em Kerynia, um investimento a rondar as 100 mil libras. “Vêm cá cantores e futebolistas turcos, o Presidente Talat, o pessoal das Nações Unidas…”, diz com vaidade. 80% dos clientes são turcos bem como 30 dos seus 32 empregados. “Os de cá não gostam de trabalhar em restaurantes, querem é trabalhar para o Governo, por causa do estatuto”, diz o português.

Paulo saiu da Madeira aos 18 anos rumo a Londres, onde trabalhou em restaurantes e conheceu Fatma, uma cipriota turca. Aos 29 anos, optou por ir viver para a terra da mulher, um sítio mais tranquilo para criar os filhos. Fala ao Expresso sentado na esplanada do Sabor situado junto à grande mesquita da capital. A noite já vai longa e a pequenita Inês, de 5 anos, dorme ferrada nos braços do pai. Já Kadir, três anos mais velho, não dá mostras de cansaço: “Em Portugal, o meu clube é o Porto, na Turquia é o Fenerbaçe e na Inglaterra é o Manchester United. Joga lá o Cristiano Ronaldo e o Nani”.

SABOR PORTUGUÊS

A ementa é farta em pastas italianas e tapas espanholas, mas comida portuguesa nem vê-la. “Onde é que arranjo bacalhau?”, interroga Paulo Aguiar, 34 anos, dono dos Sabor, dois restaurantes portugueses em Nicósia. “Há clientes que perguntam se não tenho sardinhas”, confessa. Natural da Madeira, Paulo emigrou aos 18 anos para Londres, onde conheceu a mulher, Fatma, cipriota turca. Há cinco anos, mudaram-se para Nicósia e apostaram na restauração. O negócio corre-lhes bem e Paulo já sonha com a abertura de outra casa: “Vêm cá cantores e futebolistas turcos, o Presidente Talat e o pessoal das Nações Unidas”, diz Paulo. 80% dos clientes dos Sabor são turcos, bem como 30 dos seus 32 empregados. “Os de cá querem é trabalhar para o Governo, por causa do estatuto”.

CINCO PERGUNTAS A
Mehmet Ali Talat, Presidente da República Turca de Chipre do Norte

É Presidente de um país que é independente desde 1983. Mas quão autónomo é o seu país em relação à Turquia?
Entre 1974 — quando a Grécia tentou anexar o Chipre e a Turquia interveio — e 1983, tivemos um apoio incondicional por parte dos turcos. Esse apoio foi essencial à sobrevivência do país, mas, por ser incondicional, criou laços diferentes do normal entre a Turquia e os cipriotas turcos. A segurança dos cipriotas turcos é garantida pela Turquia. Financeiramente, recebemos apoio contínuo da Turquia: 300 milhões de dólares por ano, o que cobre 35% do nosso orçamento e ainda mais uma quantia para infra-estruturas. Perante isto, não é expectável que tenhamos uma independência total da Turquia. Para os cipriotas turcos, a Turquia é o seu defensor.

A entrada da República de Chipre na União Europeia, em 2004, facilitou ou dificultou este processo?
O processo tornou-se mais difícil. Os cipriotas gregos estão a utilizar a sua admissão à UE de forma muito negativa. Não querem partilhar poder e tentam impor a sua superioridade, o que torna difícil a instituição de um Estado em parceria.

A adesão da Turquia à União Europeia ajudaria a resolver o problema?
Esse processo é essencial para chegarmos a uma solução para o problema cipriota. Sem isso, não creio que o problema cipriota seja resolvido.

Para a maioria dos países, o seu país não existe. Faz visitas oficiais?
A título oficial, viajo para a Turquia, Paquistão e Azerbaijão. Também recebi convites na qualidade de líder da comunidade cipriota turca da Suécia, Finlândia, Reino Unido, Estados Unidos e outros.

E de Portugal?
Ainda não. O Expresso é a primeira entidade portuguesa com quem estou a falar sobre este assunto.

