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Se o Norte provocar, o Sul “retaliará muitas vezes mais forte”: retórica da guerra é a tónica dominante entre as duas Coreias

Na península da Coreia, o sonho da reunificação esfumou-se. Norte e Sul multiplicam ameaças que parecem tornar a guerra uma questão de tempo. Enquanto Seul tem a proteção dos Estados Unidos, Pyongyang aproveita a necessidade de munições da Rússia para reforçar a sua indústria militar. Rita Durão, especialista em Relações Internacionais, detalha ao Expresso as razões para a retoma da tensão e também o que pode simbolizar as aparições públicas de Kim Jong-un na companhia da filha, ainda criança

Kim Jong-un e Yoon Suk-yeol ILUSTRAÇÃO DA REVISTA “NEWSWEEK”

Há seis anos, por esta altura, a península coreana estava a caminho de uma sucessão de cimeiras ao mais alto nível envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos que criou a ilusão de que a reconciliação coreana era possível.

Em Pyongyang mandava Kim Jong-un, como ainda hoje. Em Seul, governava Moon Jae-in, sensível ao tema por ser filho de refugiados norte-coreanos. E em Washington, era Presidente o imprevisível Donald Trump, que fez tábua rasa de décadas de prática diplomática norte-americana e tornou-se o primeiro Presidente dos Estados Unidos a pisar solo norte-coreano.

A ilusão foi breve e a realpolitik impôs-se. Hoje, como tem sido a tónica predominante nos últimos 70 anos, a tensão está de regresso à península, com o líder norte-coreano a orientar pessoalmente a realização de manobras militares e testes com mísseis.

Na terça-feira, a agência norte-coreana KCNA noticiava que Kim Jong-un supervisionou exercícios envolvendo “múltiplos lançadores de foguetes supergrandes” e defendeu ser necessário “convencer ainda mais os inimigos de que, se um conflito armado e uma guerra eclodirem, eles nunca poderão evitar consequências desastrosas”.

O principal inimigo da Coreia do Norte está identificado. A 15 de janeiro, num discurso na Assembleia Suprema do Povo (Parlamento), Kim Jong-un defendeu que a reunificação pacífica entre as Coreias — separadas desde 1953 — não era mais possível e que a Constituição do país deve ser revista para consagrar a Coreia do Sul como “inimigo principal e imutável”. E ameaçou:

“Se a República da Coreia [a do Sul] violar sequer 0,001 milímetro do nosso território terrestre, aéreo e marítimo, isso será considerado uma provocação de guerra”

Oito dias depois, a 23 de janeiro, imagens de satélite obtidas pela Airbus expuseram a destruição recente do Arco da Reunificação, um monumento icónico em Pyongyang que simbolizava a esperança na reconciliação.

A degradação da relação entre as Coreias “resulta de um conjunto de fatores e de vários intervenientes políticos que, década após década, têm falhado em desenhar uma abordagem realista para gerir a situação nuclear na península coreana”, explica ao Expresso Rita Durão, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).

“Apesar do ambiente de paz vivido há uns anos, as cimeiras não resultaram no alívio de sanções que o regime norte-coreano esperava, nem num tratado de paz que pusesse fim à guerra na Coreia [1950-1953, concluída apenas com um armistício]”, continua. “A política norte-americana quanto a este assunto permaneceu focada na necessidade de desnuclearização da Coreia do Norte previamente a qualquer tipo de concessões.”

Novo Presidente, nova política

Paralelamente à prioridade que a questão coreana perdeu na agenda internacional — relegada para segundo plano por crises que impactaram fortemente o mundo como a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia —, também a mudança de Governo na Coreia do Sul alimentou o braço de ferro.

À ‘pomba’ Moon Jae-in (impedido de se recandidatar por lei), sucedeu o conservador Yoon Suk-yeol, empossado a 10 de maio de 2022, que endureceu o tom relativamente ao vizinho do Norte.

