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As dificuldades de Volodymyr Zelensky para alimentar o guião heroico da guerra

Falta de resultados rápidos na contraofensiva fragiliza narrativa “cinematográfica” do Presidente ucraniano

Dezoito meses passados desde o início da invasão russa, a Ucrânia enfrenta um drama particular dentro da tragédia maior que é a guerra. Com o passar do tempo, o cansaço relativamente ao tema tende a acentuar-se e os espaços informativos dedicam-lhe menos atenção. Mas para Kiev manter o assunto relevante é crucial para não ficar só.

O desafio está entregue em especial ao Presidente, um antigo comediante que com­preendeu, aos primeiros disparos russos, que a importância da comunicação estava ao nível das movimentações militares. “Volodymyr Zelensky percebeu que a Ucrânia só podia ter um combate minimamente equilibrado com a Rússia se conseguisse manter o conflito no topo da agenda político-mediática”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, profissional na área da comunicação e especialista em assuntos internacionais. “Ele sabia que a realidade da guerra, por si só, não chegava para mobilizar a opinião pública interna e a comunidade internacional.”

No espaço da antiga União Soviética duas contendas serviam de aviso a Zelensky. Primeiro, a guerra entre Rússia e Geórgia, em 2008, que culminou com o reconhecimento por parte de Moscovo da independência das repúblicas separatistas georgianas de Ossétia do Sul e Abecásia. E depois, em 2014, a invasão e anexação da península ucraniana da Crimeia, no que é considerado um preâmbulo da guerra atual.

Nos dois casos a agressão russa não suscitou reações práticas. “A realidade não foi sufi­ciente para os aliados europeus e americano se mobilizarem numa resposta perentória à Rússia”, diz o autor do livro “A Política e o Homem Pós-Humano”. “Zelensky tinha essa lição bem estudada. E, estando habituado a amplificar a realidade e até a recriá-la, sabia que teria de criar uma espécie de realidade aumentada da guerra.”

Série com três temporadas

“Por necessidade, e não por capricho”, Zelensky tornou-se realizador e a sua equipa de comunicação argumentista de um ‘guião cinematográfico’, criando heróis e exacerbando conquistas, tudo para tocar as pessoas. O que acontecia no terreno, e que Zelensky comentava em intervenções diárias, “ajudou a enaltecer os feitos como se fossem temporadas de uma série”, ilustra Guerra.

A frase “preciso de munições, não de uma boleia”, atribuída a Zelensky dois dias após a invasão, contribuiu para criar a lenda, sem que haja certeza de que ele a tenha efetivamente dito quando confrontado por uma oferta dos norte-americanos para o resgatar de Kiev. Seguiu-se “a resistência heroica de Kiev, um momento de uma enorme espetacularidade, em que ele não se poupou a puxar pelos feitos dos seus soldados”.

Ao estilo de uma segunda temporada, a reconquista de Kharkiv motivou o Presidente a fazer uma promessa épica: “A bandeira ucraniana retornará a todas as partes do nosso país. Como na região de Kharkiv [Nordeste], os guerreiros ucranianos encontrar-se-ão no Donbas [Leste], no Sul e na Crimeia. Vai acontecer”, disse após visitar a zona de Kharkiv.

“Zelensky sabia que as opiniões públicas internacionais gostam de uma boa história. A dada altura, o próprio começou a alimentar a expectativa de uma grande contraofensiva em múltiplas frentes” — uma terceira temporada da guerra —, “à imagem da II Guerra Mundial. Zelensky nunca escondeu ser muito inspirado por Churchill”.

Contraofensiva silenciosa

A ideia de uma reviravolta na guerra, a expensas da derrocada da Rússia, encaixava nas expectativas dos ucranianos e comprometia o Ocidente com Kiev. Entrou no argumentário de análise ao conflito, mas os resultados tardaram. No terreno, os militares ucranianos, cientes de que as conquistas não surgem por artes mágicas, começaram a fazer-se ouvir. A 30 de junho, ao jornal “The Washington Post”, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Valery Zaluzhny, realçava a capacidade militar da Rússia. “Não sentimos que a defesa deles tenha ficado mais fraca”, disse quando questionado sobre o possível impacto do motim do Grupo Wagner no esforço inimigo.