O Expresso viajou a convite da Presidência da República Turca de Chipre do Norte

Artigo publicado no Expresso, a 5 de outubro de 2007 e, parcialmente, no “Expresso Online”, a 4 de outubro. Pode ser consultado aqui e a entrevista integral aqui

“As tropas turcas sairão após a reunificação”

Na ilha dividida de Chipre, duas comunidades tardam em reunificar-se. Para os cipriotas turcos (no Norte), a adesão dos cipriotas gregos à União Europeia tornou esse diálogo ainda mais difícil. Entrevista a Mehmet Ali Talat, Presidente dos cipriotas turcos. Reportagem na República Turca de Chipre do Norte

Mehmet Ali Talat, Presidente da República Turca de Chipre do Norte FACEBOOK MEHMET ALI TALAT

O senhor é Presidente de um país que declarou a independência em 1983. Mas quão autónomo é o seu país, designadamente em relação à Turquia?
Quando, em 1974, a Grécia organizou um golpe de estado e tentou anexar o Chipre, a Turquia interveio e a ilha dividiu-se em dois. Os cipriotas turcos continuaram a governar-se até 1983, quando foi declarada a República Turca do Norte de Chipre. Durante esse período, tivemos um apoio incondicional da Turquia, que foi essencial à sobrevivência do país, mas que, por ser incondicional, criou laços diferentes do normal.

Que reflexos tem hoje esse apoio incondicional?
Muito claramente, a segurança dos cipriotas turcos é garantida pela Turquia. Financeiramente, recebemos apoio contínuo da Turquia. Perante isto, não é expectável que tenhamos uma independência total da Turquia. Isso não quer dizer que a Turquia decida tudo o que tem a ver com a vida quotidiana dos cipriotas turcos. Mas alguns dos assuntos mais importantes têm de ser objecto de consultas.

Pode dar um exemplo?
Ao nível da segurança, se quisermos tomar algumas medidas que possam ser encaradas como medidas de criação de confiança entre as duas forças militares da ilha temos de consultar a Turquia. E fazemo-lo.

E na maioria das vezes, os turcos estão de acordo?
Geralmente concordam, mas nem sempre…

Não se sente então Presidente de um país ocupado…
A ajuda turca ascende a cerca de 300 milhões de dólares por ano, o que cobre 35% do nosso orçamento, e ainda recebemos mais uma quantia para infra-estruturas. Um país que ajuda à emancipação do nosso povo não pode ser tratado como ocupante. Para os cipriotas turcos, a Turquia é o seu defensor.

Face ao resultado do referendo ao Plano Annan, em 2004, ainda acredita na reunificação da ilha?
O nosso desejo e a nossa luta são pela unificação da ilha. Acreditamos e desejámo-la. Mas infelizmente o governo cipriota grego não partilha desta linha. Como disse o Presidente Tassos Papadopoulos na Assembleia-Geral da ONU em 2005, o objectivo deles é a unificação do país através da assimilação. Para nós, isso é inaceitável.

Assim sendo, a solução de dois Estados não seria preferível?
A única solução é a unificação, por várias razões. Desde logo, por ser a única opção que foi equacionada pelas Nações Unidas. Até ao momento, a solução de dois Estados não tem sido uma opção para resolver o problema cipriota. Mas se continuarmos assim, a divisão pode tornar-se permanente.

A unificação poderia ser feita ao abrigo de um Estado federal?
Sem dúvida. Defendo uma entidade composta por dois Estados, com igualdade política e sob a protecção de uma federação.

Tragédia grega

Os cipriotas turcos sentiram-se traídos com o resultado do referendo?
Sentiram-se ressentidos.

A entrada da República de Chipre (Sul) na União Europeia (UE), em 2004, facilitou este processo ou dificultou-o?
O processo tornou-se mais difícil, porque os cipriotas gregos estão a utilizar a sua adesão à UE de uma forma muito negativa. Eles não querer partilhar poder, não querem cooperar connosco e querem impor a sua superioridade, o que torna difícil a obtenção de um Estado em parceria.

Como resolveria o problema da propriedade?
Através de compensações, da restituição ou da permuta, como estava previsto no Plano Annan.

Mas essa solução pode trazer problemas. Há cipriotas turcos e gregos que podem querer regressar às suas antigas terras e com isso formar zonas minoritárias nos dois lados…
É verdade, isso pode acontecer. Mas na minha opinião, isso não deverá abalar o princípio da bizonalidade.

Num cenário de reunificação, qual será o papel da Turquia?
A Turquia deixaria a ilha.

Porque é que os cipriotas gregos têm medo da reunificação?
Eles não têm medo da reunificação. Acreditam que sendo membros da UE conseguirão mais e conseguirão impor a sua superioridade sobre os cipriotas turcos. Antes do referendo, o Presidente Papadopoulous dirigiu-se ao povo e disse: ‘Vamos ser membros da UE uma semana após o referendo. Porque deveríamos votar pela abolição do Estado e pela formação de outro Estado?’