Agora que Kim Jong-un abandonou o objetivo de reunificação — algo que Rita Durão considera ser “uma mudança de política sem precedentes no âmbito das relações intercoreanas” —, o Presidente sul-coreano já respondeu na mesma moeda: se o Norte provocar, o Sul “retaliará muitas vezes mais forte”.

“Podemos interpretar os testes balísticos realizados pela Coreia do Norte não só como uma forma de consolidar e expandir o seu arsenal como qualquer outro Estado com capacidade nuclear, mas também como sinal de reinício do aumento de tensões para depois preparar um momento para negociações”, analisa Rita Durão, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.

“Este momento para diálogo — a existir — poderá depender de vários fatores, nomeadamente o resultado das eleições presidenciais norte-americanas [a 5 de novembro] e das legislativas sul-coreanas [a 10 de abril], períodos durante os quais é já expectável que a Coreia do Norte aumente a tensão na península.”

O amigo americano

Na passada segunda-feira, o secretário de Estado norte-americano deslocou-se a Seul para participar na terceira edição da Cimeira para a Democracia, uma iniciativa de Joe Biden que reúne representantes de governos, organizações não-governamentais e membros da sociedade civil. Antony Blinken reuniu-se com Yoon Suk-yeol e reafirmou a “determinação contínua” dos dois países “face à retórica hostil e às atividades desestabilizadoras” da Coreia do Norte.

Os Estados Unidos têm cerca de 25 mil militares estacionados na Coreia do Sul. Na semana passada, os dois países terminaram os tradicionais exercícios militares anuais conjuntos, que duraram 11 dias e envolveram ações de interceção de mísseis e simulação de ataques aéreos. Este ano, o Freedom Shield, como se designa, estendeu-se por 48 exercícios de campo, o dobro da edição de 2023.

Horas antes da chegada de Blinken a Seul, o regime de Pyongyang disparou vários mísseis balísticos de curto alcance, que percorreram cerca de 300 quilómetros antes de cair no Mar do Japão.

E já com o norte-americano em solo sul-coreano, Kim Jong-un demonstrou que também ele valoriza alianças estratégicas e felicitou Vladimir Putin pela reeleição como Presidente da Federação Russa.

“Dar-lhe-ei firmemente as mãos enquanto atendemos às demandas dos tempos para proporcionar um novo ponto de viragem na amizade Rússia-Coreia do Norte, que tem longas raízes e tradições históricas”

(Excerto da nota enviada por Kim Jong-un a Vladimir Putin)

Coreia do Norte e Rússia partilham uma base ideológica comum que passa pela “luta contra a ordem liberal liderada pelos EUA, sendo estes últimos vistos como um ‘inimigo comum’”, diz Rita Durão. A guerra na Ucrânia acentuou o sentimento de identificação mútua ao colocar a Rússia no grupo das nações isoladas pelo mundo ocidental, onde já estava a Coreia do Norte.

A Rússia, neste momento, precisa de todas as munições que conseguir na guerra com a Ucrânia. Numa perspetiva norte-coreana, a economia beneficia do comércio de armas com a Rússia, mitigando o impacto das sanções e, ao mesmo tempo, assegura alguma assistência técnica russa no âmbito da expansão do programa balístico norte-coreano.”

Recentemente, Kim Jong-un surgiu num evento público numa limousine Aurus Senat, de fabrico russo, oferecida por Vladimir Putin, que usa este carro de luxo como veículo oficial.

Esta semana, um grupo de bailarinos russos pertencentes ao Teatro Mariinsky, de Vladivostok, apresentou em Pyongyang o ballet “A Bela Adormecida”. É o mais recente de uma série de intercâmbios com que Moscovo e Pyongyang querem afirmar a sua amizade.

Potência nuclear onde se morre à fome

A intensidade com que o regime de Pyongyang aposta na indústria de armamento para projetar poder conflitua com a grande vulnerabilidade socioeconómica do país, designadamente ao nível da segurança alimentar.

Fortemente isolado do resto do mundo, a Coreia do Norte descreve-se como um Estado socialista autossuficiente (ideologia Juche) e justifica a aposta no nuclear como uma necessidade para garantir a sobrevivência.