“A contraofensiva era um processo militar que estava em curso de forma lenta e gradual. O problema é que a história que Zelensky quis dar ao mundo era mais espetacular. E a dada altura a sua retórica hollywoodesca ficou muito desfasada da realidade no terreno”, diz Alexandre Guerra. “Os resultados militares não eram compatíveis com aquilo que Zelensky anunciava. E quando se começou a exigir ganhos rápidos, as chefias militares sentiram frustração.” (Ver texto ao lado.)

Este mês, Zelensky despediu os responsáveis de todos os centros de recrutamento militar do país, fragilizados por casos de suborno por parte de ucranianos que não queriam ir combater. Meses antes já tinha demitido de forma abrupta o chefe do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e a procuradora-geral do Estado, alegando haver funcionários nesses órgãos a colaborar com a Rússia.

“A realidade que Zelensky criou, também a nível interno, passava pela ideia de cidadãos super-heróis, todos eles dispostos a ir para a linha da frente”, conclui Guerra. “Ora, a realidade nunca foi bem assim.”

Sem ser um líder consen­sual, o Presidente tem provado estar à altura do desafio. Deu ímpeto à resistência e injetou esperança no povo. Há dois meses disse à BBC: “Algumas pessoas acham que isto é um filme de Holly­wood e esperam resultados imediatos. Não é. O que está em jogo é a vida das pessoas.” Por breves momentos, Zelensky jogou à defesa.

SEIS MARCOS DA ESTRATÉGIA DE COMUNICAÇÃO DO PRESIDENTE DA UCRÂNIA

25/2/2022
No dia seguinte à invasão, num vídeo filmado numa rua de Kiev, era já noite, Zelensky mostra-se na companhia de responsáveis políticos. “Boa-noite a todos. O líder do partido está aqui, o chefe de gabinete do Presidente está aqui, o primeiro-ministro [Denys] Shmyhal está aqui, o [principal conselheiro da presidência, Mikhail] Podoliak está aqui, o Presidente está aqui. Estamos todos aqui.” O comandante assegurava que não abandonaria o barco.

1/3/2022
Zelensky intervém, de forma virtual, no Parlamento Europeu. Seria o primeiro de 42 discursos em Parlamentos estrangeiros: 35 por videoconferência (incluindo na Assembleia da República) e sete presencialmente.

3/4/2022
Numa mensagem gravada e transmitida durante a gala dos Prémios Grammy, Zelensky apela ao coração: “Os nossos músicos usam armaduras em vez de smokings.”

21/12/2022
Vai aos Estados Unidos, a primeira deslocação ao estrangeiro. No total, visitou 21 países desde o início da guerra. Foi três vezes à Polónia.

26/12/2022
É Pessoa do Ano da “Time”.

10/1/2023
Fala, por vídeo, nos Globos de Ouro. Em março, Hollywood rejeita ouvi-lo nos Óscares.

QUATRO ‘RALHETES’ AO PRESIDENTE

Contra ofensiva lenta
“Isto não é um show”
Com a contraofensiva nas notícias, a 30 de junho “The Washington Post” entrevista o chefe do Estado-Maior da Ucrânia, que admite que a operação segue ao ritmo possível, atendendo à forte defesa da Rússia. “Isto não é um show a que o mundo inteiro assiste e faz apostas”, disse Valery Zaluzhny. “Cada metro é conseguido com sangue.” O general mostra-se “irritado” com quem se diz frustrado com a falta de resultados. Nove dias antes, à BBC, Zelensky disse que os progressos eram “mais lentos do que o desejado”.

Adesão à NATO
“Não somos a Amazon”
Paralelamente aos pedidos de armas, Zelensky pugnou por adesões rápidas à União Europeia e à NATO. Mas na cimeira da Aliança Atlântica em Vílnius, a 11 e 12 de julho, ele surgiu como um homem só, após ‘levantar a voz’ no Twitter: “É inédito e absurdo que não seja definido um prazo nem para o convite nem para a adesão da Ucrânia.” O post não caiu bem junto dos aliados. O ministro britânico da Defesa verbalizou o que muitos mais terão pensado. “Já lhes tinha dito, no ano passado, quando viajei 11 horas [até Kiev] para receber uma lista [de armamento]… não somos a Amazon”, disse Ben Wallace. “As pessoas querem ver um pouco de gratidão.”

Defesa russa
“Queríamos resultados muito rápidos, mas…”
A 18 de julho, numa entrevista à BBC, Oleksandr Syrskyi, o comandante das forças armadas terrestres ucranianas que liderou a defesa de Kiev e foi o cérebro do contra-ataque em Kharkiv, disse: “Gostávamos de obter resultados muito rápidos, mas é praticamente impossível.” O general explicou que o Leste e o Sul do país estavam saturados com campos minados e barreiras defensivas colocadas pelos russos. São exemplos valas para tanques e fortificações “dentes de dragão”, que desaceleram o avanço dos blindados.

