Na península da Coreia, o sonho da reunificação esfumou-se. Norte e Sul multiplicam ameaças que parecem tornar a guerra uma questão de tempo. Enquanto Seul tem a proteção dos Estados Unidos, Pyongyang aproveita a necessidade de munições da Rússia para reforçar a sua indústria militar. Rita Durão, especialista em Relações Internacionais, detalha ao Expresso as razões para a retoma da tensão e também o que pode simbolizar as aparições públicas de Kim Jong-un na companhia da filha, ainda criança

Há seis anos, por esta altura, a península coreana estava a caminho de uma sucessão de cimeiras ao mais alto nível envolvendo as duas Coreias e os Estados Unidos que criou a ilusão de que a reconciliação coreana era possível.
Em Pyongyang mandava Kim Jong-un, como ainda hoje. Em Seul, governava Moon Jae-in, sensível ao tema por ser filho de refugiados norte-coreanos. E em Washington, era Presidente o imprevisível Donald Trump, que fez tábua rasa de décadas de prática diplomática norte-americana e tornou-se o primeiro Presidente dos Estados Unidos a pisar solo norte-coreano.
A ilusão foi breve e a realpolitik impôs-se. Hoje, como tem sido a tónica predominante nos últimos 70 anos, a tensão está de regresso à península, com o líder norte-coreano a orientar pessoalmente a realização de manobras militares e testes com mísseis.
Na terça-feira, a agência norte-coreana KCNA noticiava que Kim Jong-un supervisionou exercícios envolvendo “múltiplos lançadores de foguetes supergrandes” e defendeu ser necessário “convencer ainda mais os inimigos de que, se um conflito armado e uma guerra eclodirem, eles nunca poderão evitar consequências desastrosas”.
O principal inimigo da Coreia do Norte está identificado. A 15 de janeiro, num discurso na Assembleia Suprema do Povo (Parlamento), Kim Jong-un defendeu que a reunificação pacífica entre as Coreias — separadas desde 1953 — não era mais possível e que a Constituição do país deve ser revista para consagrar a Coreia do Sul como “inimigo principal e imutável”. E ameaçou:
“Se a República da Coreia [a do Sul] violar sequer 0,001 milímetro do nosso território terrestre, aéreo e marítimo, isso será considerado uma provocação de guerra”
Oito dias depois, a 23 de janeiro, imagens de satélite obtidas pela Airbus expuseram a destruição recente do Arco da Reunificação, um monumento icónico em Pyongyang que simbolizava a esperança na reconciliação.
A degradação da relação entre as Coreias “resulta de um conjunto de fatores e de vários intervenientes políticos que, década após década, têm falhado em desenhar uma abordagem realista para gerir a situação nuclear na península coreana”, explica ao Expresso Rita Durão, investigadora no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI).
“Apesar do ambiente de paz vivido há uns anos, as cimeiras não resultaram no alívio de sanções que o regime norte-coreano esperava, nem num tratado de paz que pusesse fim à guerra na Coreia [1950-1953, concluída apenas com um armistício]”, continua. “A política norte-americana quanto a este assunto permaneceu focada na necessidade de desnuclearização da Coreia do Norte previamente a qualquer tipo de concessões.”
Novo Presidente, nova política
Paralelamente à prioridade que a questão coreana perdeu na agenda internacional — relegada para segundo plano por crises que impactaram fortemente o mundo como a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia —, também a mudança de Governo na Coreia do Sul alimentou o braço de ferro.
À ‘pomba’ Moon Jae-in (impedido de se recandidatar por lei), sucedeu o conservador Yoon Suk-yeol, empossado a 10 de maio de 2022, que endureceu o tom relativamente ao vizinho do Norte.
Agora que Kim Jong-un abandonou o objetivo de reunificação — algo que Rita Durão considera ser “uma mudança de política sem precedentes no âmbito das relações intercoreanas” —, o Presidente sul-coreano já respondeu na mesma moeda: se o Norte provocar, o Sul “retaliará muitas vezes mais forte”.
“Podemos interpretar os testes balísticos realizados pela Coreia do Norte não só como uma forma de consolidar e expandir o seu arsenal como qualquer outro Estado com capacidade nuclear, mas também como sinal de reinício do aumento de tensões para depois preparar um momento para negociações”, analisa Rita Durão, doutoranda em Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa.
“Este momento para diálogo — a existir — poderá depender de vários fatores, nomeadamente o resultado das eleições presidenciais norte-americanas [a 5 de novembro] e das legislativas sul-coreanas [a 10 de abril], períodos durante os quais é já expectável que a Coreia do Norte aumente a tensão na península.”
O amigo americano
Na passada segunda-feira, o secretário de Estado norte-americano deslocou-se a Seul para participar na terceira edição da Cimeira para a Democracia, uma iniciativa de Joe Biden que reúne representantes de governos, organizações não-governamentais e membros da sociedade civil. Antony Blinken reuniu-se com Yoon Suk-yeol e reafirmou a “determinação contínua” dos dois países “face à retórica hostil e às atividades desestabilizadoras” da Coreia do Norte.
Os Estados Unidos têm cerca de 25 mil militares estacionados na Coreia do Sul. Na semana passada, os dois países terminaram os tradicionais exercícios militares anuais conjuntos, que duraram 11 dias e envolveram ações de interceção de mísseis e simulação de ataques aéreos. Este ano, o Freedom Shield, como se designa, estendeu-se por 48 exercícios de campo, o dobro da edição de 2023.