“A Coreia do Norte coloca a sua própria sobrevivência como prioridade máxima, sendo esta assegurada através da aposta no seu programa nuclear e balístico. Olha, por exemplo, para a Ucrânia como mais um caso de como um país que, após ter abandonado a sua capacidade nuclear, foi invadido. Nesse sentido, a economia da Coreia do Norte depende fortemente do sector militar e do comércio de armas, o que resulta numa alocação desproporcional de recursos para este sector em detrimento de outras áreas ligadas a suprir necessidades básicas e o bem-estar da população norte-coreana”, explica Rita Durão.

“Acaba por ser um círculo vicioso. A Coreia do Norte vê o programa nuclear como essencial à sua segurança e os recursos existentes são maioritariamente canalizados para esse sector. Porém, a aposta no programa resulta em sanções adicionais que servem, em última instância, a narrativa do regime de que o programa nuclear é, de facto, essencial à sua segurança, bem como a narrativa de autossuficiência”, acrescenta.

“Enquanto essa dinâmica persistir, a situação humanitária na Coreia do Norte continuará a ser relegada para segundo plano. Será talvez prudente que a comunidade internacional considere levantar algumas sanções — parte do motivo pelo qual o diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte falhou foi exatamente neste âmbito —, dado que a eficácia das mesmas tem sido questionada ao longo do tempo”, defende a investigadora do IPRI.

Nos eventos públicos, seja numa simples visita de caráter social, seja em ambientes mais sensíveis, como exercícios militares, o líder norte-coreano, de 40 anos, surge, cada vez mais, na companhia de Kim Ju-ae, a filha, que terá à volta de 10 anos de idade.

“Tem-se especulado que as aparições públicas de Kim Jong-un com a filha podem indicar que o regime se encontra a preparar a sucessão hereditária, assegurando que a transição é feita progressivamente, com o propósito de mostrar continuidade da dinastia Kim”, conclui Rita Durão.

“Há dois aspetos relevantes a realçar. Em primeiro, a questão das normas de género na Coreia do Norte, um país muito patriarcal, pelo que a visibilidade de uma herdeira pode sugerir uma evolução ou tentativa de projetar uma Coreia do Norte aberta à incorporação da mulher em posições de poder (como, aliás, já se fala também em relação à irmã de Kim Jong-un).”

“Em segundo, a aparição da filha com o pai nomeadamente em visitas de âmbito militar (ligadas ao programa nuclear e balístico) poderá também servir o propósito de consolidar o poderio nuclear como algo que é irreversível na história da Coreia do Norte, servindo também para assegurar o futuro das futuras gerações.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2024. Pode ser consultado aqui

Um boicote olímpico para Xi Jinping ver

Vários países decretaram um boicote diplomático aos Jogos de Pequim, que arrancam hoje. Com que eficácia?

Há oito anos, por esta altura, o mundo temia que a Rússia invadisse a Ucrânia. Para desanuviar a tensão, a 28 de janeiro de 2014 União Europeia e Rússia reuniram-se numa cimeira, em Bruxelas, que terminou com um aperto de mão entre o Presidente russo, Vladimir Putin, e o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso. A trégua era aparente: passado menos de um mês, tropas russas entravam em território ucraniano e a 18 de março seguinte a Crimeia era anexada.

De permeio, a Rússia esbanjou capacidade e organizou os Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. “Penso que Putin aceitou participar na cimeira de Bruxelas porque queria assegurar que os Jogos se realizassem sem boicotes e constituíssem uma vitrina diplomática”, diz ao Expresso Sandra Fernandes, do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade do Minho. “Putin organizou os seus Jogos e assentou a sua imagem como parte de um clube. Instrumentalizou muito bem os Jogos de Sochi.”

O evento não escapou a polémicas, com protestos em todo o mundo contra a perseguição à comunidade LGBT russa, mas nenhum país o boicotou. Oito anos depois, é o Presidente chinês, Xi Jinping, que está confrontado com o êxito de uns Jogos Olímpicos em contexto de grande pressão política.