Solução política
“Outra saída é negociar”
Há uma semana, Mark Milley, líder do Estado-Maior conjunto dos EUA, juntou-se ao coro de altas patentes que alertam para uma contraofensiva “longa, lenta e muito sangrenta”. À televisão jordana Al-Mamlaka, o general realçou o complexo sistema defensivo russo e apontou outro caminho: “Derrotar militarmente 200 ou 300 mil soldados russos é muito difícil e desafiador. Outra saída para esta situação é através de negociações.”

(FOTO Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia PRESIDÊNCIA DA UCRÂNIA)

Artigo publicado no “Expresso”, a 1 de setembro de 2023. Pode ser consultado aqui e aqui

“Se Joe Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores”

A campanha eleitoral nos Estados Unidos chega ao fim esta segunda-feira com as sondagens a preverem a vitória de Joe Biden e os comícios de última hora a mostrarem um Donald Trump fresco e combativo. Ao Expresso, um consultor de comunicação analisa as campanhas democrata e republicana e identifica qual foi a novidade desta corrida em termos de comunicação política

Republicanos (à esquerda) e democratas IMAGEM

Donald Trump e Joe Biden cumprem esta segunda-feira o seu último dia de campanha. Chega ao fim uma corrida atípica, marcada pela pandemia que atingiu os Estados Unidos como nenhum outro país e também tensa, pela incerteza do resultado final e pelos receios em relação ao que se seguirá numa América profundamente dividida e radicalizada.

Se Joe Biden, nesta reta final, tem contado com o apoio do “irmão” Barack Obama — um dos Presidentes mais populares de sempre, com quem Biden fez dupla na Casa Branca entre 2009 e 2017 —, Donald Trump surge como um homem cada vez mais só. Com sondagens adversas, o 45º Presidente tem-se mostrado enérgico e combativo, mas em palco surge sem a companhia das grandes figuras do Partido Republicano, rodeado apenas pela família.

“Trump está como sempre foi. A organização de toda a sua equipa, de toda a gente que o rodeia, tem uma lógica um pouco mafiosa, não no sentido criminoso da palavra, mas no sentido da importância que a família assume. Se olharmos para estes quatro anos de mandato, quais são os elementos estáveis dentro do seu círculo de confiança? A família”, comenta ao Expresso Alexandre Guerra, mestre em Ciência Política e assessor de imprensa de Pedro Santana Lopes entre 2010 e 2017.

“No círculo de poder de um político, nomeadamente do Presidente dos EUA, há cargos que têm particular importância pela confiança de proximidade e pelo acesso que têm ao Presidente: o diretor de comunicação, o assessor de imprensa, o chefe de gabinete e assessores próximos. Estas pessoas são sempre muito próximas do líder político.”

Em relação ao diretor de comunicação, por exemplo, Trump vai no oitavo em quatro anos, enquanto Barack Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro. Ao nível do porta-voz da Casa Branca, já teve quatro, enquanto Obama teve cinco em dois mandatos e George W. Bush quatro.

“Trump é daqueles políticos que não fomentam a estabilidade de equipa. É um líder que, naturalmente, começa só e acaba só”, continua Alexandra Guerra, que é ainda autor do livro “A política e o homem pós-Humano” (Alêtheia, 2016) (atualmente é assessor de imprensa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa). “Isso é revelador da sua própria incapacidade em desenvolver relações de trabalho e criar relações de lealdade com os assessores mais próximos.”

Não por acaso, o 45º Presidente escolheu e privilegiou como canal preferencial de comunicação com o povo norte-americano o Twitter, onde tem mais de 87 milhões de seguidores. Ao disparar tweets “contorna todo aquele staff que existe para proteger o Presidente em tempos normais mas que ele nunca considerou”, aponta Alexandre Guerra.

Com Trump a atuar fora dos cânones da comunicação política tradicional, à semelhança do que já fizera na campanha de 2016, Alexandre Guerra considera que a grande novidade desta campanha aconteceu… fora das duas candidaturas.