A adesão da Turquia à UE ajudaria a resolver o problema?
Esse processo é essencial para chegarmos a uma solução. Sem isso, não creio que o problema cipriota seja resolvido.

É Presidente de um país que não existe. Faz visitas oficiais para além para a Turquia?
A título oficial, viajo para a Turquia, Paquistão e Azerbaijão. Mas também recebo convites com outros títulos. Recebi convites na qualidade de líder da comunidade cipriota turca de vários países, incluindo Suécia, Finlândia, Reino Unido, Estados Unidos e outros.

E de Portugal?
Ainda não. O Expresso é a primeira entidade portuguesa com quem estou a falar sobre este assunto.

Um conflito sem guerra

Ao visitar o seu país tem-se a sensação que este problema é puramente político…
É verdade.

Vê-se cipriotas gregos no Norte, vocês podem visitar o Sul. As duas comunidades não estão em guerra. Porque é que a solução é tão difícil?
Eles não reconhecem o nosso direito de nos governarmos a nós próprios.

É uma questão de arrogância?
Nós temos um Estado próprio, poderes autónomos, tribunais, polícia, exército… e eles não querem isso, mas antes estender a sua soberania a toda a ilha. Eles não aceitam a presença de polícias turcos. No caso de um assassinato, no Norte ou no Sul, com implicações na outra comunidade, eles não cooperam. Se um traficante de droga cipriota turco for apanhado no Sul, eles não tentam obter apoio da nossa polícia, ou vice-versa. Eles dizem: ‘Vocês não existem’.

Portugal preside à União Europeia neste momento. Quer mandar alguma mensagem?
Apelo é que ouçam os cipriotas turcos. Após o referendo ao Plano Annan, o Conselho Europeu decidiu levantar o isolamento aos cipriotas turcos. E porquê? Tínhamos chocado a comunidade internacional, que esperava que os cipriotas turcos votassem contra a unificação e os cipriotas gregos votassem a favor. Aconteceu o contrário. Nós ficamos muito animados quando ouvimos a decisão da UE. Pensamos que depois os cipriotas gregos sentir-se-iam obrigados a encontrar uma solução para o problema. Mas infelizmente, a UE não cumpriu a promessa e nada fez para levantar o isolamento ao nosso país. Esperamos que a presidência portuguesa nos ajude.

Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 5 de Outubro de 2007, 1.º Caderno, página 38.

Artigo publicado no Expresso Online, a 4 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui

33 anos de costas voltadas

1960 — A República de Chipre declara a independência do Reino Unido. É liderada por um Presidente grego, o arcebispo Makarios, e por um Vice-Presidente turco, Fazil Kucuk. Segundo o Tratado de Garantia, Reino Unido, Grécia e Turquia são os fiadores da independência do novo país e dispõem do direito de intervir.

1963 — Uma proposta em 13 pontos de revisão constitucional do Presidente Makarios é recebida pelos cipriotas turcos como uma tentativa de alteração da distribuição de poder entre as duas comunidades. A violência explode e, nos anos seguintes, morrem 1000 cipriotas turcos e 200 cipriotas gregos.

1964 — A Resolução 186 da ONU cria a UNFICYP, com a missão de garantir a inviolabilidade da linha de cessar-fogo e da zona-tampão.

1974 — A Junta militar no poder na Grécia desde 1967 apoia um golpe contra Makarios, que foge, só regressando no final do ano. O Governo da Turquia aprova uma intervenção militar. A ilha é dividida.

1975 — Os cipriotas turcos estabelecem uma administração independente, com Rauf Denktash como Presidente. Denktash e Glafcos Clerides, o sucessor temporário de Makarios, acordam uma troca de populações.

1983 — É declarada unilateralmente a República Turca de Chipre do Norte. Apenas a Turquia reconhece o novo país.

2002 — O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, apresenta um plano ao Conselho de Segurança propondo a reunificação da ilha sob uma federação de Estados iguais.

2003 — Pela primeira vez desde 1974, cipriotas gregos e turcos são autorizados a atravessar a fronteira. Até ao final do ano, cerca de 2 milhões de pessoas cruzam a Linha Verde sem incidentes.

2004 — A 24 de Abril, realiza-se nos dois lados da ilha um referendo ao Plano Annan: a Norte, os turcos aprovam-no com 65% de “sim”; a Sul, os gregos rejeitam-no com 70% de “não”. Uma semana depois, a 1 de Maio, a República de Chipre (Sul) adere à União Europeia.

Artigo publicado no Expresso Online, a 4 de outubro de 2007. Pode ser consultado aqui