Direitos humanos no centro

Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e outros anunciaram um “boicote diplomático” aos Jogos de Inverno que começam hoje em Pequim. Justificam-no com violações dos direitos humanos pelo regime chinês — da questão do Tibete à vigilância draconiana da população, de Hong Kong à repressão da minoria uigure. Putin confirmou a sua presença em Pequim.

“Este boicote diplomático acontece num momento de grande tensão entre Estados Unidos e China. Nesse sentido, não é assim tão diferente dos boicotes históricos da Guerra Fria”, afirma Sandra Fernandes. Assinala a relação de poder entre “uma China expansionista, muito segura de si, e países que tentam mostrar que há oposição a essa assertividade”. Por outro lado, “na atualidade, a agenda dos direitos humanos e dos valores universalistas é central”, com grande exposição de violações dos direitos humanos nas redes sociais.

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas

Um boicote político neste contexto significa que os países que o aprovam não se farão representar nas cerimónias de abertura e de encerramento, ainda que enviem atletas para competir. Mancha o evento, mas não compromete desportivamente os segundos Jogos Olímpicos na China em 14 anos.

A interrogação é, pois, legítima. Que eficácia têm, na verdade, boicotes e sanções materiais (económicas, financeiras ou comerciais)? Tomemos como exemplo a Coreia do Norte, país isolado do mundo e castigado com várias sanções internacionais.

“A Coreia do Norte guia-se por um modelo de autossuficiência [doutrina Juche] que a leva, em certas alturas, a rejeitar assistência da comunidade internacional, apesar de referências a dificuldades económicas pelo próprio regime, às quais atualmente acresce a pandemia”, diz ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “O facto de ser um país muito fechado resulta de conjunturas internas que o impedem de procurar algo melhor, mas também é reforçado pelas sanções económicas, que o isolam ainda mais.”

Sanções sem efeito

As sanções a Pyongyang têm como principal objetivo forçar o regime a abdicar do armamento nuclear. “Estando uma intervenção na península coreana fora de questão, aplicar sanções tornou-se meio preferencial para lidar com este país e as suas ambições nucleares.” O peso que o regime de Kim Jong-un lhes atribui está exposto: sempre que se perspetivam negociações, o levantamento das sanções surge como principal exigência norte-coreana para fazer cedências. O mesmo acontece com o Irão.

Porém, demonstrações bélicas como a de domingo passado, quando a Coreia do Norte testou um míssil balístico Hwasong-12, de médio e longo alcance — foi o quinto lançamento de mísseis só em janeiro —, provam que as sanções não surtem efeito e podem até estar a provocar um efeito contrário ao desejado. “Ao invés de levarem à desnuclearização da Coreia do Norte, promovem maior apego ao programa, reforçando a ideia, a nível interno, de que a ameaça americana e da comunidade internacional é real, logo a aposta no desenvolvimento do nuclear torna-se necessária para fazer face ao ‘inimigo’”, diz Durão. Para Pyongyang, “as sanções são exemplo da ‘atitude hostil’ de Washington e seus aliados”.

No “quintal” dos Estados Unidos, também a Venezuela é pressionada de fora, visando uma mudança de regime. “As sanções internacionais, sobretudo dos Estados Unidos, não são eficazes quando há apoio de outros poderes, como a Rússia, Irão e outros menos formais, mas muito bem organizados, como a criminalidade”, explica ao Expresso Nancy Gomes, professora na Universidade Autónoma de Lisboa. “As sanções provocaram uma mudança económica — o dólar passou a circular livremente, empresas públicas estão a ser privatizadas —, mas não política. O Governo de Nicolás Maduro continua a controlar as instituições, meios de comunicação e Forças Armadas.”

Não muito longe, Cuba sofre há décadas um embargo dos Estados Unidos. “A ditadura dura há mais de 60 anos, primeiro com apoio da ex-União Soviética e depois do Governo venezuelano”, acrescenta. “Vemos mudanças no modelo económico, mas pouco ou muito pouco a nível político.”