Horas antes da chegada de Blinken a Seul, o regime de Pyongyang disparou vários mísseis balísticos de curto alcance, que percorreram cerca de 300 quilómetros antes de cair no Mar do Japão.
E já com o norte-americano em solo sul-coreano, Kim Jong-un demonstrou que também ele valoriza alianças estratégicas e felicitou Vladimir Putin pela reeleição como Presidente da Federação Russa.
“Dar-lhe-ei firmemente as mãos enquanto atendemos às demandas dos tempos para proporcionar um novo ponto de viragem na amizade Rússia-Coreia do Norte, que tem longas raízes e tradições históricas”
(Excerto da nota enviada por Kim Jong-un a Vladimir Putin)
Coreia do Norte e Rússia partilham uma base ideológica comum que passa pela “luta contra a ordem liberal liderada pelos EUA, sendo estes últimos vistos como um ‘inimigo comum’”, diz Rita Durão. A guerra na Ucrânia acentuou o sentimento de identificação mútua ao colocar a Rússia no grupo das nações isoladas pelo mundo ocidental, onde já estava a Coreia do Norte.
“A Rússia, neste momento, precisa de todas as munições que conseguir na guerra com a Ucrânia. Numa perspetiva norte-coreana, a economia beneficia do comércio de armas com a Rússia, mitigando o impacto das sanções e, ao mesmo tempo, assegura alguma assistência técnica russa no âmbito da expansão do programa balístico norte-coreano.”
Recentemente, Kim Jong-un surgiu num evento público numa limousine Aurus Senat, de fabrico russo, oferecida por Vladimir Putin, que usa este carro de luxo como veículo oficial.
Esta semana, um grupo de bailarinos russos pertencentes ao Teatro Mariinsky, de Vladivostok, apresentou em Pyongyang o ballet “A Bela Adormecida”. É o mais recente de uma série de intercâmbios com que Moscovo e Pyongyang querem afirmar a sua amizade.
Potência nuclear onde se morre à fome
A intensidade com que o regime de Pyongyang aposta na indústria de armamento para projetar poder conflitua com a grande vulnerabilidade socioeconómica do país, designadamente ao nível da segurança alimentar.
Fortemente isolado do resto do mundo, a Coreia do Norte descreve-se como um Estado socialista autossuficiente (ideologia Juche) e justifica a aposta no nuclear como uma necessidade para garantir a sobrevivência.
“A Coreia do Norte coloca a sua própria sobrevivência como prioridade máxima, sendo esta assegurada através da aposta no seu programa nuclear e balístico. Olha, por exemplo, para a Ucrânia como mais um caso de como um país que, após ter abandonado a sua capacidade nuclear, foi invadido. Nesse sentido, a economia da Coreia do Norte depende fortemente do sector militar e do comércio de armas, o que resulta numa alocação desproporcional de recursos para este sector em detrimento de outras áreas ligadas a suprir necessidades básicas e o bem-estar da população norte-coreana”, explica Rita Durão.
“Acaba por ser um círculo vicioso. A Coreia do Norte vê o programa nuclear como essencial à sua segurança e os recursos existentes são maioritariamente canalizados para esse sector. Porém, a aposta no programa resulta em sanções adicionais que servem, em última instância, a narrativa do regime de que o programa nuclear é, de facto, essencial à sua segurança, bem como a narrativa de autossuficiência”, acrescenta.
“Enquanto essa dinâmica persistir, a situação humanitária na Coreia do Norte continuará a ser relegada para segundo plano. Será talvez prudente que a comunidade internacional considere levantar algumas sanções — parte do motivo pelo qual o diálogo entre os EUA e a Coreia do Norte falhou foi exatamente neste âmbito —, dado que a eficácia das mesmas tem sido questionada ao longo do tempo”, defende a investigadora do IPRI.
Nos eventos públicos, seja numa simples visita de caráter social, seja em ambientes mais sensíveis, como exercícios militares, o líder norte-coreano, de 40 anos, surge, cada vez mais, na companhia de Kim Ju-ae, a filha, que terá à volta de 10 anos de idade.
“Tem-se especulado que as aparições públicas de Kim Jong-un com a filha podem indicar que o regime se encontra a preparar a sucessão hereditária, assegurando que a transição é feita progressivamente, com o propósito de mostrar continuidade da dinastia Kim”, conclui Rita Durão.
“Há dois aspetos relevantes a realçar. Em primeiro, a questão das normas de género na Coreia do Norte, um país muito patriarcal, pelo que a visibilidade de uma herdeira pode sugerir uma evolução ou tentativa de projetar uma Coreia do Norte aberta à incorporação da mulher em posições de poder (como, aliás, já se fala também em relação à irmã de Kim Jong-un).”
“Em segundo, a aparição da filha com o pai nomeadamente em visitas de âmbito militar (ligadas ao programa nuclear e balístico) poderá também servir o propósito de consolidar o poderio nuclear como algo que é irreversível na história da Coreia do Norte, servindo também para assegurar o futuro das futuras gerações.”
Artigo publicado no “Expresso Online”, a 21 de março de 2024. Pode ser consultado aqui