“Em termos de comunicação política, não se retira muito de novo desta campanha”, diz. “Barack Obama trouxe sobretudo o contacto direto com os eleitores: os SMS, as redes sociais. Trump, em 2016, trouxe o seu estilo, que desafiava os cânones instituídos e os métodos e dinâmicas de trabalho entre aquilo que é uma equipa de comunicação política e o Presidente, por um lado, e entre o Presidente e os canais tradicionais de comunicação política, por outro”.

O que a corrida de 2020 traz de inédito é o facto de “haver republicanos, muitos deles antigos estrategos do Partido, que de uma forma muito afirmativa e assumida estão a fazer campanha pelo candidato democrata”, destaca. “O verdadeiro republicano conservador, que faz aquilo que acha que é melhor para a América, gosta de Ronald Reagan, não gosta de Donald Trump.”

Alexandre Guerra destaca duas iniciativas: o Lincoln Project (Projeto Lincoln) e o movimento Republican Voters Against Trump (Eleitores Republicanos Contra Trump). “Estes dois projetos são uma novidade. A comunicação é extremamente bem feita, por profissionais com experiência na área da comunicação política, muitos deles com anos de campanhas no campo republicano. Conseguiram criar uma dinâmica.”

O Projeto Lincoln inspira-se na figura do 16º Presidente, Abraham Lincoln, que liderou o país durante os anos mais sangrentos e desunidos da História dos EUA — os da guerra civil (1861-1865). Foi elaborado por autodenominados “americanos dedicados” que querem “proteger a democracia”: “Os fundadores do projeto Lincoln passaram mais de 200 anos a eleger republicanos. Mas agora desencadearam um movimento nacional com uma única missão: derrotar Donald Trump e o Trumpismo”, declaram no sítio na Internet do projeto.

Na mesma linha, os Eleitores Republicanos Contra Trump assumem-se como um movimento que representa “republicanos, ex-republicanos, conservadores e ex-eleitores de Trump que não podem apoiar Trump para Presidente neste outono”.

“Não há memória de isto ter acontecido anteriormente de forma tão sistematizada e organizada”, comenta Alexandre Guerra. “Há vários movimentos republicanos que se organizaram para salvar o Partido Republicano e salvar aquilo que são os valores da América – e ao fazerem-no acabaram por se colocar ao serviço do candidato democrata. É uma coisa totalmente inédita”, diz.

“Estes republicanos assumem claramente que não votam Trump. Vão fazer um voto patriótico em Joe Biden. Se Biden ganhar tem de agradecer aos republicanos conservadores.”

Analisando a estratégia democrata, o consultor de comunicação não se mostra particularmente impressionado com a campanha de Joe Biden e Kamala Harris. “Não tem sido muito entusiasmante. Faltaram pesos-pesados à equipa de candidatura que pensassem política e comunicação política e delineassem uma campanha que, desde o início, atacasse forte Donald Trump. Faltou um James Carville (que trabalhou com Bill Clinton), um David Axelrod (que ajudou Barack Obama), um Karl Rove (que assistiu George W. Bush), um Alastair Campbell (que foi o estratego de Tony Blair, no Reino Unido)”, recorda.

Alexandre Guerra enumera mesmo alguns “erros de principiante” que acharia impossível de acontecer numa campanha presidencial norte-americana. “No primeiro debate, Biden chamou ‘palhaço’ ao Presidente dos EUA. Também a forma como ele foi vestido: ele é branco, tem cabelo branco e levou uma gravata branca e preta, o que lhe deu um ar abatido e envelhecido. E levou um lenço do lado esquerdo do fato, que é algo que muito eleitorado que ele tem de conquistar, mais rural e menos sofisticado, acha presunçoso e um tique de aristocrata.”

Porém, escaldados com a campanha de há quatro anos, que não impediu a vitória do inexperiente Trump contra a superpreparada Hillary Clinton, os democratas tentaram agora aprender com os erros. “Perceberam que tinham de lutar até ao fim, até ao último dia, independentemente das sondagens”, diz Alexandre Guerra.

“Esta preocupação foi expressa num memorando enviado [no mês passado] pela diretora de campanha, Jennifer O’Malley Dillon, a apoiantes e doadores do Partido Democrata, onde dizia claramente: ‘Não se fiem no que dizem as sondagens e os analistas. Este é um combate até ao fim. Não subestimem o adversário’. Foi um memo muito certeiro e revelador da preocupação que existe na campanha de Biden para que não se cometam os mesmos erros da campanha de Hillary, que ganhou o voto popular mas não ganhou nos sítios certos.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 2 de novembro de 2020. Pode ser consultado aqui