Os países alvo de sanções tendem a reorientar a política externa para quem lhes abre as portas. “Procuram outro tipo de alianças, se possível”, conclui Sandra Fernandes. “No contexto atual, em que os Estados Unidos perdem a sua posição hegemónica, ou pelo menos a partilham com outros, isso é cada vez mais real. A universalidade na adoção das sanções é cada vez mais difícil.”

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 4 de fevereiro de 2022

Norte e Sul querem firmar a paz. Estavam em guerra?

A relação entre as Coreias é uma ferida aberta desde os tempos da Guerra Fria. Cicatrização vai demorar

Península da Coreia: a norte, a República Popular Democrática da Coreia; a sul, a República da Coreia FREE*SVG

1. Porquê assinar um tratado de paz?

Porque, desde que terminou a guerra entre ambas (1950-1953), as duas Coreias assinaram um armistício (cessação temporária de hostilidades), mas nunca um tratado de paz. Isso significa que, tecnicamente, continuam em guerra. Esta semana, durante uma visita à Austrália, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, afirmou que as Coreias, a China e os Estados Unidos chegaram a um “acordo de princípio” para alcançar um encerramento formal do conflito.

2. Porque foi Moon a fazer o anúncio?

O Presidente da Coreia do Sul está pessoalmente apostado em resolver o problema, na crença de que será um passo decisivo para trazer Pyongyang para as conversações sobre a sua desnuclearização. Moon está a meses de deixar o cargo. A 9 de março haverá presidenciais e ele não pode recandidatar-se (a reeleição não é permitida na Coreia do Sul). Em setembro, diante da Assembleia-Geral da ONU, disse: “Mais do que tudo, uma declaração de fim da guerra marcará um ponto de partida fundamental na criação de uma nova ordem de ‘reconciliação e cooperação’ na península coreana.”

3. O que pode levar a que não aconteça?

Sanções internacionais, por exemplo. Uma pré-condição colocada pela Coreia do Norte para dialogar sobre o fim do conflito é o abandono da atitude “hostil” dos Estados Unidos. Este requisito foi interpretado como exigência do levantamento das sanções. Ora, domingo passado (Dia Internacional dos Direitos Humanos), véspera do anúncio de Moon Jae-in, Washington informou que imporia novas sanções contra a Coreia do Norte — as primeiras da era Biden.

4. Porque são os EUA parte da questão?

Os Estados Unidos participaram na Guerra da Coreia ao lado de Seul. Hoje, têm cerca de 28.500 soldados estacionados a sul do paralelo 38 (que separa os dois países) e realizam exercícios militares anuais conjuntos com os sul-coreanos. Para a Coreia do Norte, esses treinos mais não são do que preparativos para uma invasão do Norte.

5. Quão realista é a reunificação?

“A perspetiva da reunificação entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul é diferente em ambos os lados”, explicou ao Expresso Jenny Town, diretora do site “38 North”, de análise sobre a Coreia do Norte. “A Coreia do Norte ainda olha para o acordo de 2000, que apontava para uma confederação: um país, dois governos. A Coreia do Sul tende a olhar para um hipotético país único.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 18 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

O inexperiente Kim segue no poder, já lá vão 10 anos

Ao apostar, em simultâneo, no desenvolvimento da economia e do programa nuclear, Kim Jong-un mergulhou o país num círculo vicioso

(IMAGEM Kim Jong-un, líder da Coreia do Norte VECTORPORTAL)

Quando Kim Jong-un (KJU) subiu ao poder, muitos invocaram a sua juventude, inexperiência e a forma súbita como herdou a presidência — após a morte do pai de ataque cardíaco, faz 10 anos na próxima sexta-feira — para lhe perspetivarem um mandato curto. “Especulou-se muito quanto à possível queda iminente do regime”, comenta ao Expresso Rita Durão, especialista em estudos asiáticos. “Dez anos depois, o regime perdura, apesar de processos de transição de poder, desastres naturais, sanções económicas internacio­nais e até a pandemia.”

Para esta doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, o principal sucesso da liderança de KJU “é a capacidade de resiliência da Coreia do Norte, que prova, ano após ano, que, apesar das dificuldades, está cá para ficar”, na senda do que aconteceu com os seus antecessores.

Um ‘negócio de família’

Desde a fundação do país, em 1948, que a liderança é um ‘negócio de família’. Oficialmente uma república, a Coreia do Norte é governada ao estilo de uma dinastia, com o poder a passar de pai para filho por morte do primeiro: Kim Il-sung mandou até 1994, Kim Jong-il até 2011 e KJU desde então.

“Kim Il-sung [avô do líder] e Kim Jong-il [pai] viveram num contexto histórico diferente e, a certos níveis, mais complexo”, continua Rita Durão. “As experiências na luta contra o imperialismo japonês [1910-1945] e na Guerra da Coreia [1950-1953] marcaram o regime de Kim Il-sung, enquanto Kim Jong-il assumiu o poder no final da Guerra Fria, após a queda da URSS e o desafio da adaptação do país a uma nova ordem internacional.”

O programa nuclear é simultaneamente a solução e a base de vários problemas com que o regime se depara

Chegado ao poder com 29 anos, KJU revelou-se um líder “menos ideológico do que o seu pai ou avô e mais extrovertido do que o pai”, acrescenta ao Expresso Jenny Town, diretora do “38 North”, um site de análise sobre a Coreia do Norte que vai buscar o nome ao paralelo que divide a península coreana em dois países. “Enquanto os antecessores construíram a sua legitimidade na condução do país através de conflitos e adversidades extremas, KJU, sem essa experiência, tem tentado construir um legado de prosperidade económica, e não apenas de sobrevivência.”

Com memórias da “Marcha Árdua” — um período de fome que afetou milhões de norte-coreanos entre 1994 e 1998, era o pai Presidente —, KJU assumiu a missão de fazer com que o povo não tivesse mais de morrer à míngua. Mas esse objetivo permanece uma intenção.

A ameaça da fome

Após uma visita à Coreia do Norte para avaliar o impacto da grave seca de 2018, o Programa Alimentar Mundial da ONU calcula que 11 milhões dos 25 milhões de norte-coreanos sofram de subnutrição. O cálculo não considera ainda os efeitos da pandemia. “A Coreia do Norte foi dos primeiros países a fechar fronteiras para evitar a entrada do vírus”, recorda Rita Durão. “A imposição de sanções internacionais — que não foram levantadas, como a Coreia do Norte pediu —, o impacto da pandemia e o aparente abandono de reformas económicas fazem temer pelo futuro económico do país e pelo possível surgimento de novo período de fome.”

“O acesso aos alimentos é uma preocupação séria. Crian­ças e idosos vulneráveis correm o risco de morrer à fome”, alertou Tomás Ojea Quintana, relator da ONU para os direitos humanos na Coreia do Norte, num relatório de 8 de outubro.

O acesso aos alimentos é uma preocupação séria. Crianças e idosos vulneráveis correm o risco de morrer à fome

A prioridade dada por KJU à proximidade com o povo, à promoção do bem-estar e à prosperidade não significou a abertura do país nem a rejeição do programa nuclear. “Comparativamente aos líderes anteriores, KJU é quem mais tem apostado no desenvolvimento do programa nuclear e balístico. Acredita ser esse o meio que lhe assegura a sobrevivência face a ameaças externas, nomea­damente dos Estados Unidos”, diz a analista portuguesa. “É também com KJU que vemos o programa nuclear desenvolver funções adicionais para o regime, tornando-se fonte de prestígio a nível externo e projetando a imagem da Coreia do Norte como potência nuclear, como os Estados Unidos, China e Rússia.”

“KJU parece ser um líder pragmático e disposto a correr riscos, embora a forma como conduziu o país durante a pandemia e antes, ao longo dos fracassos diplomáticos de 2018/2019, tenha enorme impacto na forma como governará daqui em diante”, diz Jenny Town. KJU coprotagonizou manchetes ao realizar cimeiras com os homólogos da Coreia do Sul e Estados Unidos, Moon Jae-in e Donald Trump. Porém, nenhum diálogo frutificou e hoje vinga a desconfiança de sempre.

Nuclear: bom e mau

O desenvolvimento simultâneo da economia e do programa nuclear e balístico mergulham o país num “círculo vicioso”, continua Rita Durão. “A Coreia do Norte realiza testes devido à ameaça externa. O programa nuclear é necessário para salvaguardar a segurança e para que o regime possa, posterior­mente, canalizar recursos para a economia. No entanto, é a constante aposta no nuclear que origina sanções internacio­nais. O programa nuclear é a solução e a base de problemas com que o regime se depara.”

Com uma saúde fragilizada pelo tabaco e pela obesidade, KJU está frequentemente na origem de rumores sobre a sua sucessão. “A sua saúde é importante, já que lidera um país com armas nucleares e pouco se sabe sobre quem as controla”, conclui Jenny Town. “Mas há uma reação exagerada sempre que ele desaparece dos olhares públicos.”

Artigo publicado no “Expresso”, a 11 de dezembro de 2021. Pode ser consultado aqui

Que acontece a quem foge da Coreia do Norte, arrepende-se e decide voltar para casa?

Não são muitos, mas há quem decida regressar depois de ter arriscado a vida para fugir do país mais fechado do mundo. Para muitos desertores norte-coreanos, a vida no Sul rico e democrático não correspondeu às expectativas. De volta à terra natal, onde enfrentam o rótulo de “traidores”, tanto os esperam punições exemplares como papéis de destaque na propaganda do regime

Num país tantas vezes descrito como autoritário, repressivo e impiedoso com quem hesita na lealdade ao regime, não se estranha que haja cidadãos que, em contextos de grande desespero, arrisquem a vida para fugir da Coreia do Norte — de onde só se sai com autorização superior. Já é mais difícil compreender que depois de concretizarem a fuga com êxito queiram regressar ao país de onde desertaram e onde têm o rótulo de “traidores”.

Segundo o Ministério da Unificação da Coreia do Sul, nos últimos cinco anos, pelo menos 12 desertores norte-coreanos deram-se mal no próspero e democrático Sul e optaram por regressar ao último reduto do comunismo à face da Terra: três em 2015, quatro em 2016, quatro em 2017 e um a 19 de julho passado. O número pode, na realidade, ser muito superior já que Seul não sabe do paradeiro de outros 891 desertores norte-coreanos.

O caso mais recente foi especialmente badalado. Segundo as autoridades de Pyongyang, um homem de 24 anos — que desertara para a Coreia do Sul em 2017, a nado, numa odisseia ao longo da fronteira mais fortificada e vigiada do mundo que lhe valeu sete horas e meia dentro de água —, é suspeito de ter reentrado na Coreia do Norte infetado com o novo coronavírus, condição que a Coreia do Sul não confirmou. Se até então, o regime norte-coreano não tinha admitido a existência de casos positivos de covid-19 no país, este “caso importado” facilitou a narrativa de Pyongyang sobre o assunto.

“As motivações [para o regresso de desertores norte-coreanos ao seu país] variam, mas no geral isso deve-se ao facto de as suas vidas na Coreia do Sul passarem por momentos difíceis”, explica ao Expresso Go Myong-Hyun, do Instituto Asan de Estudos Políticos, de Seul. “Neste caso recente, o desertor estava a ser acusado de agressão sexual e corria o risco de ser condenado a uma pena de prisão. Isso incentivou-o a regressar clandestinamente ao Norte.”

Há também quem queira regressar à Coreia do Norte porque ficou sem dinheiro, por vezes perdido em esquemas e golpes, ou também porque tem saudades da família. Lee Kwang-baek, diretor do jornal digital “Daily NK”, exemplifica ao Expresso ambas as situações.

“Lee Hyuk-chul, que foi para a Coreia do Sul em 2013, entrou em conflito com o seu irmão mais velho [também desertor] e tornou-se um vagabundo, antes de roubar um barco de pesca e regressar à Coreia do Norte. Já Chae Sung-chan, que entrou na Coreia do Sul em 1996, ficou com saudades da mulher e da filha e voltou para a Coreia do Norte em 2005. Entregou todo o dinheiro que tinha às autoridades norte-coreanas para evitar ser punido e pensa-se que conseguiu voltar a viver com a família.”

Outros ainda optam por voltar depois de verem a família ameaçada pelas autoridades norte-coreanas ou porque não conseguiram adaptar-se à realidade do Sul. “Frequentemente, os desertores da Coreia do Norte, em especial homens mais velhos que tiveram posições de algum poder na Coreia do Norte, tiveram dificuldades de adaptação à vida na Coreia do Sul”, diz ao Expresso Jenny Town, vice-diretora do “38 North”, sítio de análise à realidade norte-coreana.

“Aqueles que chegam ainda crianças conseguem adaptar-se mais facilmente, mas quem chega em idade pós-escolar costuma ter grandes dificuldades para se estabelecer num ambiente drasticamente diferente. Além disso, na sociedade sul-coreana ainda existe um pouco de discriminação contra os desertores norte-coreanos.”

As estatísticas do Ministério da Unificação sul-coreano indicam que desde 1998 atravessaram ilegalmente a fronteira com a Coreia do Sul 33.670 norte-coreanos — 135 dos quais no primeiro semestre deste ano. Mais de metade (19.228) tinham entre 20 e 39 anos quando desertaram e 5095 eram crianças ou jovens em idade escolar. Quase metade do total de desertores (15.140) eram “desempregados” e 13.342 “trabalhadores”.

Talvez o aspeto mais surpreendente do fenómeno das deserções norte-coreanas seja o facto de 72,1% do total de fugitivos (24.266) serem do sexo feminino. Desde 2002 que, anualmente, o número de desertoras é superior ao de desertores.

“A principal razão prende-se com o facto de, na sociedade norte-coreana, os homens terem mais possibilidades de arranjar empregos nos sectores formais — militares e Governo”, explica Jenny Town. Já às mulheres é dada liberdade para desenvolverem atividades económicas. As autoridades permitem que elas vendam nos mercados locais (jangmadang), onde os homens não estão autorizados a fazê-lo.

“As mulheres costumam trabalhar em fábricas ou nos sectores informais, em mercados e como empregadas domésticas, o que facilita a sua mobilidade”, continua Jenny Town. “Isso torna-as também mais bem preparadas para se adaptarem às economias de mercado assim que conseguem sair do país.”

Para as norte-coreanas que se predispõem a desertar para a China — o outro país, para além da Coreia do Sul, com quem a Coreia do Norte tem fronteira terrestre —, o caminho está muitas vezes armadilhado. “Muitas desertoras são vítimas de tráfico de seres humanos por parte de chineses e norte-coreanos”, afirma Go Myong-Hyun.

“Inicialmente, são recrutadas na Coreia do Norte com falsas promessas de emprego na China, mas assim que são traficadas para fora da Coreia do Norte são vendidas a homens chineses à procura de noivas. Algumas acabam por escapar das mãos dos seus maridos sequestradores para a Coreia do Sul.”

Aos desertores arrependidos o regresso à Coreia do Norte reserva destino incerto. “Vai depender das circunstâncias”, explica Jenny Town. “Os desertores capturados enfrentam punições severas, como longas sentenças em campos de prisioneiros. Porém, nos casos em que os desertores regressam voluntariamente, o castigo pode ser menos severo em virtude do potencial valor da situação para a propaganda.”

Em 2017, a desertora Lim Ji-hyun voltou à Coreia do Norte após ter vivido três anos na Coreia do Sul. Se no Sul se tornou um rosto conhecido na televisão por aquilo que representava, regressada ao Norte surgiu num vídeo em que falava na “falsa ilusão” que fora, para si, pensar que podia ganhar muito dinheiro no Sul.

(IMAGEM Mural de propaganda norte-coreana MARK FAHEY / WIKIMEDIA COMMONS)

Artigo publicado no “Expresso Online”, a 5 de agosto de 2020. Pode ser consultado aqui